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Antonio Miguel
Universidade Estadual de Campinas
miguel37.unicamp@gmail.com
RESUMO
Este artigo tem como propósito abordar terapeuticamente possibilidades de problematização
de práticas culturais diversas em ambientes formativos institucionalizados, apostando-se em
suas potencialidades performativas para a promoção de práticas educativas transgressivas.
Para este fim, fazemos, por um lado, um uso transgressivo-desconstrucionista dos escritos
de Ludwig Wittgenstein, em particular, de seus estudos tardios, para se questionar o modo
liberal-disciplinar-individual-meritocrático de se fazer escola praticando-a, invariavelmente,
como lócus de assimilação psicológico-cognitiva de competências e habilidades em
conteúdos disciplinares, o que torna as práticas educativas ideologicamente comprometidas
e solidárias com a manutenção de regimes de verdade politicamente opressores,
discriminadores, belicistas e socialmente excludentes. Por outro lado, fazemos também um
uso transgressivo construtivo das investigações do filósofo, propondo-nos a descrever
encenações de práticas culturais com um grupo de professores que levaram à investigação e
realização efetivas, na escola, de práticas educativas indisciplinares, não dogmáticas e não
homogeneizadoras. Tais práticas também mostraram seus poderes performativos
transgressivos para a investigação e promoção de práticas escolares outras, orientadas por
uma ética pós-humanista que elege as vidas que vicejam em diferentes formas de vida como
eixo da ação educativa de formas de escolarização por virem.
Palavras-chaves: Educação escolar. Práticas culturais. Ética pós-humanista.
Transgressividade. Wittgenstein.
ABSTRACT
This article aims to address therapeutically possibilities for problematizing cultural practices
in institutionalized formative environments, focusing on their performative potentialities for
the promotion of transgressive educational practices. To this end, we make, on the one hand,
a transgressive-deconstructionist use of Ludwig Wittgenstein's writings, in particular, of his
late studies, to question the liberal-disciplinary-individual-meritocratic way of making
RESUMEN
Este artículo tiene como objetivo abordar las posibilidades terapéuticas para problematizar
diversas prácticas culturales en entornos formativos institucionalizados, centrándose en sus
potencialidades performativas para la promoción de prácticas educativas transgresivas. Con
este fin, hacemos, por un lado, un uso transgresor-deconstruccionista de los escritos de
Ludwig Wittgenstein, en particular, de sus últimos estudios, para cuestionar la forma liberal-
disciplinaria-individual-meritocrática de hacer la escuela practicándola, invariablemente ,
como el lugar de asimilación psicológico-cognitivo de competencias y habilidades en
contenidos disciplinarios, lo que hace que las prácticas educativas sean ideológicamente
comprometidas y solidarias con el mantenimiento de regímenes de verdad políticamente
opresivos, discriminatorios, belicistas y socialmente excluyentes. Por otro lado, también
hacemos un uso constructivo transgresor de las investigaciones del filósofo, proponiendo
describir la puesta en escena de las prácticas culturales con un grupo de docentes que
condujeron a la investigación y la realización efectiva, en la escuela, de prácticas educativas
no disciplinarias, no dogmáticas y no homogeneizadoras. . Dichas prácticas también
mostraron sus poderes performativos transgresores para la investigación y promoción de
otras prácticas escolares, guiados por una ética poshumanista que elige las vidas que
prosperan en diferentes formas de vida como un eje de la acción educativa de las formas de
escolarización por venir.
Palabras clave: educación escolar, prácticas culturales, ética poshumanista, transgresión,
wittgenstein.
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Este artigo é uma produção gerada com base em estudos de pós-doutoramento da primeira autora do texto,
sob a supervisão do segundo autor, realizados com apoio financeiro do Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico, CNPq.
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tempos da era digital e tecnológica, se exerce não somente para regular corpos individuais,
mas também, para controlar populações (GALLO, 2008). A esta dupla forma de exercício
de poder Foucault (2000) denomina biopoder, visto por ele como
o conjunto dos mecanismos pelos quais aquilo que, na espécie humana, constitui
suas características biológicas fundamentais, vai poder entrar numa política, numa
estratégia política, numa estratégia geral do poder (FOUCAULT, 2000, p. 3).
Com isso, a escola se caracterizou como uma entre inúmeras outras instituições que
visam produzir subjetivações com o propósito de constituir práticas privadas e públicas de
controle e domesticação de corpos individuais e de populações. Porém, as práticas
educativas que se realizam na escola e em outros ambientes formativos institucionalizados
mantêm seus propósitos disciplinarizantes, porque a escola desempenha uma função
estratégica na consolidação e na manutenção de sociedades neoliberais (MIGUEL, 2016b).
Para isso, é dado a esses ambientes formativos o poder exclusivo de desenvolverem
competências e habilidades nos estudantes para que eles atuem de forma qualificada no
mercado de trabalho. A escola aberta para todos, qualifica todos, mas certifica apenas os
melhores. E o discurso da certificação opera com base na promessa ilusória de que os
certificados dariam acesso aos melhores bens de consumo e a empregabilidade de carreira
(MIGUEL, 2014).
Esses discursos foram instituídos nas sociedades neoliberais para preservar as
relações assimétricas de poder por elas instaladas e encobrir seus efeitos de
verdade2(FOUCAULT, 2004). A escola não é para todos, porque exclui quase todos e todas
pelos instrumentos avaliativos utilizados, pela domesticação que realiza, pelos conteúdos
que elege como relevantes, pelas matrizes de avaliação produzidas para se verificar a
ocorrência de aprendizagem dos conhecimentos transmitidos, pela padronização dos tempos
e dos espaços físicos, entre muitos outros. A escola também não prepara para o trabalho e
nem para a vida, uma vez que se estrutura em saberes isolados e disciplinares. Os certificados
que ela emite não dão garantias quanto à conquista de melhores condições de vida, uma vez
que sociedades neoliberais se estruturam somente para uma minoria ter acesso aos seus
melhores bens de consumo.
Essas ilusões amplamente presentes no discurso neoliberal para impor um único
regime de verdade3 (FOUCAULT, 2009) têm gerado efeitos nefastos para a comunidade
escolar e para a sociedade como um todo, desde a aversão dos estudantes pela escola e as
consequentes desistência e exclusão, até os péssimos níveis de desenvolvimento social,
humano e econômico nos quais os indíviduos se encontram submetidos.
As ideias de Miguel, Vilela, Moura (2010) são orientadas por uma ética
transgressiva que coloca em descrença todo o projeto de escolarização da escola republicana,
em função deste pautar-se exclusivamente no propósito de se ensinar pela oralidade e pela
escrita, um conjunto de conhecimentos estáticos, lineares, etapistas, genéricos, abstratos,
2
Efeitos de verdade podem ser entendidos como todas as implicações geradas pela manutenção inconteste de
verdades criadas para perpetuar específicas relações assimétricas de poder.
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Regimes de verdades são discursos constituídos para manter relações assimétricas de poder e de saber
inquestionáveis e naturalizados.
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de sujeição a que nos encontramos presos. Essa conduta tem a potência de produzir novos
modos de estar do mundo e novos esquemas de politização.
Esses novos modos de estar no mundo se relacionam com a postura cética sugerida
por Foucault (2000) em relação aos regimes de verdade a que estamos vinculados. Esta
postura corresponde a desacreditar e a desconfiar que tais regimes são legítimos, ou seja,
compreender que eles são criados para impor vontades de verdade4 (VEYNE, 2011) como
verdades únicas, fixas e eternas. Assim, adotar uma postura cética é necessário para se
instituir uma postura transgressiva, como aquela proposta por Pennycook (2014).
A disciplina, seja ela vista como corpo de conhecimentos sistematizados e
estruturados com fins de aprendizagem individual em contextos educativos, seja ela
compreendida como mecanismo de tornar corpos dóceis e vigiados, assim se estruturam,
com o propósito inconteste de perpetuação de formas exclusivas de verdade, de poder e de
saber.
Tais formas exclusivistas de verdade, poder e saber têm transfigurado eticamente
as práticas educativas realizadas em ambientes institucionalizados como escolas e
universidades no sentido de eliminação da diversidade de modos e tempos de ser, agir e
interagir nas diferentes esferas da vida (VEIGA -NETO, 1996).
Em outras direções, as práticas de problematização indisciplinares sugeridas por
Miguel, Moura e Vilela (2010) operam como transgressivas do papel da escola vista como
local de transmissão individual, mentalista e verbalista de conteúdos disciplinares,
praticando-a como um local de “problematização de diversas e heterogêneas práticas
culturais indisciplinares que efetivamente são realizadas em diferentes contextos não
escolares de atividade humana” (MIGUEL, 2014, p. 26, tradução do autor). Para Jesus
(2015), a “indisciplina abriria espaço para imaginação de práticas escolares distintas
daquelas impostas pelo cetro racional-disciplinar” (p. 49). Neste artigo, nossa conduta
transgressiva se orientou pelo propósito de realizar uma terapia gramatical do problema
relativo à inserção de práticas culturais transgressivas na escola.
Nele, significamos a expressão práticas culturais como um conjunto regrado de
ações intencionais efetivas que mobilizam simultaneamente saberes, propósitos, desejos,
memórias, afetos, valores, poderes etc. que são co-encenadas por humanos e outros seres
naturais. As práticas culturais são encenações simbólico-corporais, porque, nelas, as
interações de corpos humanos e outros seres naturais se orientam por propósitos específicos
que se constituem em diferentes formas de vida5e produzem um verdadeiro arquivo cultural
de práticas tangíveis e intangíveis.
Nesta direção, este artigo realizará uma terapia gramatical sobre o problema da
inserção de práticas culturais na escola, a partir de diálogos com a obra de Ludwig
Wittgenstein, como orientação para modos transgressivos de se conceber, produzir e
descrever pesquisa na escola. A obra do filósofo gera contínuas reflexões sobre crenças,
4
A expressão "vontade de verdade” visa enfatizar que as verdades existentes na relação poder-saber são
criações, são invenções oriundas de uma vontade, ou seja, de um indivíduo, de um grupo, de uma instituição,
de um governo, etc., portanto são ilegítimas e questionáveis.
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Estamos usando uma expressão presente nos estudos de Wittgenstein, a qual será detalhada no decorrer do
texto.
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Na prática do uso da linguagem (2), uma das partes chama as palavras, a outra age
de acordo com elas; no ensino de uma língua, porém, encontramos este processo:
o aprendiz denomina os objetos. Isto é, ele fala a palavra quando o instrutor aponta
para a pedra. – Vai-se encontrar aqui até um exercício mais fácil: o aluno fala as
palavras que o instrutor lhe dita — ambos são processos semelhantes à linguagem.
Podemos também imaginar que todo o processo de uso de palavras em (2) seja um
desses jogos por meio dos quais as crianças aprendem a língua materna. Quero
chamar esses jogos de “jogos de linguagem”, e falar às vezes de uma língua
primitiva como um jogo de linguagem. E poder-se-ia chamar os processos de
denominação das pedras, e de repetição das palavras ditadas também, de jogos de
linguagem. Pense nos vários usos de palavras que se faz nas brincadeiras de roda.
Chamarei também a totalidade: da linguagem e das atividades com ela
entrelaçadas, de “jogo de linguagem” (WITTGENSTEIN, 2017,§ 7) .
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Nos estudos de Wittgenstein (2017), o verbo “ver” tem uma conotação ampla e metafórica que nos convida
ao pensamento transgressivo, no sentido de transpor dogmas e crenças únicas e limitantes
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[...] O que todos eles têm em comum? – Não diga: “Tem que haver para eles algo
em comum, senão eles não se chamariam ‘jogos’” – mas veja se todas as coisas
são comuns para eles. – Pois se você os examina, não vai ver, na realidade, algo
que todos têm em comum, mas semelhanças, parentescos, e, na realidade, toda
uma série dessas coisas. Como foi dito: não pense, veja! – [...] E o resultado dessa
observação é agora: vemos uma complicada rede de semelhanças que se
sobrepõem e se cruzam mutuamente. Semelhanças no grande e no pequeno (
WITTGENSTEIN, 2017, §66, grifos nossos).
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Wittgenstein questiona: “Qual é a sua meta em filosofia? – Mostrar à mosca a saída da armadilha da garrafa”.
(WITTGENSTEIN, 2017, §309).
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[...] toda explicação tem que sair, e colocar só a descrição no seu lugar. Essa
descrição recebe sua luz, isto é, sua finalidade, dos problemas filosóficos. Estes,
certamente, não são empíricos, mas são resolvidos por uma inspeção no modo de
trabalho da nossa linguagem, e, na realidade, de tal modo que este se reconhece:
contra um impulso a não compreendê-lo [...]
Profa.Érika: No vídeo, fala que a prática de produção de cuias, professora, vem do índio. Eles precisaram de
um recipiente, então, olharam para uma árvore e viram que ela tinha um fruto de casca dura. Então, eles, os
índios, tinham que deixar no sereno e depois colocar para secar e tirar o material de dentro. Depois de um
tempo, eles passaram a usar um verniz natural, chamado cumatê, porque antes dava bicho na cuia.
Prof.Idoval: Eu estava esperando, também, o vídeo falar de um outro processo que a gente usa para fazer a
cuia. A minha avó fazia, eu me lembro bem, para usar na produção de farinha, cuias dessas mesmo, grandes.
Também professora, tem uma sabedoria para cortar, não se corta bem no meio, se cortar no meio não vai
funcionar.
Prof.Idoval: Aí professora, tem outro processo que a minha avó fazia. É que tem mesmo esses cinco dias, mas
também não é qualquer noite que se tira ela, tem que estar uma noite escura para apanhá-la.
Prof.Idoval: Aí, eu não vi no vídeo, mas se usava urina na produção da cuia. Parece mentira, mas ficava uma
imundície lá, e se colocava toda a urina no pote. A urina ficava de vários dias. [ se refere ao processo de uso
da urina humana junto com cinzas e palhas para o processo de queima da cuia, o qual lhe dá a cor preta e
sela a sua impermeabilidade].
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Trata-se de um cesto feito de gravetos de uma árvore amazônica, confeccionado com o propósito de capturar
peixes em uma área já alagada com correnteza e fluxo de água.
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a toda prática cultural que se realiza orientada por um propósito normativo, isto é, a toda
prática que se realiza orientada por um algoritmo, script ou modo corporal de agir que,
seguido à risca, leva ao atingimento inequívoco do propósito almejado.
Além disso, a encenação verbal da prática indígena de produção de cuias abordada
no vídeo levou um dos professores participantes do curso a estabelecer, por semelhanças e
diferenças, relações analógicas entre tal prática e outra de mesmo propósito que era realizada
por sua avó. Assim, ele relatou a existência de uma outra técnica, isto é, de uma outra prática
normativa, diferente da prática indígena, que também utilizava a urina humana e a árvore
apropriada para se produzir cuias.
Destacada do seu campo de atividade ou de sua forma de vida, o uso pedagógico
que fizemos da prática de produção de cuias realizada por meio do vídeo pode ser entendido
como um uso de uma encenação simultaneamente visual e verbal-descritiva desta prática,
orientada por um propósito pedagógico, uma vez que nós intencionalmente mobilizamos tal
prática em um outro campo de atividade humana, o que a transforma em uma outra prática
(MIGUEL, 2016a, p. 217). Inspirado em Wittgenstein, Miguel (2016a) se refere a essas duas
práticas (a prática efetiva de produção de cuias e a prática pedagógica de problematizar a
prática de produção de cuias encenada através de um vídeo) como “práticas corporais nem
sempre verbais ou exclusivamente verbais que são diretamente encenadas em diferentes
contextos de atividade humana” (MIGUEL, 2016a, p. 217). No caso da prática de
problematização pedagógica, trata-se de uma encenação em que os corpos envolvidos
realizam ações corporais – dentre elas, gestos significativos, linguagem fílmica e a própria
linguagem oral - para produzirem relatos analógicos sobre práticas encenadas em formas de
vida alheias à comunidade pedagógica que realiza a encenação, bem como ao espaço-tempo
vital onde a encenação se processa.
Desta forma, Miguel (2016a) diferencia a encenação indireta, videográfica e
pedagogicamente orientada da prática indígena de produção de cuias – a qual, efetivamente,
não produz cuias e nem intencionou produzi-las - de outras encenações diretas dessa mesma
prática, orientadas pelo propósito exclusivo de se produzir efetivamente cuias, vendo-as,
todas elas, como jogos de linguagem diferentes, encenados em tempos-espaços vitais
diferentes, no interior de formas de vida diferentes. Nos casos de encenações diretas da
prática de produção de cuias, explica o autor, “nosso corpo age preponderantemente por
observação visual e imitação cinestésica das ações envolvidas” (MIGUEL, 2016a p. 217).
Ou seja, as encenações diretas da prática de produção de cuias são aquelas em que os seres
que contracenam nos diferentes jogos de linguagem que visam produzir cuias co-re-
significam tal prática, modificando ou não alguns de seus aspectos a fim de adaptá-la a
diferentes propósitos visados por diferentes formas de vida que ainda valorizam e tal prática
e, de algum modo, a preservam. As diferentes encenações diretas da prática de produção de
cuias, em diferentes formas de vida que a valorizam são vistas e denominadas por Miguel
(2016a, p. 346) de “encenações miméticas” .
Nesta direção, compreendemos as encenações miméticas de uma prática cultural
como jogos de linguagem em que corpos humanos performam, interagem ou contracenam
entre si e com outros seres naturais, de forma analógica a encenações culturais precedentes
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Profa. Rosangela: O vídeo mostra que o rapaz aprendeu esse prática quando ele tinha 13 (treze) anos, com o
tio dele. Interessante, professora, foi aprender como eles negociam a venda e construção do barco. Eles
fecham o valor total do barco, por exemplo, 400 (quatrocentos) reais; então, essa pessoa deixava 100 (cem)
reais, e então, ele construía uma parte do barco com aquele valor e depois a pessoa dava outro valor e ele
construía mais um pouco e assim sucessivamente. Às vezes, eles tinham calote e as pessoas não voltavam.
Profa. Carla: É legal como eles estimam o preço do barco. Eles estimam por pessoa; cada pessoa, por
exemplo, vale 50 (cinquenta) reais, e se o barco é para 4 (quatro) pessoas, então, ele vale R$ 200 (duzentos)
reais.
Profa. Luci: Quem ensinou ele não ensinou tudo. Ele teve que ir se aperfeiçoando ao longo do tempo.
Profa. Formadora: Sim. É um ensino que envolve outras linguagens, não um ensino que se diz “faz assim e
assim”. É um ensino que você aprende olhando e fazendo, pela prática se vai aprendendo.
Profa. Carla: Ela mostrou vários tipos diferentes de embarcação, a gaiola, a montaria, o pique-pique. Mostrou
um barco de montaria. Meu pai ainda usa esse tipo de barco e ele diz que, em outro tipo de barco, essas
rabetas que a gente usa, ele cai, ele não sabe andar.
Profa. Carla: Ele também disse que sabe que daqui a algum tempo, ninguém mais vai fazer barcos, porque
ninguém mais quer aprender essa profissão. Então, quando ele perguntou para algumas crianças o que elas
gostariam de ser, ele disse, professora, no vídeo, que nenhuma das crianças disse que queria ser carpinteiro.
Elas disseram que queriam ser médicos e advogados. Então, ele disse que daqui a alguns anos ninguém vai
trabalhar com isso, porque até matéria-prima está difícil de conseguir. As pessoas têm derrubado as árvores,
só para pegar uma grana.
Profa.Carla: Ele falou da satisfação dele em trabalhar com a construção de barcos. Ele falou que quando ele
entrega o barco para o dono, ele ficava mais feliz que o dono, porque ele via que trabalho dele tinha acabado
e ele tinha concluído.
Profa. Ana: Ele ouvia depois os comentários das pessoas de que o trabalho havia ficado muito bonito, e ele
ficava orgulhoso e isso eu achei bem interessante.
Nestes segmentos destacados das falas dos professores, podemos notar que um dos
aspectos da prática de construção de barcos que mais os afetaram foi a maneira pela qual os
carpinteiros negociam o propósito final da prática que realizam, qual seja, o fato de a
comercialização dos barcos por eles construídos ser feita de forma fragmentada e baseada
na confiança entre compradores e vendedores. Isso mostra que as características de práticas
de comercialização, assim como as de quaisquer outras, dependem não apenas da natureza
do objeto a ser comercializado e da técnica que tornou possível a sua produção, mas também
dos valores e condicionamentos biopolíticos reguladores da forma de vida em que tal objeto
foi produzido.
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Profa. Laiane: É uma prática desenvolvida na mata, tanto de noite como de dia. Mas à noite, tem que ser no
luar, né?
Profa. Jessica. Meu pai saía para caçar, dependendo da noite, se era luar ou não, ele tinha um jeito de ir
vestido. Mas eu não sei por que, se era por causa do carapanã [nome de um mosquito], sei lá o que era.
Também, eles não utilizavam nada para calçar, ele tinha esse cuidado porque a hora que ele ia esperar a
caça, que isso facilitava para não fazer barulho. E não poderia usar nenhum produto [se refere ao uso de
produtos no corpo] . E durante a noite, antes de ele sair, ele verificava qual era a noite mais propícia para a
caça. Se estivesse chovendo não era bom. Se estivesse muito vento, fazia muito barulho durante a noite. Então,
se estivesse muito vento, ele não iria. Ele tem que fazer silêncio e ele tem que estar com o ouvido bem atento.
A lanterna era só para ele se guiar, mas quando ele ia pegar e observar a caça ele só fazia piscar a lanterna.
Profa. Jéssica: Ah! professora, o vídeo mostrou que o animal era caçado, mas só para o consumo próprio.
Profa. Laiane: O rapaz que a gente viu no vídeo disse que começou a caçar quando ele tinha 8 (oito) anos de
idade. No vídeo, ele acertou um juruti que é um pássaro pequeno. Ele acertou no pescoço. Eles comem porque
ele é comparado com uma galinha.
Profa. Jessica: Hoje em dia, a gente não come certos tipos de animais, mas antigamente comia. Eu já ouvi
falar que meus avós comiam____ (inaudível), eles comiam.
Profa. Formadora: Olha que prática interessante! Pelo ouvido eles sabiam que bicho é, sabe a distância que
ele está e a direção também.
Profa. Carla: Professora, eles sabem até que animal está se aproximando pelo som.
Profa. Carla: Meu pai diz que sabe quando é tatu ou quando é paca que está andando no escuro.
Profa. Jessica: O silêncio é essencial, se a pessoa que estiver lá fizer algum barulhinho, a caça percebe e vai
embora. Uma vez, meu pai foi caçar com a minha avó. Mas ela foi de bota e fez barulho, meu pai não gostou
e trouxe ela de volta.
Na descrição das professoras, é possível observar que a prática de caça, para atingir
o seu propósito, a saber, a captura de um animal para consumo, envolve um amplo saber a
respeito do lugar, da influência e da relação dos humanos com outros seres naturais. Este
saber possui múltiplas dimensões. Envolve a identificação da noite, a condição do vento e o
tempo propício para se realizar essa prática. Também compreende o saber sobre o
comportamento dos animais, seus sons e suas pegadas e, sobretudo, o reconhecimento de
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que animais não humanos também se mostram cientes sobre sons e movimentos físicos dos
seres humanos e de outros seres naturais que convivem em seu habitat.
Esses saberes - escolha de vestimentas, habitat e horário adequados; modos de se
movimentar e de se comportar no mato de dia ou de noite; instrumentos de apoio e modos
de se utilizá-los à noite ou de dia etc. - são produtores de regras e de técnicas relativas à
prática de caça, e são eles que orientam e condicionam a encenação humana a fim de que o
propósito da prática – abater a caça - seja inequivocamente alcançado. Caso transgridam as
regras orientadoras dessa prática, os animais reconhecerão a presença humana e se afastarão
dela, porque sabem ser uma ameaça para eles. Trata-se, portanto, de uma relação de
conhecimentos e de reconhecimentos mútuos.
Na prática da caça, uma percepção específica – a auditiva - do corpo do praticante
se mostra decisiva, pois é ela que é predominantemente acionada pelo caçador para
identificar animais e sua localização com precisão. Assim, para adensar a sua caracterização
da prática de caça, a professora destaca, ainda, ser o silêncio um aspecto fundamental para
o êxito dessa prática na perspectiva humanista, isto é, na perspectiva dos humanos com ela
envolvidos. Por outro lado, na perspectiva dos animais, detectar o perigo ou o risco de morte
no gesto de silêncio oportunista dos humanos que os perseguem é o aspecto reverso
fundamental do jogo (ant)agonista de linguagem instaurado pela prática da caça. Nesse jogo,
o significado do gesto de silêncio corporalmente mostrado pelo ser humano à sua caça
animal, contrasta e opõe-se ao significado do gesto de silêncio corporalmente mostrado pelo
animal não humano ao seu caçador humano. Neste jogo, o silêncio não pode, portanto, ser
visto ou significado, mesmo que só pelos humanos, como um aspecto valorativo único e
eticamente neutro de uma prática situada de caça. Pois não estamos diante do mesmo
silêncio. Na perspectiva de um humano que caça, no exercício dessa atividade, o seu silêncio
se mostra como a condição crucial para a contemplação inequívoca do propósito que orienta
a sua atividade. Assim, a iteração do silêncio de caçadores humanos de todos os espaços-
tempos e os modos como esse aspecto de sua atividade afetaram as caças humanas e não
humanas de todos os espaços-tempos constituiu e vem constituindo um aspecto do saber
humano sobre os outros animais, humanos ou não humanos.
Os professores estabeleceram um link entre a prática de caça encenada no vídeo e
aquelas das quais participavam membros de suas famílias. Assim afetados, eles se viram
motivados a falar como seus pais e seus avós encenavam esta prática. Ao comentarem o
visto no vídeo, um aspecto da prática de caça lhes afetou foi o propósito de consumo familiar
da caça capturada. Semelhantemente, uma das professoras destacou que seus avós também
praticavam a caça para consumo familiar e se alimentavam de vários animais que,
atualmente, não são mais consumidos.
Um dos aspectos da prática de problematização pedagógica das práticas aqui
referidas, destacado pelos professores participantes do curso, que também nos afetou foi o
de que as práticas culturais tecidas nos tapetes de diferentes formas de vida são, por essa
razão, constitutivas de vidas e constituídas por vidas. Tais práticas só puderam se constituir
através da agência negociada entre seres humanos e outros seres naturais, de modo que as
técnicas, isto é, as práticas normativas que constituíram e instituíram diferentes formas de
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vida são, a rigor, co-produções de seres vivos voltados à produção de vidas, de uma
multiplicidade de formas de se organizar a vida.
Além disso, práticas culturais são engendradas por saberes e rituais valorativos e
eticamente orientados acerca dos limites da intervenção humana sobre os próprios humanos
e sobre os demais seres naturais (se os homens dormirem com suas mulheres, o matapi fica
infértil, por exemplo). As práticas também mobilizam afetos e sentimentos de quem as
pratica. Felicidade e satisfação são alguns deles. Angústias, riscos e inseguranças são outros.
Soma-se a isto, o fato de as práticas encenadas nos vídeos terem sido
analogicamente relacionadas pelos professores às práticas diretamente encenadas por
membros de suas famílias. Tais links provavelmente se estabeleceram por terem eles
presenciado seus familiares ou outras pessoas encenando diretamente tais práticas (práticas
mimeticamente encenadas) ou simplesmente por terem ouvido relatos sobre elas (práticas
verbalmente encenadas)9. Com isso, a formação dos professores participantes do curso não
pode ser vista como algo que simplesmente acontece nos centros particularmente destinados
à essa formação por força prescritiva do ensino de saberes disciplinarmente configurados,
mas também como algo que acontece em todas as formas de vida das quais formadores e
docentes em formação direta ou indiretamente teriam participado e participam em suas vidas.
É essa multiplicidade interativamente dinâmica, difusa e confusa de espaços vitais - e de
identificações e saberes multiplamente diversos e mutantes que se constituem nos ruídos e
nos silêncios desses espaços - que uma aposta de formação docente indisciplinar centrada na
problematização terapêutica de práticas culturais e de formas de vida deseja fazer aflorar,
com o propósito único de se preparar humanos a cuidarem não unicamente de suas vidas,
mas das vidas, das formas de vida, contribuindo para que elas continuem vicejando, sempre
que isto se mostrar bioeticologicamente vicejável, ou contribuindo para que elas se tornem
vitalmente inativas ou se transformem e passem a vicejar em outras direções e com outros
compromissos bioeticologicamente vicejáveis.
Este texto teve como objetivo realizar uma terapia gramatical acerca da inserção de
algumas práticas culturais em ambientes formativos institucionalizados. Tal terapia visou
identificar modos como a problematização pedagógica de tais práticas afetaram os corpos
de professores participantes de um curso intencionalmente ofertado com tal propósito.
Quando elegemos tematizar a vida encenada mimeticamente pela realização direta
de tais práticas culturais, ou verbalmente pelas suas problematizações pedagógicas indiretas,
o propósito que nos moveu foi o de mostrar panoramicamente o que está manifesto nas
vidas, em diferentes formas de vida. Em suas vidas, os seres humanos não vivem isolados
ou apartados de outras vidas, ao contrário, eles sempre se constituem e se organizam em
diferentes formas de vida. É esta organização vital interativa que lhes permite produzir
saberes sobre outros seres naturais, sobre outros seres humanos, sobre si próprios, sobre as
vidas e sobre as próprias formas de vida.
Portanto, acreditamos, é justamente a natureza ambivalente das práticas culturais
em relação, por um lado, à conservação de vidas, à produção de vidas novas e de renovação
e, por outro lado, em relação aos seus poderes depredatórios e destrutivos da própria vida,
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Nas palavras de Tamayo-Osório (2017, p. 21), “as práticas socioculturais são dizeres/fazeres que mobilizam
conhecimentos e memórias e envolvem ações”.
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que nos levou a vê-las como o foco politicamente vital tanto da formação indisciplinar e
transgressiva de estudantes da educação estatal básica quanto da formação igualmente
indisciplinar e transgressiva de professores envolvidos com esta formação.
São as práticas constitutivas de diferentes formas de vida e modos
terapeuticamente transgressivos de se problematizá-las no campo educativo que nos levam
a imaginar outros modos de se fazer e praticar escolas, outros modos de se praticar
formações de humanos que transgridam a persistente política civilizadora pautada em
formas evolutivas de organização social e de educação escolar que veem a humanização
concebida como a luta constante contra a selvageria, como o propósito final dos processos
de escolarização.
O projeto ético de cunho pós-humanista que orienta esta aposta intenciona implodir
o modelo de escola e de práticas formativas neoliberais. A problematização
pedagogicamente orientada de práticas culturais como foco privilegiado da formação escolar
opera no sentido de se abrir brechas nesse sentido.
Referências
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Antônio Miguel
Universidade Estadual de Campinas
E-mail: miguel37.unicamp@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7156-8291
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