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O TRABALHO DAS LINHAS: POLÍTICA, DEMOCRACIA, ESCRITA


INVOCAR O TRABALHO DAS

O trab
ALEXANDRE MENDES LINHAS é tentar encontrar uma
Em março de 2019, foi realizado o Seminário Interna-
Professor Adjunto da Faculdade de posição que permita investigar os

a
cional O trabalho das linhas: estética, política, direito,

das lin lho


Direito da Universidade do Estado do impasses e as possibilidades da
Rio de Janeiro (UERJ), membro do uma iniciativa interinstitucional que contou com o atualidade a partir de múltiplas
Programa de Pós-Graduação em Di- apoio de diversas universidades e escolas superiores perspectivas. Essa busca é susten-

has:
reito (PPGD); Pós-Doutor em Filoso- sediadas no Rio de Janeiro e instituições de fomento à tada por três movimentos recípro-
fia pela Université Paris-Ouest Nan- pesquisa. Este livro é uma publicação coletiva que cos: (i) considerar insatisfatórias
terre la Défense (2018). Doutor em
C
reúne as contribuições teóricas de uma parte dos par- as narrativas já prontas e à espera
M Direito pela Universidade do Estado
ticipantes, sendo um retrato das discussões que ocor- POLÍT de uma simples adesão (recusa da
do Rio de Janeiro - UERJ (2012). ICA, D
EMOC
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reram na intensa semana dedicada ao Seminário. polêmica); (ii) conter os impulsos


RACIA
CM

demiúrgicos que buscam, na teo-


, ESCR
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GIUSEPPE COCCO
ITA ria ou na política, imprimir uma
CY

CMY Professor Titular da Universidade Fe-


forma dada a um material vivo (re-
K
deral do Rio de Janeiro, membro da
cusa do hilemorfismo); (iii) reto-
Pós-Graduação da Escola de Comuni-
cação e do Programa em Ciência de mar o primado das práticas em de-
Informação (ECO-Ibict); Doutor em trimento do reaparecimento de
História Social - Université de Paris I vários tipos de dogmatismo, seja
(Panthéon-Sorbonne) (1993). Atual- sob a forma dos arcaísmos, seja
mente é pesquisador 1C do CNPq e Organizadores por “lutas ideológicas” descoladas
Cientista do Nosso Estado (Faperj). dos problemas concretos (recusa
ALEXANDRE MENDES
do monismo).
GIUSEPPE COCCO
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Coleção Máquinas, Linhas e Territórios
Rede de Laboratórios Moitará
Coordenação Giuseppe Cocco e Luiz Felipe Teves

Conselho Editorial
Annalisa Murgia – University of Leeds (GB)
Gabriella Alberti – University of Leeds (GB)
Vladimir Sibylla – UNIRIO
Cecilia Paiva – UFRJ
Regina Teixeira – UFRJ
Jeinni Kelly Pereira Puziol – Rede de Laboratórios Moitará
Carolina Salomão – Rede de Laboratórios Moitará
Gerardo Silva – UFABC
Ana Cristina Teodoro da Silva – UEM
Valter Zanin – Università di Padova (Itália)
Raluca Soreanu – Birkbeck University (GB)
Bruno Tarin – LABTeC-UFRJ
Andrea Lampis – USP
Alexandre Mendes – UERJ
Barbara Szaniecki – UERJ
Alexandre do Nascimento – Rede de Laboratórios Moitará
Salvador Schavelzon – UNIFESP
Oscar Garcia Agustin – Aalborg University (Dinamarca)

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Rio de Janeiro, 2020

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O trabalho das linhas: política, democracia, escrita
mendes, Alexandre (org.)
cocco, Giuseppe (org.)

isbn: 978-65-5531-000-0
1ª edição, dezembro de 2020.

Editora Autografia Edição e Comunicação Ltda.


Rua Mayrink Veiga, 6 – 10° andar, Centro
rio de janeiro, rj – cep: 20090-050
www.autografia.com.br

Todos os direitos reservados.


É proibida a reprodução deste livro com fins comerciais sem
prévia autorização do autor e da Editora Autografia.

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Agradecimentos

E m primeiro lugar, agradecemos à Coordenação de Aperfeiçoamen-


to de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pelo apoio destinado ao
I Seminário Internacional O trabalho das linhas: estética, política, direito
(PAEP n.09/2018 – Proc. 88887.194314/2018-00), sendo este livro um
resultado direto do fomento garantido pela Coordenação.
Agradecemos, igualmente, a todos os apoiadores do evento: Con-
sulado-Geral da França no Rio de Janeiro e Institut Français, pelo des-
locamento e tradução simultânea de uma parte dos convidados france-
ses; Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
(CNPQ) e Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Ja-
neiro (FAPERJ), apoio no âmbito do Projeto Individual de Pesquisa e
do Cientista do Nosso Estado; Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ), através de seu Programa de Pós-Graduação em Comunicação e
Cultura (ECO-Pós), Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ),
através de seu Programa de Pós-Graduação em Direito (PPGD), Uni-
versidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), Escola Superior de
Guerra, pelo apoio logístico e institucional; Laboratório Moitará, Gru-
po de Pesquisa Direito, Pragmatismos e Filosofia, Laboratório de Estu-
dos sobre Proteção Social e Trabalho, pela organização do Seminário e
mobilização dos pesquisadores.
Agradecemos ao pesquisador Luiz Felipe Teves pela coorganização
e coordenação executiva do Seminário e pelo engajamento em todas as

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etapas do projeto. Sem este apoio, a realização do evento e deste livro
não teria sido possível.
Agradecemos ao pesquisador Renan Porto pela colaboração na con-
cepção do Seminário.
Agradecemos aos pesquisadores, tradutores e estudantes: Bruno Fa-
bri, Carolina Salomão, Clarissa Naback, Guilherme Cundari, Guilher-
me Klausner, Marcus Lofti, Michael Teixeira e Rodrigo Mello.

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Sumário

P O L Í T I C A , T E R R I TÓ R I O S, C O M U M

GUERRAS MOLECULARES, PANDEMIAS, CATÁSTROFES  � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � 11


Giuseppe Cocco

INSURGÊNCIAS PERIFÉRICAS: SOBRE AS PRÁTICAS SOCIAIS,


CULTURAIS E POLÍTICAS NAS PERIFERIAS DAS METRÓPOLES BRASILEIRAS� � � � � � � � � � � � � � � � 45
Gerardo Silva

A CRISE DOS COLETES AMARELOS E O HORIZONTE DOS POSSÍVEIS:


DE CADA UM SEGUNDO OS SEUS PRIVILÉGIOS PAR CADA UM
SEGUNDO SUAS NECESSIDADES  � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � 65
Davide Gallo Lassere / Trad. Clarissa Naback e Alexandre Mendes

SOBRE LUTAS NO CAPITALISMO FINANCEIRIZADO E NEOLIBERAL:


ALGUNS ELEMENTOS CONSTITUTIVOS E PERSPECTIVAS DE ALIANÇAS  � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � 81
Cecília Paiva Neto Cavalcanti

REVOLUÇÃO DOS BALDINHOS: UM CASO DE MAKING E COMMONING


COMO ALTERNATIVA AO NEODESENVOLVIMENTISMO� � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � 103
Barbara Szaniecki e Pedro Biz

COMUM URBANO: O DIREITO À MORADIA NA METRÓPOLE BIOPOLÍTICA  � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � 121


Rodrigo Moreira de Mello

TOQUE DE QUEDA: SENTINDO PÓS-POLITICAS, SENTINDO OS SUBCOMUNS  � � � � � � � � � � � � � 151


Silvia Posocco / Trad. Carolina Salomão

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D E M O C R AC I A , E S C R I TA , C R Í T I C A

DIREITO E LITERATURA: DA BUSCA DO AUTÊNTICO A UMA


PRAGMÁTICA DO DISFORME  � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � 165
Alexandre F. Mendes

PARA ALÉM DA LINHA? PARADOXO DA EMANCIPAÇÃO: EROS, DEMOS


E O ESTADO DEMOCRÁTICO � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � 181
Cécile Roudeau / Trad. Clarissa Naback

O ESGOTAMENTO DA CRÍTICA� � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � 219


Letícia Paes

DROPANDO KAFKA NAS SOCIEDADES DE CONTROLE� � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � 237


Renan Nery Porto

CAMUS E A DEMOCRACIA� � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � 251


Marcio Pereira e Amsterdan Duarte

LEITOR SELVAGEM: ESPECTROS DO HOMEM PÓS-TCHERNÓBIL  � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � 267


Marcio Tascheto da Silva

“LA PARTE DE LOS CRÍMENES”: EXEMPLOS DE UMA ESCRITA FORENSE� � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � 281


Karl Erik Schøllhammer

A IMAGEM DO HERÓI ARISTOCRÁTICO EM SEU DESENVOLVIMENTO


ATRAVÉS DO TEMPO: RESUMO DO ESTUDO DO CASO DO HEAVY METAL  � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � 289
Guilherme Klausner

CULTURA POPULAR CARIOCA E A CONTESTAÇÃO AO DISCURSO


DE SUPERAÇÃO DA CENTRALIDADE DA CATEGORIA SOCIOLÓGICA
TRABALHO: BEZERRA DA SILVA E CANDEIA� � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � 311
Bruna da Penha de Mendonça Coelho

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POLÍTICA,
TERRITÓRIOS,
COMUM

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GUERRAS MOLECULARES,
PANDEMIAS, CATÁSTROFES
Giuseppe Cocco

E sse artigo foi escrito em meados de 2019 para um público estran-


geiro, antes da chegada da pandemia do coronavírus que abalou o
mundo. Inicialmente, ele queria ser uma reflexão sobre as dinâmicas
da violência na América do Sul, no marco mais geral da transformação
da noção de guerra como crise da distinção clássica entre o amigo e o
inimigo.
O ponto de partida era de colocar em perspectiva a inflexão política
e institucional pela qual passou (e passa) o Brasil em função de dois
eventos relativamente próximos: o brutal assassinato da vereadora Ma-
rielle Franco, no Rio de Janeiro, e a vitória eleitoral de um candidato da
nova (e velha) extrema direita brasileira e mundial. No final de fevereiro
de 2020, na hora de adaptar o artigo ao português, o vírus chegou ao
norte da Itália e, rapidamente, espalhou-se pelo planeta como um todo,
levando ao lockdown generalizado: bilhões de pessoas estão em confina-
mento nesse final de abril (de 2020).
Se o vírus realizou seu salto de espécie (passando da contaminação
entre animais a entre homens) na China, foi a partir do drama italiano
que virou pandemia. Na Itália, o vírus mostrou uma velocidade de pro-
pagação violenta e letal, com impacto devastador sobre o sistema de
saúde. Depois de muitas hesitações, o governo italiano decidiu fechar
a região economicamente mais importante do país (a Lombardia) e
poucos dias depois decretou o lockdown nacional. Uma medida tomada
na precipitação da emergência do contágio e da dramática contagem

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dos mortos. O vírus entrou na circulação social e produtiva e a única
maneira de reduzir os danos foi “desligar a tomada”. Em poucos dias,
as medidas que a Itália tomou (distanciamento social, confinamento,
quarentena etc.) se generalizaram ao mundo na tentativa desesperada
de desacelerar a propagação do vírus. Nunca antes a relação entre ace-
leração e desaceleração da vida (e da morte) apareceu tão claramente.
A proteção da vida passou a depender da drástica desaceleração dos flu-
xos sociais. Hoje (04 de maio), as vítimas oficiais se contam por dezenas
de milhares, quase 70.000 nos Estados Unidos, quase 30.000 na Itália,
Reino Unido, França, Espanha e está crescendo em todo o planeta.
Cientes da criticidade dessa inflexão e ainda mais das decisões que
estavam tomando, os governos que anunciavam as medidas de isola-
mento social passaram a falar de uma situação de guerra. Quando o
Primeiro Ministro Giuseppe Conte decretou o lockdown nacional, dis-
se que a Itália inteira se transformaria em uma Zona Protegida. Em
artigo publicado pela Revista Lancet, cinco pesquisadores definiram as
medidas tomadas como sendo de tipo militar1. Nos debates entre vi-
rologistas, epidemiologistas e outros técnicos italianos, muitas vezes,
passou-se a usar o termo de uma guerra cujas batalhas aconteciam nos
territórios entendidos como “linha de frente”, ao passo que os hospitais
precisavam se resguardar como retaguardas.
A linguagem da guerra foi, em seguida, adotada pelo presidente
francês. No primeiro discurso, do dia 12 de março, que ainda não decre-
tava o lockdown total e confirmava a realização das eleições municipais
(no dia 15 de março), Macron apenas usou os termos de urgência e mo-
bilização geral. Já no discurso de segunda, 16 de março, ele empregou
o termo “guerra” oito vezes para explicitar os termos da mobilização
geral para qual estava chamando: “Estamos em guerra e a Nação vai
apoiar seus filhos que, como os trabalhadores da saúde, na cidade e no

1.  MILANI, Alessandro et al. The Italian war-like measures to fight coronavirus spreading: reo-
pen closed hospital now: The Lancet, [S.l.], 26 mar. 2020. Disponível em: https://www.thelan-
cet.com/journals/eclinm/article/PIIS2589-5370(20)30064-X/fulltext.

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hospital, estão na linha de frente em um uma luta que vai exigir ener-
gia, determinação e solidariedade”.
A referência à guerra perpassou também artigos, debates e até os planos
econômicos que os diferentes governos implementam na tentativa de con-
ter os devastadores impactos econômicos do confinamento planetário. Em
um importante artigo sobre a inflexão necessária e urgente das políticas eco-
nômicas, o ex-presidente do Banco Central Europeu (BCE) Mario Draghi
escreveu: “É papel próprio do Estado mobilizar seu orçamento para prote-
ger os cidadãos e a economia contra choques pelos quais o setor privado não
é responsável e não pode absorver. Os Estados sempre o fizeram diante das
emergências nacionais. As guerras - o precedente mais relevante - foram fi-
nanciadas pelo aumento da dívida pública”. O título do artigo foi ainda mais
explícito: “We face a war against coronavírus and must mobilise accordingly”2.
No Brasil, o orçamento mobilizado para enfrentar a crise foi cha-
mado de “orçamento de guerra”. O primeiro ministro espanhol, Pedro
Sanchez defendeu uma nova política econômica da União Europeia ba-
seada no fato que “(a) Europa enfrenta uma guerra diferente das que
conseguimos evitar ao longo de setenta anos: uma guerra contra um
inimigo invisível que desafia o porvir do projeto europeu”3. Ele tam-
bém faz referência a uma necessária “economia de guerra” e de um
“Plano Marshall. Inútil dizer que as imagens das longas filas de cami-
nhões militares transportando centenas de caixões de vítimas da Co-
vid-19, no Vale Seriana (na província italiana de Bergamo, na Lombar-
dia), mostraram que não era uma retórica demagógica4.

2.  DRAGHI, Mario. We face a war against coronavirus and must mobilise accordingly. Finan-
cial Times, [S.l.], 25 mar. 2020.
3.  PÉREZ-CASTEJÓN, Pedro Sánchez. Même les plus européistes, comme l’Espagne, ont be-
soin de preuves d’un reel engagement de l’UE. Le Monde, [S.l.], 5 abr. 2020. Disponível em: ht-
tps://www.lemonde.fr/idees/article/2020/04/05/pedro-sanchez-meme-les-pays-les-plus-eu-
ropeistes-comme-l-espagne-ont-besoin-de-preuves-d-un-reel-engagement_6035600_3232.html
4.  DOPO Bergamo e Ponte San Pietro, l’Esercito porta via le bare da Seriate. Bergamo News,
[S.l.], 25 mar. 2020. Disponível em: https://www.bergamonews.it/2020/03/25/dopo-berga-
mo-e-ponte-san-pietro-lesercito-porta-via-le-salme-da-seriate/362392/.

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A pandemia transformou-se mesmo em uma guerra ou trata-se ape-
nas de uma metáfora mobilizada pelos governos para justificar as medi-
das sem precedentes de distanciamento social e lockdown? Interrogado
sobre as consequências políticas das medidas tomadas para enfrentar a
epidemia, o filosofo Étienne Balibar diz que “um dos traços da democra-
cia é a consciência que toda estratégia de proteção coletiva, que se trate
de fechamento das fronteiras, de confinamento, de tracking das popula-
ções de risco, não é inofensiva. A maneira na qual uma sociedade se quer
‘em guerra’, mesmo que seja contra um vírus, põe em jogo a democra-
cia”.5 Em duas entrevistas à Rede Globo, o neurocientista Miguel Nicolelis
– professor da Duke University e chefe do comitê técnico de combate ao
Covid-19 dos governadores do Nordeste – declarou: “Esta é uma guerra
biológica, uma guerra multidimensional, híbrida, diferente de todas as
tradicionais. O front de guerra muda constantemente. E você tem que
ter a habilidade de se mover no tempo do vírus”.6
O fato é que, apesar do total despreparo do Ocidente diante da pan-
demia, seus cenários tinham sido previstos em diferentes estudos estra-
tégicos nos anos 1990 e eram de tipo militar: por exemplo, o exercício
“Dark Winter” conduzido pelo Pentágono, alguns meses antes do ataque
às torres gêmeas (11 de setembro de 2001). Mark Perry escreveu sobre
as semelhanças entre as conclusões terrificantes às quais tinham chega-
do os responsáveis daquele exercício e a situação atual do Covid-19.7 Na
realidade, a preparação militar é bem mais antiga e remonta à guerra
fria. Inicialmente era ligada à previsão dos efeitos de um ataque nuclear.

5.  BIRNBAUM, Jean. Étienne Balibar: l’histoire ne continuera pas comme avant. Le Monde,
[S.l.], 22 abr. 2020. Disponível em: https://www.lemonde.fr/livres/article/2020/04/22/etien-
ne-balibar-l-histoire-ne-continuera-pas-comme-avant_6037435_3260.html.
6.  LEITÃO, Míriam. Nordeste aposta na ciência como arma. O Globo, [S.l.], 19 abr. 2020. Dis-
ponível em: https://blogs.oglobo.globo.com/miriam-leitao/post/nordeste-aposta-na-ciencia-
-como-arma.html.
7.  PERRY, Mark. America’s Pandemic War Games Don’t End Well. Foreign Policy, [S.l.], 1 abr.
2020. Disponível em: https://foreignpolicy.com/2020/04/01/coronavírus-pandemic-war-ga-
mes-simulation-dark-winter/. Cf. também ALLGOWER, Marc. Ces rapports qui prédisaient la
pandémie. Le Monde, [S.l.], 13 abr. 2020.

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Nos anos 1960 e 1970, essa noção foi estendida aos fenômenos naturais
(inundações e tempestades bem como catástrofes ecológicas como aci-
dentes nucleares).
No final dos anos 1990, a saúde e as doenças infecciosas entraram
nos estudos sobre bioterrorismo. Andrew Lakoff lembra, por exemplo,
que, em 2006, Richard Falkentrath, antigo conselheiro da Casa Branca
para a segurança interna, declarava ao Congresso: “Comparativamente
às outras ameaças que pesam sobre a segurança nacional dos Estados
Unidos, a ameaça de uma catástrofe provocada por uma doença devas-
tadora constitui e constituirá em um porvir próximo o principal perigo
ao qual estamos confrontados”. Citando esse discurso, Andrew Lakoff
enfatiza que, com essa advertência, o expert em terrorismo e prolife-
ração nuclear indicava que esse assunto, que até então era visto como
uma questão de saúde pública, dizia respeito também às questões de se-
gurança8. Isso não mudou muita coisa na capacidade dos Estados Uni-
dos e, em geral, dos países ocidentais, em se preparem diante da amea-
ça que hoje se concretizou dramaticamente. Ao mesmo tempo, temos
a confirmação que a “guerra” e o “militar” não são apenas metáforas.
Mesmo quando olharmos especificamente para as dimensões sa-
nitárias da crise atual, imediatamente volta a referência à medicina de
guerra, ou seja, àquelas situações nas quais a saturação constante dos
serviços obriga médicos e enfermeiros a fazerem a chamada “triagem”,
escolher entre os pacientes que terão acesso às curas e quais serão dei-
xados para morrer9. Isso nos faz pensar a como Roberto Esposito tem
associado a “proteção da vida” à sua “negação” em um livro cujo título
nos aparece hoje fortemente evocador: Immunitas10. Em 2002, Esposito

8.  LAKOFF, Andrew. Les maladies infectieuses ont fait l’objet de mesures de préparation à la
fin des années 1990. Entrevista com Marc-Olivier Bherer. Le Monde, [S.l.], 20 abr. 2020.
9.  Cf. LEICHTER-FLACK, Frédérique. Vivre-ensemble à l’épreuve du vírus. Le Monde, [S.l.],
18 mar. 2020.
10.  ESPOSITO, Roberto. Immunitas: Protezione e negazione dela vita. Turim: Einaudi Edi-
tor, 2002.

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escrevia: “A emergência epidêmica constituída pelas grandes doenças
infecciosas tem precisas implicações econômicas, jurídicas, políticas e
até militares11”.
Agamben escreveu dois artigos (e várias entrevistas) sobre a pan-
demia. Em um primeiro artigo, ele afirmou que os governos estavam
usando o pânico do vírus e a retórica bélica para implementar o “estado
de exceção”. Diante das críticas que recebeu, tentou amenizar esse uso
de uma situação inusitada para aplicar suas teorias sobre a normalidade
da exceção em outro artigo e em uma entrevista. Mesmo discordando
dele – e de todos que tentaram fazer do vírus a confirmação de teorias
formuladas anteriormente, inclusive um agente da transformação anti-
capitalista do mundo12 –, a questão que Agamben coloca é pertinente:
“Podemos, para proteger a vida, suspender a vida”. Ou seja, uma vida
confinada e reduzida, merece mesmo ser vivida?
Uma primeira resposta já está dada e tem duas dimensões incontorná-
veis: a primeira é que o Ocidente (e o Sul) ficou totalmente desprepara-
do diante da pandemia e sua postura (dos governos e forças políticas dos
mais diversos horizontes e enfim dos diferentes segmentos da sociedade
civil) foi de negação do perigo (o caso italiano e mais especificamente lom-
bardo é emblemático13): o total despreparo se tornou a esteira de decisões
tomadas na urgência e na precipitação e - por causa disso - sem condições
de fazer “nuances”. A segunda resposta – que é muito mais importante –
está no fato que, diante da crise imposta pela pandemia da relação entre a
circulação social e econômica e o “fazer viver”, o governo italiano optou
(uma decisão que só depois tomaram muitos outros governos) claramen-
te pelo “fazer viver” e suspendeu a economia e não a vida14.

11.  Ibid., p. 7.
12.  Cf. AGAMBEN, Giorgio et al. A Sopa de Whuan. [S.l.]: ASPO, 2020.
13.  Cf. VISANI, Claudio. Siamo um paese dalla memoria corta. Globalist, [S.l.], 5 abr. 2020.
Disponível em: https://www.globalist.it/life/2020/04/05/siamo-un-paese-dalla-memoria-cor-
ta-il-coronavirus-lo-dimostra-ogni-giorno-2055653.html.
14.  É alias o que enfatiza Macron em sua entrevista ao Financial Times, vide supra.

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Mas, voltemos ao debate sobre o uso generalizado de uma termino-
logia de guerra. A historiadora Bénédicte Chéron, questionando essa
retórica de guerra, assim como a propaganda dos meios militares usa-
dos (os hospitais de campo) durante a emergência, escreveu que, real-
mente, a “analogia guerreira não era ilegítima: uma epidemia dessa
amplitude, como uma guerra, transforma subitamente nossa relação
intima com a morte em um objeto coletivo e político”. Para ela então,
o uso “desse campo semântico podia constituir uma ferramenta legiti-
ma de mobilização”. Porém, diz ela, é preciso evitar que se estabeleça
um “continuum” de imagens militares e vocabulário securitário: “se es-
tivéssemos em guerra, o chefe de Estado teria designado um inimigo,
que as forças armadas combateriam pelas armas, em uma relação de
força política. Em uma crise sanitária, conclui ela, não há relação de
força política com o vírus”15.
Essa afirmação de que, para termos uma guerra, precisamos da de-
signação clara de um inimigo é aquela que nos interessa. Temos aqui
um paradoxo: as novas formas de guerra, aquelas que o pensamento
estratégico e a filosofia política se esforçaram em pensar, não mobili-
zam a relação clássica – schmittiana – de amigo e inimigo. Ao contrá-
rio, o desafio do pensamento estratégico e da crítica da violência hoje
é de construir uma política e uma ética diante de uma difusão social da
violência e da fenomenologia de uma guerra (de um sem-número de
guerras) que não se deixa encaixar nas tradicionais linhas de conflito.
Como dissemos, o despreparo do Ocidente (e do Sul) diante do vírus
levou os governos e os virologistas a usar a terminologia bélica na pre-
cipitação e de maneira paradoxal: é porque não se prepararam para essa
emergência, ou seja, para essa “guerra de novo tipo”, que tiveram que
usar essa linguagem de guerra. Não se prepararam – nem os governos,

15.  CHÉRON, Bénédicte. À trop mobiliser le registre militaire face à toute crise, les mots per-
dent leur sens. Le Monde, [S.l.], 22 abr. 2020. Disponível em: https://www.lemonde.fr/idees/
article/2020/04/22/benedicte-cheron-a-trop-mobiliser-le-registre-militaire-face-a-toute-crise-
-les-mots-perdent-leur-sens_6037376_3232.html.

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nem as sociedades – por uma série de razões que merecem um estudo
mais sistemático. Porém, nos parece que uma dessas razões está no fato
que – depois de uma primeira fase do debate sobre a guerra no mundo
pós Guerra Fria e, sobretudo, nos dias seguintes aos atentados às tor-
res gêmeas (11 de setembro de 2001), a atenção se concentrou sobre
uma difusão molecular dos conflitos e foi essa a armadilha. A difusão
e a fragmentação das guerras moleculares (e daquelas culturais que lhe
estão associadas) em função do fundamentalismo islâmico, das guerras
civis como aquelas da Síria, do Afeganistão, do Iémen, etc., acabaram
concentrando a atenção sobre esses novos regimes de violência e sobre
aquilo que é chamado de bioterrorismo16, desviando a atenção diante
do outro grande e maior perigo que eram e são os vírus emergentes,
como o SARS-CoV-217.
O debate sobre violência e guerra se torna ainda mais fundamental
com a crise da pandemia. No Brasil, o desdobramento da crise sanitária
em crise política, com a multiplicação de manifestações de cunho fas-
cista em articulação com o Planalto, também confirma a necessidade
de uma reflexão de mais fôlego sobre a genealogia do atual governo e,
mais em geral, das novas e preocupantes dinâmicas sociais.

1. “HAITI, É AQUI ...”


“Pense no Haiti, reze pelo Haiti”. “O Haiti é aqui, o Haiti não é aqui”.
Estes são versos de uma canção escrita por Caetano Veloso18. O Hai-
ti é de fato um bom ponto de partida para introduzir a nossa análise da

16.  Emblemático Esposito: “(...) o ataque terrorista hoje em dia mais temido, porque o menso
controlável, é aquele bacteriológico (...)”. Op. cit., p. 6.
17.  Para os vírus emergentes, cf. BURGIO, Ernesto. COVID-19: the Italian Drama. Four avoi-
dable risk factors. Wall Street Journal – Science and Technology, 21 abr. 2020. Disponível em:
https://wsimag.com/science-and-technology/61967-covid-19-the-italian-drama.
18.  TROPICÁLIA 2. Produtores: Caetano Veloso e Gilberto Gil. Rio de Janeiro: PolyGram,
1993. 1 CD. A letra da canção Haiti é de Caetano, cf. https://www.letras.mus.br/caetano-ve-
loso/44730/.

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nova guerra a partir das transformações políticas, sociais e econômicas
que o Brasil está atravessando. Da mesma forma que a tragédia inter-
minável do Haiti inspirou o músico no início dos anos 90, o país do Ca-
ribe inspirou a política externa do Governo Lula. Em 2004, o governo
brasileiro concordou em participar de uma missão de paz das Nações
Unidas (Minustah)19 e em ser a sua força motriz. A missão durou 13
anos (até 2017) e o Brasil enviou o maior contingente militar. Coman-
dada por um país do “Sul Global”, a missão concedeu às forças de ma-
nutenção da paz o direito de usar a força para impor a paz20.
A participação brasileira na missão da ONU foi o cadinho de um
movimento ambivalente de modernização do Exército brasileiro: a
sua nova perspectiva global, por sua vez, impulsionou-o de volta para
o cenário político nacional. Existe uma relação de “ida e volta” entre
o Brasil e o Haiti, entre as bindovilles de Port au Prince e as favelas do
Rio de Janeiro, entre as favelas da Maré (a de Marielle Franco) e Cité
Soleil. As favelas do Rio de Janeiro foram ao mesmo tempo o campo de
treino para os contingentes militares brasileiros mobilizados no Haiti
e o espaço onde a aprendizagem “haitiana” foi aplicada quando volta-
ram. Para os oficiais e soldados entrevistados pela socióloga Izadora do
Monte, a situação doméstica é mais chocante do que a estrangeira e,
em contrapartida, a experiência internacional é mais “real” do que a
doméstica21. Essas “idas e vindas” impulsionaram não só a evolução das
experiências de “guerra real” e de “novos materiais” vividas no es-
trangeiro, mas também uma verdadeira escalada das intervenções

19.  Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti.


20.  A missão aconteceu no âmbito do capítulo 7 da carta das Nações Unidas que autoriza os
capacetes azuis a usar a força para manter ou estabelecer a paz e que foi suado quando da pri-
meira guerra do Golfo. OLIVIER, Frouville. Le chapitre VII de la Charte des Nations unies. Colloque
de Rennes, 50e anniversaire des Nations unies. Politique étrangère, Rennes, n. 4, a. 60, p. 1047-1049,
1995. Disponível em: https://www.persee.fr/doc/polit_0032-342x_1995_num_60_4_4479_
t1_1047_0000_3.
21.  DO MONTE, Izadora Xavier. «Bon Bagay » et « Bandidos » Genre, race, nationalité et les
Casques bleus brésiliens en Haïti». 2019. Tese (Doutorado em Sociologia) – Universidade de
Paris 8, Paris, 2019.

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domésticas. Bolsonaro também explicou o que esta missão significava
para ele: “No Haiti, tínhamos uma forma de compromisso: qualquer
elemento com uma arma de guerra, os militares disparavam dez, quin-
ze, vinte, cinquenta tiros e depois iam ver o que tinha acontecido. Re-
solveram o problema rapidamente”22.
São os oficiais que conduziram estas missões que têm hoje um papel
de linha da frente no governo federal de extrema-direita23. Por exemplo,
o General Otávio do Rêgo Barros, após ter comandado o batalhão bra-
sileiro da Minustah no Haiti, liderou a grande operação de pacificação
do Complexo do Alemão no Rio de Janeiro, no âmbito da “Garantia de
Lei e Ordem” (GLO) decidida pelo governo da Presidente Dilma Rous-
seff (Partido dos Trabalhadores) em 2010 e 2012. Esse general é, atual-
mente (abril de 2020), o porta-voz da Presidência da República. A “pa-
cificação” deste grupo de favelas é um dos estudos de caso do Exército
dos Estados Unidos sobre o futuro da guerra: “No Rio, em novembro
de 2010, foram necessários mais de 3 mil policiais e militares para aca-
bar (sic) com a violência em toda a cidade que emanava de uma única
favela (comunidade de favelas) das 600 da cidade”24.
Para compreender o que está acontecendo, precisamos colocar es-
sas transformações dramáticas na perspectiva do que está acontecendo
entre a economia da violência e a violência da economia, no sentido da
comparação de Marx e Derrida proposta por Catherine Malabout: “(...)
é evidente que, em Derrida como em Marx, o pensamento econômico,
ou melhor, uma certa relação entre economia e violência, envolve, de

22.  Apud VICTOR, Fabio. Terra Desolada. O que o Brasil deixou para trás no Haïti. Revista
Piauí, [S.l.], ago. 2019, p. 18.
23.  Em agosto de 2019, 962 militares integravam o poder executivo. Cf. SHINOHARA, Ga-
briel. Número de militares da ativa no governo cresce 13%. O Globo, [S.l.], 5 ago. 2019, p.7. Cf.
também BITTAR, Rosângela. Militares tutelam o governo como partido. Valor, [S.l.], 16 jan.
2019, p. A6.
24.  Apud FREEDMAN, Lawrence. The Future of War: a history. [S.l.]: Penguin, 2018, p. 257.
Cf. CHIEF OF STAFF OF THE ARMY (Strategic Studies Group). Megacities and United States
Army: Preparing for a Complex and Uncertain Future, jun. 2014, p. 16. Disponível em:
https://www.army.mil/e2/c/downloads/351235.pdf.

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fato, uma crítica da política como origem ou horizonte e da violência,
e da redução da violência”25. Tentaremos, portanto, permanecer o mais
próximo possível do “rigor original da crítica marxista”26, mesmo que
isso signifique afastarmo-nos dela da mesma forma que, como salien-
tou Maurice Merleau-Ponty, “depois, como antes da revolução, o ver-
dadeiro revolucionário, cada dia, perante cada problema, redescobre o
que deve ser feito, navega sem mapa e olhando ao presente”27.

2. OS BÁRBAROS, OS SELVAGENS E A INCONVERSIBILIDADE


DA VIOLÊNCIA
Como acabamos de dizer, trata-se de identificar a relação incerta que
liga e separa a economia da violência e a violência econômica, para
além da falsa oposição entre política e economia. Para começar, e para
marcar este debate, mobilizamos três autores que são muito diferentes
uns dos outros não só em termos das suas abordagens, mas também
em termos dos contextos históricos específicos em que desenvolveram
as suas reflexões sobre a fenomenologia da guerra e da violência. Os
três autores são Max Weber, Pierre Clastres e finalmente Étienne Bali-
bar: um sociólogo, um antropólogo e um filósofo.

2.1 MAX WEBER: a indústria contra os bárbaros


Em seus discursos sobre a guerra de 1914-18, entre outras análises, Max
Weber faz três tipos de afirmações que nos interessam aqui. Primeiro,
define a guerra contra a Rússia como a resposta inevitável a uma amea-
ça bárbara (russa): “Seria uma vergonha eterna ter faltado coragem

25.  MALABOU, Catherine. Économie de la violence, violence de l’économie. Derrida et Marx.


Revue Philosophique de la France et de l’Étranger, Paris: PUF, n. 2, abr./jun. 1990, p. 305.
26.  DERRIDA, Jacques. De la grammatologie. Paris: Minuit, 1967, p. 175.
27.  MERLEAU-PONTY, Maurice. Les aventures de la dialectique (prefácio), Paris: Gallimard
– Folio, 1955, p. 12.

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em deixar que a barbaridade russa, a monotonia inglesa e a tagarelice
francesa dominassem o mundo. É por isso que estamos em guerra”,
disse ele no limiar do terceiro ano da Primeira Guerra Mundial, num
discurso em Nuremberg, em 1 de Agosto de 191628. “O agricultor rus-
so”, prosseguiu Weber, “que possui dez hectares, uma área com que
um agricultor alemão pode ficar satisfeito, pensa que vai morrer de
fome porque é um selvagem que não sabe utilizar ferramentas agrí-
colas”29. No mesmo discurso, refere-se aos “dois milhões (de soldados
russos) que foram feitos prisioneiros, mais do que todo o exército que,
do nosso lado (alemão), estava empenhado contra a Rússia no campo
de batalha”. Ter-se-iam deixado capturar se pensassem que estavam a
lutar por um Estado-nação? Na realidade, a maioria deles provinha de
povos estrangeiros oprimidos (pelo Império Russo). A terceira conside-
ração que nos interessa é a que estabelece a ligação entre a guerra e as
relações de produção: “Foi dito que a indústria amacia o povo e o torna
incapaz de lutar. Mas é precisamente a indústria que nos faz ganhar a
guerra” 30. Ao mesmo tempo, ele continua, “é o poder da Alemanha
que vai decidir o nosso comércio e indústria”. Ouvimos o eco da teoria
da violência de Engels: “a introdução da pólvora e das armas de fogo
não foi precisamente um ato de violência, mas de progresso industrial
e, portanto, de progresso econômico”31.
No discurso do grande sociólogo mobilizado no esforço de guerra
do seu país encontramos, antes de mais nada, o uso explícito da noção
de selvageria e/ou barbárie como explicação tanto para o perigo da vio-
lência extrema como para a fraqueza do Estado bárbaro (russo) face às
tropas alemãs cultas e disciplinadas. Weber afirma a superioridade do

28.  WEBER, Max. Discours de guerre et après-guerre. Textos reunidos e apresentados por
Hinnerk Bruhns. Trad. francesa: Ostiane Courau et Pierre de Larminat. Paris: EHESS, 2015, p.
88. Grifos nossos.
29.  Ibid. p. 79.
30.  Ibid., p. 80.
31.  ENGELS, Friedrich. Anti-Dühring. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, p. 146.

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Estado-nação, que mobiliza um exército civilizado e, portanto, solda-
dos muito superiores aos (britânicos) Gurkhas, italianos e russos, que
para ele nada mais são do que “carne para canhão”32. Por último, se é a
indústria que decide o destino do conflito, o futuro da indústria depen-
de do resultado da guerra (e, portanto, da violência). Temos, pois, três
elementos: a justificação da guerra como defesa da civilização contra
a barbárie; a afirmação do Estado-nação como a fase superior de um
processo que encontra na indústria tanto o que é realmente necessário
defender como a condição para a vitória.

2.2 PIERRE CLASTRES: a guerra dos selvagens contra o estado


Vamos, agora, avançar para uma abordagem que tenta fazer uma rup-
tura radical com o pensamento ocidental e, portanto, com as guerras
civilizadas e industrializadas. A ideia é apreender a guerra do ponto
de vista dos selvagens: os bárbaros, não como figura “retardada”, na
mesma linha de desenvolvimento, mas os selvagens como uma alteri-
dade não ocidental. É o que encontramos em Pierre Clastres, que quis
afirmar uma alternativa radical à etnologia marxista: para ele, “o mar-
xismo é um economismo (que) reduz o corpo social à infraestrutura
econômica” 33. Se ele considera que o etno-Marxismo é “uma nulidade
absoluta”, acrescenta que ocupa um espaço que o estruturalismo deixa
vazio: “a lacuna é que (o estruturalismo) não fala da sociedade”. O pa-
rentesco não é sociedade: “O estruturalismo é como uma teologia sem
deuses: é uma sociologia sem sociedade”34.
A sociedade selvagem não é “uma infância da humanidade”35, nem
é uma etapa na evolução dos modos de produção que os oceanos teriam

32.  Max Weber, op. cit., p. 80.


33.  CLASTRES, Pierre. Les marxistes et l’anthropologie. In: Archéologie de la violence. Trad.
brasileira de Paulo Neves. São Paulo: Cosac Naify, 2004, p. 225.
34.  Ibid., p. 214.
35.  Derrida, op. cit., p. 158.

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preservado como num tubo de laboratório, mas uma sociedade organiza-
da contra o Estado e, nessa medida, contra a inovação dos seus modos de
produção. Pierre Clastres salienta: “A sociedade primitiva é indivisível por-
que não dispõe de um órgão de poder político separado”36. No entanto,
para ele, “a economia é gerada pela política, as relações de produção deri-
vam das relações de poder”37. É, portanto, “o Estado (que) gera as classes”.
No artigo que dá o título ao livro, Clastres radicaliza a sua análise da
alteridade dos selvagens: se a sua sociedade é contra o Estado (e, nesta
medida, contra a evolução das relações de produção), é porque está em
guerra contra a inovação, cuja mola mestra é fundamentalmente a tro-
ca. A sociedade selvagem é, ao mesmo tempo, totalidade e unidade. É
indivisível porque não permite que nenhuma figura do Um se despren-
da do corpo social para o representar. Para que o “nós” desta totalidade
e unidade se mantenha (indivisível) deve opor-se ao outro “nós”, preci-
sa de guerra: “A guerra é uma estrutura da sociedade primitiva e não o
fracasso acidental de uma troca que correu mal” 38.
A etnografia de Pierre Clastres coloca as sociedades selvagens como ra-
dicalmente “diferentes” das produzidas pela evolução ocidental dos modos
de produção, e a única forma de compreender isto é apreender o fato po-
lítico da sua recusa de autonomia ou determinação econômica: a verdade
das sociedades selvagens é a violência, e a guerra (com as suas alianças) é a
verdade do intercâmbio. De repente, Clastres opera uma crítica pelo aves-
so do Leviatã, mantendo uma espécie de autonomia do político: “Hobbes
pensava, falsamente, que o mundo primitivo não é um mundo social, preci-
samente porque a guerra impediria as trocas (...)” e por isso que ele diz que
“os selvagens americanos vivem de uma forma ‘quase animal’”.
No entanto, “o erro de Hobbes não faz a verdade de Claude Lévi-S-
trauss”. Para este último – Clastres continua – a sociedade primitiva é o

36.  Ibid., p. 223.


37.  Ibid., p. 224.
38.  CLASTRES, Pierre. Archéologie de la violence. In: Op. cit., p. 257.

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mundo do intercâmbio: mas confunde o intercâmbio fundador da socie-
dade humana em geral (exogamia e proibição do incesto) com o inter-
câmbio como um modo de relacionamento entre diferentes grupos”39. A
sociedade primitiva é uma sociedade radicalmente diferente, e isto porque
a sua política visa mesmo manter – através da guerra – esta separação. Por
conseguinte, Clastres não se opõe a Hobbes pelo fato de o Estado ser a
condição para a paz (e a troca). Pelo contrário, diz mesmo que a condição
para que não haja Estado é a guerra de todos contra todos. Onde ele difere
de Hobbes é no fato de o filósofo inglês pensar que uma sociedade que
persiste na guerra de todos contra todos não é uma sociedade, que todas
as instituições passam pelo fim da guerra. Para a Clastres, pelo contrário,
a guerra de todos contra todos é mesmo o fato de uma sociedade não só
primitiva, mas, sobretudo, uma sociedade sem Estado40.
O que Clastres propõe é uma espécie de visão positiva da guerra
de todos contra todos, na medida em que esta seria – nas sociedades
ameríndias selvagens – a condição de uma sociedade sem Estado e, por-
tanto, sem as guerras que os Estados produzem. Estamos, portanto, a
falar de uma guerra que “assume o rosto terrorista do imperialismo, da
repressão, da tortura, do domínio de uma raça sobre outra, de uma lín-
gua sobre outra, de um sexo ou gênero sobre outro, e também de uma
certa forma de filosofar sobre outro”41.

2.3 ÉTIENNE BALIBAR E A INCONVERTIBILIDADE DA VIOLÊNCIA


Numa série de ensaios sobre violência extrema42, Étienne Balibar traça
algumas linhas de pensamento capazes de distinguir uma alternativa

39.  Ibid., p. 267-8. Para uma crítica de Claude Lévi-Strauss e sua noção de violência e sua abor-
dagem na escrita, cf. DERRIDA, Jacques. Op. cit., sobretudo p. 186.
40.  Ibid., p. 270.
41.  MALABOU, Catherine. Op. cit., p. 303.
42.  BALIBAR, Étienne. Violence et civilité. Paris: Galilée, 2010. As conferências aconteceram
em 1996.

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entre violência e civilidade. É um esforço notável que nos proporcio-
na um vasto leque de novas leituras e revisões da filosofia política (ou
antropologia filosófica), especialmente do marxismo. Também aqui va-
mos escolher três momentos de reflexão: um primeiro baseado numa
leitura da filosofia de direito de Hegel; um segundo sobre as ambigui-
dades da crítica marxista à violência; o terceiro sobre as formas con-
temporâneas de guerra, aquelas que se seguiram ao fim da Guerra Fria,
após a queda do Muro de Berlim.
Em primeiro lugar, Balibar retoma a noção hegeliana de conver-
são da violência. Aqui temos um tipo de abordagem que é o oposto de
“Clastres”. A construção do Estado de direito reprime a violência na
medida em que esta é convertida. As suas dimensões destrutivas exi-
gem uma transformação em poder dentro das instituições. A violência
é transformada em poder, o poder do Leviatã subindo acima da “guer-
ra de todos contra todos”. A história é o movimento desta conversão
dialética. Nas palavras de Hegel, “a lei do progresso só domina a his-
tória se a história for o processo de conversão institucional, dotando
assim o direito e o Estado de um conteúdo espiritual e de uma legitimi-
dade que vá para além do mero fato de dominar”. É por isso que “toda
a interpretação da filosofia hegeliana se joga no confronto entre o dis-
positivo conceptual e simbólico que utiliza para pensar esta conversão
(a negação da negação, a temporalidade da superação das figuras pela
sua autodissolução violenta, as alegorias da cena do tribunal e o sacri-
fício) e a restrição que impõe a priori ao reconhecimento de formas de
violência histórica, a fim de preservar o seu significado teleológico”43.
O que é interessante na releitura de Balibar do conceito hegeliano de
violência convertível é a forma como ele a faz funcionar, por um lado,
para mostrar as armadilhas do seu uso marxista e, por outro lado, para
apreender a emergência de novas formas de violência que seriam incon-
vertíveis. O que o marxismo faz, recorda Balibar, é colocar “o proletariado

43.  Ibid., p. 103-4.

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no lugar do povo e a revolução no lugar do Estado. Tal substituição per-
mite trazer para o julgamento o que Hegel, por seu lado, tinha excluído”
44
. Mas o processo é o mesmo: “Se Hegel excluiu certa violência, foi de-
vido ao seu postulado de convertibilidade. Os marxistas farão a mesma
operação, substituindo o critério de convertibilidade pelo de ter ou não
um efeito revolucionário: assim, se Marx criticou Hegel por não levar em
consideração a violência da ralé (pöbel), isso não o impedirá de mais tar-
de introduzir a referência negativa ao Lumpenproletariado, apresentado
como o elemento contrarrevolucionário “dentro do povo”45.
Tal como a violência revolucionária (contra a dominação) foi jus-
tificada, a violência de Lumpen foi justificada como merecendo a vio-
lência de uma revolução que já se apresentava como dominação. De
fato, ao longo desta operação, a crítica marxista da violência, embora se
separe do liberalismo hegeliano46, acaba no impasse de uma conversão
ainda menos eficaz do que a prevista pela filosofia da história. No final,
diz Balibar, a teleologia da revolução atribui-lhe um estatuto semelhan-
te ou pior do que o do Leviatã Hobbesiano. Em outra palestra, Balibar
afirma: “a Revolução é pensada (ambos) a partir de baixo (e) a partir de
cima”. Deveria ser “a metamorfose das figuras históricas da Gewalt”,
mas acaba por reproduzir a “Gewalt pré-existente”47.

44.  Ibid., p. 105


45.  Balibar desenvolve estas reflexões na nota 1 (Ibid., p. 105-6) onde ele se apoia sobretudo
sobre o trabalho de RANCIÈRE, Jacques. Le Philosophie et ses pauvres. Paris: Fayard, 1983.
46.  A conversão da violência pode ser apresentada como uma tradução da palavra alemã (Ge-
walt, que significa tanto violência como poder) em inglês. Balibar cita Jean Pierre Faye que se
pergunta: “como traduzir esta Gewalt que pode ser tanto violência como poder? A grande pro-
blemática inglesa se define – dentro da parte II do Leviatã – como um poder que se eleva sobre
a guerra de todos contra todos. De um lado, power, de outro, war. Ou, de um lado, terror, e de
outro, cruelty. O terror do poder face à crueldade da guerra.”. “Dir-se-á, continua Faye, que o
poder se ergue contra a violência da guerra? Mas a espada do poder – the sword – não é ela tam-
bém violência?” Assim, é a língua alemã que é mais próxima da ambivalência, porque ela “já
respondeu que a violência é anterior mesmo a esta força que se apoia sobre o poder do Estado”.
A referência é do capítulo 17 do Leviatã.
47.  BALIBAR, Étienne. « Gewalt » Violence et pouvoir dans l’histoire de la théorie marxiste.
Artigo publicado em alemão em 2001. In: Violence et civilité, Op. cit., p. 282.

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Para sair desta armadilha, “seria necessária uma crítica ao marxis-
mo, da qual a aporia da sua relação com o significado e utilização de
Gewalt seria o fio condutor”48. No entanto, o próprio Balibar afirma
que isto nunca aconteceu e isto “devido à impotência que o marxismo
demonstrou de analisar as verdadeiras catástrofes da história do século
XX (muito diferente da catástrofe final do capitalismo profetizado por
Marx) da qual foi tanto o agente como a vítima: o fascismo e o nazismo,
o ‘socialismo real’ e as suas tendências exterministas, a transformação
das lutas anti-imperialistas em ditaduras ideológico-militares (...)”49. Fi-
nalmente, Balibar examina a multiplicação de “fenômenos de violência
‘inconvertível’ ligados à globalização, ou cujas condições são generali-
zadas por ela”. As guerras étnicas que estão a explodir na Iugoslávia são
o ponto de referência para estas reflexões. A inconvertibilidade desta
violência seria o fato de seu caráter apolítico ou antipolítico, um curto
circuito entre os extremos: por um lado, questionando a primazia da
nação (...); por outro, revelando toda uma família de comportamentos
e condições de existência que, a rigor, não são nem públicos nem pri-
vados, mas fazem parte de uma zona cinzenta onde o reconhecimento
da individualidade perde as suas regras e os seus nomes”50. Esta zona
cinzenta seria a condição para uma violência inconvertível que - dentro
do capitalismo globalizado e neoliberal - produziria “homens economi-
camente descartáveis”51.
Max Weber falou de uma guerra interestatal totalmente interna ao
quadro vestefaliano que acabou por opor – apesar dos seus conflitos
internos – a civilização industrial ocidental aos “bárbaros” cujas limi-
tações não teriam sido apenas técnicas, mas, sobretudo, políticas e

48.  Cf. ARON, Raymond. Macht, Power, Puissance: prose démocratique ou poésie démonia-
que? In: Les sociétés modernes, Paris: PUF, 2006, pp. 606 e ss.
49.  Ibid., p. 282.
50.  « Une violence ‘inconvertible’ ? » Ensaio de tópico. In: BALIBAR, Op. cit., p. 107. Grifo
do autor.
51. Ibid.

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culturais, porque incapazes de se constituírem como uma nação, como
uma cultura e como uma técnica. Pierre Clastres trabalhou, no impul-
so do pensamento de 1968, para desconstruir este quadro, tentando
deslocá-lo radicalmente no espaço (a floresta amazônica) e no tempo
(sociedades primitivas): esta incapacidade para ele foi, pelo contrário, o
resultado de um tipo de política selvagem organizada contra o Estado:
o estado da natureza contra a natureza do Estado. Por último, Étienne
Balibar tenta pensar nas transformações da violência e da política no
contexto em que a desconstrução já teve lugar, logo após a queda do
Muro de Berlim e a queda da União Soviética, com a multiplicação das
guerras intraestatais: o seu problema é, portanto, o de uma violência
que teria se tornado inconvertível.

3. A ZONA CINZENTA DAS GUERRAS URBANAS


A guerra entrou numa zona de indeterminação que mobiliza, ao mes-
mo tempo, os níveis infraestatais, entre estados e supranacionais. Fun-
ciona empilhando, como “a estrutura multicamadas de software, hard-
wares e redes ‘Stack’”52. A inconversibilidade da violência aqui significa
que já não sabemos o que converter e em quê.
Já no início dos anos 90, Hans Magnus Enzensberger escreveu: “Te-
mos a impressão de que a luta incompreensível está a ter lugar longe
de nós. (...) Na realidade, a guerra civil já entrou há muito tempo nas
metrópoles. As suas metástases fazem parte da vida quotidiana das
grandes cidades, não só em Lima e Johanesburgo, Bombaim e Rio, mas
também em Paris e Berlim...”53. A isto se segue uma fragmentação ge-
neralizada dos atores. A guerra civil “não é travada apenas por

52.  BRATTON, Benjamin H. The Stack: On Software and Sovereignty. Cambridge: MIT Press,
2005, p. 4.
53.  ENZENSBERGER, Hans Magnus. Die Grosse Wanderung. Aussichten auf den Bürger-
krieg. La grande migration. Suivi de Vues sur la guerre civile. Trad. Bernard Lortholary Galli-
mard. Paris: [S.l.], 1995, p. 83.

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terroristas e serviços secretos, mafiosos e skinheads, bandos de droga
e esquadrões da morte, neonazis e xerifes negros, mas também por ci-
dadãos comuns que de um dia para o outro se transformam em hooli-
gans, incendiários, loucos que comentam assassinatos em série”54.
Um professor de psicologia em West Point fala de uma epidemia
global de violência que deriva da precariedade, o que ele chama de “fra-
gilidade social”: “A forma como a violência mediática é bombeada para
as favelas é um genocídio”. Nestes guetos, o estímulo da violência vei-
culada pelos meios de comunicação social corresponde, moralmente,
a gritar “fogo” num cinema cheio de gente. Consequentemente, o as-
sassinato é a principal causa de morte de adolescentes negros do sexo
masculino e 25% de todos os homens negros na casa dos vinte anos
(nos Estados Unidos) estão na prisão ou em liberdade condicional” 55.
O Major Christopher Bowers do Exército dos EUA escreve: “O futu-
ro da raça humana é a cidade; o futuro da cidade é a megacidade, e a
realidade da megacidade é o bairro de lata. Esta inflexão é paradoxal.
Por um lado, podemos ler que “o mundo é menos violento do que em
praticamente qualquer outro momento da história da humanidade”.
Mas, por outro lado, “não é a história toda”. Outras formas de violência
estão a aumentar: “As questões complicadas, os assassínios de Estado e
criminosos estão frequentemente interligados. Políticos, polícias e ou-
tros funcionários podem estar em conluio com patrões criminosos, o
que torna os seus crimes mais difíceis de desvendar e de tratar”56. Se
“definimos a guerra através desta dualidade, reconhecendo a sua
inescapável violência, mas exigindo que pelo menos esta seja organi-
zada e intencional, os atos aleatórios de violência ou conflito que são

54.  Ibid., p. 84.


55.  GROSSMAN, Dave. On Killing: the psychological cost of learning to kill in war and society.
New York: Back Bay Nooks, 2009. Esta passage é citada por Alessandro Visacro, Coronel do
Exército Brasileiro, em “A Guerra na Era da Informação”, São Paulo: Contexto, 2018, p. 172.
56.  KLEINFELD, Rachel; MUGGAH, Robert. The State of War. Carnegie Endowment for
International Peace, [S.l.], 18 mar. 2019.

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conduzidos sem violência não contam como guerras”57. É por isso que
Muggah e Kleinfeld descrevem as cidades como “a nova fronteira da
guerra” e Lawrence Freedman pensa que “tornou-se razoável pergun-
tar se as formas mais ferozes de guerra de gangues, ocultas nos bairros
de lata das megacidades modernas, devem agora contar como conflito
armado”58.
As megacidades brasileiras constituem o principal teatro desta evo-
lução e são objeto de estudos estratégicos e militares. Como dissemos
acima, um estudo do exército americano olhou, entre outras coisas,
para duas cidades brasileiras: São Paulo e Rio de Janeiro. “Em Maio de
2006, quando foram lançados mais de 1.300 ataques por indivíduos as-
sociados ao Primeiro Comando da Capital (PCC) e, ao mesmo tempo,
ocorreram motins em setenta e três prisões (em São Paulo)”. Ao exa-
minar a situação no Rio de Janeiro no início de 2017, Robert Muggah
perguntou se a violência na cidade tinha chegado a uma fase em que
merecia ser considerada como “conflito armado”. Mais de 6.000 pes-
soas tinham sido assassinadas em 2016, uma taxa de 41 homicídios por
100.000 habitantes. A polícia militar esteve envolvida na morte de 920
residentes, enquanto a taxa de baixas entre as forças de segurança da
cidade foi descrita como sendo superior à dos combatentes em guerras
recentes. Ao deslocarem-se para comunidades com veículos blindados
e espingardas de assalto, enfrentaram grupos bem armados, frequente-
mente fortificados por antigos polícias que tinham trocado a proteção
por extorsão e, por vezes, com acesso a metralhadoras pesadas e grana-
das propulsadas por foguetes. As balas de fragmentação penetram nas
paredes dos hospitais e das escolas”59. Freedman argumenta: “enquanto
os países devastados pela guerra civil eram lugares perigosos para se
viver, ainda mais eram muitos países da América Latina e das Caraíbas

57.  FREEDMAN, Lawrence. Op. cit.


58.  Ibid, p. xviii.
59.  FREEDMAN, Lawrence. Op. cit., p. 258.

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que, a rigor, não estavam em guerra. Esta foi a única região do mundo
onde as taxas de violência letal aumentaram após 2000. Era também a
parte do mundo mais urbanizada, com 80% da população a viver nas
cidades. Cerca de quarenta e cinco das cinquenta metrópoles mais peri-
gosas do mundo situavam-se na América Latina”60.
O coronel do exército brasileiro Alessandro Visacro descreve a emer-
gência nestes termos: “Nas megacidades dos países pobres ou em desen-
volvimento, os espaços (anárquicos) regidos pelos seus próprios códigos
sociais, quase sempre impostos de forma violenta e arbitrária, à margem
das regras formais do Estado, dão origem a verdadeiros protetorados ur-
banos sem lei - terreno fértil para todo o tipo de atores armados não es-
tatais (desde facções criminosas a organizações terroristas). A aguda crise
de segurança que afeta as metrópoles brasileiras, especialmente a cidade
do Rio de Janeiro, insere-se perfeitamente neste contexto” 61.
Na França, Alain Joxe fala da emergência de um novo paradigma de
conflito social a que chama guerras suburbanas. Como sinal da “mu-
dança dramática no tipo de guerra”62, todos citam o General Charles
C. Krulak que cunhou o termo “Guerra dos Três Blocos” e o seu “cabo
estratégico”: “num só momento, os nossos membros de serviço vão
alimentar e vestir os refugiados deslocados, prestando assistência hu-
manitária”. No momento seguinte, vão separar duas tribos em guerra
- conduzindo operações de manutenção da paz - e, finalmente, vão tra-
var uma batalha de intensidade média altamente letal - tudo no mesmo
dia... tudo dentro de três quarteirões de cidades”63.
A zona cinzenta da nova guerra é a metrópole onde a violência
endêmica das grandes periferias do Terceiro Mundo e das economias

60.  Ibid., p. 255.


61.  VISACRO, Alessandro. Op. cit, p. 147-8.
62.  BERMAN, Eli; FELTER, Joseph H; SHAPIRO, Jacob N. Small Wars, Big Data: the Informa-
tion Revolution in Modern Conflict. Princeton: Princeton University Press, 2018, p. xii.
63.  Isso tornou-se uma página no Wikipedia: https://en.wikipedia.org/wiki/Three_
Block_War.

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emergentes está a alastrar. Isto remete-nos para o debate sobre a ex-
clusão e o desenvolvimento. Enquanto especialistas militares e estudos
estratégicos tentam captar a tendência de transformação de um mundo
de guerras já em curso, as críticas centram-se no terreno econômico de
suporte desta inflexão, nomeadamente a globalização, onde o neolibe-
ralismo é uma ideologia que legitima a exclusão, ou mesmo a produ-
ção de massas supérfluas ou “economicamente descartáveis”.
A este nível, podemos, portanto, formular uma série de questões:
será a nova forma de guerra a atualização pós-moderna das instituições
antimodernas ou a reorganização das formas de dominação na linha da
captura de lutas, resistências e nomadismo que escapam definitivamen-
te ao espaço estriado do Estado e dos seus aparelhos de captura? Será
que a crise da globalização neoliberal indica uma viragem autoritária
do neoliberalismo ou - pelo contrário – expõe as profundas contradi-
ções que os efeitos desta captura abrem na governança do capitalismo
cognitivo globalizado?

4. GUERRAS MOLECULARES?
Como apontamos acima, já em 1991, Hans Magnus Enzensberger via
o fim da Guerra Fria como o início das “guerras moleculares”. É a ele
que Balibar se refere numa das suas palestras: “O que é uma guerra
que todos sofrem, mas ninguém sofre”? Como resultado, a arqueolo-
gia da violência de Clastres é novamente mobilizada, mas num sen-
tido muito diferente daquele que o jovem etnógrafo estava tentando
traçar. A inversão da abordagem Hobbesiana da guerra de todos con-
tra todos funciona ao contrário: o que para Clastres era uma crítica
libertária da violência do Estado e das suas guerras é agora lido como
o paradigma da guerra generalizada e do caos que caracteriza as no-
vas formas de governo. Bertrand Badie escreve: “(a)n hoje, para além
ou fora do Estado, as novas guerras fundem-se com o próprio fun-
cionamento da sociedade e estão desligadas de qualquer centralidade

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política”. A noção de guerra total “muda o seu significado e aproxi-
ma-se da noção de ‘sociedade guerreira’ anteriormente desenvolvida
por Pierre Clastres para analisar as sociedades primitivas”. Badie pen-
sa que Clastres definiu as sociedades primitivas como “infrapolíticas”
e assim identifica uma inversão que não tem lugar: “(...) o processo é
de certa forma inverso: a guerra não bloqueia a constituição de uma
comunidade política, mas substitui as suas deficiências, ou mesmo o
seu fracasso. Em vez de lidarmos com aquilo a que Clastres chamou
a “arqueologia da violência”, estamos a assistir a uma reinvenção da
mesma, conduzindo à sua produção de uma forma sem preceden-
tes”64. Mais ou menos no mesmo sentido, Alain Joxe sublinha que
existe atualmente uma inversão do mecanismo de legitimação da go-
vernação em relação ao esquema Leviathan: “(global) a governação
baseia-se na insegurança dos povos, em vez de a soberania do Estado
se basear na proteção dos povos”. Curiosamente, esta é também a
opinião de um conservador realista como Niall Ferguson que pergun-
ta: “Pode um mundo em rede ter ordem?” e depois responde: “Duvi-
do muito”65. Em seguida, cita Henri Kissinger que “assimila a guerra
cibernética ao estado de natureza Hobbesiano”66. O neoliberalismo, o
poder do mercado e das grandes empresas de rede verdadeiramente
soberanas daria nova vida ao modelo de caos privado como um novo
estado de natureza, no sentido de Thomas Hobbes.
No seu ensaio sobre a radicalização islamista dos jovens nos subúr-
bios, Alain Bertho destaca uma passagem muito famosa de Giorgio
Agamben sobre “qualquer singularidade” e depois se pergunta: “Pode-
ria Giorgio Agamben ter previsto que o destino escolhido das “quais-
quer singularidades” que se manifestavam contra o Estado que viu em

64.  BADIE, Bertrand; VIDAL, Dominique. Nouvelles guerres: comprendre les conflits du siè-
cle XXI. Paris: La découverte, 2014, p. 19.
65.  FERGUSON, Niall. The Square and the Tower: Networks, Hierarchies and the Struggle for
Global Power. Londres: Allen Lane, 2017, p. 394.
66.  Ibid., p. 397.

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1990 seria esta infeliz identificação com um destino divino?”67. Bertho
diz que “a revolta radical está no fim do projeto revolucionário”. Ernst
Kantorowicz disse que as ilusões racistas e nacionalistas eram fruto da
desfiguração de “uma ideia originalmente venerável e altiva”. O proble-
ma para ele não era a dimensão sagrada da violência, mas a sua profa-
nação: “(t)o desencanto do mundo progrediu rapidamente, e os velhos
valores éticos que têm sido objeto de abusos e exploração miseráveis
em toda a parte estão prestes a dissipar-se como fumo. A eficiência fria
durante e após a Segunda Guerra Mundial, associada ao medo do in-
divíduo de ficar preso nas chamadas “ilusões” em vez de aderir a “opi-
niões realistas”, eliminou as “superestruturas” religiosas ou ideológi-
cas tradicionais, na medida em que as vidas humanas já não estão a ser
sacrificadas, mas liquidadas”68. Simone Weil, na sua crítica aos direitos
humanos, tinha antecipado estas reflexões de Kantorowicz. Pier Paolo
Pasolini também apreendeu na antiga lei romana a noção ambígua de
Homo Sacer, um homem cuja santidade permitia o assassinato, mas não
o sacrifício. É justamente isto que Kantorowicz escreve: “Se a morte
do soldado em combate - para não falar da morte dos civis nas cidades
bombardeadas - for despojada de qualquer ideia que abrace a Humani-
tas, seja Deus, rei ou patria, também será despojada de qualquer ideia
enobrecedora de auto-sacrifício. Torna-se um assassínio a sangue frio
ou, pior ainda, assume o valor e a importância de um acidente de via-
ção político num feriado legal”69. Alain Bertho vê que no terrorismo
islâmico “a realização do ‘fim das grandes narrativas’ anunciado por
François Lyotard atinge as narrativas dos poderes, assim como as narra-
tivas daqueles que os desafiam”70.
O que nos escaparia seria o “projeto” revolucionário: a multiplica-
ção da violência inconvertível (na guerra civil molecular) é na realidade

67.  Ibid, p. 99.


68.  Op. cit., p. 166.
69. Ibid.
70.  BERTHO, Alain. Les enfants du chaos. Paris: La Découverte, 2016, p. 15.

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o fato de uma “conversão” religiosa, a do radicalismo islamista ou dos
evangelistas que fornecem as bases eleitorais da nova extrema-direita
nos Estados Unidos da América do Trump, bem como no Brasil de Bol-
sonaro. Mas, no radicalismo islâmico e na nova extrema-direita, será
que não encontramos precisamente formas de reencantamento do
mundo que dão à guerra e ao assassinato uma aura de sacrifício? Será
que estas formas de encantamento não justificaram ou não determina-
ram também os excessos totalitários das experiências socialistas ou até
progressistas?

CONCLUSÃO: O HAITI, O ENIGMA DA POLÍTICA


Conhecemos o Haiti como o terreno ambivalente da globalização
no Sul do mundo. A participação brasileira na missão humanitária da
ONU foi o cadinho de uma requalificação do papel político do exército
no contexto de uma nova guerra. Com os estudos pós-coloniais na vi-
ragem do século, o debate sobre a revolução haitiana tinha experimen-
tado um certo renascimento. O Haiti foi “redescoberto” como o país
do orgulho dos escravos que lutam pela liberdade. A miséria do Haiti
é a miséria da república que não reconheceu e não pôde reconhecer a
liberdade dos Jacobinos Negros. A revolução dos escravos haitianos é o
acontecimento impensável da revolução francesa porque torna explícita
a oposição entre o republicanismo e a liberdade dos escravos, entre a li-
berdade formal e a marcha da liberdade71. A tragédia do Haiti foi a con-
sequência do compromisso entre a República e a propriedade privada: a
necessidade de renovar o debate sobre o “comum”72.
Mas há outra possibilidade de regressar ao Haiti, lendo uma breve
“Nota sobre Maquiavel” de Maurice Merleau-Ponty. No rescaldo da
Segunda Guerra Mundial, o filósofo francês oferece uma bela reflexão

71.  TROUILLOT, Michel-Rolph. Silencing the Past: Power and Production of History. Boston:
Beacon Press, 1995.
72.  Antonio Negri e Michael Hardt retomaram essas críticas em Commonwealth, op. cit., p. 13.

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sobre o humanismo que certamente inspirou Louis Althusser e, es-
pecialmente, Claude Lefort. Afirma que o trabalho de Maquiavel é a
base fundamental de um verdadeiro humanismo e de uma política ra-
dicalmente diferente daquela que funciona como uma exortação mo-
ral: “Não há humanismo sério a não ser aquele que espera, em todo o
mundo, o reconhecimento efetivo do homem pelo homem; não pode,
portanto, preceder o momento em que a humanidade se dá a si própria
os seus meios de comunicação e de comunhão”73. Merleau-Ponty con-
tinua a recordar que o problema maquiavélico foi abordado por Marx.
Este último “propôs precisamente, a fim de fazer uma humanidade, en-
contrar outro apoio que não os princípios sempre ambíguos”. (Marx)
procurado na situação e no movimento vital dos mais explorados, dos
mais oprimidos, dos mais impotentes, o fundamento de uma potência
revolucionária, ou seja, capaz de eliminar a exploração74. Assim, a pro-
cura de um verdadeiro humanismo leva-nos a uma verdadeira questão:
como “inventar formas políticas capazes de controlar o poder sem o
anular”, um “poder dos sem-poder”75?
É ali que vemos o Haiti e a sua revolução esquecida e escandalizada
reaparecerem sob uma luz diferente, para além das clivagens neo e pós-
-coloniais. Na análise detalhada do esbatimento das linhas de amizade e
inimizade em Santo Domingo, entre escravatura, colonialismo, confli-
tos inter-coloniais (entre França e Inglaterra) e abolicionismo, Merleau-
-Ponty tira de C.L.R. James o relato do drama dos soldados franceses
enviados por Napoleão para a ilha e que lá perecerão: “Muitos oficiais
e todos os soldados ainda acreditavam que lutavam pela Revolução;
vêem no dia de Todos os Santos um traidor vendido aos padres, aos
emigrantes e aos ingleses... No entanto, algumas noites, ouviram os
Negros dentro da fortaleza cantando La Marseillaise, o Ça ira e outras

73.  Ibid., p. 361.


74.  Ibid., p. 362.
75. Ibid.

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canções revolucionárias”76. Os soldados hesitaram, olhando para os seus
oficiais como se lhes dissessem: “Estaria a justiça do lado dos nossos
inimigos bárbaros? Será que já não somos soldados da França republica-
na? E será que nos tornamos instrumentos políticos vulgares?”77. Esta é
a armadilha dos valores: “os mesmos princípios podem servir aos dois
adversários”78 e, pior ainda, “aplicados numa situação adequada, os prin-
cípios são instrumentos de opressão”79. Ora, este trágico paradoxo não
é, portanto, o resultado da especificidade colonial, nem da relação da
República “burguesa” com a propriedade privada, já que a encontra-
mos intacta e igualmente trágica nas águas geladas de um porto báltico
da recém-formada União Soviética: “(...) desde o tempo da comuna de
Kronstadt, o poder revolucionário perdeu o contato com uma fração
do proletariado (...) e, para esconder o conflito, começa a mentir. Pro-
clama que o pessoal geral dos rebeldes está nas mãos dos Guardas Bran-
cos (...). Agora “a divergência está disfarçada de sabotagem, a oposição
de espionagem”. Importa notar que, uma vez delineadas estas “novas
formas políticas, as lutas que a revolução supostamente deveria supe-
rar reaparecem no âmbito da revolução”80. Não foi diferente na Guer-
ra Civil espanhola, onde os estalinistas esmagaram os anarquistas pela
força das armas em Maio de 1937, abrindo o caminho para a vitória de
Franco81.
Tanto no Haiti como em Kronstadt ou Barcelona, o perspectivismo
não impediu que “todos lutassem em nome dos mesmos valores: liber-
dade, justiça”82. Como disse Rosa Luxemburgo na sua crítica ao bolche-

76.  Ibid., p. 359. Merleau-Ponty cita Les Jacobins noirs, p. 49.


77.  JAMES, Op. cit., p. 275 e 295.
78.  Notes sur Machiavel, Op. cit., p. 358.
79.  Ibid., p. 357.
80.  Ibid., p. 363. Grifos nossos.
81.  SOUCHY, Augustin. The Tragic Week in May: the May Days Barcelona 1937. Libcom.org,
[S.l.], 13 dez. 2005. Disponível em: http://libcom.org/library/tragic-week-may-days-barcelo-
na-1937-souchy.
82.  Ibid., p. 359.

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vismo, a crítica às dimensões formais da democracia liberal serve para
destruir completamente a democracia. Pior ainda, no caso da União
Soviética, o perspectivismo torna-se absoluto e, em nome da crítica
ao formalismo liberal burguês, o novo poder esmaga não só os demo-
cratas dos combatentes, mas também as famílias dos marinheiros que
são feitos reféns e fuzilados, bem como os prisioneiros” 83. Stalin só vai
manter e generalizar a mesma prática: cada detenção (da polícia secre-
ta) resultou em outras ... de esposas, filhos adultos e muitas vezes de
irmãos, irmãs e outros parentes.”84.
Ora, sabemos que as críticas ao bolchevismo e à URSS não faltaram,
desde a de Rosa Luxemburgo (em 1918) até à de André Gide (em 1936),
passando pelas dos anarco-comunistas (Makhno, Berkman, Goldman).
Mas, ainda em 1977, na sua contraproposta a uma das edições do seu
grande livro sobre Stalin, Boris Souvarine expressou a sua indignação
perante “a intelligentsia francesa, a Universidade, a imprensa francesa e
a publicação (que) durante mais de um terço de século” não queria ver
a realidade do socialismo realmente existente85. Da mesma forma que
a vergonha do Haiti não é específica da república burguesa, a vergonha
de Kronstadt não diz apenas respeito ao bolchevismo. Vemos hoje a
mesma capacidade de negação da crítica e a defesa cega – porque moral
– da “esquerda” como um princípio abstrato para justificar o imoralis-
mo (corrupção) no final86.
O que se pensava ser o trabalho de um partido (bolchevique), de
uma destas facções (estalinismo) num determinado período, foi hoje

83.  BERKMAN, Alexander. El mito bolchevique: Diario 1920-1922. Madri: Malatesta editorial,
2013, p. 263.
84.  MEDVEDIEV, Roy. Au tribunal de l’histoire. New York: [S.l.], [1974].
85.  SOUVARINE, Boris. Prefácio (1977). In: Staline. Paris: Ivrea, 1992, p. 579. É bem interes-
sante de descobrir que, após a censura de facto da parte do editor americano que havia, porém,
encomendado o livro (entre 1930 e 1935), o grande livro sobre Stalin de Boris Souvarine (1935)
foi traduzido em inglês por C. L. R. James. Cf. Ibid, p. 14.
86.  LA ‘DEFAITE’ de l’Opposition (La Révolution Prolétarienne, n. 23, nov. 1926). In: SOUVA-
RINE, Boris. À contre-courant: écrits 1925-1939. Paris: Denoël, 1985, p. 115.

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reproduzido na defesa cega e sectária dos chamados governos “progres-
sistas” da América Latina. Seja o caudilhismo militarista de Hugo Chá-
vez que destruiu a Venezuela, a repressão sangrenta dos movimentos
sandinistas na Nicarágua, o peronismo mafioso dos Kirchners, o desen-
volvimento autoritário de Correa no Equador ou a mistura corrupta
do neoliberalismo e do neodesenvolvimento do PT e do Lula no Brasil.
Mesmo que em termos diferentes, isto, por sua vez, produziu o imora-
lismo fascista.
A situação paradoxal em que nos encontramos é, de fato, a do es-
batimento das linhas de amizade e de inimizade, e isto aparece mesmo
na convergência da esquerda e da direita que vimos em ação no terrível
caso do assassinato de Marielle Franco. Com Merleau-Ponty, podemos
insistir na observação: “O problema do humanismo permanece total-
mente aberto”87.
O desafio não consiste em tentar resolvê-lo. É necessário tentar man-
tê-lo aberto, como fazem as lutas que as multidões continuam a pro-
duzir: em Hong Kong contra o capitalismo cão de guarda chinês, em
Argel ou no Cairo, contra os regimes militares, nas rotundas da França,
em Quito, Honduras, Chile nas estradas brasileiras por uma renda uni-
versal que reconheça a dimensão urbana e logística do trabalho no capi-
talismo contemporâneo. É aí, como disse Maurice Merleau-Ponty, que
“o conhecimento e a ação são dois polos de uma mesma existência”88.

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87.  Ibid., p. 364.


88.  MERLEAU-PONTY, Maurice, Op. cit., p. 20.

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INSURGÊNCIAS PERIFÉRICAS: SOBRE
AS PRÁTICAS SOCIAIS, CULTURAIS
E POLÍTICAS NAS PERIFERIAS DAS
METRÓPOLES BRASILEIRAS 1
Gerardo Silva

Para o camarada e amigo Écio de Salles,


Que nos deixou antes do tempo.

1. Favela e asfalto
Favela e asfalto designam uma diferenciação entre duas formas de ocu-
pação da cidade: a primeira informal, sem serviços nem infraestrutu-
ra; e a segunda formal, com direitos consagrados nas leis e normativas
que regulam o desenvolvimento do espaço urbano. O asfalto, evidente-
mente, funciona aqui como um dispositivo semântico para sinalizar ou
reafirmar o modo certo ou legal de se ter direito à cidade. (Não existe
aqui, de fato, uma distinção entre centro e periferia). Já a favela seria
o âmbito da precariedade e da ausência do Estado, da falta de acesso
a qualquer equipamento por causa da sua origem irregular, clandesti-
na ou ilegal. Em termos da cidade formal, ou da lógica do asfalto, não
existe (ou não deveria existir) um direito que garanta para esses territó-
rios os benefícios do progresso urbano, condenando seus habitantes a

1.  Uma primeira versão desse texto foi apresentada como conferência no 5º Ciclo de estudos
Metrópoles, Políticas Públicas e Tecnologias de Governo, organizado pela UNISINOS, em
15/05/2017. Uma segunda versão ampliada foi debatida no Seminário Internacional “O traba-
lho das linhas. Estética, Política e Direito”, realizado na UFRJ entre 11 a 15 de março de 2019.

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ocupar zonas de risco e/ou a permanecer eternamente sob a ameaça
da remoção.
Essa distinção entre favela e asfalto, entretanto, como representa-
ção geral da cidade e suas formas de ocupação, é bastante limitada e
apresenta problemas de interpretação. Em primeiro lugar, porque as
pessoas que habitam as favelas fazem parte da dimensão produtiva da
cidade, seja como trabalhadores, seja como consumidores de bens e
serviços; e também como usuários dos sistemas de transporte, saúde e
educação. Ou seja, em termos de direitos individuais e participação na
vida da cidade essa diferenciação não se sustenta – embora muitas vezes
se sustente de fato. Em segundo lugar, nem sempre essa distinção pode
ser claramente estabelecida. Nas periferias urbanas, por exemplo, em
particular nas mais pobres, favela e asfalto normalmente se confundem
e convivem com os mesmos problemas de carências e dificuldades. Por
outro lado, os programas de regularização fundiária e urbanização de
favelas desenvolvidos durante os governos do PT (Lula e Dilma) torna-
ram ainda mais problemática essa distinção, na medida em que estas
ultimas (as favelas) alcançam progressivamente o estatuto da cidade-
-asfalto.
Acreditamos que nesse lugar do tornar-se asfalto das favelas e tor-
nar-se favela do asfalto é onde encontramos um dos processos mais ins-
tigantes do desenvolvimento das metrópoles brasileiras, tanto no nível
material quanto simbólico (e o simbólico aqui se define como uma ins-
tância de luta ou resistência contra as formas de representação hege-
mônicas da cidade). E dizemos “instigantes” não apenas porque seja
algo que demande a nossa atenção acadêmica, mas porque nos parece
que define também um terreno de ação política que desafia os disposi-
tivos de poder que tentam se afirmar nessa distinção. Portanto, o título
deste trabalho: “Insurgências periféricas. Contribuições para a reflexão
sobre a centralidade da periferia nas metrópoles brasileiras”, se inscre-
ve dentro dessa perspectiva, na qual o conceito de periferia engloba
realidades bastante diferentes sob um substrato comum, que é a sua

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natureza precária e sempre preterida nas políticas urbanas de um modo
geral. Mas é também, como dissemos, um âmbito de estratégias de luta
e resistências, cuja principal motivação é a melhoria das condições de
vida de todas as pessoas que se encontram nessa situação – quer dizer, a
grande maioria da população urbana brasileira.
Essa dimensão da luta e da resistência merece ainda uma breve re-
flexão. O historiador inglês Edward P. Thompson ([1963] 2011) fazendo
alusão à formação da classe operária inglesa, afirmava o primado da
“agência” sobre a “estrutura”, isto é, a importância das práticas e das
formas de sociabilidade (cultural) na construção de uma consciência
de classe capaz de antagonizar as formas de domínio e exploração da
sociedade burguesa. Em contraposição à ideia de que a classe luta por-
que existe, Thompson afirma que a classe existe porque luta. Ela seria,
portanto, o produto de uma construção ou trabalho político de suces-
sivas gerações em configurações sempre variáveis, e cuja correlação de
forças na ordem do sistema (capitalista) nunca estaria garantida a-priori.
No mesmo sentido, entendemos que na era do trabalho e da criação
do valor fora da fábrica (pós-fordismo), onde a metrópole é o próprio
substrato material dos novos agenciamentos produtivos, a periferia tor-
na-se terreno da crítica e lugar de afirmação de um modo diferente de
fazer cidade, seja através de uma prática concreta de apropriação do
território, seja através das suas manifestações expressivas chamadas de
“cultura da periferia”.
Gostaríamos de chamar a atenção, antes de continuar com a argu-
mentação, sobre o fato de estarmos conscientes da existência de uma
farta literatura – acadêmica e não acadêmica – sobre as periferias me-
tropolitanas no Brasil. Essa literatura, com efeito, começa a ganhar cor-
po nas décadas de ´60 e ’70, quando o ritmo de crescimento e a extensão
territorial das grandes cidades brasileiras passa a ser objeto de estudos
e pesquisas visando a incorporação da “questão urbana” na agenda das
políticas públicas. No que diz respeito à “cultura da periferia” (ou me-
lhor, à “produção cultural da periferia”), entretanto, os aportes são mais

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recentes, e sobretudo mais voltados para o universo das manifestações
expressivas e/ou da produção de linguagens e imaginários urbanos nes-
se contexto. Como afirma a pesquisadora Heloisa Buarque de Holanda:
“Ainda que a produção cultural das periferias comece hoje a ser reco-
nhecida como uma das tendências criativas mais importantes e, mes-
mo, politicamente inaugural, sua história ainda está para ser contada”.
A seguir, exploramos quatro momentos em que a periferia emerge
como território de luta de uma maneira afirmativa, isto é, como lugar
de expressão e reivindicação política com diferentes graus de autono-
mia. Esses quatro momentos se correspondem com leituras diferentes
(porém convergentes) direcionadas a problematizar os sentidos da pe-
riferia e a sua centralidade na metrópole contemporânea. No final do
capítulo, voltamos sobre este último ponto de maneira mais específica:
O que caracteriza ou define essa centralidade? Qual é a sua importân-
cia para as lutas sociais urbanas? Como ela contribui para o aprofunda-
mento da democracia no Brasil?

2. Periferia e Subúrbio
No livro “A aparição do demônio na fábrica. Origens sociais do Eu dividi-
do no subúrbio operário” (2008), o sociólogo José de Souza Martins apre-
senta, na forma de uma entrevista, um debate sobre o sentido de subúrbio
e periferia na cidade de São Paulo, centrando sua análise nos territórios
do ABC paulista. Para o autor, o subúrbio é um processo de transição, no
qual a cidade cresce e se expande em contato com o mundo rural nas suas
bordas, suavizando o contraste entre essas duas formas vida. Nesse sen-
tido, ao mesmo tempo em que afirma a presença expansiva da cidade, o
subúrbio resguarda a memória ativa das fazendas que a precederam. “Em
termos atuais, afirma o autor, se poderia dizer que subúrbio é lugar em
que o passado rural de algum modo sobrevive o urbano” (p. 49).
Outra característica do subúrbio, segundo José de Souza Martins,
que sobrevive até os dias atuais, são as instituições comunitárias e a

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forte identidade local dos municípios do ABC paulista (em particular
nos municípios de São Caetano e Santo André). Isso seria possível em
um contexto de relações pessoais intensas, onde redes sociais de solida-
riedade e apoio mútuo conseguem se constituir – baseadas, em gran-
de medida, em relações de vizinhança relativamente estáveis. Existiria,
portanto, na ideia de subúrbio uma correlação entre uma determinada
configuração territorial (que mesmo sendo urbana guarda a cadência
de uma temporalidade rural) e um modo de vida específico de natureza
comunitária.
Ora, com a industrialização, segundo o autor, a região do ABC pau-
lista perde essa condição e se transforma em uma periferia metropo-
litana, perdendo muitos dos atributos que evocam essa passagem do
campo para a cidade (e vice-versa). Pelo contrário, diz José de Souza
Martins, a periferia seria e negação do subúrbio; ela (a periferia) é o que
vem junto com os complexos habitacionais, as montadoras e a grande
indústria: a urbanização massiva e patológica da nova fronteira do de-
senvolvimento econômico de São Paulo, que reúne todas as mazelas
de uma cidade degradada. Assim, a periferia teria se transformado “em
uma concepção genérica negativa do urbano, diferente do subúrbio,
que é uma concepção positiva” (p. 60).
Certamente, a superposição desses espaços ainda faz algum sentido
no contexto regional, porém acho que esse contraponto resulta extre-
mamente redutor com relação à experiência operária (ou mesmo de
classe média) que se afirma no ABC paulista. Acontece que a constitui-
ção da periferia corresponde a um momento histórico muito definido:
o das migrações internas para a metrópole em um contexto de expan-
são da atividade industrial e do trabalho assalariado, que possibilitaram
a fuga de condições de exploração rural nos seus locais de origem. Es-
ses migrantes não apenas foram capazes de reconfigurar suas habili-
dades produtivas, diga-se de passagem, em um período extremamente
curto de adaptação à vida urbana, como também de estabelecerem no-
vos horizontes e perspectivas de presente e futuro para eles próprios e

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suas famílias (mesmo conservando ativo, em muitos casos, o desejo de
voltar). Nesse sentido, essa experiência de constituição de uma nova
subjetividade urbana, no que ela tem de mais afirmativo, foi uma con-
quista da periferia, não do subúrbio.
Podemos ainda ressignificar essa experiência em termos da saga dos
retirantes da seca, que é antiga e bastante conhecida. Perante a recor-
rente falta de chuvas e oportunidades para os trabalhadores rurais do
sertão, estes acabam migrando para as cidades da região e, posterior-
mente, para destinos mais longínquos, tais como as grandes cidades do
sudeste do país. Vale a pena lembrar o belo final do romance Vidas Se-
cas, de Graciliano Ramos:

E andavam para o sul, metidos naquele sonho. Uma cidade grande, cheia
de pessoas fortes. Os meninos em escolas, aprendendo coisas difíceis e ne-
cessárias. Eles dois velhinhos, acabando-se como uns cachorros, inúteis,
acabando-se como Baleia. Que iriam fazer? Retardaram-se, temerosos.
Chegariam a uma terra desconhecida e civilizada, ficariam presos nela. E o
sertão continuaria a mandar gente pra lá. O sertão mandaria para a cidade
homens fortes, brutos, como Fabiano, sinhá Vitória e os dois meninos.

Ao longo das décadas de ´50, ´60 e ´70, entretanto, a aposta pelas


cidades do sudeste era menos indeterminada. Como sabemos, um in-
tenso e constante fluxo migratório de trabalhadores nordestinos (mas
também mineiros e do interior do Estado de São Paulo), tinha como
destino final o ABC paulista para trabalhar nas indústrias da região,
que absorviam, avidamente e sem qualquer mediação, a mão-de-obra
recém chegada. A maioria desses trabalhadores, com efeito, não pos-
suíam qualquer experiência de trabalho no chão de fábrica. No excelen-
te filme “Peões” (2004), dirigido por Eduardo Coutinho, essa situação
fica evidenciada em todo momento. Logo na cena inicial, antigos traba-
lhadores de fábrica procurados para falar das greves operárias do ABC
paulista em 1979 vivem agora na cidade de Várzea Alegre, no interior

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do Ceará, de onde partiram algum dia. Eles declaram terem chegado
do Nordeste para ir diretamente à fábrica, antes de qualquer outra
preocupação ou providencia – e há relatos de recrutamento na chegada
dos ônibus e dos trens.
A experiência mais emblemática dessa dupla condição de retirantes
e operários de muitos trabalhadores do ABC, tal vez seja a do próprio
ex-presidente Lula. Nascido em Caetés (interior de Pernambuco), foi
obrigado a migrar junto com a família aos sete anos de idade, para
Guarujá, litoral paulista. A viagem foi feita de pau-de-arara, ao longo
de treze dias. Começou a trabalhar aos doze anos, fez curso de torneiro
mecânico no SENAI e logo depois perdeu o dedo mínimo da mão es-
querda, em um acidente de trabalho. Em 1966 ingressou na fábrica das
Indústrias Villares, em São Bernardo do Campo. Transformou-se em
sindicalista metalúrgico e, em 2002, em presidente da República. Nes-
sa trajetória, porém, de constituição de um sujeito urbano industrial
sindicalizado, Lula nunca deixou de estar associado com sua origem de
retirante nordestino. E isso ainda impregna a subjetividade operária do
ABC paulista enquanto periferia metropolitana.

3. Cidadania insurgente
Uma das contribuições recentes mais instigantes desta saga da consti-
tuição das periferias metropolitanas brasileiras, a encontramos no livro
“Cidadania Insurgente” (2013), do conhecido pesquisador norte-ame-
ricano James Holston. Embora o foco do trabalho seja a cidade de São
Paulo, em particular o bairro Jardim da Camélias, localizado na popu-
losa zona leste da capital paulistana, o autor desenvolve uma ampla e
rigorosa exploração dos determinantes históricos que explicam a for-
mação das periferias metropolitanas do Brasil como territórios de se-
gregação social. Em primeiro lugar, diz o autor, os determinantes são
políticos, e têm a ver com o longo caminho percorrido pelos setores
populares na conquista do direito ao voto, isto é, de poder participar

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diretamente na eleição dos seus governantes; em segundo lugar, os de-
terminantes são sociais, e estão profundamente atrelados às diversas
formas de exploração (escravagistas e neoescravagistas) que caracteri-
zam a história do país desde a sua formação colonial; e, em terceiro
lugar, esses determinantes são espaciais, uma vez que se expressam ter-
ritorialmente através de processos de segregação e exclusão.
Frente a esses determinantes, entretanto, os setores populares foram
compondo historicamente estratégias de luta que os levaram a se forta-
lecer nessa posição marginalizada e a defendê-la como possibilidade de
avanço para outras lutas travadas no âmbito da cidade, sendo uma das
mais importantes, segundo Holston, a do acesso à propriedade. Certa-
mente, não se trata de uma forma tradicional (canônica ou liberal) de
acesso à propriedade, mas de uma estratégia processual e incremental
que se inicia em situações muito precárias de segurança da posse até al-
cançar, quando possível, formas mais consistentes de proteção jurídica
ao processo de ocupação. Nas palavras do autor:

os brasileiros não só se mudaram em massa para as cidades [entre 1930 e


1980] como também uma grande parte do povo urbano ganhou pela pri-
meira vez acesso à terra como proprietários. [A sua] posse em geral resulta
de um complexo processo de legitimação, no qual a ocupação ilegal é ao
mesmo tempo o único meio de acesso à terra para a maioria dos cidadãos
e, paradoxalmente, uma ilegalidade que inicia a legalização de reivindica-
ções de propriedade. Ainda que, como resultado, essas propriedades se-
jam normalmente inseguras e contestadas, mesmo assim geram mudanças
fundamentais na cidadania dessas pessoas. (p. 155-156)

Mas, em que sentido se pode dizer que essas propriedades geram


mudanças fundamentais na cidadania das pessoas? Não seria justamen-
te o contrário, isto é, os empecilhos colocados ao acesso à proprieda-
de não seriam o que limita o exercício de uma cidadania mais plena?
Como conjugar essas duas dimensões para que o que normalmente

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é percebido como um obstáculo apareça, na formulação de Holston,
como uma oportunidade? Certo, trata-se de uma situação paradoxal.
Porém o que inclina a balança em favor de uma perspectiva afirmativa é
a voz das pessoas que habitam as periferias, que se manifesta através da
defesa do “sonho da casa própria”, sem que isso implique, necessaria-
mente, uma demanda por habitação social. A “casa própria” significa,
sobretudo, independência e segurança, pelo fato de não ter que pagar
um aluguel nem correr o risco de ser despejado – embora isso aconteça
com frequência nas situações mais expostas e vulneráveis. É por isso
também que uma prestação do tipo hipotecária nem sempre compen-
sa, posto que estabelece uma obrigação contratual que a situação labo-
ral muitas vezes não consegue sustentar. Por outro lado, a ocupação é
sempre uma estratégia familiar, a qual, na maioria dos casos, deve con-
templar configurações variáveis ao longo do tempo. Ou seja, o sonho
da casa própria é também uma estratégia vinculada a um projeto de
vida (certamente muito mais do que à sobrevivência).
O sentido de “ocupação” deve ser entendido em sentido amplo, em
uma escala que vai desde a ocupação propriamente dita até a compra
de terrenos de legalidade duvidosa. Em ambos os casos, há um impor-
tante caminho a percorrer até as pessoas conseguirem ter reconhecidos
seus direitos sobre o espaço que habitam. Por sua vez, essa instância é
fundamental para aspirar a outros direitos correlatos, tais como a dispo-
nibilidade de infraestrutura, equipamentos e serviços urbanos de qua-
lidade. Um elemento importante nessa démarche, segundo Holston, é a
autoconstrução. De um lado, porque a mesma permite uma estratégia
de progressão flexível, baseada nas necessidades e possibilidades reais
de cada família em diferentes conjunturas; do outro lado, porque cria
uma medida de valor (mais próxima do valor de uso do que do valor de
troca) que vai alavancar sua demanda pelo reconhecimento de direitos.
Contudo, afirma o autor, é importante permanecer atento ao fato de
que, nas lutas sociais urbanas da periferia, há sempre a clara consciência
de que o que dá segurança e independência é a propriedade da terra, e

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não da casa. Por isso a principal reivindicação é orientada nessa direção:
ser dono da terra é o que, em última instância, faz a diferença.
Com base nessa argumentação, Holston vai construir o conceito de
“cidadania insurgente”, que designa a luta cotidiana dos habitantes das
periferias (i.e famílias da trabalhadores com diferentes graus de inser-
ção laboral, qualificação e meios de vida) por um lugar na cidade sob a
forma política, isto é, como instancia de reivindicação e reconhecimen-
to de direitos. Ela se diz “insurgente” porque se afirma onde é sistema-
ticamente negada (e não apenas negligenciada), e de um modo bastante
concreto: o direito adquirido através da ocupação e da autoconstrução.
Mas ela não seria efetiva sem outros direitos que vêm sendo conquista-
dos, como o direito de votar e serem representados e também de par-
ticipar na vida pública da cidade. Para muitos, pode parecer ainda uma
caricatura dos direitos políticos plenos, porém para quem vem sem
nada, com a firme determinação de ficar, isso representa muito.

4. Enraizados
A história do movimento Enraizados, no bairro do Morro Agudo, no mu-
nicípio de Nova Iguaçu (RJ), desde sua fundação em 1999 até 2010, é con-
tada pelo rapper Dudu do Morro Agudo no livro “Enraizados. Os híbridos
glocais”, publicado pela editora Aeroplano na coleção Tramas Urbanas (li-
teratura da periferia do Brasil). Trata-se de um movimento que se origina
no contexto das manifestações culturais do rap e do hip-hop na periferia
da metrópole carioca no fim da década de 1990, e que ao longo do tempo
passa a ser reconhecido tanto pela mídia local como também por outros
coletivos e pessoas do Rio de Janeiro e do Brasil, que começam a participar
ativamente das suas propostas. Em 2007, após 10 anos de labor ininterrup-
ta, assim eram apresentadas suas conquistas no jornal O Dia:

Oito anos depois de o movimento Enraizados começar timidamente, em


Morro Agudo, a divulgar o hip-hop e culturas afins, como o grafite e o

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break, a página de internet do grupo de Nova Iguaçu (www.enraizados.
com.br) ganhou impulso e hoje ostenta a marca de 600 mil acessos men-
sais. No rastro do sucesso, as conquistas do grupo encabeçado pelo rapper
Dudu do Morro Agudo incluem vários CDs independentes e um DVD ao
vivo, produzidos no estúdio de edição de vídeo obtido através de convênio
feito com o Ministério da Cultura. Na lista de realizações para este ano,
destacam-se a produção de três documentários feitos pela câmera digital
obtida no pacote do governo federal e a publicação de uma história em
quadrinhos, na qual os personagens foram criados nos moldes da cultura
hip-hop. O Movimento Enraizados é uma organização que tem como ob-
jetivo principal identificar, capacitar e orientar artistas e militantes para o
ativismo cultural. ‘Somos organizados em uma rede presente em quatro
continentes. Estamos na Colômbia, Portugal, Espanha, Finlândia, França,
Bélgica, Angola, Moçambique e Japão’, contou Dudu. No site, os rapazes
do Enraizados expõem pensamentos, atividades e mandam para o mundo
música de jovens que não têm acesso à mídia. Através do Centro de Estu-
do de Ativismo e Militância (Cefam), os jovens da comunidade participam
ativamente da vida política, social e cultural da cidade. (Helvio Lessa, jor-
nal O Dia, 20/05/2017)

A rigor, o movimento Enraizados é fruto de uma parceria entre


Dudu e o seu parceiro Dumontt, este último esquecido pelo jornalista
do O Dia, porém figura fundamental na saga do livro. Ambos acalenta-
ram o sonho, como eles mesmos gostam de ressaltar, de fazer da músi-
ca e da agitação cultural um modo de vida e não apenas um entreteni-
mento nas horas livres. Evidentemente, essa decisão marcou suas vidas,
uma vez que significou deixar uma ocupação mais ou menos segura
por um projeto onde nada estava garantido, e muito menos o susten-
to. Isso fez com que ambos desenvolvessem uma enorme capacidade
de trabalho em equipe e de estabelecer relações com outros coletivos
e com pessoas capazes de ajudar na materialização das propostas, seja
com equipamentos, divulgação, mobilidade ou trabalho braçal mesmo.

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Também os obrigou a desenvolver um espirito empreendedor e a per-
manecer ativos na procura de recursos e/ou fontes de financiamento.
Os começos, segundo o autor, foram difíceis e sem perspectivas, fora o
rápido crescimento da rede e o reconhecimento pelas iniciativas.
Um elemento importante na estratégia do Enraizados foi o fato de
o projeto ter sido pensado, desde o início, como um movimento interli-
gado, isto é, como uma rede. “Lembro que enviei apenas três cartas, diz
Dudu, [e] recebi o retorno de [duas], que me informaram que envia-
ram meu endereço para alguns militantes de outros estados do Brasil,
e que também gostariam de fazer parte do movimento” (p. 62). Desta
forma, nos primeiros anos o trabalho principal da equipe foi montar
um portal e mantê-lo atualizado, sendo que o objetivo do mesmo era
somente o de servir como canal de comunicação, mas, sobretudo, de
relacionamento. Sua manutenção demandava, portanto, mais do que
atualização de conteúdos, exigia organização, contatos, parcerias, en-
contros, viagens, etc. Durante esse período, entretanto, o movimento
foi enxergado como sendo uma proposta virtual, embora houvesse o
esforço por organizar eventos e manter ativa a dinâmica das manifesta-
ções artísticas do rap e do hip-hop. Dez anos depois, os 600.000 acessos
poriam em evidência o quanto a concepção e a estratégia inicial do mo-
vimento foram acertadas.
Um segundo elemento não menos importante foi a adoção de uma
perspectiva do engajamento e da participação associada às manifesta-
ções culturais e artísticas. A criação do Centro de Estudo de Ativismo e
Militância (Cefam), mencionado no artigo, é o principal exemplo nesse
sentido. O Centro foi produto de um encontro entre o movimento e
a Organização Não-Governamental FASE (Federação de Órgãos para
Assistência Social e Educacional), que na época desenvolvia um projeto
para a juventude sobre direitos humanos nas comunidades da periferia
do Rio de Janeiro. Por seu lado, Enraizados já era enxergado como uma
organização direcionada aos jovens de Nova Iguaçu, tentando atraí-
-los para a cultura e os valores do rap e do hip-hop. Como resultado

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da parceria, o coletivo passou a se empenhar mais na abordagem de
questões de cidadania e violência policial, uma vez que esses assuntos
atravessam o cotidiano das pessoas – em particular dos jovens – que ha-
bitam a comunidade de Morro Agudo e outras periferias da cidade. As-
sim, organizaram-se seminários e encontros para “estudar, conversar e
compartilhar tudo o que era possível saber e aprender sobre a violação
de direitos no Bairro”, e colocar em prática formas de monitoramento
e combate ao autoritarismo e a discriminação.
Por fim, tal como o artigo citado também menciona, Enraizados
teve participação ativa no Programa Cultura Viva, um programa do Mi-
nistério da Cultura (MinC) destinado a favorecer, beneficiar, financiar e
dar visibilidade a uma multiplicidade de expressões culturais brasileiras
que até então (2004) permaneciam excluídas das políticas públicas, tais
como o rap e o hip-hop, o Grafite, a cultura Griô, grupos de teatro,
contadores de histórias, saraus de poesia, etc. (Turino, 2009). Nesse
contexto, Enraizados foi contemplado tanto como Ponto de Cultura,
o que lhes permitiu consolidar suas atividades e também expandi-las
(o kit de equipamento eletrônico que fazia parte do Ponto de Cultura
representou um verdadeiro up grade na produção digital do coletivo),
quanto no prêmio Cultura Viva, destinado a consolidar o trabalho dos
Pontos de Cultura mais destacados do país. Em ambos os casos, o que
fica evidenciado é o desenvolvimento da capacidade de propor e rea-
lizar projetos e parcerias, neste caso com o governo federal. Também
revela o grande potencial do Programa Cultura Viva e dos Pontos de
Cultura, no sentido de saber identificar e valorizar as iniciativas cultu-
rais em curso nas periferias do Brasil, urbanas ou não (Silva, 2013b).
A experiência do movimento Enraizados é apenas um exemplo, den-
tre a multiplicidade de projetos e ações culturais presentes nos territó-
rios das periferias metropolitanas. O que se quis colocar em pauta com
ele é a enorme capacidade de articulação, mobilização e organização
desses agentes em contextos adversos, caracterizados pela precarieda-
de e vulnerabilidade de amplas camadas da população (Silva e Marino,

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2017). O mais relevante destas experiências, entretanto, é que elas não
se descolam das problemáticas sociais, mas as elaboram e ressignificam
no plano das manifestações culturais e simbólicas. Paradoxalmente, na
minha opinião, a inteligência política do Enraizados talvez seja justa-
mente a de não ser “enraizados”, pelo menos não completamente. Um
dos princípios que distingue um rizoma de uma raiz, afirmam Gilles
Deleuze e Félix Guattari (1995), é a sua capacidade de conectar, de pro-
duzir agenciamentos múltiplos e diversos, de modo que o movimen-
to não possa ser fixado – tal como eles mesmos reconhecem: “vários
estudos tentam conceituar o Movimento Enraizados, e pode ser que
estejam certos por alguns momentos, mas somos um organismo vivo,
mutante, assim qualquer definição expira rapidamente” (p. 63).

5. O Sujeito periférico
É no trabalho de doutorado de Tiarajú Pablo D´Andrea, intitulado “A
formação dos Sujeitos Periféricos: cultura e política na periferia de São
Paulo” (2013), que encontraremos uma tentativa de síntese (e defini-
ção) do sentido que assume a periferia como lugar de resistência, cria-
ção e política – em contraposição às definições usuais que à vinculam
apenas com a pobreza, o esquecimento e a violência. Para isso, o autor
faz uma escolha bastante significativa, que é a de trabalhar a partir das
narrativas sobre a periferia na obra dos Racionais MC’s (embora tam-
bém sejam objeto de reflexão outras iniciativas de produção artística
nas periferias de São Paulo). Será através da análise desse conjunto de
elementos que poderá emergir a ideia de um sujeito periférico que, de
acordo com o texto, exige três atributos: 1) assumir a condição de pe-
riférico; 2) ter orgulho dessa condição; e 3) agir politicamente a partir
dessa condição (p. 174).
A contribuição específica dos Racionais MC’s para essa formulação
seria a de ter dado voz à periferia através de um gênero musical como o
rap, na sua manifestação mais radical de crítica da ordem social vigente

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– sendo a denúncia do racismo e da violência seus principais alvos. Con-
tudo, é da contextualização das suas músicas e dos relatos ou gramática
(sic) das letras que o autor retira o material para sustentar sua pers-
pectiva sobre o sujeito periférico. Assim, considerando o conjunto da
obra dos Racionais MC’s, pelo menos dezesseis letras teriam como
tema central narrativas de vida na periferia ou descrições do cotidiano
da periferia, das quais as mais destacadas seriam “Fim de semana no
parque” (1993), “Fórmula mágica da paz” (1997) e “Da ponte para cá”
(2002). Nelas, uma imagem ou cenário periférico vai se revelando por
contraposição à cidade dos espaços centrais, opulentos e indiferentes.
Diz o autor,

a obra dos Racionais, com suas letras duras e reais, ajudaram a criar uma
nova forma do que seria a periferia. Por um lado, o forte caráter imagético
das letras carregadas de realismo abriu caminhos insuspeitáveis para toda
uma geração cinematográfica brasileira, passando por seriados e novelas.
Também estas narrativas da periferia chamaram a atenção para diversas
carências materiais e violências variadas que ocorriam nas periferias. Por
fim, ajudou a fomentar um novo significado para o termo periferia, agre-
gando possibilidades criativas dessa população, a participação política e as
potencialidades da mesma fundamentalmente no âmbito da ascensão so-
cial por meio do poder aquisitivo e de demonstração da força pelo uso ou
ameaça de uso da violência. (p. 97)

Qual seria então o novo significado para o termo periferia que os Ra-
cionais ajudaram a fomentar e que o trabalho do Tiarajú D’Andrea se
propõe a revelar? Em primeiro lugar, é importante destacar que a obra
dos Racionais se afirmou em um contexto em que a antiga definição
“acadêmica” de periferia, mais focada nos problemas da segregação ur-
bana e na pobreza, perdia fôlego político, perante os novos desafios da
década de ’90. Nesse marco, o rap e o hip-hop, assim como o funk no
Rio de Janeiro, e outras manifestações musicais e artísticas provenientes

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de âmbitos populares fora do mainstream e dos circuitos da indústria
cultural, ocuparam a cena e renovaram a percepção da periferia, que
agora passa a ser vista como um território de produção de sentidos pró-
prios ou, como afirma o autor, de passagem da “periferia-em-si” para a
“periferia-para-si”.
Em segundo lugar, a obra dos Racionais permitiu, através de uma
narrativa não condescendente, singularizar a vida dura da periferia e as
estratégias pelas quais os sujeitos que a habitam conseguem contornar
os problemas e seguir em frente, “tocando a vida como ela é”. Como
resultado, o que começa a ser relativizado (ou combatido) é o próprio
estigma que esses territórios carregam, isto é, como âmbitos sumidos
na pobreza e na miséria e incapazes de ação política ou cultural. Em
grande medida, o orgulho da condição periférica, que define um dos
atributos do sujeito periférico indicados pelo autor, corresponde ao
processo de reversão dessa perspectiva que naturaliza uma imagem de
anomia social para esses territórios. E uma das vias é a potência da pro-
dução cultural, artística e musical, que os Racionais vêm mostrar.
Em terceiro lugar, há de fato um lugar de destaque para a juventude
nesse reconhecimento periférico (ou da periferia). São principalmente
jovens os que vão “validar” a proposta dos Racionais e das formas de
produção artística e cultural emergentes desses lugares – e que vão dis-
putar os sentidos de pertencimento com outras formas de expressão
de revolta, como a adesão ao narcotráfico. Nesse sentido, como disse-
mos, não seriam apenas os Racionais os responsáveis por esse “revide”
(na compreensão de Deleuze e Guattari) da periferia, mas também os
grupos e coletivos de arte que, como no caso de Enraizados, também
conseguiram materializar a sua vontade de fazer diferente – no último
capítulo da tese, intitulado “A saga Artística da Periferia de São Paulo”,
diversas expressões e manifestações desses coletivos são convocadas
para contribuir à reflexão sobre o fazer artístico da periferia.
Para finalizar, o que o trabalho também assinala é que nesse período
(desde a década de ’90 do século passado até o início do novo milênio)

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houve um alargamento do termo periferia, no qual cultura e potência, jun-
to com segregação, pobreza e violência, passaram a conotar seus territórios
ou “quebradas”. Instala-se dessa forma um campo de possibilidades que,
sem negar suas mazelas, tenciona transcendê-las (ou pelo menos contorná-
-las). A operacionalização desse campo de possibilidades, entretanto, cabe
às populações periféricas, e não ao poder público – este último pode vir a
facilitar, mas não a intervir diretamente. Para arte poder se expressar livre-
mente precisa evitar ingerências. Em resumo, a nova subjetividade periféri-
ca é portadora de um alto grau de autonomia, e nisso reside sua força.

5. A periferia é (também) uma conquista


Perguntávamos, na introdução deste capítulo, o que caracteriza a
centralidade da periferia na metrópole contemporânea e de que ma-
neira ela contribui para o aprofundamento da democracia no Brasil.
Estabelecemos como premissa, seguindo o historiador inglês Edward
P. Thompson, que a mesma poderia ser interpretada como um espaço
de luta da classe trabalhadora, não a partir do lugar que esta ocupa na
estrutura social, mas considerando as estratégias de resistência e apro-
priação que são forjadas nesses territórios. O primeiro embate nesse
sentido foi travado em torno da interpretação (negativa) da passagem
do subúrbio para periferia dada pelo sociólogo José de Souza Martins,
na qual haveria uma degradação do espaço urbano com a chegada de-
sordenada (no ABC paulista) dos complexos habitacionais, das monta-
doras e da grande indústria. Pelo contrário, afirmamos nós, a consti-
tuição da periferia constituiu um verdadeiro acontecimento no qual as
migrações internas, a expansão da atividade industrial e o trabalho assa-
lariado possibilitaram a fuga de condições de exploração nos seus locais
de origem para milhares de trabalhadores.
O conceito de “cidadania insurgente” de James Holston nos pare-
ce avançar na mesma direção. A ênfase, entretanto, é agora colocada
no “fazer periferia”, isto é, na produção de estratégias de longo prazo

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para a melhoria da vida dos trabalhadores, nas quais a “casa própria” e a
“propriedade da terra” são elementos fundamentais. Seria como um se-
gundo momento de afirmação política do trabalho frente ao capital, na
base da produção de valores de uso (a moradia) que só se completam
na sua projeção urbana, ou seja, no direito à cidade – diga-se de passa-
gem, essa perspectiva não necessariamente diverge da interpretação da
autoconstrução como uma forma de exploração do capital que se recu-
sa a financiar parte das condições de reprodução da força de trabalho.
Vale a pena citar mais uma vez o autor sobre o significado dessas es-
tratégias: “Uma mudança crucial ocorreu nos movimentos e organiza-
ções sociais urbanos quando os moradores começaram a entender suas
necessidades sociais como direitos de cidadãos e a gerar argumentos
apoiados nesses direitos para justificar suas exigências” (p. 311).
Para além dos direitos, o Movimento Enraizados coloca o registro
da produção periférica em um outro patamar. Nesses territórios na
maioria das vezes bastante desarticulados e caóticos, alguém conse-
gue desenvolver agenciamentos, construir redes e disputar as narra-
tivas hegemônicas da cidade. No ABC paulista, por exemplo, nós en-
contramos e pesquisamos grupos de teatro alternativo, encontros de
músicos de chorinho, uma companhia de ballet para crianças e ado-
lescentes, contadores de história, um museu de arte popular, coletivos
de grafite, iniciativas para o registro de memórias, saraus de poesia,
oficinas de artesanato popular, entre outros (Silva, 2013a). Todos eles
com maior ou menor grau de “institucionalização”, porém extrema-
mente ativos na sua disposição para desenvolver projetos e construir
condições de autonomia. Certo, o Enraizados conseguiu isso através
de manifestações culturais vinculadas ao rap e ao hip-hop, que já pos-
suíam uma forte ressonância nas periferias metropolitanas do Brasil,
mas ainda assim nada estava garantido. Foi na insistência e na deter-
minação (aliado a um certo grau de ousadia e até de “irresponsabili-
dade”) que eles, Dudu e Dumontt, conseguiram tornar o Movimento
uma conquista da periferia.

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Por fim, o reconhecimento do fazer periférico no terreno da produ-
ção artística e cultural, alcançado principalmente através da obra dos
Racionais MC’s, permite a Tiarajú D’Andrea propor a figura do “sujeito
periférico”, como portador e protagonista de uma nova subjetividade
periférica – na qual cultura e potência (de agir) estão entre seus prin-
cipais atributos. Da nossa parte, acreditamos que vêm muito mais in-
surgência(s) por aí. As periferias estão no cerne do debate político em
todas as grandes cidades, inclusive nos países centrais. Assim, entre os
que só tem privilégios a defender e os que têm direitos a conquistar
existe uma enorme diferença, que se expressa através de um excedente
de disposição para a ação política em favor destes últimos, e que são os
que estão a pautar os rumos da democracia nas metrópoles brasilei-
ras hoje.

Bibliografia
D’Andrea, Tiarajú. A formação dos sujeitos periféricos: Cultura e política na periferia de
São Paulo. São Paulo: USP/Programa de Pós-Graduação em Sociologia, 2013 (Tese de
Doutorado).
Deleuze, Gilles; Guattari, Félix. Mil Platôs. Capitalismo e Esquizofrenia 2 (5 vol.). São
Paulo: Editora 34, 1995.
Dudu do Morro Agudo. Enraizados. Os híbridos glocais. Rio de Janeiro: Aeropla-
no, 2010.
Holston, James. Cidadania insurgente. Disjunções da democracia e da modernidade no Bra-
sil. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
Martins, José de Souza. A aparição do demônio na fábrica. Origens sociais do Eu dividido no
subúrbio operário. São Paulo: Editora 34, 2008.
Ramos, Graciliano. Vidas Secas. Rio de Janeiro: Record, 2015.
Silva, Gerardo. A experiência dos Pontos de Cultura no ABC paulista. Rio de Janeiro: LAB-
TeC/UFRJ, 2013a (relatório de pesquisa, mimeo.)
Silva, Gerardo. “Política Cultural no Brasil”. In: Marchetti, Victor (org.). Políticas Pú-
blicas em debate. São Bernando do Campo: MP Editora, 2013b.

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Silva, Gerardo; Marino, Aluizio. “Sociedad del conocimiento, innovaciones institu-
cionales y prácticas culturales en los territórios del Brasil”. In: Carmona, Rodrigo;
Miguez, Pablo (Coord.). Valorización del Conocimiento en el Capitalismo Cognitivo. Im-
plicancias políticas, económicas y territoriales. Los Polvorines (Bs. As./Arg.): Ediciones
UNGS, 2017.
Thompson, Edward P. A formação da classe operária inglesa (3 vol.). Rio de Janeiro: Paz
& Terra, 2011.
Turino, Célio. Pontos de Cultura. O Brasil de baixo para cima. São Paulo: Anita Garibal-
di, 2009.

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A CRISE DOS COLETES AMARELOS E O
HORIZONTE DOS POSSÍVEIS: DE CADA
UM SEGUNDO OS SEUS PRIVILÉGIOS PAR
CADA UM SEGUNDO SUAS NECESSIDADES
Davide Gallo Lassere
Trad. Clarissa Naback e Alexandre Mendes

U m ano após sua irrupção intempestiva, os Coletes Amarelos


[CAs] continuam indo bem: a quarta Assembleia das Assembleias
[AdA] ocorreu em Montpellier, no dia 03 de novembro [2019], reunindo
250 delegações de toda a França, e o Ato 53, assinalando o primeiro ani-
versário do movimento, foi celebrado com um evento festivo e massi-
vo que invadiu as metrópoles e os territórios franceses, sendo marcado
pela proliferação e pela diversidade das ações.
Após, exatamente, um ano desde sua origem, o movimento dos CAs
- que não parou de se metamorfosear e de se hibridizar ao longo de
todo o período, sem perder suas especificidades fortemente espaciais,
se mostra ainda bastante vital e dinâmico. Decerto, a força semi-insur-
recional das jornadas referentes aos quatro primeiros Atos não é mais
a mesma e os bloqueios das rotatórias nas estradas [ronds-points] ou as
operações de “pedágio livre” também encolheram, no mesmo ritmo da
quantidade e da consistência das assembleias locais.
Não obstante, o movimento dos CAs, no geral, resiste bem: seja o
núcleo duro, que participa ativamente das etapas organizacionais, pro-
pondo constantemente várias iniciativas, seja os círculos concêntricos

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mais distantes do centro, que se mostram sempre disponíveis em ir
para a rua, apesar de todo o terrorismo psicológico dos organismos mi-
diático-governamentais e das absurdas repressões policiais e judiciárias
que atingiram o movimento.
Para além dos picos de intensidade antagonista e do lento e ininter-
rupto processo de estruturação autônoma, o movimento, na verdade,
atravessou diversas fases. E cada uma delas exprimiu um grande valor
político, contribuindo para o enriquecimento de experiências indivi-
duais e políticas. A transição entre essas fases, ponto sobre o qual nós
iremos voltar, deu lugar, assim, a uma reconfiguração constante das
práticas do movimento e de suas formas de auto-organização. São, jus-
tamente, essas passagens que expressam a flexibilidade tática dos CAs e
a sua capacidade inesgotável de readaptação em função dos novos desa-
fios postos pelas variações de conjuntura.
A expressão “a crise dos Coletes Amarelos” não se refere, portanto, à su-
posta perda de fôlego do movimento, mas deve ser entendida, mais precisa-
mente, de dois outros modos: 1) A crise política determinada pela ascensão
desse movimento potente e inédito; 2) As relações estreitas que esse levante
popular mantém com o estado atual da crise global do capitalismo. Antes de
discutir as características próprias do movimento dos CAs (composições so-
cial e geográfica, perspectivas políticas, formas de auto-organização, práticas
etc.) é necessário se ater de antemão sobre esses dois pontos1.

“Estamos indo te buscar”


O movimento dos CAs é eminentemente político. Suas ações e reivin-
dicações o demonstram de maneira inegável. E é político mesmo se
vários entre os CAs – notadamente durante as primeiras semanas da

1.  As observações a seguir devem muito ao trabalho produzido na Plataforma de Investigações Mi-
litantes [Plate- forme d’Enquêtes Militantes], um coletivo político nascido em 2017 após a mobilização
contra a Lei do Traba- lho e do qual participo. Em relação ao movimento Coletes Amarelos, refiro-
-me aos muitos materiais textuais e audiovisuais publicados no site: http://www.platenqmil.com./

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mobilização – se percebessem e se definissem como um movimento
apolítico ou não-político e, às vezes, em certos casos, até francamente
antipolítico. “Aqui nós não fazemos política”; “os políticos são corrup-
tos”; “a política é partidária, nós estamos aqui pelo bem comum, pelo
bem de todos os franceses”; “nós não temos interesses específicos para
defender, as pessoas inscritas em partidos ou sindicatos são bem-vindas,
mas apenas enquanto CAs”: essas e outras frases que podíamos escutar,
e que ainda podemos escutar, agora em menor medida, nas rotatórias
ocupadas, durante as manifestações de sábado à tarde, nos comentários
nas páginas do Facebook e nos grupos do Telegram ou no seio das as-
sembleias populares que se espalharam sobre toda a extensão do Héxa-
gone e em alguns territórios ultramarinos.
A esfera do político é aqui reduzida – de maneira realista e desencantada
– ao reino do privilégio e da opacidade. As instituições estatais, tal como
elas se apresentam atualmente, são, na verdade, identificadas a um comitê
de negócios fadado a satisfazer as necessidades dos ricos, esse pessoal de
cima que não conhece absolutamente os perrengues cotidianos daquelas.
es que ocupam a base da escala social, trabalhadoras.es pobres que dão o
seu suor para conseguir apenas sobreviver e que gostariam de “viver dig-
namente do trabalho”. O caráter instrumental e classista do político – se
por “político” entendemos o establishment dominante e seus aparelhos de
governo – se tornou, então, um dos alvos principais dos CAs.
Ora, a crise da democracia liberal, a crise do parlamentarismo e da
representação, a crise dos partidos e da delegação não constituem, por
certo, uma novidade recente, lançada para debaixo dos holofotes pelo
movimento dos CAs. Trata-se de fenômenos sociopolíticos bem mais
profundos, que encontram sua ancoragem material nas transformações
globais do processo de acumulação capitalista, nas mutações da compo-
sição subjetiva das classes sociais e na reconfiguração da forma-Estado,
na sequência do colapso dos regimes keynesianos e fordistas.
E, no entanto, mesmo considerando que a total indiferença ou, in-
clusive, o ódio e a indignação contra as elites e os governos, sejam fatos

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sociais existentes há muitas décadas, a crise de 2008 implicou um salto
qualitativo sem precedentes. Ela assumiu uma dimensão constituinte, não
apenas em relação à radicalização dos processos de financeirização e de
transnacionalização da produção, com suas consequências em termos
de precarização das condições de vida e do trabalho, mas também no
que concerne à impermeabilidade crescente das classes dominantes às
demandas de justiça social e de autodeterminação política das camadas
inferiores.
É de fato com a irrupção da crise de 2008 que a pseudoclivagem en-
tre direita/esquerda foi ultrapassada não apenas de fato (como é o caso
já há bastante tempo), mas também de um ponto de vista formal: a
socialização pública das dívidas das instituições bancárias e financeiras e
a esclerose autoritária das políticas de austeridade sendo as duas únicas
respostas que os governos – de todas as cores e bandeiras – estavam
de acordo. Além disso, a falsa alternância de poder entre partidos de
centro-direita e de centro-esquerda já tinha deixado a situação para lá
de evidente. Mas, o fato de, em vários países, os partidos ditos modera-
dos de direita e de esquerda se encontrarem juntos no mesmo governo,
compondo as mesmas coalizões, serviu para colocar definitivamente as
cartas na mesa: que todos, uns mais outros menos, estão a serviço dos
mesmos grupos de interesses, dos chamados “poderosos”. Enquanto
isso, nenhuma saída da crise econômica parece surgir no horizonte, no
mesmo momento em que a escalada dos autoritarismos e das extremas
direitas se faz, cada vez mais, inquietante nos quatro cantos do planeta.
A respeito disso, se é verdade que o neoliberalismo, historicamente,
se construiu como uma forma de governo tecnocrático, ou seja, indife-
rente às exigências das(os) exploradas(os), das precárias(os) e das(os) de-
sempregadas(os), deve-se realçar como é no âmbito da União Europeia
que os processos de “desdemocratização” foram empurrados cada vez
mais para longe. Bruxelas – com suas regras de ouro e seus tratados de
ferro – se torna, de maneira crescente, um sinônimo da autorreferencia-
lidade antisocial e pós-democrática das oligarquias dominantes, aquelas

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que governam de maneira a-democrática, isto é, fazendo abstração da
vontade das populações às quais ela administra seus expurgos2.
O rigor frio dos dirigentes de Bruxelas e a inflexível severidade de
suas medidas de austeridade, elaboradas na obscuridade dos palácios
do poder, contrastam fortemente com a prática da democracia direta,
aquela que vemos em ação nas rotatórias e nas assembleias populares,
onde o apoio recíproco, o respeito mútuo, a liberdade de expressão e a
consolidação do laço social estão fundados na busca de transparência e
de horizontalidade. Um dos traços comuns do ciclo de mobilizações de
2011, na realidade, já tinha sido o desejo de se reapropriar da política e
de se engajar diretamente na mudança dos destinos coletivos.
As ocupações das praças representaram, assim, espaços de subjeti-
vação onde o social e político se misturavam, ao ponto de um e ou-
tro se fundirem – a auto-organização da mobilização e o autogoverno
dos espaços ocupados faziam corpo com as tentativas de resistências às
ofensivas conduzidas pelos agentes da ordem e pelas forças armadas.
Essa imbricação conjunta entre questão social e questão democrática,
que marca os movimentos que emergiram ao longo dos anos 2010, se
ergue nos diferentes contextos nacionais contra a gestão autoritária da
crise orquestrada pelos governantes, praticamente, em todos os lugares
no mundo.
O caso francês, não apenas não foge a essa regra, como a ilustra de
modo pragmático. Se para os CAs os problemas materiais ligados à pro-
dução e à reprodução da vida social devem ser assumidos coletivamen-
te, e se a prática da democracia direta não se limita à simples liberdade
de expressão, se enraizando localmente na condução dos aspectos ma-
teriais da vida cotidiana, então fica claro que as bases da constituição
em vigor estão nas antípodas de uma tal sensibilidade política. CAs e
quinta República: a oposição é clara e acentuada. A verticalidade do

2.  Cf., P. Dardot, C. Laval, La nouvel raison du monde, La découverte, Paris, 2010, pp. 459-464
; W Brown, Les habits neufs de la politique mondiale, Les prairies ordinaires, Paris, 2007, pp.
45- 90 ; C. Crouch, Post-demo- cracy, Polity Press, Cambridge, 2004.

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presidencialismo à francesa, o papel reduzido do legislativo e sua pro-
gressiva expropriação por parte do executivo, a centralização do poder
por Paris etc. Eis uma série de elementos que exemplificam com perfei-
ção os vestígios de um velho mundo do qual os CAs querem se libertar
o mais rápido possível.
Sobre isso, a figura jupteriana de Emmanuel Macron e a mesqui-
nharia de seu entorno elevou as hostilidades contra o estado e os seus
representantes para um outro nível. Em sua encarnação presunçosa do
self made man, em sua glorificação da start-up nation, Macron acabou
por jogar mais lenha na fogueira: a arrogância e o desprezo de clas-
se exibidos durante um ano e meio de presidência, em conjunto com
o plano audacioso e profundamente desigual de reestruturação social
colocado em ação, desde sua chegada ao poder, reforçaram os ataques
e a humilhação sofridos pelos estratos mais pobres da sociedade ou
em vias de empobrecimento que compõem os CAs. Não surpreende,
então, que os gritos “Renuncia Macron!” ou “Fora Macron!” tenham
dado o ritmo da mobilização, do começo até o presente momento. As
adjetivações arrogantes e desdenhosas que ele expressou repetidamen-
te – “os que não valem nada”, “a gentinha”, “os que fracassaram na
vida”, “os preguiçosos”, “os gauleses refratários a qualquer mudança”,
“os que nos custam um dinheirão”, “os analfabetos” – receberam como
resposta, em todos os casos, uma interpelação direta ao monarca, de-
sencadeando a extrapolação de sua odiosa soberba: “que venham aqui
me pegar”, disparou orgulhoso e confiante o “presidente dos ricos”, em
pleno caso Benalla. Os CAs não tardaram em reagir, convocando o so-
berano à praça pública com o objetivo de destituí-lo pela construção de
uma relação de força que se passa diretamente na rua e que atropela,
conscientemente, todas as formas de mediação institucional – aliás, tão
cuidadosamente destruídas em razão do desmantelamento social que
o próprio Macron está promovendo de maneira forçada. A irreverên-
cia da proposta presidencial encontrou seu equivalente na virulência
da passagem ao ato. A promessa foi fielmente mantida e as intenções

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foram convertidas em ameaças reais, bem reais: “Emmanuel Macron,
seu babaca, nós estamos aqui para te pegar”. Foi assim que o trono co-
meçou a tremer3...

“Pela honra dos trabalhadores e por um mundo melhor”


Não é por acaso, portanto, que o primeiro e verdadeiro encontro público
do movimento tenha sido na Av.Champs Élysées, símbolo por antonomásia
do poder e da riqueza. Foi ali que no sábado, dia 17 de novembro de 2018,
os CAs realizaram sua primeira autoconvocação, sem requisitar a media-
ção de nenhum organismo partidário, associativo ou sindical. Em seguida,
todas e todos pegaram gosto pelo movimento e agora já podemos contar
mais de 50 atos, espalhados sobre todo o território francês... Tendo em
vista que Macron é um dos arquitetos principais do plano de eliminação
de todas as formas de mediação social, a irrupção brusca e poderosa dos
CAs, por fora dos âmbitos institucionais clássicos, pode ser lida como uma
nêmesis inesperada, uma espécie de retorno do real ou da reparação dos
malfeitos perpetrados pela nobreza do Estado francês em sua tentativa de
se servir da crise como um dispositivo para reformar a sociedade e go-
vernar o “populacho”4. Ao reforço da contrarrevolução neoliberal, os CAs
opuseram a intensificação do conflito social e político. A dureza da crise
encontrou sua contraparte na radicalidade das ações: bloqueios da circu-
lação dos fluxos de mercadorias e de pessoas, tumultos nos bairros ricos
das metrópoles, confrontos diretos com as forças de segurança, saques das
lojas de departamento e de luxo, ocupações dos espaços públicos, uma
prática assídua de democracia direta, elaboração coletiva de reivindicações
sociais, ecológicas e políticas, derivadas de formulações autônomas etc.

3.  Alusão ao subtítulo da obra de J. Chingo, Gilets Jaunes, le soulèvement. Quand le trône a vacillé,
Commu- nard.e.s, Paris, 2019.
4.  Sobre a imagem dos CA vistas por uma certa nobreza do Estado, cf. https://aoc.media/
opinion/2018/12/19/ egoistes-imbeciles-illumines-poujadistes-vulgaires-gilets-jaunes-vus-hau-
te-fonction-publique/.

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Desse ponto de vista, a trajetória do levante dos CAs não deve ser
lida como uma tentativa de compensar uma “falta” a fim de restabe-
lecer os equilíbrios sociais mínimos hoje perdidos. Ao contrário: ela
constitui a título pleno uma afirmação positiva em si e por si, rica de
elementos originais. Diferentemente do que sustentam certas hipóteses
forjadas desde as primeiras semanas de mobilização, a entrada dos CAs
na cena do conflito não é puro reflexo do desmoronamento das me-
diações, ela não corresponde, tampouco, à necessidade de se instituir
um novo regime de negociações, cujo objetivo consistiria em moralizar
a sociedade, tornando-a mais justa e igualitária. Os CAs, na verdade,
nunca procuraram revitalizar formas de representação existentes ou
procuraram inventar novas – como os profissionais da esquerda dese-
ja(m)riam. O movimento sempre praticou a voz da auto-organização e
do contrapoder, recusando de maneira resoluta toda tentativa de recu-
peração.
É por isso que as teses desenvolvidas pelo historiador e cientista po-
lítico Samuel Hayat, publicadas em dois textos amplamente debatidos
entre o final de 2018 e o início de 20195, nos parecem discutíveis, princi-
palmente em função das evoluções do movimento em fases posteriores
à sua escrita. Nos textos em questão, que tiveram o mérito de fornecer
uma base de leitura importante a um momento de perda generalizada
de marcos teórico-políticos, Haya interpretou os CAs como um mo-
vimento cidadão e conservador, visando a restaurar um pacto social
rompido por quarenta anos de restruturações neoliberais e dez anos
de crises globais. Tratar-se-ia, então, não somente de um movimento à
procura de um novo contrato social, mas também de um movimento
comunitário que quer voltar aos “padrões atemporais” próprios à “eco-
nomia moral”. Além disso, o “democratismo” dos CA, como emergiu

5. Conferir: https://samuelhayat.wordpress.com/2018/12/05/les-gilets-jaunes-leconomie-
-morale-et-le-pouvoir/ e
https://samuelhayat.wordpress.com/2018/12/24/les-gilets-jaunes-et-la-question-demo-
cratique/.

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claramente da centralidade acordada no Referendo de Iniciativa Cidadã
[Referendum d’Initiative Citoyenne - RIC], evitaria toda forma de conflito
interno, revelando-se um aliado perfeito do neoliberalismo, em sua ten-
dência a reduzir os problemas políticos a questões técnicas resolúveis
com a ajuda de experts. Ora, se esses argumentos poderiam ser objeto
de crítica já no momento em que foram escritos, eles devem ser ainda
mais relativizados passados alguns meses desde o início do movimento.
As demandas de reintrodução do Imposto Sobre a Fortuna [Impôt
sur la Fortune - ISF] e aquelas de abolição do Crédito Tributário para
Competividade e Emprego [Crédit d’Impôt pour la Compétitivité et l’Em-
ploi - CICE] – “que os GRANDES (Macdo, Google, Amazon, Carre-
four...) paguem GRANDE e que os PEQUENOS (artesãos, TPE, PME)
paguem pouco”, como afirma uma das demandas de um total de qua-
renta e duas reivindicações iniciais6 – ou, mais genericamente, as de-
mandas de revalorização do salário mínimo e das aposentadorias, de
fortalecimento do sistema de seguridade social, de auxílio aos doentes,
às pessoas sem domicílio fixo, às pessoas com deficiência, aos(às) de-
sempregados(as) etc; ou, então, a necessidade de requalificar e retomar
os serviços públicos, principalmente nos territórios negligenciados, que
certamente interpelam “a mão esquerda do Estado” em suas funções
de redistribuição e de regulação, sem por isso desejaram se colocar sob
sua égide benevolente.
Em momento algum, o Estado foi considerado, pelo movimento,
como um pai protetor ao qual delegaríamos a honra e o dever de de-
fender a comunidade nacional que se insurge contra a devastação da
mundialização. O colete amarelo – ponto de visibilidade e a área de ins-
crição de slogans, palavras de ordem, efígies etc. – é bem mais do que
um simples sinal de alarme direcionado aos bons governantes7. Ele é o

6.  https://blogs.mediapart.fr/jeremiechayet/blog/021218/liste-des-42-revendications-des-gi-
lets-jaunes.
7.  A respeito disso, cf. a página do coletivo “Plein le dos”, que cataloga, Ato após Ato, os gi-
lets jaunes mais marcantes, https://pleinledos.org.. Uma entrevista muito interessante a esse

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símbolo, por antonomásia, de uma retomada da política que exprime
uma cólera contra toda variável reformista. A elaboração inicial dessas
reivindicações, das quais uma parte acabou por constituir o coração es-
tratégico dos CAs, enquanto outras simplesmente desapareceram dos
radares – representou, acima de tudo, uma passagem crucial no inte-
rior da construção das perspectivas do movimento. Movimento que
se caracterizou por demandas inéditas de justiça – especialmente, por
justiça fiscal – e por demandas mais facilmente reconhecidas pelos pro-
fissionais da crítica: justiça social, ambiental e democrática. Porém, o
verdadeiro interesse nessas demandas consiste em (1) sua unidade indis-
sociável e (2) nas formas de subjetivação que elas ajudaram a produzir8.
Parece-nos, então, necessário esboçar algumas observações. Primei-
ro, é preciso retomar a suposta disfunção que subsistiria entre a radi-
calidade das práticas dos CAs e os traços relativamente moderados das
reivindicações, que alcançam o conjunto das relações sociais existentes.
Em seguida, convém insistir sobre a natureza estruturalmente inatingí-
vel de (todas) essas reivindicações e a impossibilidade de sua aplicação
na atualidade. Em relação ao primeiro ponto, à primeira vista, talvez
possa parecer paradoxal demandar a consolidação do poder de compra,
a introdução do RIC (já presente em muitos outros contextos nacio-
nais) ou a revogação do aumento de alguns centavos no preço da ga-
solina, tomando com sangue, suor e lágrimas um terço da capital fran-
cesa e vastas zonas de outras metrópoles do país, como nos Atos III e
IV. Mas isso seria conferir muita importância à dimensão discursiva em
detrimento da prática, sobretudo em um momento onde a construção

respeito é a com o filósofo rea- cionário Peter Sloterdijk, https://www.lepoint.fr/politique/


gilets-jaunes-peter-sloterdijk-macron-n-est-pas-louis-
xvi-13-12-2018-2278959_20.php.
8.  A esse respeito podemos mencionar um dos slogans principais do movimento – “fim do
mundo fim do mês, mesmo sistema mesmo combate” – ou considerar a torção imprimida ao
hino nacional: se desde os primeiros atos ouvíamos vários versos da Marselhesa, ao longo da
primavera de 2019, o canto foi reduzido aos seus versos fundamentais (“Às armas, cidadãos!”)
para ser, enfim, completamente modificado: “Às armas, coletes amarelos!”.

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do movimento estava, inteiramente, in fieri. No mês de dezembro de
2018, o caráter espontâneo e extraordinário desse levantamento po-
pular surpreendeu o mundo inteiro ao colocar as cartas na mesa. E o
mundo inteiro se debruçou sobre a lista de reivindicações como se ti-
véssemos encontrado, enfim, as lentes poderosas para decifrar o DNA
desse OVNI político. Os caminhos da subjetivação dos CAs, portanto,
nos levou muito longe, bem além da economia moral e popular.
Em relação a isso, teria sido muito mais interessante, como também
pertinente, se os comportamentos de insubordinação de massa do pe-
ríodo e as formas de auto-organização fossem levados em considera-
ção9. Sem querer negar em nenhum momento a importância do uso da
palavra pelos CAs e da crítica da ideologia (do movimento), esse ângulo
de ataque nos parece mais conclusivo. É efetivamente nas práticas que
a busca pela autodeterminação ou o descredito total no Estado e na sua
classe dirigente emergem, desde logo, de forma cristalina. As ações dos
CAs eram no mínimo tão reveladoras quanto a lista de reivindicações:
pixar o Arco do Triunfo, derrubar a Marianne10, saquear o coração das
cidades, atacar as prefeituras, enfrentar as forças de segurança, bloquear
os nós estratégicos de circulação, recusar eleger porta-vozes, organizar-
-se em completa horizontalidade, praticar as pesquisas autônomas etc.
Tudo isso foi extremamente revelador e forneceu, desde o início, uma
excelente bússola para se orientar nesse magma incandescente.

9.  O que aliás Hayat também não deixou de destacar com acuidade – o primeiro desses dois
textos já conclui pela sinalização da proposição de Commercy de se reunir nas próximas semanas
na “Assembleia das Assembleias” [AdA]... Cf. A excelente vídeo chamada da assembleia de Com-
mercy, https://www.youtube.com/watch?
v=gJI5_us3RJI . Sobre as segunda e terceira enquetes AdA, conferir o artigo e o vídeo-pesquisa
da Plateforme
d’Enquêttes Militantes : http://www.platenqmil.com/blog/2019/04/25/retour-sur-st-nazaire-
--inventer-la-demo- cratie-directe-sorganiser-en-contre-pouvoirs et http://www.platenqmil.
com/blog/2019/10/28/tout-le-pouvoir- aux-assemblees-locales-video-enquete-sur-la-3eme-as-
semblee-des-assemblees.
10.  [N.T] Símbolo da República Francesa.

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No que concerne a inaceitabilidade de fato (do conjunto) das reivin-
dicações sociais e políticas dos CAs, é preciso ressaltar o estado bem
avançado da crise em curso. Hoje, o sistema capitalista está tão instável
que as menores proposições de distribuição de renda, ou as demandas
de abertura democrática mais tímidas, são percebidas como ameaças à
estabilidade econômica e política. A queda do primeiro governo Syriza
na Grécia, durante a primeira metade de 2015, e as respostas dadas para
conter os movimentos pós-crise são a prova mais nítida. Nenhuma dú-
vida, então, de que as reivindicações lançadas, de uma vez só e de maneira
indissociável, por uma transição socioecológica, um sistema tributário
muito mais progressivo do que o que está em andamento, atualmen-
te, um renovamento profundo dos direitos sociais e das instituições de
Welfare (educação, saúde, transporte, salário líquido e contribuições
sociais e financeiras), uma consideração séria da vontade popular etc.,
não poderiam ser admitidas. Ainda mais considerando que Emmanuel
Macron aspirava desafiar a liderança europeia de Angela Merkel... Em
plena crise sistêmica e estrutural, como a desencadeada em 2008, fingir
lutar “pela honra dos trabalhadores e por um mundo melhor” só pode-
ria levar a uma intensificação do conflito social.

“Estamos aqui”
Para demonstrar isso, e para compreender a força do movimento, é
preciso revisitar a questão sobre as pluralidades de formas de ação11.
Os CAs, de fato, renovaram profundamente as práticas de bloqueio, de
constituição de assembleias e de manifestação, associadas a uma práti-
ca de pesquisa autônoma desenvolvida de uma maneira extremamente

11.  Este último momento do texto é largamente inspirado pelas reflexões que nós expusemos
com François-Xavier Hutteau no colóquio Historical Materialism, realizado em Londres de 7 a
10 de novembre de 2019. O texto foi co-publicado, em inglês, pelos sites de livre acesso Notes
from Below et de Viewpoint Magazine, com o título Back to the Future: The Yellow Vests Movement
and the Riddle of Organization.

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interessante. Além das ocupações das maisons du peuple12 e das ações
de pedágio gratuito que se espalharam por todos os lados, ao longo
desse ano de luta, o que caracterizou o movimento são quatro formas
de ação:
1.Os bloqueios da circulação e, principalmente, das rotatórias estra-
tégicas para o fluxo de mercadorias e o fluxo de pessoas – o desafio não
era tão somente o bloqueio econômico, mas também a visibilidade e o
intercâmbio com a cidadania;
2. A transformação desses bloqueios em ocupações e a proliferação
dos espaços de assembleia, que logo se transformaram em centros da
auto-organização do movimento e em lugares de sociabilidade, de aju-
da mútua, de solidariedade e de fraternidade;
3. É no âmbito das rotatórias ocupadas e das assembleias locais que
os CAs discutiram entre si, de forma incessante, elaboraram os ques-
tionários, desenvolveram um cahier des doléances13 e apresentaram as
suas reivindicações. Resumidamente, eles fizeram enquetes militantes
sobre si mesmos, aperfeiçoando as perspectivas políticas do comum e
organizando sem cessar as ações, cujo espectro vai da sabotagem e das
práticas mais ofensivas até as iniciativas pacíficas e simbólicas;
4. A transformação da manifestação clássica, com seu cortejo estabe-
lecido em comum acordo com a prefeitura (deslocamento de um ponto
A em direção a um ponto B), em um movimentado encontro semanal
nos bairros ricos das metrópoles francesas, onde as pilhagens nas lojas
podem andar de mãos dadas com a guerrilha urbana de teor quase in-
surrecional. E evidentemente, essa pluralidade de formas de ação deve
sempre ser considerada dentro de precisas coordenadas espaço-tempo-
rais – o fato do movimento ser presente por toda a França, e isso há
doze meses.

12. [N.T.] Maisons du peuple ou “casas do povo” são espaços na França, fundados por cooperati-
vas ou associações, destinadas atendimentos dos trabalhadores e a fins sociais.
13.  [N.T.] Lista de desejos ou de reclamações direcionada ao Estado.

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Nesse aspecto, devemos considerar também essa longevidade excep-
cional do movimento, que até agora perdura por mais de um ano, e que
consiste em um outro sinal de sua força. Além da complexa heteroge-
neidade de suas composições social e geográfica, ao longo de todo esse
período, o movimento sofreu mutações sem cessar e atravessou dife-
rentes fases, em função da evolução específica de seu processo organi-
zacional, mas também em função das táticas adotadas pelo poder para
contê-lo, desviá-lo, reprimi-lo etc. E a cada momento os CAs souberam
exprimir significativas dinâmicas. O movimento também conheceu pi-
cos de intensidade (as primeiras quatro semanas, 16 de março, 14 de
julho etc.), períodos de refluxo (durante a campanha eleitoral europeia,
no mês de agosto, no mês de outubro etc.), outros de forte contágio
(no dia 05 de fevereiro e no Primeiro de Maio, com as bases sindicais;
de fevereiro a julho com as marchas antirracistas e as periferias; em nu-
merosas ocasiões com grupos feministas ou com organismos específi-
cos das lutas feministas; em setembro com os movimentos ecológicos),
mas sempre sendo muito importante para o apoio às lutas em curso,
quer sejam elas locais e ligadas aos territórios, quer sejam elas setoriais
e ligadas ao mundo do trabalho.
Ademais, o mês de novembro, como nós havíamos dito desde o iní-
cio, conheceu duas datas importantes, que relançaram o movimento
após o êxtase de outubro: a quarta Assembleia das Assembleias e o pri-
meiro aniversário14. Esses dois fortes momentos constituíram um pas-
so crucial na preparação do movimento de greve contra a reforma da
previdência que começou no início de dezembro e que foi lançado sob
o signo do “efeito amarelo”. A subjetivação política dos CAs e as for-
mas de contrapoder que o movimento soube desenvolver até agora nos
parecem, portanto, portadoras de um grande potencial político – ao
ponto de endossar a tese segundo a qual as práticas e os imaginários do

14.  Cf. As chamadas da quarta AdA http://www.platenqmil.com/blog/2019/11/05/4eme-


-assemblee-des-assemble- es--les-appels-des-gilets-jaunes e nossa análise de aniversário, http://
www.platenqmil.com/blog/2019/11/19/gi- lets-jaunes--un-anniversaire-aux-mille-facettes.

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conflito em andamento, hoje na França, existem, fundamentalmente,
graças ao movimento dos CAs. E isso fez parte também de um dos le-
gados mais preciosos desse ano extraordinário de lutas, ainda em curso:
a colete-amarelização das dinâmicas de lutas sociais e políticas15.

Referências Bibliográficas
ALLAVENA J.; POLLERI, M. Sur la méthode opéraïste. Publicado 10 mai 2019. Dis-
ponível em: <https://acta.zone/s-bologna-et-g-daghini-mai-68-en-france-bonnes-
-feuilles/>.
BROWN W. Les habits neufs de la politique mondiale, Les prairies ordinaires. Paris, 2007,
pp. 45- 90 ;
CHINGO. J. Gilets Jaunes, le soulèvement. Quand le trône a vacillé, Communard.e.s, Pa-
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CROUCH, C. Post-democracy, Polity Press, Cambridge, 2004.
DARDOT, P.; LAVAL, C. La nouvel raison du monde, La découverte, Paris, 2010, pp.
459-464 ;
GALLO, Davide. La montée des autoritarismes. Contretemps. 6 dec 2019. Disponível:
<https://www.contretemps.eu/montee-autoritarismes-chamayou/>.
______________. Dans la boite noire des années 10: crise, néo-fascisme et mou-
vements sociaux. Vacarme. 21 jun 2019Disponível em: <https://vacarme.org/arti-
cle3256.html>.
_______________. Multiplication du travail, opérations du capital et contre-pou-
voirs. Actuel Marx. [no prelo].
GUILBAUD, D. Égoïstes, imbéciles, illuminés, poujadistes, vulgaires » : les Gilets Jau-
nes vus depuis une certaine haute fonction publique. AOC. [opinion]. 19 dez 2018.
Disponível em: <https://aoc.media/opinion/2018/12/19/egoistes-imbeciles-illumi-
nes-poujadistes-vulgaires-gilets-jaunes-vus-haute-fonction-publique/>.

15.  Este artigo foi redigido logo antes do desencadeamento do movimento contra a reforma
da previdência. Sobre o conceito de « gilet-jaunisation » ver: cf. http://www.platenqmil.com/
blog/2019/12/02/5-6-7-8—apres-les- ronds-points-le-grand-pont, http://www.platenqmil.
com/blog/2019/12/29/grevolution--1er-round-dune-greve-
generalisee et https://acta.zone/pour-une-gilet-jaunisation-du-mouvement-social/.

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HAYAT Samuel. Les Gilets Jaunes, l’économie morale et le pouvoir. [blog] 5 dez 2018. Dis-
ponível em: <https://samuelhayat.wordpress.com/2018/12/05/les-gilets-jaunes-le-
conomie-morale-et-le-pouvoir/>.
_____________. Les Gilets jaunes et la question démocratique. Disponível em: <https://
samuelhayat.wordpress.com/2018/12/24/les-gilets-jaunes-et-la-question-democra-
tique/>.
Le Point. Gilets jaunes - Peter Sloterdijk : « Macron n’est pas Louis XVI ». [Entrevista].
Publicado em 13 dez 2018. Disponível em: <https://www.lepoint.fr/politique/gilets-
-jaunes-peter-sloterdijk-macron-n-est-pas-louis-xvi-13-12-2018-2278959_20.php>.
Liste des 42 revendications des gilets jaunes. Disponível em: < https://blogs.media-
part.fr/jeremiechayet/blog/021218/liste-des-42-revendications-des-gilets-jaunes >.
Plateforme d’Enquêtes Militantes. Tout le pouvoir aux assemblées locales. Vidéo-enquê-
te sur la 3ème Assemblée des Assemblées. Publicado em 28 out 2019. Disponível em: <
http://www.platenqmil.com/blog/2019/10/28/tout-le-pouvoir-aux-assemblees-lo-
cales-video-enquete-sur-la-3eme-assemblee-des-assemblees. >.
____________. Back to the Future: The Yellow Vests Movement and the Riddle of Orga-
nization. View point, 15 nov 2019; Disponível em: <https://www.viewpointmag.
com/2019/11/15/back-to-the-future/>.

Sites consultados
Plein le dos. Disponível em: <https://pleinledos.org>.
Plateforme d’Enquêtes Militantes. Disponível em: < http://www.platenqmil.com./ >.

Vídeos consultados
Gilets Jaunes Commercy. Gilets Jaunes: appel de la première assemblée des assem-
blées/ Commercy - 27 janeiro 2019. Youtube. Disponível em: < https://www.youtube.
com/watch?v=gJI5_us3RJI >.

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SOBRE LUTAS NO CAPITALISMO
FINANCEIRIZADO E NEOLIBERAL:
ALGUNS ELEMENTOS CONSTITUTIVOS
E PERSPECTIVAS DE ALIANÇAS
Cecília Paiva Neto Cavalcanti

1. INTRODUÇÃO
Este texto consiste num ensaio produzido a partir das reflexões desen-
volvidas no meu estudo de pós doutoramento na área de planejamento
e gestão do território, tendo como objeto as lutas dos sujeitos do tra-
balho “autônomo”, ou seja, o precariado, e, por palco, as metrópoles,
enquanto lócus da produção difusa do capitalismo pós industrial e, por-
tanto, das lutas.
Parto aqui da hipótese, que construo ao longo do desenvolvimento
do meu estudo, de que as lutas do trabalho, cada vez mais deslocadas
das fábricas para as ruas, as cidades, se aproximam, convergem com as
lutas urbanas e/ou por direitos e cidadania. E não são só os territórios
que favorecem esse encontro, a atual configuração da produção, difusa,
desterritorializada, e a conversão do trabalhador em prestador de servi-
ços, tornando a necessidade de acesso a bens e serviços sociais, condi-
ção para se tornar produtivo, estabelecem o denominador comum para
a aproximação destas lutas que tomam as ruas, praças e espaços públi-
cos. Essa distinção entre lutas urbanas e lutas trabalhistas, lutas políticas
e lutas econômicas, está apoiada na dissociação das esferas da produção
e reprodução promovida no e pelo capitalismo. Afinal, nada mais esqui-
zofrênico do que esta desagregação, visto que a produção, e, portanto,

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o trabalho para além do produtivo, remunerado, é, antes de mais nada,
produção para atender às necessidades sociais, humanas, logo, produ-
ção para a reprodução, produção para a vida! A meu ver, todas as lutas
por proteção social são lutas por reprodução articulada à produção. E o
atual modelo produtivo, contraditória e paradoxalmente, à fragmenta-
ção que impõe ao trabalho a partir das formas adotadas no uso e gestão
da força de trabalho, produz condições para a convergência das lutas do
trabalho com as lutas urbanas e por direitos quando coloca a cidadania
(ou o consumo, via endividamento, dos bens e serviços sociais converti-
dos em mercadorias e ativos financeiros), como pré-requisito para o tra-
balhador se auto empreender e se manter na conectividade do trabalho
cooperativo em rede.
Assim, para apreender as especificidades das lutas contemporâneas,
se faz necessário examinar a composição técnica do trabalho. Esta mol-
da as formas de luta, assim como as lutas obrigam constantemente o
capital a se restaurar para manter a dinâmica da acumulação contínua
e ampliada, ou, conforme Foucault (2015), a resistência gera novas for-
mas de poder e o poder gera novas formas de resistência. Não à toa
tratar das lutas contemporâneas nos faz recuar até maio de 68 e as lutas
que emergem em pleno momento de prosperidade, nos anos gloriosos
de crescimento econômico e de distribuição social da riqueza via wel-
fare state, demarcando a recusa ao trabalho industrial do tipo fordista,
ao emprego assalariado, monótono, repetitivo, aprisionado em fábri-
cas e escritórios taylorizados, era a insubmissão à sociedade disciplinar
atingindo o seu ápice. Este é o ponto de inflexão que marca o esgota-
mento do modelo fordista-keynesiano, restando ao poder interpelado,
se restaurar para se reafirmar. Este é o ponto de partida das mudanças
societárias profundas que se seguem a partir de 1970. A história do ca-
pitalismo tem por motor as lutas de classe ou, de acordo com Foucault,
a história das lutas é a história das relações e dos dispositivos de poder.
A partir deste entendimento, o texto está estruturado em três partes.
Na primeira, trago a concepção de luta e classe que assumo aqui, na

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segunda me debruço sobre a atual composição técnica e social do tra-
balho a partir da configuração político-econômica do capitalismo, para,
na última seção, discorrer sobre as lutas contemporâneas a partir de
alguns elementos constitutivos que tracei como analisadores que con-
tribuíssem para a leitura e compreensão dessas lutas.

2. NOTAS SOBRE CLASSE E LUTA


Na tradição marxista, a classe trabalhadora é categorizada em operaria-
do, exército industrial de reserva e lupemproletariado, para simplificar,
e é o operariado urbano-industrial que constitui a classe revolucioná-
ria, aquela que no espaço fabril se descobre solidária e transcende da
consciência de si para a consciência para si, alcançando a consciência
de classe e vai à luta. Duas observações precisam ser levantadas aqui.
Primeiramente quanto à categorização, que se mostra anacrônica em
tempos de capitalismo pós industrial. Em segundo lugar, precisamos
nos indagar sobre o que vem primeiro: o ovo ou a galinha, quer seja, a
luta ou a classe? No marxismo tradicional, a consciência de classe vem
primeiro, antecede às lutas, ao passo que na perspectiva de Thompson
(2001, p. 274), “classe e consciência de classe são sempre o último e
não o primeiro degrau de um processo histórico real”. Na perspectiva
Thompsoniana, são as lutas que constituem as classes. É no processo
de luta que se definem os sujeitos sociais com interesses comuns, ou a
classe, e que os antagonistas descobrem a si como classes antagônicas.
Adotando a concepção de classe e de luta em Thompson, defino
como lutas não só as que se expressam através de manifestações, gre-
ves, revoltas, levantes e movimentos sociais, que conferem às lutas um
formato, vamos dizer assim, reivindicativo, como também aquelas que,
através de iniciativas de cooperação e ações coletivas, de auto-organiza-
ção do trabalho na produção do atendimento a necessidades e provisão
de bem viver, que partem de pessoas e grupos, usualmente desprotegi-
dos da proteção público-estatal, contingente este, diga-se de passagem,

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cada dia maior em decorrência da privatização dos bens e serviços so-
ciais e do recuo do Estado provedor, que se organizam para ter acesso
ao bem-estar social, através da solidariedade, ajuda e cuidados mútuos
etc., e que vão conformando formas alternativas de vivência, sobrevi-
vência e, portanto, resistência.
Em sua obra Territórios em resistência. Cartografia política das periferias
urbanas latino-americanas, Raúl Zibechi (2015) retrata bem estas inicia-
tivas, realçando a potência dos pobres, vistos como sujeitos políticos
e fora do mito da marginalidade que ora os vê como criminosos, ora
os convertem em vítimas, oprimidos, à espera de um de fora que virá
para organizá-los e lutar pelos seus direitos. Partindo da constatação
da inadequação do marco conceitual-analítico de “Movimentos Sociais”
para compreensão da realidade das periferias latino-americanas, o autor
assume o conceito de “Sociedades em Movimento” para dar conta de
outras formas de luta e resistência que não se encaixam no conceito de
“Movimentos Sociais”, quer seja, o de organizações que lutam e reivin-
dicam direitos e questões ao Estado. A partir da noção de “Sociedades
em Movimento”, o autor incorpora organizações outras que têm, em
seus processos constitutivos, capacidade de produzir novidades e mun-
dos novos desde suas relações sociais territoriais e constitutivas, que o
conceito de “Movimentos Sociais” não trata necessariamente. Trata-se
da necessidade de descolonizar o pensamento crítico e compreender
os movimentos não enquanto instituições, mas como capacidade de se
mover. Nas próprias palavras de Zibechi, “falemos, então, e de modo
provisório, de ‘sociedades em movimento’, porque me parece que este
termo (mesmo sendo vago, e com a vantagem mesma de sua vague-
za) não remete a instituições, enfatizando a ideia de que algo se move,
e esse algo são sociedades outras, diferente das dominantes” (p. 125 e
126). Essas iniciativas tornam-se, muitas vezes, autênticos laboratórios
do comum, rumo ao que Vercellone (2011) chama de reconquista de-
mocrática das instituições de welfare, cuja dinâmica associativa, coope-
rativa, solidária, horizontalizada, de auto-organização do trabalho se

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basearia “no primado do não mercantil e da produção do homem pelo
homem” (p. 144).
À formulação de Thompson de que só há classe na luta de classe,
Mendes e Cava (2017) acrescentam que, da mesma forma, o comum se
constitui na luta, de que “não existe produção do comum senão na luta
em que ele se constitui” (p. 293). Portanto, falar da constituição do co-
mum é falar de um conceito de classe. O comum vem se constituindo,
cada vez mais, em temática central para se pensar as lutas contempo-
râneas em meio a um processo de acumulação por espoliação/destrui-
ção/extermínio. Mas, é importante frisar que o comum não pode ser
confundindo (e nem reduzido) aos bens comuns e à sua defesa, mas
entendido como forma de produção, portanto, de criação, baseada no
compartilhamento, na cooperação fora do primado mercantil, que ao
escapar dos circuitos de valorização capitalista e criar outros mundos
possíveis, produz rupturas, descontinuidades no continuum histórico,
se constituindo como força antagonista, um contra-poder. Indo mais
adiante e referindo-se à Anna Curcio, os autores enriquecem as análises
de Thompson, para afirmar que “só há classe na produção do comum”
(p. 293).

3. PRECARIEDADE, AUSTERIDADE E DÍVIDA: DISPOSITIVOS


DA GESTÃO NEOLIBERAL DA SOCIEDADE E DOS SUJEITOS
É Foucault quem nos fornece os elementos para a compreensão do
modo de funcionamento do capitalismo, de um modo geral, e na sua
forma liberal e neoliberal, em particular, ou, nas suas próprias palavras,
do modo de governo dos homens, de governamentalidade, consideran-
do o capitalismo como uma máquina de subjetivação, afinal, antes de se
produzir mercadorias e lucros, há que se produzir um mundo com seus
universos de valores e desejos. A sociedade disciplinar, sucedendo as
sociedades soberanas, tem seu início quando, ao cercamento dos bens
comuns, se associa a normalização do social, através de um sistema de

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instituições, normas e padrões de conduta que promovem a inclusão
em processos econômicos, regulação das atividades, gestão dos hábitos,
dos estilos de vida, dos comportamentos e condutas, tornando dispen-
sáveis tanto a violência, quanto o consentimento. O poder, enquanto
sistema de inter-relações exercido por indivíduos sobre outros indiví-
duos, opera, assim, de forma difusa nas diversas instituições (família,
escola, hospital, prisões, fábrica etc.), agindo sobre os sujeitos a partir
de um processo de sujeição interna. No neoliberalismo, a descentra-
lização do poder se radicaliza a ponto de confundir-se com o próprio
tecido das relações sociais (COCCO e CAVA, 2018), cujo controle ago-
ra opera pela modulação, enquanto uma moldagem auto-deformante,
flexível, que permite ao poder se readaptar o tempo todo, se voltando
não diretamente para o indivíduo, mas sobre o meio, através do uso de
técnicas securitárias de prevenção, antecipação, simulação, manipula-
ção, indução, fornecendo “os elementos de base para reconstruir não
os ‘sujeitos’, mas os consumidores, os eleitores e os comunicadores, e
para fabricar identidades sexuais, comportamentos, condutas confor-
mes e novas corporeidades” (LAZZARATO, 2017, p. 183). Na produ-
ção do homo economicus neoliberal, a austeridade, a dívida e a precarie-
dade constituem-se dispositivos centrais da gestão da sociedade e dos
sujeitos.
No atual modelo produtivo em que as atividades da economia ba-
seiam-se no conhecimento e que distribui a produção por estruturas de
trabalho, individuais ou coletivas, subcontratadas como fornecedoras,
prestadoras, num processo marcado por grande mobilidade geográfi-
ca, se delegando ao trabalho uma certa autonomia na organização da
produção (mesmo que restrita, uma vez que a decisão sobre o que, o
volume, a quantidade e o tempo do que se produz continua nas mãos
dos dirigentes), torna o controle desse trabalho por parte do capital
mais complexo, só possível com base na precariedade. A precariedade,
assim, não cumpre apenas com a função econômica de redução de cus-
tos para recuperação e ampliação das taxas de lucro, mas é responsável

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por estabelecer os novos mecanismos de controle e subordinação do
trabalho, ou dito de outro modo, só se é possível aplicar as atividades
da economia baseada no conhecimento a custo de insustentáveis desi-
gualdades (VERCELLONE, 2011). Desigualdades essas que se expres-
sam tanto nas formas predominantes da organização e exploração des-
se trabalho difuso, quer sejam, na precariedade, na informalidade, na
intermitência, nas terceirizações, no qual o trabalho se torna atividades
de serviços, e, portanto, contratado não mais dentro da relação salarial,
mas comercial, como colaborador, um parceiro, remunerado através
do salário por peça, por tarefa, por serviço, e se descola do emprego,
que, por sua vez, vira empregabilidade, como se estendem ao campo da
proteção social que, viabilizada pelas medidas de austeridade, deixa de
ser objeto da provisão público-estatal, abrindo espaço para a conversão
dos bens e serviços sociais em ativos financeiros.
Por sua vez, a dívida detém um importante papel no capitalismo
contemporâneo, enquanto aparelho de captura e de distribuição da
riqueza social, constituindo-se não só num mecanismo de exploração
econômica, como também de dominação política (GRAEBER, 2016;
LAZZARATO, 2017). De acordo com Lazzarato (2017), a dívida é a
técnica mais adequada para a produção do homo economicus neoliberal,
pois ela impõe, através da moral, da culpa, uma subjetividade depen-
dente e conformada ao capital, na qual a racionalidade do capital hu-
mano, substitui a ideia de direito social e do bem comum.
Se o neoliberalismo define o modo de regulação, o regime de acu-
mulação apoiado nas finanças, direciona nosso olhar para o âmbito da
acumulação primitiva do capital. O debate em torno da acumulação
primitiva é retomado na produção que trata do capitalismo contempo-
râneo. Se para Marx a acumulação primitiva se constituía num estágio,
uma etapa no processo de constituição e consolidação do capitalismo,
Rosa Luxemburgo já a concebia como central na garantia da produção
de mais-valia. Por sua vez, para David Harvey esta aparece como uma
força ativa contra crises e, a dinâmica atual de saques, pilhagens, rapina,

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batizada por ele de “acumulação por desapropriação”, consistiria numa
retoma da dinâmica capitalista de expropriação originária. Na visão de
Mendes e Cava (2017), a acumulação primitiva é um dispositivo funda-
mental de comando, exploração e controle das subjetividades, sendo
central na teoria da acumulação, e não somente uma força ativa contra
crises, compreendendo, assim, a acumulação por desapossamento, não
como resultante da crise, mas, antes, e a partir do privilegiamento do
papel das lutas sociais nas crises do capitalismo, como centro de um
antagonismo, entre, por um lado, a produção do comum e, do outro, o
comando do capital, legítimo produtor da crise.
Partindo da tese de Agamben de que o domínio da vida pela violên-
cia é o modo de governo dominante na política atual, mediante o esta-
do de exceção, que permite a eliminação física dos adversários políticos
e de todos aqueles não integráveis ao sistema político, principalmente
nas regiões pobres do sul global, Zibechi (2016), sustenta que o proces-
so de dominação, denominado por ele de “acumulação por extermí-
nio”, passa pelo genocídio maciço das populações em resistência e que
o genocídio étnico-racial é um elemento chave da política do continen-
te latino-americano. Para o referido autor, o modelo político-econômi-
co extrativista adotado pelos governos progressistas da América Latina,
baseado nas monoculturas do agronegócio, na mineração a céu aber-
to, na especulação imobiliária e nas megaconstruções de infraestrutu-
ra, que, antes de ser um modelo produtivo, é um modelo especulati-
vo, além de ser predatório do meio ambiente, expulsa com violência,
através de destituições, remoções e mortes, as populações tradicionais
e pobres de seus territórios urbanos e rurais. Trata-se do warfare, onde
guerra e acumulação são sinônimos. Essas análises, que colocam em
evidência a violência do modelo de acumulação e regulação vigente,
complementam a produção do Foucault que, partindo da premissa de
que o poder só reprimirá em última instância, visto a repressão ser um
mecanismo estúpido que só produz dispositivos frágeis de poder, pri-
vilegiará, o poder difuso, molecular, seja o que age corretivamente na

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sociedade disciplinar da governamentalidade liberal, seja o que se ante-
cipa na sociedade de segurança da governamentalidade neoliberal, es-
capando, em suas análises, a face repressora do Estado de exceção que
vira regra no neoliberalismo, no âmbito do qual o estado democrático
de direito só figura no plano formal, dada a sua incompatibilidade com
as práticas despóticas de exploração e acumulação.

4. ALGUNS ELEMENTOS CONSTITUTIVOS DAS LUTAS


CONTEMPORÂNEAS
Das lutas altermundialistas da década de 1990 em defesa dos bens co-
muns, para a constituição direta do comum nas lutas pós 2008, trago
aqui alguns elementos que perpassam essas lutas, seja no que se refe-
rem a traços que as constituem, seja com relação a impasses e contradi-
ções que ensejam, seja no tocante as potencialidades que demonstram,
tanto na perspectiva da construção de alianças, quanto na capacidade
de produzir rupturas e fissuras com a grande máquina de subjetivação
que é o capital, produzindo contra-subjetividades e exercitando uma
contra-condução. Com esta sistematização, espero contribuir para a lei-
tura e compreensão dessas lutas, funcionando como uma espécie de
eixos analíticos, bem como para se pensar em perspectivas futuras.

4.1 METRÓPOLE (OU PERIFERIAS METROPOLITANAS) COMO


NOVO TERRENO DE LUTA
O território é privilegiado nas análises sobre as lutas sociais contempo-
râneas. A metrópole aparece como a nova fábrica da produção difusa
e em rede, e, portanto, o campo de disputa entre o trabalho vivo e os
mecanismos de expropriação, constituindo-se no terreno de conflito e
disputa. Ruy Braga (2017), em sua cartografia das lutas do precariado
no Sul Global, a partir dos casos do Brasil, da África do Sul e de Portu-
gal, constata que “a burocratização do movimento sindical no Sul foi

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frequentemente acompanhada pelo progresso de movimentos sociais
contestatórios, transitando tendencialmente do chão de fábrica para as co-
munidades onde habitam os trabalhadores precários” (BRAGA, 2017, p. 35).
Daí a hipótese de que as novas formas de produção, centradas no ter-
ritório, estariam conferindo as condições para uma aproximação, um
reencontro entre as esferas da produção e da reprodução, e, portanto,
das lutas econômicas com as das lutas políticas, das lutas do trabalho
com as demais lutas (urbanas, étnicas, raciais, de gênero etc.).
Para Harvey (2014), a ideia de que classe e trabalho são definidos
em um lugar de produção isolado do lugar de reprodução social ou ha-
bitação, é absolutamente equivocada. O geógrafo, inclusive, desafia o
movimento sindical a pensar à organização das lutas não a partir do
histórico recorte setorial, que, diga-se de passagem, foi imposto pela
regulamentação e interferência estatal às atividades associativas e re-
presentativas de classe, mas, através das formas geográficas, sobre as
quais perpassam questões culturais, étnicas, raciais, de gênero, abran-
gendo desempregados, sem teto, portanto, sendo mais ampla. Trata-se
de pensar o direito à cidade, que pode “aparecer, então, como ‘direito
superior’ pela sua capacidade de exprimir e articular lutas transversais
que podem entrar em ressonância atingindo escalas locais e globais.”
(MENDES, 2018, p. 241 e 242).
O direito à cidade é entendido por Harvey (2014), “como um direito
não ao que já existe, mas como um direito de reconstruir e recriar a
cidade” (p. 247). Concepção esta que converge com a análise de Zibe-
chi (2015), para quem a cidade do capital é, cada vez mais, uma ‘não
cidade’, destinada a impedir todo tipo de relação social não mercantil, à
qual ele contrapõe com os territórios dos coletivos e setores populares
urbanos como “os espaços da diferença, onde existem formas de vida
heterogêneas com relação à cidade do capital” (ZIBECHI, 2015, p. 157).
Assumindo os territórios como uma nova forma de praticar e teorizar a
mudança social, Zibechi compreende que as “Sociedades em Movimen-
to” se organizam a partir dos chamados Territórios em Resistência, uma

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vez que seus processos passam em grande parte pelas relações comu-
nitárias territorializadas. Aqui, abre-se a possibilidade de dialogar com
as diferentes formas de vínculos dos assentamentos, aldeias, quilom-
bos, tanto no campo quanto na cidade, nas periferias urbanas e rurais.
Nas palavras de Mendes (2018), seria o caso de tomar o “cidadanismo”
como ponto de partida para se pensar novas lutas democráticas.

4.2 PRECARIEDADE COMO UM TERMO MEDIADOR PARA


CONSTRUIR ALIANÇAS
Aqui a principal contribuição advém da produção da filósofa Judith
Butler (2018), em Corpos em Aliança e a política das ruas. Notas para uma
teoria performativa de assembleia. Tendo como foco da análise o corpo
reunido em assembleia, greves, ocupações, como ação contestatória de
resistência corporificada e plural, Butler constata que a condição precá-
ria da regulação neoliberal parece atravessar uma diversidade de movi-
mentos, podendo, a precariedade, que serve à violência e à exploração,
se converter em potencial terreno mediador para construir alianças, in-
clusive, entre várias minorias e populações consideradas descartáveis.
Novamente, a dimensão urbana reaparece como terreno das lutas,
pois é nela, na vida urbana que se constata “uma existência precária,
cara, perigosa, cansativa, permeada por autoritarismos, imobilismos e
constrangimentos cotidianos, impulsionando novos arranjos insurgen-
tes dotados de ampla legitimidade e aceitação social” (MENDES, 2018,
p. 284).
A pobreza, a perda de status, a proletarização, de fato, surgem como
uma condição que afeta todos os estratos sociais envolvidos na produ-
ção de riqueza. Portanto, não estamos falando de pobreza “marginal”,
no sentido de uma condição que caracteriza os sujeitos “excluídos” do
circuito de produção de riqueza. Pelo contrário, os pobres correspon-
dem hoje aos sujeitos cuja centralidade produtiva é essencial em seto-
res tão díspares quanto: serviços públicos terciários, escolas, prefeituras,

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hospitais, mas também os trabalhadores de logística, plataformas como
Uber, Deliveroo etc. (PLATEFORME..., 2019)
Contudo, a precariedade não necessariamente contribuirá para a
construção de alianças, muito pelo contrário. Braga (2017), a partir do
caso da África do Sul, no qual a diversidade étnica e nacional é uma ca-
racterística marcante do precariado urbano sul africano, demonstra que
a competição entre trabalhadores nacionais e imigrantes pelos mesmos
empregos e oportunidades, tem exacerbado preconceitos patriarcais e
xenofóbicos nas periferias, reforçando a exclusão e a violência. Confli-
tos étnico-raciais estes que também estão fortemente presentes na Eu-
ropa e nos EUAs, frente, sobretudo, à questão migratória, com impac-
to, inclusive, nas urnas eleitorais nos últimos anos e a guinada à direita
e extrema-direita.
É importante ressalvar que a perspectiva de construir alianças num
contexto onde os movimentos estão debilitados, fragmentados e isola-
dos, não significa a unificação e a centralização dos movimentos, que
levam a uma homogeneização que desconsidera as singularidades e
pluralidades. Zibechi (2015) provoca ao indagar se não teria sido a unifi-
cação e centralização do passado, os meios que permitiram ao Estado e
ao capital neutralizar e domesticar os movimentos. E conclui:

Organizar quer dizer pôr ordem, disciplinar, instituir. Tudo isso vai na
contramão da rebeldia, e, quando esta se deixa ordenar, deixa de ser
rebeldia. Este é um dos problemas mais graves dos movimentos antis-
sistêmicos, que muitos estudiosos formulam dizendo que quanto mais
organizado está um movimento, menor capacidade de mobilização tem
e vice-versa ... a não existência da articulação é também um problema ...
o debate sobre a articulação deveria se concentrar em: como evitar a cen-
tralização e a unificação; como evitar converter as articulações ou coor-
denações ou redes difusas ou informais em aparelhos com vida própria;
como potencializar o mundo novo que nasce em meio aos movimentos.
(Zibechi, p. 169 e 170)

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E podemos acrescentar aos questionamentos de Zibechi, a indaga-
ção da Plateforme d’Enquêtes Militantes (2019) a partir do caso dos
coletes amarelos na França, que emergiu no final de 2018, tendo por
estopim a taxação do imposto “verde” sobre o combustível: “como po-
demos fazer o movimento se enraizar cada vez mais em espaços so-
ciais e geográficos e se reproduzir com ainda mais potência ao longo
do tempo sem abrir mão de suas próprias características, que são sua
força?” (p. 58)

4.3 RESISTÊNCIA À DÍVIDA


A dívida, como vimos, é tanto meio de exploração econômica, como se
constitui numa relação de dominação política. Se a sociedade discipli-
nar produzia o homem confinado, a sociedade de controle produz ago-
ra o homem endividado (DELEUZE, 2010). Poderíamos, então, acres-
centar ao subtítulo sugestivo de Gorz (2004) “somos todos precários”, o
“somos todos endividados”.
O endividamento, juntamente com o sistema fiscal, redefine as ló-
gicas atuais de exploração que atuam diretamente sobre as formas de
vida, tais como moradia, gastos com saúde, acesso a serviços públicos,
despesas escolares e universitárias etc. (PLATEFORME..., 2019)
Em contraponto à eutanásia do rentismo de Keynes, agora, no novo
pacto no capitalismo pós-industrial financeirizado, os trabalhadores po-
dem se tornar rentistas, através dos fundos de pensão, empréstimos,
operar na bolsa, hipotecas, cartões de crédito, para compensar os salá-
rios que não subiriam mais (GRAEBER, 2016). Uma vez que o salário
tornou-se renda e rentismo, para Cocco (2014), a relação de débito/
crédito vem substituindo a relação salarial, em função tanto da ne-
cessidade do trabalhador se auto produzir, o que gera um débito que
determina um crédito, e da remuneração do trabalho passar cada vez
mais a ser composta por um conjunto de fontes diversificadas apoiadas
na expansão sistêmica do crédito. Diante da precarização do salário, a

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compensação dessas perdas passa pelo recurso generalizado ao crédito,
tanto para o auto sustento, como, e, inclusive, para se auto empreender
e se tornar produtivo.
E como o endividamento, como um dos dispositivos da gestão neo-
liberal da sociedade e dos sujeitos, junto com a austeridade e a preca-
riedade, tem comparecido nas lutas? Graeber, no posfácio de Dívida,
datado de 2014, traz um relato de sua experiência durante seu engaja-
mento na ocupação do Zuccotti Park e de como, durante o processo de
planejamento da ocupação, os jovens o abordavam sobre a possibilida-
de de criar algum movimento em torno da questão da dívida estudantil.
Depois, com a ocupação em curso, Graeber constata que a maioria dos
ocupantes era de refugiados da dívida. E, após a repressão aos acampa-
mentos e início das assembleias públicas, percebe que as assembleias
sobre a dívida foram provocando mais interesse que as demais, o le-
vando a se juntar ao Strike Debit, um grupo de trabalho do Occupy e a
participar da formulação da estratégia do Debit Resistors’Operations Ma-
nual (Manual de Operações da Resistência à Dívida). Além do Occupy
podemos citar a experiência espanhola da Plataforma de Afetados pe-
las Hipotecas, criada em 2009, quando as desapropriações de moradia
por inadimplência e os despejos chegaram a um número avassalador, e,
mais recentemente, as reivindicações dos coletes amarelos referentes à
tributação, salário mínimo, serviços públicos, socialização do sistema
bancário, quer sejam, dirigidas ao Estado contemporâneo como um
importante ator econômico que contribui para a exploração e domina-
ção capitalista. Mais precisamente, o que é refutado é a função que ele
cumpre em termos de “extração” nos processos de valorização contem-
porânea. O caráter extrativista do Estado, ou seja, seu papel na lógica
extrativa do capitalismo atual se manifesta duplamente: pela espoliação
dos serviços públicos e dos bens comuns (daí a centralidade, dentro do
movimento dos coletes amarelos, da questão dos serviços locais e na-
cionais); e via sistema fiscal (e, portanto, do endividamento). (PLATE-
FORME..., 2019)

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A dívida, o endividamento, tal qual a precariedade, apresenta poten-
cial, tanto como termo mediador para construir alianças nas resistên-
cias, como, através da socialização do crédito1, da renda de existência,
da organização de calotes coletivos (dos hipotecados, estudantes etc.)2,
é capaz de criar rupturas na direção da reapropriação da riqueza social.

4.4 COMUNS NA LUTA ANTICAPITALISTA


A constituição do comum tem sido um aspecto central das lutas con-
temporâneas e podemos apontar três elementos nas formas atuais de
acumulação e regulação capitalista e do modelo produtivo adotado,
que explicam essa centralidade.
Primeiramente temos que considerar que, mediante uma organi-
zação produtiva difusa, baseada na cooperação social do trabalho em
rede, o capital já não controla diretamente a produção como o fazia na
manufatura ou indústria, e se vê obrigado a delegar ao trabalho uma
certa autonomia na organização da produção, possibilitando que o tra-
balho vivo apareça sempre como possibilidade de um ‘fora’ que leve à
dissolução total do próprio capitalismo, revertendo o divórcio entre o
trabalhador e seus meios de produção na direção da produção do comum
(MENDES, CAVA, 2017).
Por necessitar, cada vez mais, de uma força produtiva que é externa
a sua organização, o controle desse trabalho por parte do capital, como

1.  A exemplo do Movimento brasileiro das Comunidades Populares (MCP), que conta com
cerca de 60 grupos, a metade dos quais urbanos, de bairros e favelas, e há dez anos criou o
Grupo de Investimento Coletivo na comunidade Chico Mendes, localizada no topo do morro
do chapadão ao norte do Rio de Janeiro, que possui mais de vinte membros e reúne 400 in-
vestidores da comunidade na administração de um fundo de 700 mil reais. Estes recursos são
usados para conceder empréstimos a juros baixos, a maior parte deles, para reformar casas ou
gerar rendas familiares ou coletivas, dispensando a necessidade de se recorrer a um banco para
pedir empréstimos a juros exorbitantes. “Não se acumula capital e todo o dinheiro circulante
está sobre controle comunitário, para que o próprio dinheiro tenha valor de uso, não de troca.”
(ZIBECHI, 2019)
2.  A esse respeito vide Cava (2012).

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vimos, se torna mais complexo, só possível com base na precariedade,
ou seja, na insegurança de renda e ausência de outros direitos sociais, na
pobreza e na desigualdade. E aí temos o segundo elemento para explicar
a centralidade do comum nos conflitos e lutas contemporâneas. A pre-
cariedade, como um fator estrutural da regulação neoliberal do trabalho
(VERCELLONE, 2011), que não se restringe às relações de trabalho, mas
ao reduzir e retirar direitos sociais, transformando-os em ativos finan-
ceiros, convertendo os bens e serviços sociais, outrora subsidiados pelo
Estado, em oportunidade de acumulação, gera uma crise da reprodução
social que afeta, sobretudo, as mulheres (FEDERICI, 2017). Não à toa o
protagonismo que elas vêm assumindo nas lutas e resistência, criando
os comuns o tempo todo pelo mundo afora, numa resposta pela sobre-
vivência. “Não é como num pensamento ideológico, é algo que as mu-
lheres compreenderam na prática: que se juntando poderiam criar novas
formas de sobrevivência, melhor que sozinhas. E é justamente aí, nesses
contextos, que nascem as lutas pelo comum, que é essa capacidade de
criar e construir alianças entre lutas diversas.” (FEDERICI, 2019)
Na sua cartografia política das periferias urbanas latino-americanas,
Zibechi (2015) identifica várias experiências que nascem da necessidade
de sobrevivência e vão se convertendo em alternativas ao modo de ex-
ploração/dominação, inclusive, com protagonismo das mulheres, desde
os comitês de água em Cochabamba na Bolívia, na busca de formas al-
ternativas para a gestão dos bens comuns, ao caso das periferias de Mon-
tevidéu no Uruguai com as hortas familiares e coletivas, aos refeitórios
autogeridos como extensão e ampliação do cuidado familiar, do espaço
privado para o público, em Lima no Peru, chegando nas fábricas recupe-
radas em Caracas na Venezuela e na Argentina. O comum aqui aparece
como resistência ao modelo de acumulação por espoliação/destruição/
extermínio, ao Estado policial, ao warfare que, num exercício de “necro-
política”, para usar o termo de Achille Mbembe, que se refere ao poder
estatal de ditar quem pode viver e quem deve morrer, elimina os des-
cartáveis e indesejáveis. Trata-se de criar e experimentar “uma lógica de

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compartilhamento que dispense a lógica da exclusividade da proprieda-
de, bem como reconheça a esfera da cooperação social a partir de um
horizonte de liberdade e autogoverno.” (MENDES, CAVA, 2017, p. 202)
Por fim, como nos lembram Mendes e Cava (2017), uma análise so-
bre o comum deve sempre versar sobre uma relação social, sobre uma
produção de subjetividade, o terceiro elemento que identifico sobre a
centralidade da constituição do comum repousa justamente sob a for-
ma de governamentalidade neoliberal, como máquina de subjetivação.
A partir da concepção de Foucault, na qual o neoliberalismo é visto
em sua plena ambiguidade, da mesma forma em que o capital subsumi
a sociedade como um todo (tudo está dentro), também é por dentro
da matriz de poder que surgem as linhas de fuga. Se a subjetividade é
o terreno do comando capitalista, também é potência para alavancar
resistência contra esse comando na construção de uma contra-subjeti-
vidade, uma contra-condução.
Vale ainda destacar a perda de credibilidade nas instituições tradi-
cionais de governo, assim como nos partidos e sindicatos, que as lutas
do comum têm revelado, colocando em xeque a democracia represen-
tativa. A produção do comum vem se mostrando antagônica ao binô-
mio Estado-mercado, revelando uma percepção de que não basta capi-
talismo de Estado, de que “o público não passa de uma superestrutura
do privado. Exige-se, portanto, um novo poder constituinte, visando à
construção do comum” (NEGRI, 2011).

CONCLUSÃO
Termino este artigo num momento em que o continente latino-ame-
ricano encontra-se em estado de ebulição e não podia estar aqui tra-
tando das lutas contemporâneas e não olhar e considerar os aconteci-
mentos recentes às nossas voltas e em curso. A intensa agitação política
que paira sob o nosso continente, desenha cenários e perspectivas que
tanto apontam para um quadro incerto e preocupante, de retrocessos,

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deixando a frágil democracia liberal ainda mais vulnerável, quanto nos
alentam de esperanças rumo a uma contra-condução.
No caso boliviano, os protestos quanto à eleição de Evo Morales que,
mesmo ignorando um referendo popular que o vedava de concorrer a um
quarto mandato presidencial, impondo, primeiramente, sua candidatura,
e, na sequência, sua permanência, tiveram como desdobramentos, até o
momento, a renúncia compulsória de Morales, articulada oportunistica-
mente pela extrema-direita, deixando o país exposto a um golpe e sob o
risco de uma guerra civil. No Brasil, a vitória eleitoral de Jair Bolsonaro
representa um momento de regressão e de retomada do conservadoris-
mo no país. Suas medidas legais de liberação de agrotóxicos, de flexibiliza-
ção da legislação que regula a exploração econômica de áreas de proteção
ambiental e de terras indígenas, reforça o modelo extrativista e o regime
de acumulação por expropriação e extermínio e seus efeitos deletérios:
destituições, remoções e mortes de populações tradicionais e pobres dos
seus territórios e avanço da destruição ambiental para além de qualquer
perspectiva de recuperação. Por outro lado, o aprofundamento da auste-
ridade, com a aprovação e sanção da mais recente reforma previdenciária,
somada às PECs (emergencial, do pacto federativo, administrativa e tribu-
tária) em andamento e mais a medida provisória que instituiu o Programa
Verde e Amarelo no último dia 11 de novembro, que ao estender algumas
medidas para o conjunto dos trabalhadores e não somente ao seu público-
-alvo, pode ser considerada uma nova etapa da reforma trabalhista, todas
essas medidas de reorganização da proteção público-estatal visando garan-
tir a segurança de investimentos dos mais ricos, traz como resultante a
redução de direitos, o aumento da precarização do trabalho, desoneração
das empresas e consequente repasse aos trabalhadores3 do financiamento

3.  Refiro-me aqui, em especial, ao aumento da alíquota de desconto sobre a remuneração do


funcionalismo federal para a previdência, instituída pela recente reforma, e à taxação de 7,5%
sobre o seguro-desemprego que passará a ser descontada sobre o valor do benefício a ser per-
cebido pelo desempregado, compensando, assim, as perdas financeiras com as reduções e isen-
ções fiscais nos encargos trabalhistas estabelecidos pelo Programa Verde e Amarelo, bem como
pela reforma previdenciária.

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dos fundos públicos, e, portanto, de aumento da concentração de riquezas
e das desigualdades. Olhando para estes dois países se constata a tendên-
cia de regressão que vem despontando em várias partes do mundo com a
guinada à direita. Este deslocamento pode ser atribuído a alguns fatores
como o esgotamento do ciclo dos governos progressistas; a insegurança
social crescente associada ao desemprego e à precarização do trabalho e
da vida, que coloca o imigrante e o pobre como ameaças, exacerbando a
xenofobia; a corrupção e a descrença nas instituições tradicionais de go-
verno, inclusive partidos e sindicatos, que explicam, em parte, como no
caso brasileiro, a própria vitória eleitoral de Jair Bolsonaro.
Porém, ao olharmos para os recentes recuos dos governos equato-
riano e chileno, após enfrentarem uma grande onda de protestos, o pri-
meiro voltando atrás da tentativa de cortar subsídios de combustíveis de
grupos indígenas, assinando, ainda, uma lei para redirecionar recursos
públicos às populações mais pobres do país, e, o segundo, suspendendo o
aumento do preço das passagens de metrô, o estopim do levante, além de
anunciar um pacote de medidas4 indo ao encontro dos pleitos dos mani-
festantes, culminando na convocação de um processo constituinte com
ampla participação social para elaborar uma nova constituição, nos lem-
bram que o poder não é fatalismo incontornável. Como nos ensina Fou-
cault, a análise das relações de poder é tarefa política incessante, inerente
a toda existência social, e que o fascismo se combate com pensamento,
desejo (capaz de produzir contra-subjetividades) e ação.

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4.  Entre as quais, um aumento nas aposentadorias e no salário mínimo, a melhoria no acesso a
saúde, seguro para cobrir despesas médicas e estabilização das tarifas elétricas.

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REVOLUÇÃO DOS BALDINHOS: UM
CASO DE MAKING E COMMONING
COMO ALTERNATIVA AO
NEODESENVOLVIMENTISMO
Barbara Szaniecki
Pedro Biz

Introdução
Vivemos há tempos uma crise da representação que, mal encaminhada,
se transformou numa crise da própria democracia brasileira. Uma crise
que não é de hoje e não está ligada apenas aos acontecimentos recen-
tes. É, sobretudo, uma crise do modelo civilizatório, da modernidade
capitalista ocidental (ESCOBAR, 2016). Essa crise se deve ao problema
do projeto de desenvolvimento e o projeto de cidades que vem se de-
senrolando no Brasil e no mundo.
A expectativa gerada pelos últimos governos progressistas do Brasil
e da América Latina de desfazer o descompasso entre acumulação e dis-
tribuição não se concretizou. Esses governos não foram capazes de re-
verter processos de racionalização do Capital e do Estado e terminaram
surfando nessa onda. Com suas políticas de aceleração do crescimento,
políticas neodesenvolvimentistas (COCCO, 2014) geraram danos em
frentes de defesa importantes e tradicionais de grupos progressistas, as
ambientais e sociais, como no caso da construção de Belo Monte entre
outros megaequipamentos problemáticos, das remoções de favelas e do
projeto de pacificação preparado para os grandes eventos. Vale a pena
lembrar que as críticas dos manifestantes em 2013 (hospitais padrões

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FIFA) não apenas não foram ouvidas como foram criminalizadas. E os
“projetos” seguiram em frente. Hoje, sob o atual governo, eles seguem
ainda mais devastadores.
Governos progressistas parecem ter perdido uma oportunidade,
se não única, rara, de promover grandes reformas em benefício dos
mais pobres. A crise gerada pela promoção de políticas extrativistas
acompanhadas por políticas de expulsão da moradia e da terra se
transformou concretamente numa derrota econômica, social, cultu-
ral, ambiental e política. Em certos aspectos esses governos, mesmo
com seu méritos e avanços, preservaram a estrutura de desenvolvi-
mento que sustenta o capitalismo. O ex-presidente do Uruguai, José
Mujica, reconheceu em entrevista que a melhoria econômica dos
mais pobres não os fizeram cidadãos e sim consumidores. Mensurar a
melhoria da vida das pessoas apenas no crescimento econômico não
é suficiente diante dos inúmeros desafios estruturais a serem enfren-
tados: saneamento básico, moradia, segurança, água potável, saúde e
desmatamento entre outros.
A hipótese que defendemos é que essa derrota se deve em parte à
dificuldade de sair de uma concepção moderna – demasiada moderna –
de “projeto” relacionada, por sua vez, a uma concepção tradicional da
relação entre forma e matéria no campo do design, e entre representan-
te e representado no campo político – relação denominada hilemórfica
criticada pelo antropólogo Tim Ingold e, anteriormente, por Deleuze e
Guattari. E que essa derrota se deve, sobretudo, à dificuldade de abrir
uma alternativa, um caminho mais do que uma solução, um processo
mais do que um projeto.
Szaniecki (2018), em artigo anterior intitulado design no multitudoce-
no: seguir as linhas, seguir as lutas, defendeu a necessidade de um redese-
nho da democracia, a partir de um olhar sobre o projeto, inspirada pelo
conceito de linhas de Tim Ingold (2007, 2011, 2012, 2014) e pelo uso co-
mum de recursos ou commons (OSTROM, POTEETE; JANSSEN, 2010;
CAVA; MENDES, 2017). É preciso “seguir as linhas do making, seguir

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as lutas do commoning” para driblar o modelo de desenvolvimento que
acumula sem distribuir, buscando um modelo de crescimento por dife-
renciação e não um crescimento por aceleração. Enquanto Ingold, ao
falar das linhas, não problematizou os conflitos, as disputas de poder, os
debates sobre os commons propõem caminhos às disputas por recursos a
partir do compartilhamento de base comunitária.
A concepção moderna de projeto e o projeto de desenvolvimento
não são naturais e sim políticas baseadas em interesses capitalistas, po-
sições científicas e acúmulo de poder. Por décadas os commons foram
demonizados como uma tragédia para a gestão de recursos. Ostrom
e seus colegas demonstraram que os commons não apenas são possí-
veis como se realizam em diversos locais no mundo e para os diversos
fins. Nosso argumento ressalta a importância da presença daqueles que
constituem o comum (CAVA; MENDES, 2017) tanto na esfera comu-
nitária quanto na esfera política. A representação política deve se abrir
à participação da população em todas suas atividades e, em particular,
aquelas do commoning em todas as suas dimensões: gestão de recursos
comuns, produção de bens comuns e, sobretudo, processos colabora-
tivos e compartilhados. Na ausência dessa abertura, as lutas permane-
cem locais sem alcançar a necessária amplitude para a transformação
social. A escala dos desafios que temos pela frente requerem participa-
ção desde o nível comunitário até a representação política. Os recentes
governos progressistas permitiram um maior acesso ao consumo mas
falharam na ampliação da cidadania.
Encontramos pistas em alguns pensadores e ativistas contemporâ-
neos. Descreveremos o caso da revolução dos baldinhos, na cidade de
Florianópolis, como um processo de gestão comunitária e descentra-
lizada de resíduos orgânicos que transformou um bairro de periferia,
servindo de exemplo para todo o país e influenciando políticas públicas.
Mostraremos que esse processo é constituído por linhas de crescimento
tortuosas e não muito bem definidas, que ora estão dentro, ora estão
fora, ora para baixo, ora para cima.

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1. SEGUIR AS LINHAS DO MAKING
A crítica ao modelo hilemórfico de projeto já havia sido realizada por
Deleuze e Guattari mas aqui a retomamos a partir de Ingold para pen-
sar processos de crescimento como alternativa a projetos de desenvol-
vimento que articularam neoliberalismo com neodesenvolvimentismo,
ou seja, projetos do grande capital brasileiro altamente subvencionadas
pelo poder público.
Ingold se interessa pelo making (2014) – um fazer – e diz: nós esta-
mos acostumados a pensar no making como um projeto, ou seja, num
modo de atuar no mundo a partir de uma idéia daquilo que pretende-
mos realizar na cabeça, utilizando materiais adequados à realização na
mão. Nesse sentido, o projeto se realiza quando os materiais assumem
determinada forma. Dizemos então que produzimos um artefato e, as-
sim, um monte de ferro torna-se uma lança assim como um bloco de
pedra é transformada em escultura. O conjunto de artefatos é entendi-
do como “cultura material” de certa época ou região. Ingold cita Julian
Thomas para explicar a concepção de cultura material: “o resultado de
projetos através dos quais substâncias naturais se tornaram culturais”
(apud INGOLD, 2014, p. 20). Essa teoria é conhecida como hilemor-
fismo: do grego hylé (matéria, materiais) e morphe (forma). Segundo
Ingold, “quando, no fazer dos artefatos (in the making of artefacts), pro-
dutores impõem formas internas às suas mentes sobre um mundo ma-
terial externo a elas, é o hilemorfismo que está em ação.” (INGOLD,
2014, p. 20).
Em suma, o hilemorfismo indica basicamente um fazer por meio
da submissão da matéria – materiais ou massas – às formas – idéias
ou ideologias. Ingold, por sua vez, se interessa por um fazer que seja
um processo de crescimento (INGOLD, p. 20, 2014, p. 21) e não um
projeto, questionando a relação idéias versus materiais (forma versus
matéria) que pode se estender à relação cultura versus natureza. A di-
cotomia da lógica hilemórfica é como uma “fotografia” de um flu-
xo de vida que carrega consciência e materiais em paralelo trocando

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relações incessantemente. No fazer hilemórfico, o projeto reduz a
vida a um extrato desse fluxo incessante, um corte que atravessa e in-
terrompe processos vitais. Já o making como processo de crescimento
significa não fazer cortes nesse fluxo, mas mover-se no fluxo, seguin-
do as linhas. Nesse sentido, é preciso pensar o maker como um dos
participantes de um mundo de materiais. Para Ingold, esses materiais
são aquilo com o qual ele tem que trabalhar e, no processo do making,
se juntam ou se separam, atentos ao que pode emergir. Desse modo,
as ambições do fazedor são mais humildes do que as projetista, pois
ao impor seus designs em um mundo pronto e que espera recebê-los,
o máximo que o maker pode fazer é intervir num processo de mundo
que já está em andamento (INGOLD, 2014, p. 21) e assim permitir a
emergência de formas do mundo vivo ao redor de nós – nas plantas
e nos animais, nas ondas de água, na neve e na areia, nas pedras e
nas nuvens – acrescentando seu próprio ímpeto às forças e energias
em jogo.
Ingold traz como exemplo a diferença entre uma escultura de már-
more e a formação de uma estalactite. A diferença entre elas não é que
uma é fabricada e a outra não. A diferença é que, na história da escul-
tura de mármore, primeiro veio um pedreiro com força e ferramentas
para extrair um bloco de mármore e depois veio um artista com deli-
cadeza e outras ferramentas para obter uma forma desse bloco. Ora, as
características do bloco de mármore e do formão de metal contribuí-
ram para a emergência da forma da estátua do mesmo modo que as so-
luções aquosas da caverna contribuíram para a formação da estalactite.
Ao fazer essa comparação, Ingold se afasta de uma concepção de vida
que foca na ação do homem sobre materiais e mundo passivos. A pró-
pria estátua, ao ser exposta à luz do dia e da chuva, segue se formando
e deformando. Em suma, para além do modelo hilemórfico no qual a
idéia ou imagem mental se impõe à matéria (um fazer lateral), existem
processos geradores de formas ou morfogenético nos quais forças e ma-
teriais correspondem (um fazer longitudinal).

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Onde Ingold quer chegar com isso? Primeiro ele está tentando nos
dizer que a vida se move em sua diversidade e em fluxo contínuo. Em
outro artigo, ele definiu esse termo como correspondência (2016) como
um jogo em que estamos sempre agindo enquanto somos agidos, aten-
tos ao mundo que nos responde de volta. No modelo moderno e hile-
mórfico, o projeto busca antever uma ação, e essa ação, por mais que
seja prevista em projeto, só se realiza em seu fazer. No caminho do pro-
jeto existe um processo e nesse processo é que a vida é feita. Trata-se
de um fazer com e não um fazer para. Ingold nos chama a atenção para
outra questão: esse fazer que é um processo é também coletivo porque
se faz fazendo com as coisas e os seres envolvidos, ou seja, nós somos
uma parte desse processo e não a parte mais importante de um projeto.
É preciso estar atento a outras dimensões de vida além da humana.
Não se trata da defesa de organismos em detrimento dos artefatos.
Não se trata da defesa do projeto pequeno, micro ou local em detri-
mento do grande, macro ou global tal como hidrelétricas ou estádios
de futebol, ou de qualquer outro “artefato” destinado a aumentar a
produção ou a proporcionar diversão. Trata-se realmente uma outra
possibilidade de estar no mundo e de agir com ele. A idéia moderna de
projeto e de desenvolvimento sempre esteve e segue atrelada ao hile-
morfismo. Uma pré concepção de mundo imposta por decisões políti-
cas baseadas em um certo modelo de pensamento que a realiza, por sua
vez, atravessando diversos modos de vida, sem sequer questioná-las.
Mas nada disso é possível sem um making político.

2. SEGUIR AS LUTAS DO COMMONING


O que as linhas do making, entendido como processos de crescimen-
to alternativos a projetos de desenvolvimento, tem a ver com as lutas
commoning? Porque é tão importante fazer essa ponte? Antes, é bom
definirmos o que estamos chamando de commoning. Commoning são
processos de gestão de recursos comuns e governanças coletivas. Parte

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da noção dos economistas Elinor Ostrom, Amy R. Poteete e Marco A.
Janssen (2010) sobre os commons, ou comuns, entendidos como arranjos
colaborativos auto-organizados nos quais a ação coletiva está em jogo
para preservar recursos compartilhados. Nos últimos anos, o conceito
de commons foi usado para descrever o número crescente de iniciativas
no qual o compartilhamento de recursos e a colaboração tem uma pa-
pel primordial (SERAVALLI, 2018). Os primeiros commons observados
por Ostrom foram recursos naturais e depois outros pesquisadores
começaram observar a gestão comum de outras coisas: conhecimen-
to (HESS; OSTROM, 2007), cidade (SZANIECKI, 2016; SERAVALLI,
2018), gestão de resíduos (MEIRA, 2017) etc. Sendo assim, commoning
se refere ao processo de iniciação e sustentação desses recursos com-
partilhados e seus valores e usos coletivos (LODATO, 2018, p. 4).

Os commons têm aumentado a discussão não apenas sobre sistemas de re-


gras e procedimentos estáveis, mas para os processos continuados de com-
moning. Essa perspectiva enfatiza a vivacidade dos comuns e como os co-
muns se realizam nas interações do dia a dia e negociações entre pessoas e
entre pessoas e recursos (SERAVALLI, 2018).

É um pouco difícil fazer a passagem das linhas do making para as


lutas do commoning a partir de Ingold. Sua proposta de uma democra-
cia que articula comum e diferença é certamente política, entretanto,
o conceito de correspondência parece “driblar” a efetividade dos con-
flitos. Quando questionado sobre a dimensão política, ele responde
que a falta de conflito é uma crítica que lhe fazem com frequência, mas
que, em sua opinião, não pode haver descontinuidade sem antes haver
continuidade e, portanto, não é possível construir um processo de vida
social a partir de descontinuidades. A resposta fica mais interessante
quando, com um exemplo, afirma que o que é continuidade para uns é
descontinuidade para outros: “Suponhamos que eu represente o exér-
cito sul-africano e que, enquanto tal, eu construa uma rodovia através

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do território de caçadores-coletores indígenas, impedindo-os de seguir
seus caminhos costumeiros. Essa rodovia é uma continuidade para
mim (o exército) mas ela interrompe o mundo deste povo indígena”.
Porque a linha de uma pessoa se torna uma barreira para outra? Porque
a primeira pessoa tem o detém poder e esta questão se torna então polí-
tica: algumas linhas são mais fortes que outras. Certas linhas permitem
a continuidade da vida para alguns mas bloqueiam ou interrompem a
vida dos outros. Substituamos “exército sul-africano” por “governos la-
tinamericanos” e sintamos nosso problema.
Ingold conclui sua resposta fazendo referência ao seu livro Uma breve
história das linhas (2007) mas sentimos falta de uma maior reflexão sobre
poder, não tanto sobre “o que é o poder?” e sim “como opera o poder?”
justamente porque ele, Ingold, é capaz de observar os fluxos das linhas
às lutas em diálogo com Foucault, por exemplo. Contudo, não deixa de
trazer algumas reflexões interessantes sobre o comum, a partir de noções
de Roberto Espósito (MULTITUDES, 2017, p. 164 e 165): para que os
indivíduos possam levar uma vida em comum, é preciso que eles sejam
diferentes. Assim todos e cada um podem dar algo ao comum. A vida
em comum é uma forma da diferença, ou melhor, um processo de dife-
renciação. E também reflexões interessantes sobre democracia, a partir
de John Dewey (1916). Para Dewey, a democracia é uma forma de vida
em comum. Não se trata de andar para trás à procura de algo que tería-
mos em comum e que poderíamos então desenvolver e sim, de avançar
para encontrarmos juntos aquilo que nenhum de nós poderia ter imagi-
nado no começo do caminho. Muito boas as reflexões de Ingold a partir
de Espósito e Dewey, ainda assim, nossa questão é: é possível ir além do
modelo hilemórfico em direção a processos morfogenéticos no que diz
respeito a projetos econômicos e políticos? Lembrando que Ingold se in-
teressa por um making na antropologia, nas artes, na arquitetura e nós
estamos procurando instigar um making econômico-político com design
no contexto latinoamericano. Trazemos uma inquietação a partir de um
fazer que procura sair da submissão da matéria à forma, idéia ou imagem

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mental e abrir uma relação de correspondências e conversas entre ma-
teriais e forças. Já bastante presente no campo do design, ainda que de
forma experimental, perguntamos porque não trazer essas relações entre
materiais e forças para as relações entre representantes e representados,
entre governos, partidos e movimentos?
As possibilidades de commoning passam diretamente pelos conflitos e
pela política. Não falamos apenas de disputas de poder, mas da prática
política: de políticas públicas, legislação e execução. Grandes projetos
privados articulados com os poderes públicos afastam essas possibili-
dades. Negar um fazer plural, compartilhado e colaborativo faz parte
desse projeto moderno de sociedade, focado no crescimento desen-
freado, na massificação e no lucro, sem qualquer cuidado com outros
anseios da população. Ostrom, Poteete e Janssen (2010) apontam três
ensaios que serviram de referências às políticas públicas: a tragédia dos
comuns, o dilema do prisioneiro e a teoria da ação coletiva. Essas obras
serviram de justificativa de gestores e economistas para aplicar políticas
de privatização ou, no sentido inverso, de estatização de recursos natu-
rais. Entretanto, Ostrom, Poteete e Janssen, através de uma vasta pes-
quisa em todo mundo de gestão compartilhada de recursos naturais,
demonstraram que os commons não são uma tragédia. A negação aos
direitos dos comuns foi um projeto político que se espalhou pelo mun-
do inteiro e que está ligado ao projeto de desenvolvimento. Enquanto
as lutas do commoning são a negação da tragédia, reivindicando que es-
ses commons sejam reconhecidos como um modo de viver possível. Não
é apenas - o que não é pouca coisa - buscar viver de modo comum, com
também lutar e produzir esse direito.

3. A REVOLUÇÃO DOS BALDINHOS


Se o aspecto conflituoso das disputas não foi desenvolvido por Ingold,
é possível encontrar algumas pistas em outro antropólogo, o colombia-
no Arturo Escobar (2016), que propõe uma reorientação ontológica do

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design inspirado por comunidades ligadas à terra (indígenas e quilom-
bolas entre outros) e atua em territórios na Colômbia onde os conflitos
são fortes. Encontramos também pistas em uma experiência brasileira
que ficou conhecida como Revolução dos baldinhos, e que aconteceu
em uma favela da periferia de Florianópolis.
Como grande parte das favelas do Brasil, a prefeitura não faz a
coleta de lixo adequada. Na comunidade de Monte Cristo, o lixo
não recolhido costumava ficar espalhado pelas ruas, gerando mau
cheiro e atraindo insetos e animais. A comunidade só percebeu a
gravidade do problema quando duas crianças morreram de leptos-
pirose. A tragédia gerou uma mobilização. Lideranças e moradores
da comunidade, representantes das escolas e do Centro de Saúde,
um técnico do Centro de Estudos e Promoção da Agricultura de
Grupo (Cepagro) e mulheres da Frente Temporária de Trabalho, se
reuniram para debater o problema. A compostagem do lixo dentro
da favela despontou como uma solução promissora (MINISTÉRIO
DO MEIO AMBIENTE, 2017).
Com apoio e orientação da ONG Cepagro, a comunidade se orga-
nizou para recolher os resíduos orgânicos e destiná-los a um ponto de
compostagem. Utilizando baldes para recolhimento e um carrinho, o
resíduo orgânico começou a ser levado para o terreno de uma escola e
ser compostado em leiras. Três iniciativas que já aconteciam na comu-
nidade foram muito importantes para a aceitação da compostagem: a
frente temporária de trabalho composta por mulheres contratadas pela
prefeitura para realizar a limpeza das ruas, com contato muito próxi-
mo às famílias do bairro; duas escolas com projeto de horta promo-
vido pelo Cepagro utilizando compostagem doméstica; e um médico
do posto de saúde que divulgava a compostagem como alternativa à
reciclagem de resíduos e produção de alimento saudável (MINISTÉRIO
DO MEIO AMBIENTE, 2017).
Conforme a comunidade via os resultados que ela mesma esta-
va produzindo, o projeto foi ganhando apoio interno e cada vez mais

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famílias passaram a destinar seus resíduos para a compostagem. O re-
colhimento começou com um carrinho de supermercado e baldes pas-
sando de casa em casa atendendo cinco famílias e chegou a 200 famílias
atendidas. A partir de uma parceria com a empresa municipal de limpe-
za urbana de Florianópolis, o transporte começou a ser realizado com
um carrinho adequado às ruas estreitas dos bairro (MINISTÉRIO DO
MEIO AMBIENTE, 2017). O próximo passo foi deixar de recolher nas
casas para colocar pontos de entrega voluntário em locais estratégicos,
que atendiam de 5 a 8 habitações cada. Com aumento do recolhimento,
uma área pública em desuso foi ocupada para aumentar os canteiros
de compostagem. Depois de um ano de ocupação, a área teve que ser
devolvida sob ordem judicial, obrigando o projeto a voltar para a escola
e readequar o volume de resíduo recolhido. Assim, passou a atender
100 famílias e oito instituições de ensino (MINISTÉRIO DO MEIO AM-
BIENTE, 2017).
Assim como o número de famílias participantes foi crescendo, a no-
toriedade do projeto também cresceu. O nome “revolução dos baldi-
nhos” começou a circular por grupos interessados em compostagem
no país inteiro como um exemplo a ser seguido, a partir de publicações
acadêmicas, cartilha do governo, cursos de compostagem e visitas para
conhecer o projeto entre outras iniciativas. Um modelo comunitário,
de favela, de baixa complexidade, mas que solucionava um problema
muito grande. Em 2011, o projeto recebeu o certificado de Tecnologia
Social pela Fundação Banco do Brasil e em 2013, a partir de um prêmio
vinculado ao certificado, foi possível replicar o projeto em outra comu-
nidade do bairro Monte Cristo. Devido ao vínculo com a fundação, em
2016, o modelo de gestão passou a ser replicado em outros projetos do
programa de habitação “Minha casa minha vida” (MINISTÉRIO DO
MEIO AMBIENTE, 2017).
Entretanto o projeto esbarrou no sustento econômico daqueles
que trabalham recolhendo os resíduos e fazendo a compostagem. O
projeto não se sustentava sozinho, recebia financiamento de empresas

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a partir de projetos sociais que pagavam as bolsas para realização do
trabalho e outros custos operacionais. Um dos caminhos para viabi-
lizar o projeto não apenas em Monte Cristo, mas em outras cidades,
seria reconhecer a compostagem descentralizada como política pú-
blica. Ao mesmo tempo institucionalizar o projeto como uma coo-
perativa, assim a prefeitura poderia pagar aos agentes comunitários
pelo serviço, assim como pagava caro para empresas realizarem esse
recolhimento.
Nas eleições de 2016, o pesquisador do Cepagro que acompanhou
a processo de Monte Cristo se candidatou a vereador em Florianó-
polis, sendo o segundo vereador mais votado da cidade. Uma de suas
primeiras iniciativas foi propor um projeto de lei sobre a compos-
tagem. O projeto foi aprovado, tornando Florianópolis pioneira a
ter um plano de recolhimento do resíduo orgânico, destinando-o à
compostagem e incentivando o processamento descentralizado e co-
munitário. Além de ambiental e econômico, o impacto do projeto é
social e sobretudo humano. A valorização de um lugar veio a partir
de um projeto baseado no lixo produzido em um bairro da periferia,
de uma cidade no sul do país para o Brasil inteiro. O projeto se deslo-
cou de uma organização comunitária local, para organizações maio-
res tais como redes de resíduos orgânicos, até alcançar uma política
pública representativa. A cooperação e organização coletiva de baixo
pra cima prevaleceram nesse exemplo tão pequeno e ao mesmo tem-
po tão potente.
Ao tratar de comunidades e autonomia, Escobar nos traz a ideia
de clausura operativa (2016), inspirado pela noção de autopoiética ela-
borada por Maturana e Varela para explicar sistemas biológicos. Tra-
ta-se de uma relação em que sistemas (corpos, comunidades) operam
a partir de suas características internas em resposta aos estímulos ex-
ternos, ou seja, possuem certa autonomia sem se fechar às relações
externas. As mudanças estimuladas pelo exterior se realizam segundo
as maneiras que o sistema se organiza e opera. O sistema está aberto a

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seu entorno proporcionalmente à complexidade de sua clausura (ES-
COBAR, 2016), ou seja quanto mais organizada uma comunidade, por
exemplo, maior será a sua capacidade de agir em relação aos estímulos
externos sem ser desestruturada pelas forças exteriores. Como vimos
na Revolução dos baldinhos, a comunidade se articulou, estimulada
por parceiros externos, como o Cepagro, patrocínios, prefeitura, para
reagir à leptospirose e mudar sua postura em relação ao lixo orgânico,
desenvolvendo a gestão do resíduo à sua maneira. Preservar tradições
sem se fechar às mudanças do mundo é um jogo sutil que contém tan-
to o perigo de se fechar demais e engendrar fundamentalismos ou se
abrir demais e ser subjugado por forças maiores. A autopoiesis parece
manter essa flexibilidade e ambiguidade.
Neoliberalismo e neodesenvolvimentismo tendem a encarar a ges-
tão dos recursos comuns e governanças compartilhadas como uma tra-
gédia. Assim, Capital e Estado em suas ações e políticas voltadas para
os resíduos privilegiam um modelo de gestão centralizado, controlado
por instituições público-privadas, baseado em aterros distantes do cen-
tro da cidade em detrimento do lixo como commons. O projeto do lixo
destrói os lugares onde se instala. Exemplos de lixões não faltam pelo
país. Já a gestão descentralizada e localizada dos resíduos orgânicos, tal
como no caso aqui analisado, esse commons feito de vivências, experiên-
cias e emergências é o oposto de um grande projeto. É fruto de um
making de crescimento.
Como vimos, o sucesso da revolução dos baldinhos aconteceu por-
que havia um movimento externo favorável à sua realização, tanto de
instituições de apoio técnico como a Cepagro, quanto financiadores e
o próprio estado. Ao reivindicar o terreno de volta, a Prefeitura levou
a comunidade a se reorganizar. Percebemos, então, que os estímulos
podem ser tanto positivos quanto negativos e mais ou menos intensos.
Essas são questões que Escobar não chegou a explorar em sua noção de
autonomia. Ao mesmo tempo, a organização se adaptou à adversidade
já em outro contexto de transformação.

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Ingold nos oferece em seu conceito de making uma pista sobre
como poderíamos lidar com as relações de poder entre opressores e
oprimidos, representantes e representados e frente a esse escorrega-
dio jogo de fechar e abrir. Um “projeto” não é capaz de realizar um
“feito” desses. Este é fruto de um grande esforço conjunto, muita dis-
posição, dedicação, uma abertura para realizações. Ninguém poderia
dizer como o projeto se desenvolveria antes de começar. O aprendi-
zado que se construiu ali formou pessoas em diversos âmbitos, rever-
berou por muito cantos. Em vez de projeto apenas, temos um pro-
cesso. A ação foi delineada no caminho e por aqueles que eram os
mais afetados e não projetada a priori pelo poder público e grandes
organizações.
Um esboço de um making de crescimento por diferença poderia
ser representado por uma linha tortuosa que ora está em baixo e ora
está em cima, num jogo de dentro e fora, da comunidade ao exterior.
Como vimos, os processos crescem e se fortalecem quando o commo-
ning ou fazer comum se propaga por diversas esferas, da comunidade,
às instituições e órgãos públicos. A linha se movimenta num fluxo
orgânico em que os vales formados quando a linha desce correspon-
dem a comunidades em sentido plural (humanos, flora, fauna, rochas
etc), àqueles cujo poder está distribuído no conjunto; e, quando as
linhas sobem e formam topos, correspondem às instituições (estado,
empresas, fundações, ongs), que detém e centralizam o poder, capital
e conhecimento. Neste movimento de correspondência as ondas que
formam vales e topos estão representadas as relações entre comuni-
dades e instituições, e podem ser ascendentes, quando as duas se be-
neficiam, descendentes quando ninguém ganha, ou ainda reversões
que podem ser positivas ou negativas, quando uma das pontas causa
algum impacto que muda a direção da linha. Nesse jogo das linhas
realizadas no fazer contínuo e correspondente, os projetos estão no
processo, e não o oposto.

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Figura 1 – Esboço de uma linha de crescimento

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Consideramos que, em princípio, as lutas do commoning – pela gestão
dos bens comuns assim como o fazer comum – não são hilemórficas.
Os commons demandam um fazer, um processo de crescimento com-
partilhado e se desenrola nos caminhos e nos acontecimentos. No caso
dos baldinhos, havia a priori um desenvolvimento técnico que suporta-
va a possibilidade de realização da compostagem, entretanto, essa só
se deu na articulação das pessoas, nas relações entre moradores e no
aprendizado comum de como a técnica estava viabilizando o proble-
ma do lixo, que o trabalho foi crescendo de acordo com a viabilidade
local. Um “projeto” resultaria naquilo que Ingold se refere ao falar do
exército sul-africano (e nós, dos governos sul-americanos), isto é, linhas
retas de aceleração cujo poder atropela a vida de outros. Por isso o com-
moning precisa ser um processo cauteloso que segue linhas entrando e
saindo, de baixo para cima, em ondas, ora de cima para baixo.
Defendemos que as linhas e as lutas do commoning devem estar sem-
pre buscando a esfera das políticas públicas. Não apenas mudar pelas
influências externas, mas também puxar mudanças maiores, junto com
a rede de comuns. O discurso das tragédia dos comuns até hoje ser-
ve (e hoje mais do que nunca) para justificar privatizações ou grandes

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projetos do estado. O que precisamos agora é que o discurso dos com-
mons comece a justificar políticas públicas. Não estamos falando neces-
sariamente de institucionalizar políticas comuns, estamos falando que
gestões comunitárias sobre recursos comuns precisam ser reconhecidas
oficialmente e incentivadas como um modo de gestão social.
E os orçamentos participativos? Reaproximar a população das polí-
ticas públicas através da participação demanda não apenas a porta da
prefeitura aberta, como o interesse do cidadão de querer atravessar essa
porta. Encontramos no commoning um possível caminho para essa for-
mação política cidadã, uma construção e aprendizado conjunto com a
força das redes. Quem sabe ao ponto que o próprio Estado seja enten-
dido como recurso comum a ser gerido de um modo mais aberto e par-
ticipativo. A política dos comuns e os comuns na política pode ser um
caminho de reorganização das organizações progressistas (não apenas
partidos) para enfrentarmos o trágico projeto de democracia brasileira.

REFERÊNCIAS
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ção de Subjetividade e Crise no Capitalismo. Rio de Janeiro: Revan, 2017.
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LODATO, Thomas; DISALVO, Carl. Institutional Constraints: The Forms and Limits
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OSTROM, Elinor; POTEETE, Anne R.; JANSSEN, Marco A. Working Together: Collec-
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MEIRA, Teresa Bezerra. A gestão de resíduos sólidos urbanos nas favelas cariocas como um
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SERAVALLI, Anna. Infrastructuring Urban Commons over Time: Learnings from
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COMUM URBANO: O DIREITO À MORADIA
NA METRÓPOLE BIOPOLÍTICA1
Rodrigo Moreira de Mello

1. INTRODUÇÃO
Durante seu discurso na ocasião da entrega do relatório especial da
ONU sobre o direito à moradia adequada ao Conselho de Direitos Hu-
manos, Leilani Farha, relatora do documento, proferiu uma frase que
ressoou pelos meios de comunicação do mundo inteiro: “A moradia
não pode ser reduzida a uma fonte de lucro para os ricos.”2 A frase,
impactante pelo seu contexto, revela uma tendência mundial, que está
presente nos debates sobre moradia adequada e direito à cidade nos
mais diferentes espaços e instituições.
Em seu trabalho, focado da “financeirização da habitação” e suas re-
percussões nos Direitos Humanos, a relatora sugere uma redefinição
do relacionamento dos Estados com investidores privados e instituições
financeiras internacionais e uma reforma na gestão dos mercados finan-
ceiros, deixando de encarar a habitação como uma mercadoria voltada
para a acumulação de riqueza, passando a ser reivindicada como um

1.  Este trabalho trata-se de um resumo da monografia de mesmo título apresentada na con-
clusão do curso de Direito na graduação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Esta pes-
quisa se desenvolveu no âmbito das atividades do projeto “Comuns Urbanos: Estudo de Caso
do Horto no Rio de Janeiro, cadastrado junto a UERJ sob a coordenação do Prof. Alexandre F.
Mendes.
2.  NAÇÕES UNIDAS DO BRASIL. Moradia não pode se reduzir a uma fonte de lucro para
os mais ricos, diz relatora da ONU. Disponível em: https://nacoesunidas.org/moradia-nao-
-pode-se-reduzir-a-uma-fonte-de-lucro-para-os-mais-ricos-diz-relatora-da-onu/. Acesso em: 7
mar. 2019.

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bem social e, assim, garantia ao direito humano a um lugar para viver
em condições de segurança e dignidade (FARHA, 2017)
Na América Latina, e no Brasil em especial, a situação é semelhante.
Os dados da Fundação João Pinheiro (2018)3 sobre a situação do déficit
habitacional no Brasil, a partir dos microdados da Pesquisa Nacional de
Domicílios do IBGE, revelam que no ano de 2015, o déficit habitacional
estimado corresponde a 6,355 milhões de domicílios, dos quais 5,572
milhões, ou 87,7%, estão localizados nas áreas urbanas e 783 mil unida-
des encontram-se na área rural. Nas regiões Sudeste, Sul e Centro-Oes-
te o déficit habitacional nas áreas urbanas ultrapassa 90%. 4
Nesse processo de apropriação do espaço urbano pelo capital ao lon-
go da história da cidade, um fenômeno recorrente foi a expulsão das ca-
madas socioeconomicamente mais vulneráveis dos territórios de maior
valor de mercado. Foi assim com a caça aos cortiços da região central,
com os incêndios das favelas da Zona Sul, dentre outras. Nesta atual
gestão municipal, essa política volta a apresentar destaque para uma su-
posta valorização da cidade, atingindo novas fronteiras de intervenção.
(AZEVEDO; FALHABER, 2015, p. 36)5

3.  Criada em 1969, a Fundação João Pinheiro é uma instituição de pesquisa e ensino vin-
culada à Secretaria de Estado de Planejamento e Gestão de Minas Gerais. FUNDAÇÃO
JOÃO PINHEIRO. Déficit Habitacional no Brasil. Disponível em https:// http://fjp.mg.gov.
br/index.php/produtos-e-servicos1/2742-deficit-habitacional-no-brasil-3/. Acesso em: 7
mar. 2019.
4.  Em São Paulo, segundo a mesma pesquisa, os valores absolutos do déficit habitacional ul-
trapassam um milhão de moradias, totalizando 1,337 milhão de unidades. O ônus excessivo
com aluguel tornou-se desde 2011 o componente de maior peso. Em 2015, metade do total do
déficit está associado a este componente, o que, em número absoluto, representa 3,177 milhões
de famílias urbanas no país. A região Sudeste concentra 61,4% das famílias urbanas associadas a
esse componente, totalizando 1,524 milhões de famílias que comprometem grande parcela da
renda com o aluguel.
5.  Azevedo e Falhaber (2015, p. 36) apresentam ainda que, segundo dados coletados da Secre-
taria Municipal de Habitação do município, a gestão do prefeito Eduardo Paes (2009 – 2013)
removeu mais pessoas durante seus dois mandatos do que a gestão de Carlos Lacerda (1961
– 1985) e Pereira Passos (1902 – 1906 ), [...] “que são frequentemente relembrados para repre-
sentar esta política de remoções”. (AZEVEDO; FALHABER, 2015, p. 37)

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Esse cenário serviu de pano de fundo para colocar o Brasil no
roteiro das manifestações que eclodiram no mundo todo entre 2010
e 2013, tendo como foco a contestação do sistema financeiro e o seu
imbricamento com o poder público, e como estratégia a ocupação
de praças, parques e prédios públicos (CAVA, 2016). Segundo Mari-
cato (2013), a introdução de uma orientação política voltada a finan-
ceirização das políticas públicas fez com que quem acompanhasse
de perto a realidade das cidades brasileiras não tivesse dificuldades
de interpretar esse movimento que impactou o país em junho de
2013. Isso porque a política social deixou de assegurar níveis cres-
centes de bem-estar para servir primordialmente ao acesso ao setor
financeiro, ou à aquisição de serviços que o Estado se absteve de
prover (LEVINAS, 2015).
Assim, tomando como referencial o conceito de Toni Negri, onde a
metrópole aparece no lugar da fábrica como local próprio da multidão,
articulando assim a concepção de Foucault de biopoder, que se interes-
sa pelo controle e ordenamento de forças em duas principais frentes: a
disciplina, que incide sobre o corpo do indivíduo para otimizar suas for-
ças; e a biopolítica, atuando sobre o homem como espécie, com vista
a gerir sua vida coletivamente, o comum aparece como principal resis-
tência política ao neoliberalismo.

2. A NOVA RAZÃO DO MUNDO E A CONSTITUIÇÃO DO COMUM


A escolha do comum como princípio político e referencial teórico que
pudesse exprimir o processo e o contexto de resistência da comunida-
de do Horto se deu em função da sua origem e uso a partir das lutas
dos movimentos antagonistas à ordem capitalista e à lógica do Estado
empresarial. Primordialmente ligados às causas ecologistas, esses mo-
vimentos buscavam uma alternativa política que não os submetesse “a
ampliação da apropriação privada a todas as esferas da sociedade, da
cultura e da vida.” (DARDOT; LAVAL, 2017, p. 17).

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Nesse sentido, é na obra de Antônio Negri e Michael Hardt, (2015)
que o conceito alcança as bases necessárias ao enfrentamento das dinâ-
micas do capitalismo contemporâneo, não mais designativo da apro-
priação dos espaços “comuns” “que foram destruídos pelo advento da
propriedade privada.” (DARDOT; LAVAL, 2017, p. 199):

O comum seria, sobretudo, a dimensão oculta e a condição ignorada do


capitalismo mais moderno. Não é o que ele destrói, mas o que explora e,
em certa medida, o que produz: “Nossas formas de nos comunicar, co-
laborar e cooperar não apenas se baseiam no comum: elas o produzem,
numa espiral dinâmica e expansiva. Hoje, essa produção do comum tende
a situar-se no centro de toda forma de produção social, por mais local que
seja. (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 199).

A compreensão destas formulações implica na análise daquilo que


Michael Foucault denominou de arte neoliberal de governar. Em “O
Nascimento da biopolítica”, o liberalismo e neoliberalismo são toma-
dos como modos de “racionalização da prática governamental no exer-
cício da soberania política” (FOUCAULT, 2008, p. 4). A partir dessa per-
cepção, essas formas de governar engendrariam, como correspondente
histórico, uma forma de Estado correlata a essas práticas.
Assim, analisando as transformações no interior do capitalismo,
Foucault percebe que as políticas neoliberais “propunham que a eco-
nomia de mercado se tornasse o “princípio organizador e regulador in-
terno do estado” (FOUCAULT, M. 2004b, p. 120, apud MENDES, A. e
CAVA, B. 2017, p. 86)”. Para o sucesso desse equacionamento, há uma
alteração da relação com o sujeito social, engendrando uma perspecti-
va que capitaliza as classes sociais e desconstitui, por exemplo, as polí-
ticas sociais típicas do intervencionismo estatal de tipo keynesiano, que
“propunham um mecanismo de compensação econômica com base em
princípios de igualdade e homegeneidade.” (MENDES, A.; CAVA, B.
2017, p. 89).

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O resultado dessa mudança está em considerar cada cidadão a partir
de um potencial econômico individual, a partir do qual os serviços do
Walfare State, bem como as dimensões dos direitos sociais conquistados
nas constituições desses estados, passam a ser geridos pela lógica do mer-
cado e suas formulações de eficiência e gestão, privatizando setores que
funcionavam através da transferência de parcela da renda. Assim, o cres-
cimento econômico, que no Walfare State é responsável pela possibilidade
de geração de emprego e ampliação desses direitos sociais, passa a ser
importante para manter “as condições sob as quais os indivíduos passam
a constituir as múltiplas formas de securitização da vida, a partir da gene-
ralização da propriedade privada.” (MENDES, A.; CAVA, B. 2017, p. 89)6
A partir então do papel que as Finanças assumem, ao tornarem-se
dispositivos de biopoder, Foucault, em suas últimas análises sobre a
produção de subjetividade, passa a considerar essa constituição como
elemento central dos mecanismos antagonistas da atualidade capitalis-
ta, uma vez que “possibilitam a constituição de sujeitos a partir de uma
autonomia com relação aos dispositivos biopolíticos e disciplinares.”
(MENDES, A.; CAVA, B. 2017, p. 98)
Sob essas bases, a partir de uma breve incursão sobre os processos
históricos dessas transformações, Pierre Dardot e Christian Laval, pon-
tuando a imprecisão em conceber a nova dinâmica como meras alte-
rações internas do sistema capitalista ou como aplicação de uma teo-
ria econômica, conceberam como a “conexão de um projeto político a
uma dinâmica endógena, a um só tempo tecnológica, comercial e pro-
dutiva”. (DARDOT; LAVAL, 2017, p. 194)
Frente ao avanço das políticas neoliberais características desse con-
texto, movimentos “contra-hegemônicos” articularam, a partir da

6.  Neste ponto, a constituição da subjetividade aparece como elemento central da lógica de
governar característica do neoliberalismo. Os elementos comuns inerentes a sociedade e da
relação do homem com seus semelhantes passam a ser tidos como espaços de exploração eco-
nômica, no sentido de que a linguagem, a comunicação, os debates públicos e os atos inerentes
a sociedade civil tornam-se ativos econômicos.

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década de 1990, alternativas à dicotomia público versus privado, eixo
central de conformação política, jurídica e econômica da modernidade
capitalista, fazendo emergir um novo princípio político de teoria e prá-
tica com dimensões regionais e globais - o comum – uma nova crítica
ao sistema capitalista e a possibilidade de pensar um novo horizonte.
Nesse contexto, considerando que a metrópole se apresenta hoje como
a principal zona das lutas e resistências, onde se dão as reapropriações
e a produção do espaço, Bruno Cava situa essa centralidade na conver-
gência das diversas crises:

Na metrópole, confluem todas as crises de hoje. A crise do capitalismo glo-


bal, de recessão e austeridade num hemisfério, crescimento sem desenvol-
vimento no outro. Crise do socialismo, a falência do projeto de uma razão
planificadora e esclarecida incorporada historicamente no estado, ímpeto
hegeliano tantas vezes repetido pelas esquerdas. Crise também da represen-
tação, na acepção mais abrangente do termo, da concatenação entre potên-
cia social e poderes instituídos, da autonomia do político em que operam
cada vez com menos aceitação os governos, os partidos, os sindicatos e
demais órgãos de estado, como também crise da representação discursiva,
do território, desde o mais local até a crise geopolítica. Não seria crítica a
aparição do Estado Islâmico no Oriente Médio, inclassificável e tenebrosa
anomalia, uma indevassável falência da geopolítica na metrópole? Não seria
propriamente crítica a aposta na formação de um bloco alternativo que, à
proeminência dos Estados Unidos, põe fichas nas casas de Rússia e China,
numa falsa dialética, nostalgia infinda da Guerra Fria, porém perfeitamente
funcional ao capitalismo integralizado e globalizado em sua face mais aber-
tamente autoritária? Crise, sobretudo, socioambiental da metrópole: deser-
tos azuis da acidificação do oceano, amarelos das obras faraônicas, brancos
da camada de ozônio nos polos, verdes dos eucaliptos. (CAVA, B. 2015, p. 1)

Surge então um princípio político onde a co-atividade é tomada


como exercício de responsabilidades do engajamento necessário às

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estratégias dos movimentos altermundialistas que não se contempla-
vam com a gestão neoliberal da vida. Assim, o engajamento prático dos
homens “pode produzir um novo sujeito coletivo, em vez de afirmar
que tal sujeito preexista a essa atividade na qualidade de titular de direi-
tos” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 53).Passa-se a conceber o universalis-
mo apenas como aquele onde homens se engajem numa mesma ativi-
dade, fazendo surgir um princípio político que orienta a constituição de
bens comuns
Essa práxis deve ser encarada como a possibilidade de refundação
da própria democracia. O sistema político ou a forma de Estado que o
neoliberalismo engendrou, como já explicitado no primeiro capítulo,
partiu do princípio da impossibilidade da ampliação da participação de-
mocrática dos cidadãos. Por outro lado, a condução da produtividade
pelo Estado nas experiências comunistas do séc. XX fez com que o ideal
de aprofundamento da democracia fosse enterrado em regimes que se
transformaram em experiências históricas terríveis.
Assim, faz emergir uma terceira via, alternativa a propriedade do Es-
tado-Mercado, na qual aqueles que são responsáveis pela execução do
trabalho são aqueles que participam da decisão do ritmo do trabalho:

Em suma, o comum assinala uma nova forma de soberania, uma sobera-


nia democrática (ou, mais precisamente, uma forma de organização social
que desloca a soberania) na qual as singularidades sociais controlam atra-
vés de sua própria atividade biopolítica aqueles bens e serviços que permi-
tem a reprodução da própria multidão. Esta deveria constituir uma passa-
gem da Res-publica para a Res-communis. (HARDT; NEGRI, 2005, p.268).

Mendes e Cava concluem, então, que o filósofo francês “apresenta


uma poderosa formulação do que podemos chamar de uma tecnologia
do comum.” Isso porque a modernidade haveria engendrado uma con-
dução semelhante do homem “através de uma prática permanente de
individualização e totalização.” (MENDES, A.; CAVA, B. 2017, p. 102)

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Assim, o antagonismo gerado pela produção de uma outra subjetivi-
dade aos processos de exploração do neoliberalismo, geraria um modo
de vida, de se relacionar, de pensar as questões da atualidade a partir de
um fazer comum que, do ponto de vista da resistência, se colocaria no
plano central das lutas dos movimentos e dos modos de vida resistentes
à estas implicações das mutações do capitalismo:
Nesse ponto, a preocupação com a produção do espaço na metró-
pole capitalista faz suscitar o debate em torno do fazer comum na ci-
dade. O ambiente urbano concentra uma gama de relações que, no
sentido das análises de Michael Foucault, apontam para a necessidade
de entender que os processos anticapitalistas que surgem na metró-
pole não apenas se resumem a uma redistribuição igualitária dos bens
e serviços comuns, mas que a própria disputa dos modos de vida na
cidade, preocupações presentes no pensamento de Henri Lefebvre,
constituem, ainda na atualidade, potências antagônicas ao que Fou-
cault denominou de formas de sujeição.

3. O DIREITO À MORADIA COMO UM COMUM URBANO


Retomamos o tema da moradia para, neste capítulo, situá-lo no cenário
atual de financeirização das políticas sociais. Do ponto de vista jurídico,
estas prestações do estado foram consagradas no rol de direitos fun-
damentais das constituições dos países capitalistas como àqueles per-
tencentes a segunda geração de direitos7, designando aqueles direitos
subjetivos de cunho individual de natureza prestacional, que na

7.  Noberto Bobbio é frequentemente lembrado como a melhor contribuição para con-
sagração das gerações de direitos fundamentais, ao afirmar que “o desenvolvimento
dos direitos do homem passou por três fases”. A segunda geração, nascida junto com a
emersão do estado de bem-estar, são os considerados os direitos políticos, “conceben-
do a liberdade não apenas negativamente, como não impedimento, mas positivamente,
como autonomia. BOBBIO, Noberto. A era dos Direitos. 9. ed. Rio de Janeiro: Elsevier,
2004, p. 32.

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Constituição da República Federativa do Brasil está consolidado no art.
6°, no capítulo dos direitos sociais:8
A prestação habitacional, entretanto, assumiu diferentes facetas
quanto a sua concretização no mundo material. Segunda a professora
Raquel Rolnik, dentre os países da Europa, por exemplo, “poucos são
aqueles que, em um dado momento de sua história, implantaram um
parque público de habitação social significativo no conjunto de domicí-
lios existentes.” (ROLNIK, 2015, p. 158)
Após 1970, influenciado por agendas que expressavam as ideias conti-
das no programa neoliberal, a dinâmica do fornecimento de um estoque
público de habitação começou a caminhar no sentido de uma facilitação da
aquisição da propriedade privada desses bens, bem como nos incentivos ao
mercado imobiliário, alterando o papel do Estado, que passaria a atuar na
mediação do interesse do mercado e a necessidade de seus cidadãos.

Mesmo onde a privatização do estoque público não ocorreu de forma


drástica, a transferência ideológica da responsabilidade por prover habi-
tação para o mercado foi hegemônica, e o paradigma da “casa própria”
transformou-se em modelo praticamente único de política habitacional.
Esse processo eclipsou outras formas de posse bem estabelecidas, tais
como a habitação para aluguel (pública e privada) e algumas formas de
propriedade cooperativa e coletiva. (ROLNIK, 2015, p. 160)

Dessa forma, o financiamento imobiliário para aquisição da casa


própria tornou-se uma das grandes chaves da movimentação da econo-
mia em escala global9. Esse processo dependeu da valorização contínua

8.  Título II Dos Direitos e Garantias Fundamentais. Capítulo II Dos Direitos Sociais: Art. 6º
São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segu-
rança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desampara-
dos, na forma desta Constituição.
9.  Esse movimento, em consonância ao exposto no primeiro capítulo, já demonstra uma alte-
ração da dinâmica do capitalismo. Em concomitância com o processo de privatização da seguri-
dade social, transferindo a responsabilidade de gestão das condições da aposentadoria para cada

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desses imóveis, de maneira que se constituiu “um vínculo íntimo entre
a vida biológica dos indivíduos e o processo global de extração de renda
e especulação.” (ROLNIK, 2015, p. 165)
Raquel Rolnik vai ao encontro de David Harvey que, ao analisar as
raízes urbanas da crise do capitalismo, expõe o processo que levou a
milhares de cidadãos americanos sucumbirem à falta de alternativas de
moradia, impossibilitados de arcar com os sucessivos financiamentos
que os levaram de um dia para a noite à condição de sem-teto. 10
Harvey constata que a maximização dos rendimentos da terra, en-
quanto mercadoria fictícia que depende das expectativas especulativas,
teria afugentado “de Manhattan e do centro de Londres as famílias de
baixa renda, ou mesmo de renda moderada, com efeitos catastróficos
sobre as disparidades de classe e o bem-estar dos segmentos menos pri-
vilegiados da população.”(HARVEY, 2013, p. 70).
Isso porque a estratégia neoliberal de transferência de responsabili-
dades coletivas para os indivíduos, submete-os, assim, à riscos da dinâ-
mica do próprio jogo especulativo. O aumento da influência do mer-
cado imobiliário no PIB, enquanto valor especulado e estratégia de
seguridade social, pode levar ao alargamento do abismo social presente
em diversas cidades, e ainda a crises financeiras que expõe estes indiví-
duos ao completo desamparo:

Sem dúvida, os altos e baixos do mercado imobiliário estão inextricavel-


mente ligados aos fluxos financeiros especulativos, esses sucessos e fracas-
sos têm graves consequências para a macroeconomia em geral, bem como
todos os tipos de efeitos de externalidade sobre o esgotamento de recursos

indivíduo a partir de um espaço econômico a ser explorado, a moradia passou a ser tratada
como um ativo financeiro valioso.
10.  “A Crise do subprime foi uma crise financeira desencadeada em 24 de julho de 2007, a partir
da queda do índice Dow Jones motivada pela concessão de empréstimos hipotecários de alto
risco. Esta prática levou vários bancos para uma situação de insolvência, repercutindo forte-
mente sobre as bolsas de valores de todo o mundo.”

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e a degradação ambiental. Além disso, quanto maior a proporção dos mer-
cados imobiliários no PIB, mais significativa a conexão entre financiamen-
to e investimento no ambiente construído tornar-se-á uma fonte potencial
de macrocrises. No caso de países em desenvolvimento como a Tailândia
– onde, se o Relatório do Banco Mundial estiver certo, as hipotecas imobi-
liárias equivalem a apenas 10% do PIB -, uma quebra do mercado imobi-
liário poderia certamente contribuir, embora não tivesse o poder de cria-lo
por si só, para um desastre macroeconômico do tipo que ocorreu em 1997
e 1998, enquanto que nos Estados Unidos, onde a dívida hipotecária equi-
vale a quarenta por cento do PIB, essa possibilidade seria concreta, como
demonstrou a crise de 2007 a 2009. (HARVEY, 2013, p. 79).

No tocante à realidade dos países da América do Sul, onde a maior


parte dos seus habitantes vivem em casas autoconstruídas, o mecanis-
mo do microfinanciamento aparece como meio para solucionar o défi-
cit habitacional a partir do pensamento de que o problema das favelas,
onde há maior parte de indivíduos alvo desse tipo de crédito, está atre-
lado, quase que exclusivamente às finanças. Desse modo, atingir esses
indivíduos passou a ser uma das últimas fronteiras da expansão do neo-
liberalismo na direção da financeirização da moradia.
Para viabilizar esses negócios, as instituições financeiras que investem
nesse mercado costumam diversificar seu sistema de garantias, expandido
seus produtos, possibilitando “cossignatários, avaliação de renda futura, de-
duções na folha de pagamento, outros ativos financeiros (como seguro de
vida) e a “garantia social” (reputação dos mutuários ou a análise dos círcu-
los sociais aos quais pertencem.” (ROLNIK, 2015, p. 200). O microfinan-
ciamento “transforma territórios e populações estigmatizadas – por raça,
classe, gênero e condição da posse – em objeto de colonização e exploração
financeira, em nome da inclusão” (ROLNIK, 2015, p. 201), uma vez que:

O microfinanciamento habitacional pode ser entendido, em termos de fi-


nanceirização, em dois aspectos: primeiro, é um modelo que estabelece

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vínculos entre os moradores de favelas e os mercados de capitais nacionais
e, mais recentemente, internacionais. Em segundo lugar, é um modelo
que pressupões uma visão financeira da vida, na qual a casa é apresentada
como um ativo a ser investido, trocado e usado como garantia para alavan-
car financiamentos adicionais, a fim de financiar o consumo, o bem-estar
ou a atividade empreendedora. (ROLNIK, 2015, p. 201)

Assim, a compreensão da alteração das políticas de prestação habi-


tacional no Brasil, da função promovedora de bem-estar social, para a
função de agente financeiro por parte do Estado, ajuda a melhor com-
preender o fenômeno de expansão do setor imobiliário, consignado
com um dos motores da economia durantes os governos do partido
dos trabalhadores: A indústria da construção civil.

4. GUERRA DOS LUGARES E FINANCEIRIZAÇÃO DA MORADIA


Para entender esse cenário, é necessário voltar a atenção para algumas
críticas que Giuseppe Cocco teceu, em artigo intitulado “As favelas entre
o balaio de gatos e o mito da marginalidade”, à concepção difundida de
que a favela representa uma ausência da atuação do estado, jogando luz
àquilo que é conhecido como “transitoriedade permanente”, no sentido
de que “a precariedade se afirma e se reproduz como o modo de governo
dos pobres e, pois, como uma das principais formas urbanas que eles pro-
duzem e ao mesmo tempo vivem.” (COCCO, G., 2016, p. 27).
Tal afirmação decorre do entendimento que “o direito não se limita
a proibir ou aprovar, mas desempenha um papel fundamental de co-
dificação que passa pela atribuição de um nome às diferentes realida-
des sociais.” (COCCO, G., 2016, p. 27). Essa codificação e categorização
inerente ao direito, no âmbito do ambiente urbano, alicerça a atuação
do Estado na sua relação com os territórios de favela, por exemplo,
bem como marca a trajetória do conflito fundiário na cidade do rio de
janeiro:

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Nesse sentido, ainda em 1937, no Estado Novo, a promulgação do
“Código da Construção” decretou oficialmente a ilegalidade de corti-
ços e favelas, e ao mesmo tempo, foi “o primeiro texto jurídico que
usou explicitamente o termo ‘favela’. Afirmando a ilegalidade das fa-
velas, paradoxalmente as reconheceu oficialmente no espaço urbano e
político da cidade” (GONÇALVES, R., 2010, p. 83 apud COCCO, G.,
2016, p. 27).11
Para Raquel Rolnik, entretanto, é justamente na lacuna não preen-
chida pelo poder público na prestação de determinados serviços públi-
cos, que o Direito se apresenta com mais intensidade:

A ordem jurídica formal ou estatal nunca está totalmente ausente, mes-


mo no mais ilícito dos espaços. No mínimo se apresenta como referencial
e frequentemente mobilizada nas negociações que se estabelecem entre
moradores/ocupantes desses espaços e as autorizadas estatais. (ROLNIK,
1997, p. 131)

A despeito da ausência de oferta de serviços públicos e infraestrutu-


ra urbana, bem como dos problemas da baixa qualidade de moradia e
da irregularidade fundiária e urbanística, as favelas não podem ser vistas
como locais dos quais o Estado esteja ausente, deixando-as “abandona-
das à sua própria sorte”, mas antes como locais que o Estado, historica-
mente, tem procurado controlar através de suas leis, de seus aparelhos
administrativos e de seus recursos ideológicos, discursivos e simbólicos.
A ausência do Estado propriamente dita deve ser analiticamente
interpretada como uma forma determinada de agir, e não como uma

11.  Segundo o Censo 2010 do IBGE, o Brasil tinha cerca de 11,4 milhões de pessoas morando
em favelas e cerca de 12,2% delas (ou 1,4 milhão) residiam no Rio de Janeiro. Ocorre que a
análise desses dados não deve estar à luz da falsa premissa que o fenômeno dos assentamentos
que se situam à margem do ordenamento jurídico estatal, como um ambiente onde há uma
ausência da presença do Estado. Tal premissa entende que nesses assentamentos se constrói
uma legalidade que vem do interior dessas organizações sociais que não se relacionam com o
ordenamento estatal.

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mera ação nula sobre esses territórios. Ao deslocarmos nossa atenção
ao início da ocupação dos morros cariocas, em que imperou uma po-
lítica higienista de destruição dos cortiços e de consequente liberação
das áreas que ocupavam, mantendo a população próxima do mercado
de trabalho e reduzindo o peso dos fatores moradia e transporte sobre
o custo da mão de obra, percebe-se uma divisão nítida entre as classes
sociais e entre trabalho e moradia, oferecendo uma opção, então vista
como temporária, para que as populações pobres da cidade enfrentas-
sem a escassez de moradias e o aumento dos aluguéis.
No governo do Partido dos Trabalhadores, a crise do mensalão pro-
vocou uma mudança significativa: com a saída de José Dirceu da pasta
da casa civil, passando a ser chefiada por Dilma Rousseff, a sucessora do
governo a estratégia de crescimento econômico a partir da ampliação
do consumo dos trabalhadores passa a ser, então, a política dominante.
O programa minha casa minha vida apenas representou o ápice de uma
série de medidas que teve no consumo seu eixo principal.12
Entretanto, não tardou para os efeitos colaterais do programa co-
meçasse a aparecer. Ao deixar a decisão do local de construção das
unidades habitacionais na mão das incorporadoras e das empreiteiras,
a maximização do lucro imperou sob o bem estar dos compradores.
Terrenos em localizações mais baratas foram escolhidos para cons-
trução de o máximo de unidades possíveis, principalmente aquelas
destinadas às faixas mais baixas de financiamento, percebendo-se as-
sim um desmantelamento do aparato urbano até então associado às
políticas habitacionais. Essa dinâmica necessitou de uma homogenei-
zação na construção das unidades, visando a maximização dos lucros,
o que provoca como consequência uma inflexibilidade nos modos de

12.  Do ponto de vista do desenvolvimento econômico, o programa MCMV teve grande êxito,
repercutindo positivamente no saldo político que levou perpetuação dessa política na eleição da
sucessora do governo Lula. Ao salvar as empreiteiras e incorporadoras imobiliárias da crise, o
aumento das vendas do setor e de seus colaterais levou à recuperação do valor das ações dessas
empresas.

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vida e nos ciclos familiares, passando por cima das peculiaridades dos
moradores de favela.

De acordo com representantes de construtoras de grande porte entrevis-


tados na pesquisa realizada pelo LabCidade (Rede Cidade e Moradia), a
escala é uma condição para a lucratividade no contexto do programa: foi
afirmado que com taxas de retorno inferiores a 15%, só vale a pena cons-
truir empreendimentos de faixa 1 com mais de seiscentas unidades habita-
cionais. Embora apresentem impactos urbanísticos muitas vezes desastro-
sos, os grandes conjuntos possibilitam significativos ganhos de escala para
as construtoras, ampliando sua margem de lucro. Em algumas situações,
observa-se a aglomeração de diversos empreendimentos em uma mesma
região, formando verdadeiros bolsões de moradia popular, bastante seme-
lhantes às cidades-dormitório que foram constituídas pela produção habi-
tacional pública em décadas anteriores. (ROLNIK, 2015, p. 269)

A construção de unidades habitacionais visando atingir pessoas de


baixa renda atendeu a uma demanda criada com o anúncio da constru-
ção de grandes empreendimentos ligados à realização dos dois grandes
eventos esportivos que seriam sediados no Brasil. A realização da Copa
do Mundo de 2014 e dos Jogos Olímpicos de 2016, na cidade do Rio
de Janeiro, impactou de maneira determinante o espaço urbano nesse
período.

As intervenções urbanísticas planejadas para a cidade do Rio de Janeiro nos


preparativos para os megaeventos esportivos de 2014 e 2016 têm sinaliza-
do, portanto, um comportamento do poder público (principalmente o exe-
cutivo municipal) afinado ao planejamento urbano negocial, influenciado
pelo modelo das cidades globais/mundiais, o que irá acarretar profundas
mudanças no cotidiano da cidade. Apesar das melhorias em infraestrutura,
comunicação e circulação, o preço que se paga por morar em uma cidade
que se pretende global é alto, e já começa a pesar no dia a dia de alguns

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moradores da cidade. Os efeitos mais graves dessa grande reformulação
urbana seriam o aumento do custo de vida e a segregação da população de
baixa renda para a periferia (seja através da “gentrificação” ou “expulsão
branca”, seja por meio das políticas de remoção em curso). (KAZAN; PAI-
VA; MEDEIROS; JUSTINO, 2016, p. 118)

Essas intervenções compartilham do objetivo de remoção forçada


que, como já explicitado, marcou o período e foi a tônica de todos go-
vernos comprometidos com esses projetos. Ao não incorporar comuni-
dades informais e ocupações irregulares nos projetos urbanísticos, res-
tou claro que, além de não participarem democraticamente da gestão
da cidade, essas populações deveriam contentar-se com o modelo de
vida urbana que estivesse alinhado aos projetos desenvolvimentistas de
condução da economia, alinhado a estratégia neoliberal de transformar
a moradia em uma bem de consumo.
Dentre os casos emblemáticos, em particular na Cidade do Rio de
Janeiro, Alexandre Mendes e Jean Legroux, em artigo intitulado “BRT
Transoeste: conflitos urbanos e contradições espaciais na “cidade atra-
tiva””, demonstram os impactos social-espaciais provocados a partir da
análise dos casos de remoção integral de duas favelas da Zona Oeste:
Restinga e Vila Harmonia pela implementação daquele que foi anun-
ciado como um “legado olímpico” na área de mobilidade urbana:

A proposta de reassentamento para o conjunto habitacional (PMCMV)


sofreu uma forte resistência pelos moradores por uma série de motivos:
primeiro, não trata-se de uma doação sem ônus para o beneficiário, mas de
um financiamento habitacional através do qual o contratante se compro-
mete a pagar parcelas mensais para a aquisição final; segundo, a metragem
do apartamento (42m2) era bastante inferior às casas construídas pelos
moradores em décadas de investimento; terceiro, o tipo de contrato que
deveria ser realizado impõe severas limitações pelo período do financia-
mento (10 anos), como impedimento de venda, locação, empréstimo etc.;

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quarto, os conjuntos habitacionais eram distantes cerca de 30 km das casas
originais, construídos em uma área pouquíssimo dotada de infraestrutura;
quinto, o reassentamento significa o fim dos laços sociais, culturais e am-
bientais construídos naquele território, importando numa mudança drásti-
ca na forma à qual os moradores vivem a cidade; sexto, o reassentamento
é uma negação do trabalho e do empenho dos moradores na construção
não só de suas casas, mas de todo o espaço urbano produzido no local.
(LEGROUX; MENDES, 2016, p. 32)

O uso da violência policial também se configurou como uma das


marcas desse processo. A resistência de muitas comunidades ao “negó-
cio” proposto pelo poder público fez com que a atuação do aparato Es-
tatal, principalmente através do poder judiciário, irrompesse emergen-
cialmente todas as estratégias necessárias à retirada desses moradores.
Os movimentos de moradia frequentemente se deparam com aparato
militar violento, o que tensiona ainda mais o conflito, bem como faz
ressaltar a ausência de participação de democrática, ressaltando a im-
portância dos processos disruptivos que invadiram as ruas das metró-
poles brasileiras em 2013, contando com a ampla participação de mora-
dores ameaçados ou em processo de remoção.

5. CONSTRUÇÃO SOCIAL DO ESPAÇO NA COMUNIDADE DO


HORTO FLORESTAL
Apresentando a hipótese de um comum no pensamento de Lefebvre,
João Tonucci afirma que uma abordagem teórica formulada a partir do
pensamento das contribuições deste autor pode oferecer um caminho
para se conceber teoricamente o comum urbano como realidade e con-
ceito crítico que se iluminam mutuamente:

Defendo que uma abordagem teórica formulada a partir das contribuições


do filósofo e sociólogo francês Henri Lefebvre (1901-1991) pode oferecer

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uma ponte de diálogo e possível reconciliação entre essas dimensões e âm-
bitos apartados, e destarte um caminho para se conceber teoricamente o
comum urbano como realidade e conceito crítico que se iluminam mutua-
mente. Delineia-se aqui uma certa aposta: a de que a emergência nas últimas
décadas das teorias e das práticas do comum contribui para destacar a atuali-
dade do pensamento Lefebvriano, e de que tal pensamento tem vigor crítico
e robustez teórica potentes para aproximar o comum e o urbano, tal qual
sugerido por Kip (2015). Ademais, acredito ser válido afirmar, feitas todas as
ressalvas e contextualizações históricas necessárias, que existe uma teoria do
comum em Lefebvre, orientada por suas preocupações com a vida cotidiana,
o urbano e a produção do espaço. (TONUCCI, J., 2017, p. 139)

Seguindo essa linha de pensamento, a produção do espaço é tida


como um fenômeno recente. A necessidade de alteração da dinâmica
da reprodução das relações sociais capitalista no espaço, para produção
do espaço como terreno fértil de superação das suas contradições inter-
nas, se deu no âmbito do crescimento das forças produtivas do próprio
capital, principalmente no pós-segunda guerra:

O espaço abstrato, formal e quantificado, é simultaneamente homogêneo


(o que vai na direção da negação das diferenças, sem, contudo, jamais eli-
miná-las por completo), fragmentado (pulverizado pela propriedade priva-
da, funcionalmente segregado) e hierarquizado (organizado em termos de
relações centro-periferia de dominação). Ocupado, controlado e orientado
para a reprodução das relações sociais de produção, ele consolida uma ló-
gica burocrática de controle e repetição. Lefebvre (2013, p. 383) considera
que o capitalismo se consolidou não apenas incorporando o solo, ou in-
tegrando-se às formações sociais pré-capitalistas, mas também valendo-se
de todas as abstrações, como a ficção jurídica e legal da propriedade es-
tendida a todas aquelas diferenças que pareciam irredutíveis à apropriação
privada (a natureza, a terra, as energias vitais, os desejos e necessidades).
(TONUCCI, J., 2017, p. 157)

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Ocorre, assim, “uma redobrada importância contemporânea con-
ferida à renda da terra, aos recursos naturais, à produção agrícola, à
propriedade privada do solo, e, sobretudo, do processo de urbanização
para a sobrevivência do capitalismo.” (TONUCCI, J., 2017, p. 163). Os
recursos e bens comuns materiais situados no ambiente urbano, consi-
derando a fase rentista do capitalismo, passam a constituírem-se como
comodities e fronteiras ao avanço da expropriação.
Na contramão desse processo, os movimentos sociais urbanos, a
luta pelo direito à cidade e pela reforma urbana, vão constituir aquilo
que Lefebvre denominou de reconstrução do espaço social “de baixo
pra cima”. Em complementação à luta pela autogestão das unidades
produtivas, inaugura-se a importância de radicalização da democrati-
zação da produção do próprio espaço urbano (comum urbano), con-
ferindo maior autonomia e poder de emancipação aos indivíduos ali
situados.
Nesse sentido, o atual grau elevado da estratificação e segregação
social do espaço metropolitano do Rio de Janeiro é apenas a expressão
mais acabada e um processo de segregação das classes populares que
vem se desenvolvendo no Rio há bastante tempo. (ABREU, 1988) 13 O
Jardim Botânico, entretanto, local onde hoje se localiza a comunidade
do Horto Florestal, desde o início do século XIX, com o advento da
chegada da família real à cidade do Rio de Janeiro e suas consequentes
políticas estruturais, já vinha protagonizando significativas reformas
urbanísticas, como alvo de políticas públicas habitacionais que atendes-
sem as demandas das unidades industriais da região.

13.  A área onde se localiza a comunidade do Horto Florestal se confunde com esse processo.
A própria urbanização da cidade do Rio de Janeiro, que foi definida a partir desta estratificação
espacial pautada na dicotomia zona sul x subúrbio, contribui para os conflitos nessa região.
Até o início do Séc. XX, a cidade do Rio de Janeiro ainda não havia desenvolvido sua atividade
industrial, era afetada por surtos de industrialização que até à época não conseguiam superar
a dependência do setor agrário e as condições de infraestrutura, como mobilidade urbana e
condições sanitárias nas vilas dos trabalhadores, que impediam o desenvolvimento do setor
industrial.

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Após um longo período de estabilidade da comunidade, em uma
convivência compartilhada entre condomínios de luxo e instituições
como o SERPRO, FURNAS, CEDAE, IMPA, entre outros, a União, na
década de 1980, iniciou um processo de reintegração de posse em face
de moradores da comunidade, distribuindo 215 (duzentas e quinze)
ações sob o argumento de que os mesmos estariam utilizando de forma
privada bem de natureza pública. 14
Esse contexto fez com que a União iniciasse um processo de diálogo
com a comunidade, requerendo a suspensão das ações e, através da Se-
cretaria de Patrimônio - SPU/RJ, celebrou um convênio com a Univer-
sidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ para elaboração de um plano
de regularização fundiária e urbanística.
Entretanto, no desenvolvimento de projeto de regularização fun-
diária, mesmo com reiterados pedidos de suspensão das ações de re-
integração de posse, alguns juízos de primeira instância da Justiça Fe-
deral do Rio de Janeiro indeferiram as manifestações da AGU e dos
moradores, determinando a expedição de novos mandados de reinte-
gração de posse e mantendo a execução nas ações dos moradores que
haviam sido contemplados com o projeto de regularização, desconsi-
derando a política pública de composição do conflito, caminhando de
encontro à vontade das partes envolvidas, afastando a aplicação dos
diversos instrumentos de regularização fundiária presentes na legisla-
ção em vigor.
Não obstante, iniciou-se no Tribunal de Contas de União um proce-
dimento de apuração de um alegado mau uso do bem público, a partir
de denúncia realizada pela Associação de Moradores e Amigos do Jar-
dim Botânico – AMAJB, que fez com que a corte de contas proferisse

14.  A maior parte dessas ações tiveram o provimento deferido no final da década de 1990. En-
tretanto, a União não deu seguimento à execução, vez que houve uma grande alteração na
conjuntura jurídico – político, sobretudo com a promulgação da CRFB/88, Estatuto da Cidade,
CC/2002, Lei n. 11481/2007 e Lei n. 11977/2009, que consagram o direito fundamental à mo-
radia através de novos instrumentos de regularização fundiária plena.

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decisão no Relatório no TC 032.772/2010-6 e Acórdão n° 2380/2012
– TCU anulando o procedimento administrativo.
Em 09/11/2012, sob o argumento de que o TCU estaria ofendendo o
direito líquido e certo dos moradores do Horto de terem acesso a política
de regularização fundiária fomentada pela União Federal e consagrada na
legislação constitucional e infraconstitucional, e que o ato viola o princí-
pio da razoabilidade, o qual reflete a proporcionalidade entre os meios
de que se utiliza a administração e os fins que ela tem que alcançar, os
moradores do Horto Florestal, através de sua Associação de Moradores
impetraram Mandado de Segurança no STF, sob o n° 31707.
A relatoria do Ministro Luís Roberto Barroso que acabou por de-
negar a segurança, fundamentou a decisão segundo o entendimento
de que havia(i) Ilegitimidade e interesse da associação de moradores
impetrante, quanto à intervenção do TCU no projeto de regularização
fundiária; e (ii) Ausência de violação do contraditório e ampla defesa,
uma vez que os moradores, pessoalmente ou através de sua associação
de moradores, não tem direito de manifestação em procedimentos ad-
ministrativos que tramitam na corte de contas.
No dia 07 de maio de 2013 a comissão indicada pelo TCU na deci-
são no Relatório no TC 032.772/2010-6 e Acórdão n° 2380/2012 – TCU
que anulou o procedimento administrativo, composta por representantes
do Ministério do Meio Ambiente, Ministério do Planejamento, IPHAN,
SPU, AGU e o próprio IPJB para delimitação do perímetro de interesse
deste IPJB e remoção de todas as moradias que estiverem inseridas nesse
limite, apresentou parecer final determinando a remoção de 520 famílias
(80% da comunidade), ou seja, mais de duas mil pessoas. A comissão não
apresentou justificativa sobre o novo perímetro nem mesmo a razão de
ter desqualificado os termos do projeto elaborado pela SPU/RJ e UFRJ.
Ressalta-se que não foi apresentada qualquer alternativa de moradia.
A partir desta recomendação do Tribunal de Contas da União, o po-
der público mudou de posição. Sob o argumento de que o IPJB tem que
ampliar as suas atividades, além do suposto dano ambiental causado pela

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presença das moradias, a comunidade vem convivendo com o constante
medo de remoções iminentes, caracterizadas, muitas vezes, por um pro-
cesso truculento e sem observar a disposição legal à alternativa de moradia.
O caso mais recente, entre as várias famílias que já receberam ordem
de despejo, ocorreu no dia 07 de novembro de 2016. Marcelo de Souza
e sua família tiveram sua casa removida em um processo que envolveu
uma barreira entre a tropa de choque e a casa da família, organizada
pelos moradores da comunidade, além de bombas de gás lacrimogênio
e balas de borracha que foram lançadas na direção da multidão demo-
radores e na residência, para forçar a retirada. 15

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O curso dessa pesquisa, que se iniciou em uma assistência jurídica, foi
tomado por sentimentos de experiências vividas de perto por todos
aqueles que compartilharam a convivência na cidade do Rio de Janeiro
nos últimos anos e puderam assistir e participar do caldeirão de enfren-
tamentos e processos disruptivos que irromperão as ruas desde o início
do anúncio dos grandes eventos esportivos e culminaram nas manifes-
tações que ficaram conhecidas como Jornadas de Junho de 2013.
Essas atividades nos ajudaram a compreender que o bem pelo qual
os moradores dessa comunidade, alinhado a outras favelas, estavam
engajados girava em torno da autonomia e do modo de vida que eles
conquistaram e construíram ao longo da trajetória de suas famílias. As
raízes firmadas naquelas localidades impediam que a troca pelo finan-
ciamento de uma casa em outra localidade fosse encarada como uma

15.  Dentre os moradores presentes que organizaram a resistência à remoção truculenta e con-
siderada ilegal, Emerson de Souza destaca que a ação do poder público não abriu caminhos de
diálogo, que a mudança de posição quanto a regularização fundiária iniciou também ações vio-
lentas de amedrontamento contra a comunidade. Outra moradora que presenciou a remoção
da família de Marcelo de Souza, Flávia Inácio Ferreira destaca a ausência de alternativa de mo-
radia por parte do poder público para os moradores que também estão com processos ativos
aguardando o mandado de reintegração de posse:

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alternativa contemplativa. Essa forma de lutar e permanecer no terri-
tório autoconstruído por esses moradores vai ao encontro e aparece
como o eixo permanente das lutas que se travam na “fábrica difusa”
que o ambiente urbano se transformou.
A luta conjunta desses moradores de favelas revela uma organiza-
ção similar às organizações sindicais, perfeitamente adaptadas às trans-
formações que o capitalismo contemporâneo engendrou no modo de
viver dos cidadãos dessas metrópoles. Percebe-se que é na fronteira da
expropriação do direito à moradia, concedido como uma mercadoria,
que o fazer comum se apresenta com vigor ao aludido processo de su-
jeição ao qual se refere Michael Foucault.

Mas eles não querem nada disso! Querem produzir o urbano a partir de
formas de sociabilidade autônomas, horizontais e democráticas. E, para
isso, é preciso conquistar mais direitos, serviços urbanos, espaços, liberda-
des e se apropriar de muito mais riqueza do que a promessa de crescimen-
to gradual oferece. (MENDES, 2019, p. 265).

Ao implementar em sua rotina todas essas articulações e mobiliza-


ções relatadas, desde o campo jurídico e uma proximidade com seus
representantes jurídicos em suas assembleias, até as articulações em ní-
vel federal partindo de seus próprios moradores, a comunidade faz com
que modos de vida alternativo às expropriações que os “Padrões Fifa”
promovem por eles produzidos, possam ser enxergados no horizonte
próximo, oxigenando e fortalecendo a possibilidade de uma abertura
política antagonista aos sistema neoliberal.
Nesse sentido, a experimentação da comunidade do Horto de pro-
duzir uma resistência do comum, não só resulta numa luta contra as
formas de sujeição, como faz emergir o direito a cidade como uma “po-
tência de criação, de afirmação da capacidade de apropriação de múlti-
plos espaços e tempos, que correspondem à riqueza de uma vida urba-
na não subordinada a uma continuidade programada”. (Mendes, 2019,

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p. 239). Ao se recusar a aderirem ao projeto urbanístico que marcou a
política habitacional do último período de remoções da cidade do Rio
de Janeiro, a comunidade fez ranger a dicotomia público-privado, que
em uma articulação perversa, capturam suas vidas.
O fato é que a mudança ocorrida no interior do capitalismo contem-
porâneo fez com que as políticas habitacionais, junto das outras políti-
cas de seguridade social, servissem de fronteira da expansão da lógica
capitalista de expropriação do comum produzido pela experiência do
homem em sociedade. Nesse sentido, o Direito à Cidade encontra nos
territórios do comum o veículo pelo qual é possível efetivar uma gestão
democrática desses ambientes urbanos, emergindo uma subjetividade e
modos de vida alternativos aos determinados pelo Estado-Mercado.
Os territórios de favela, submetidos a uma tolerância controlada
pelo poder público, ora possibilitando a redução dos gastos com deslo-
camento de economizando tempo, agora passaram a servir de mercado
para venda de financiamento habitacional. A falta de estrutura urbana
nos locais onde foram construídos os empreendimentos do programa
Minha Casa Minha Vida revelam a prioridade da mercadoria sob a so-
lução dos problemas habitacionais. A experiência do Horto Florestal é
nítida ao demonstrar que as soluções de permanência dos territórios
onde já há a concretização de um modo de vida é completamente ne-
gligenciada a fim de atender às políticas neoliberais.

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TONUCCI FILHO, João Bosco Moura. Comum urbano [manuscrito]: a cidade além do
público e do privado / João Bosco Moura Tonucci Filho. 2017. Tese (Doutorado em
Geografia) – Instituto de Geociências, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo
Horizonte, 2017.

APÊNDICE A

Fotografia 1 - Quarto mutirão de orientação jurídica na


comunidade do Horto - 13 de maio de 2017

Fonte: O autor

Fotografia 2 - Caminhada pela comunidade do Horto - dia 02 de setembro de 2017

Fonte: O autor

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Fotografia 3 - Assembleia de moradores – Dia 02 de setembro de 2017

Fonte: O autor

Fotografia 4 - Assembleia de moradores - Dia 02 de setembro de 2017

Fonte: O autor

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Fotografia 5 - Reunião do Conselho Popular – Dia 11 de setembro de 2017

Fonte: O autor

Fotografia 6 - Assembleia de moradores - 13 de setembro de 2017

Fonte: O autor

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TOQUE DE QUEDA: SENTINDO PÓS-
POLITICAS, SENTINDO OS SUBCOMUNS
Silvia Posocco
Trad. Carolina Salomão

Que campo de batalha?! Onde você acha que está? Ainda na guerra?
Don Julio, toda essa violência, é contagiosa”. – Toque de Queda
 
Meu ponto de partida nesse ensaio…é que a cidade não está morta.
(Levenson, 2011, 25).

Introdução
Em “Living Guatemala City, 1930 – 2000”, Deborah Levenson (2011,
25) observa que “é fácil encarar a Cidade da Guatemala como um de-
sastre completo, outra favela em rápida decadência no ‘planeta das fa-
velas’” - aqui referindo-se ao livro homônimo de Mike Davis, Planet
of Slums (Davis, 2006). Levenson prossegue argumentando: “[meu]
ponto de partida..., no entanto, é que a cidade não está morta” (ibid).
A vivacidade da cidade evocada por Levenson através das narrativas
oferecidas por seus habitantes é um tanto complicada no filme Toque
de Queda (Curfew, 2011), onde um bairro da cidade - uma colonia - é
considerada como estando sob um cerco zumbi. O ponto de partida
em Toque de Queda é que o assentamento é cercado por hordas de

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mortos-vivos sempre invasores e sedentos de sangue: os mortos-vivos
infectados com o vírus da violência1.
Toque de Queda é amplamente considerado o primeiro filme do gê-
nero zumbi realizado na Guatemala (García, 2011) - filmes de zumbis
têm destacada tradição na América Latina, notadamente dentro do que
Edwards e Vasconcelos chamaram de sensibilidade “gótica tropical” na
literatura e na cultura (Edwards e Vasconcelos, 2016). O filme se passa
em Villas de la Esperanza, uma colonia na Cidade da Guatemala. Na
Guatemala, colonia é um termo para vizinhança. Barrio também é usa-
do para descrever vizinhança, mas barrios tendem a ser regiões mais
antigas, enquanto colonias costumam ser empreendimentos mais recen-
tes, criados através de iniciativas específicas de planejamento urbano
(Levenson, 2013). Neste condomínio fechado de famílias de classe mé-
dia, a vida se desenrola dentro de um perímetro cercado que é vigiado
por dois seguranças particulares incompetentes alocados em la garita
- o posto de controle na entrada do assentamento. Aparentemente, os
vizinhos se conhecem: Daniel, um jovem professor e sua esposa, Rita,
uma enfermeira; Julio, um empresário, com sua esposa e três filhos,
incluindo o adolescente Virgílio; Ramón, viúvo; Mama Checha, uma
mulher idosa que vive com seu filho e filha adultos; El Chino, um bêba-
do; e um grupo de jovens rebeldes que insistem em tocar música alta de
heavy metal nas ruas, para aborrecimento de alguns de seus vizinhos.
Villas de la Esperanza é uma colonia comum, onde as tensões, intimida-
des e indiscrições da vida comunitária são interrompidas pelo assassi-
nato do cão de Julio, aparentemente pelas mãos de um zumbi, que diz

1.  Agradecimentos: Agradeço a Secil Oswaldo de León por me dar sua cópia de Toque de Queda
e por sua contribuição especializada sobre a nova cinematografia da Guatemala. Uma versão
deste texto foi apresentada no painel “Resisting Erasure: Historical Memory and Cultural Pro-
duction in Postwar Central America” na Conferência Anual da Latin American Studies Associa-
tion (LASA), na cidade de Nova York, em 2016. Sou grata à Rita Palacios, Alicia Ivonne Estrada,
Sophie Lavoie e Norma Stolz Chinchilla, pelo seu generoso engajamento. Sou grata também
aos organizadores da conferência “Necropolitics, Biopower and the Crisis of Globalisation” rea-
lizada na Birkbeck, Universidade de Londres, em 2018 – especialmente a Giuseppe Cocco e
Raluca Soreanu - e Stephen Frosh, que gentilmente revisou um rascunho subsequente.

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vir do “el otro lado de esa montaña” - do outro lado dessa montanha. O
medo e a paranóia logo tomam conta da colonia e, embora haja reações
diferentes à morte do cão e à perspectiva de uma invasão de zumbis, os
vizinhos rapidamente se organizam em grupos para patrulhar os perí-
metros do condomínio à noite. Alguns, como Daniel, se juntam com
muita relutância. Para ele, a violência só pode gerar violência, especial-
mente nessa conjuntura, quando a violência é explicitamente caracteri-
zada como uma doença viral e extremamente contagiosa. “Don Julio,
você acha que ainda está na guerra?!” - grita um vizinho para Don Julio,
enquanto ele corre em volta do assentamento tentando montar uma
patrulha noturna um tanto caótica. A organização do grupo de auto-
defesa é, na verdade, modelada a partir de uma imagem mais antiga de
violência, imediatamente sugestiva para aqueles que viveram o conflito
guatemalteco (1960-1996). O grupo de autodefesa se assemelha à forma
como as Guerrilhas marxistas eram organizadas em pequenos grupos
de seis (Posocco, 2014). Esse modelo, no entanto, é inerentemente am-
bíguo e pode ser também uma referência à forma como as Patrulhas de
Autodefesa Civil (Patrullas de Autodefesa Civil), comumente conhecida
como as PACs, foram estruturadas durante a militarização capilar das
comunidades rurais ocorrida durante o conflito. Guerrilheiros ou PAC,
guerrilleros ou patrulleros? A questão permanece incerta, pois as figuras
históricas do guerrilheiro e do patrullero são confusas neste novo cená-
rio violento, no qual a evidente inadequação dos modelos justiceiros de
securitização logo se torna aparente.
O medo dos zumbis pode estar unindo a comunidade contra um
novo inimigo comum, mas logo se percebe que os indivíduos da colonia
estão profundamente atomizados e que os vizinhos não se conhecem
tão bem. Mesmo dentro das famílias, os parentes desconhecem o pas-
sado um do outro: Julio, sem o conhecimento de sua esposa e filhos,
esteve na guerrilha durante a guerra. El Chino, o bêbado, era um sol-
dado do Exército. Rita, a leal esposa de Daniel, tem um passado rebel-
de e, de repente, um caso com a filha de Dona Checha parece ser uma

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possibilidade concreta. Nesta socialidade profundamente atomizada e
parcial estruturada em torno dos indivíduos e de seus segredos, uma
resposta violenta à violência - sugere o filme - só pode espalhar mais
violência viralmente. Gradualmente, torna-se aparente que o contágio
é generalizado porque a violência já está dentro do condomínio fechado
- e não fora dele: “o verdadeiro perigo está dentro”. O ditado “o verda-
deiro perigo que está dentro” corresponde diretamente à lógica da con-
tra-insurgência genocida, notadamente a Doutrina de Segurança Nacio-
nal implantada pelo Exército da Guatemala, centrada na eliminação de
“inimigos internos” durante o conflito na Guatemala (CEH, 1999). Em
Villas de La Esperanza, no entanto, o significado da frase é levemente
distorcido, na medida em que os incidentes de violência na comunidade
demonstram, um por um, não serem responsabilidade de intrusos vio-
lentos, mas sim de membros da comunidade sem qualquer orientação
ou motivo político óbvio. Por sua vez, embora existam zumbis à espreita
nas sombras e cruzando as cercas para entrar na colonia clandestinamen-
te, suas intenções também não são claras. É certo que os zumbis matam
um dos guardas de segurança, mas eles são realmente violentos? Eles
são maus? Nós e os habitantes da Villas de la Esperanza também enten-
demos errado? Os zumbis poderiam estar agindo em legítima defesa?
A polícia, que se recusou a intervir devido à falta de recursos e outras
demandas aparentemente mais prementes, finalmente aparece e depois
de uma noite de guerra aberta, ao amanhecer, a colonia é como uma
zona de guerra, com corpos sem vida espalhados pelas ruas. Durante
a noite, os zumbis são massacrados pelas forças de segurança do esta-
do e a ordem é restaurada. Pelo rádio, o chefe de polícia anuncia: mul-
tiples asesinatos, posiblemente guerra de pandillas’ - ‘múltiplos assassinatos,
possivelmente guerra de gangues’. O encobrimento já está em vigor: a
narrativa oficial será que a carnificina foi o resultado de um confronto
comum entre gangues. Os zumbis são os danos colaterais e marcas de
abjeção descartável, junto com a maioria dos habitantes que também
foram mortos, na recém-protegida colonia Villas de la Esperanza.

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Política Residual
 
Corpos racializados e sexuados carregam mais que suas marcas somáticas. É as-
sim como, e por que, corpos importam tanto…O problema é que corpos também se
espalham: eles se separam úmidos sob o peso de significação que devem carregar, e
transbordam e apagam as mensagens inscritas neles, bagunçando qualquer limpe-
za, categorias unificadas (Nelson 1999, 209).

Uma narrativa chave subjacente à trama do filme Toque de Queda apresenta


a violência que caracteriza o presente como estruturada em torno de um
modo de transmissão viral. A violência é incorporada - marca fisicamente
os afetados - e se espalha através do contágio. Nesse contexto, os quadros
que organizaram a violência no passado, especialmente durante o conflito
guatemalteco (1960 - 1996), não fazem mais sentido. Eles são obsoletos e
pertencem a um tempo ou época anterior. Por que organizar em grupos?
Por que estruturar a socialidade de acordo com valores de solidariedade
e cooperação - como sugere Don Julio, o ex-guerrilheiro - quando a vio-
lência se espalha como um vírus, independentemente de configurações
sociais, políticas e éticas, alinhamentos e distinções? Essa narrativa coloca
diretamente o conflito guatemalteco no passado; arquiva o conflito, ape-
sar de, como se sabe, o corpo político guatemalteco ainda ter a intenção
de calcular e lidar com seu legado no presente (Nelson 2009) e ainda lite-
ralmente “contar os mortos” (Nelson 2015). Um exemplo da prática con-
temporânea de contar os mortos é o trabalho que vem sendo realizado no
cemitério de La Verbena, na Zona 7, na Cidade da Guatemala, desde 2010.
Aqui, equipes de antropólogos forenses exumam sepulturas - grandes va-
las comuns marcadas com XX. A marcação ‘XX’ representa os mortos não
identificados que foram jogados no mesmo ossário na grande extensão
do cemitério reservada para os enterros XX2. No entanto, o filme avan-

2.  Ver o ensaio fotográfico de James Rodriguez http://blog.mimundo.org/2010/09/exhuma-


tions-at-la-verbena-the-time-has-come-with-this-evidence-to-seek-justice/

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ça a história em direção a um presente distópico que, ao mesmo tempo,
denota imaginações históricas de conflito como anacrônicas, e inaugura
e produz performativamente a vivacidade de um futuro de guerra total
contra os mortos-vivos.
Toque de Queda parece sugerir que a violência é agora fundamental-
mente pós-ideológica e pós-política. As teorizações da condição pós-po-
lítica (Wilson e Swyngedouw, 2014) enfatizaram a despolitização da po-
lítica e a repressão e desaparecimento de antagonismos (Mouffe 2005),
a redução da lógica política para restringir racionalidades políticas e a
convergência entre pós-política e pós-democracia (Rancière 1999), ou
a exclusão do político com suas erupções simultâneas de violência (Zi-
zek 1999). Como Wilson e Swyngedouw argumentaram, essas análises
vinculam a pós-política a mecanismos de repressão, negação e exclusão,
respectivamente (2014, 14), oferecendo diferentes relatos de esvazia-
mento da política. Essas dinâmicas falam muito diretamente aos temas
de Toque de Queda, embora o filme leve isso adiante, conferindo à vio-
lência uma condição pós-ideológica e pós-política especificamente em
termos de transmissão viral.
Nesse sentido, é importante conectar o filme ao campo mais amplo
da produção cultural no pós-guerra e, correlativamente, refletir sobre
as maneiras pelas quais mudanças históricas podem ser invocadas por
e através de mudanças mais amplas na estética e na sensibilidade. Um
senso semelhante de desorientação pós-ideológica em relação às distin-
ções e configurações políticas do passado - notadamente as do período
da Guerra Fria e pré-Bretton Woods - pode ser discernido no gênero
literário ‘neoliberal noir’ (Kokotovic 2006), onde a violência é muitas
vezes considerada divorciada dos quadros ideológicos tradicionais. Seu
caráter criminoso é enfatizado, vinculando assim a violência pós-ideo-
lógica a uma ‘estética do cinismo’ emergente (Caña Jiménez 2014, 220).
Como Caña Jiménez perceptivamente argumentou, a estética do cinis-
mo geralmente se cruza com a ‘estética do nojo’, ou seja, a pós-ideolo-
gia se conecta à produção de modalidades afetivas de repulsa visceral.

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Os escritores guatemaltecos estão na vanguarda desse gênero literário
distópico, com obras de Maurice Echeverría, notadamente Diccionario
esoterico (2006), ilustrando bem a convergência entre violência, a disso-
lução dos ancoradouros ideológicos e a proliferação de estados afetivos
de repugnância (Caña Jiménez 2014, 2016). A pós-política e a distopia
parecem intimamente entrelaçadas, pois suscitam dispersões estéticas
e sensoriais. No entanto, pode-se argumentar que não se trata de uma
carnificina generalizada. Os corpos dispersos na Guatemala, como Nel-
son (1999) aponta convincentemente, nunca estão muito distantes das
histórias situadas de racismo, pilhagem e genocídio. Se as intensidades
afetivas e sensoriais pós-políticas podem ser desatreladas dessas dinâmi-
cas, permanece uma questão em aberto.

Necropolíticas Queer e dos subcomuns


Nessa situação, como pode ser invocado ou evocado um senso da polí-
tica da viralidade pós-política da violência? Segundo Sampson (2012), a
viralidade da violência fala com um conjunto mais amplo de ansieda-
des contemporâneas, em um contexto global em que a disseminação
global de doenças, corrupção e insegurança por meio de redes globa-
lizadas não pode ser tratada adequadamente por estados-nação cada
vez mais porosos. Sampson enfatiza a mistura inebriante de abjeção e
desapropriação da condição contemporânea, juntamente com as no-
vas oportunidades que se apresentam na ‘era do contágio’ (2012, 3).
A “era do contágio” é um espaço para a encenação de “relacionalida-
des contagiosas” sem precedentes - como, por exemplo, as conectivi-
dades parciais entre os moradores da colonia Villas de La Esperanza e
os zumbis de “el otro lado da montanha” . Tais relacionalidades existem
como potencialidades, mas são fundamentalmente repudiadas, trunca-
das e lançadas no domínio da impossibilidade no filme. Afinal, no dia
seguinte, os zumbis foram exterminados ao lado da maioria dos ha-
bitantes da colonia, já que poucos parecem ter sobrevivido ilesos. Em

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Virality: Teoria do Contágio na Era das Redes, Sampson propõe um en-
quadramento não-representacional da ‘viralidade’ que pode contribuir
para “contornar propositadamente um método analítico que enfatiza
a importância das inscrições e significados culturais atribuídos aos ob-
jetos à frente das relações reais que objetos tem um com outro... Cer-
tamente, viralidade não é metáfora. ‘Trata-se das forças do encontro rela-
cional no campo social’” (Sampson 2012, 4, grifo meu). Em uma iteração
distinta e ainda relacionada, Love (2010) apresenta um modo de leitura
fino e “descritivo”, para que, ao “recusar modos de leitura sintomáti-
cos e paranóicos, os críticos possam ver ‘fantasmas como presenças,
não ausências’; mudar a óptica da profundidade para a superfície sig-
nificaria deixar “fantasmas serem fantasmas, em vez de dizer do que
são fantasmas” (Love 2010, 383). Esses modos relacionais e descritivos
de sentir o social e o político sugerem que, deixando os zumbis serem
zumbis, em vez de transformá-los rapidamente em metáforas para su-
balternidade, abjeção ou alteridade, podem surgir linhas para encon-
tros relacionais. Essas abordagens pretendem contrariar tradições crí-
ticas que, baseando-se no que Paul Ricoeur chamou de “hermenêutica
da suspeita” - e genealogias da teorização devidas a Marx, Nietzsche e
Freud - procuraram interpretar, decifrar e desvendar a superfície dos
textos. Para Ricoeur ‘[…], o significado literal ou superficial de um tex-
to é um esforço para ocultar os interesses políticos que são atendidos
pelo texto.O objetivo da interpretação é retirar a ocultação, desmasca-
rando esses interesses ‘(Ricoeur 1970, 33). Por outro lado, uma leitu-
ra plana, fina e descritiva (Love 2010) ou focada em ‘relacionalidades
contagiosas’ (Sampson 2012) visa oferecer vislumbres das políticas re-
siduais ligadas a essas formas culturais, permanecendo na superfície
dos textos e imersas na relacionalidade das coisas.
Impedir a hermenêutica da suspeita em favor de uma planicidade
interpretativa reorienta a atenção para as “relações reais” entre os ob-
jetos, mesmo quando essas relações são transitórias e frágeis. Os habi-
tantes da colonia Villas de la Esperanza e os zumbis nunca encontram

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uma causa comum, mas a viralidade e o contágio geram uma proximi-
dade que é plenamente percebida quando os habitantes começam a se
transformar em zumbis, seus corpos adquirindo progressivamente as
marcas dos mortos-vivos. Essa situação requer uma sintonização com
um sensorium distinto de proximidades rejeitadas, encontros perdidos
e modos de vivacidade morta (Stewart 2010, 34). Em outras palavras,
essa hermenêutica plana orienta o sensorium em direção ao horizon-
te pós-político e à sucessão de ‘quase-eventos’ (Povinelli 2011) que se
desdobram como potencialidade. Quase-eventos “nem acontecem nem
não acontecem” (Povinelli 2011, 13). No entanto, eles são concretos e
de consequência política. Por sua vez, essas socialidades de contágio
são sustentadas por formas do que Tim Dean chamou - com referência
às socialidades do barebacking3 anti-homonormativo - ‘intimidade ilimi-
tada’ (2009) que existe no domínio da possibilidade na zona de contato
em torno do perímetro de Villas de la Esperanza, pelo menos até a re-
pressão e aniquilação exercida pelas forças de segurança.
Como Jin Haritaworn et al. (2014) argumentaram, as análises da ne-
cropolítica queer procuram se conectar e entender o complexo entre-
laçamento de vida e morte que se manifesta de maneira espetacular e
mundana na co-presença e proximidade entre os ricos e os despossuí-
dos, aqueles considerados a ter acesso irrestrito a recursos e direitos
materiais e aqueles considerados redundantes, criminais ou moralmen-
te corruptos. A necropolítica queer reorienta a atenção para a co-pre-
sença de ‘sujeitos queer convidados para a vida e populações queerica-
mente abjetas marcadas para morte’ (Haritaworn et al. 2014: 2). Como
Puar argumentou, o que tem preocupado a análise necropolítica queer
tem sido as ‘diferenças entre sujeitos queer que estão sendo dobrados

3.  Em “Unlimited intimacy: reflections on barebacking culture” Tim Dean se debruça sobre a práti-
ca intencional e consensual de sexo sem proteção entre homens. Ao abordar essa subcultura e
prática sexual, o autor propõe uma análise acerca de questões como intimidade, desejo, limites
e conexões. Nesse sentido, a prática de barebacking refere-se a uma socialidade que conduz a
uma intimidade ilimitada que vai além da sexualidade.

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(de volta) na vida e as condições queers racializadas que emergem atra-
vés da nomeação de populações’, geralmente aquelas marcadas para
morte ‘’ (Puar 2007 36). Toque de Queda nega as proximidades queers e
a política viral das socialidades e intimidades necropolíticas que se de-
senrolam nos limites da colonia. Essas são as proximidades e intimida-
des virais e necropolíticas dos subcomuns. Em suas reflexões sobre as
teorias e práxis dos subcomuns, Fred Moten e Stefano Harney (2013) se
basearam na tradição radical negra de explorar o potencial inerente a
conceitos como ‘estudar’, ‘dívida’, ‘cercar’, ‘planejar’, ‘logística’ e ‘em-
barcados’ para traçar caminhos fugitivos e linhas de fuga no e contra o
atual horizonte pós-político. Os subcomuns são modos de pensar, fa-
zer e relacionar que se fundem nos e através dos modos de auto-orga-
nização e encontros espontâneos. Moten e Harney observam que, ‘na
guerra sem fim, guerra sem batalhas, apenas a capacidade de continuar
lutando, apenas a logística importa’ ‘(2103: 88). No entanto, a criação
de populações logísticas por meio de lógicas de containerização ‘não
pode conter o que havia sido relegado para o porão’ (2013, 92). Esse
movimento de ‘nada’, isto é, dos navios que são ao mesmo tempo mer-
cadoria, nada e pura carne, marca a intensa articulação de socialidades
e relacionalidades do porão (ibid, 97-99) e o trabalho de linhas que se
desdobram em espaços de confinamento e geografias de contenção.
Villas de la Esperanza oferece uma imagem de ‘política cercada’,
que se baseia, como argumentaram Moten e Harney, ‘na materialidade
dura do irreal [para] nos convencer de que estamos cercados, [...] que
devemos permanecer na emergência, em base permanente, resolvida,
determinada, protegendo nada além de um direito ilusório ao que não
temos, que o colono assume para e como o bem comum (Moten e Har-
ney 2013, 18). A ‘política cercada’ em Villas de la Esperanza aponta para
a aparente inevitabilidade da cerca perimetral que mantém os zumbis
afastados, além de oferecer uma justificativa para o violento controle
da relacionalidade dos zumbis por meio do extermínio. Contra esse es-
treitamento da imaginação política e do sensorium, Moten e Harney

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invocam uma política de exposição à energia anti-social que eles cha-
mam de ‘radioativa’ e, através de Toque de Queda, sugeri que poderia
ser encarado como viral. Nestas socialidades de contágio e viralidades
da violência, a transmissão e a relação são saídas à definição política do
colono, da “política de cerco” e da política sob o cerco: são maneiras de
se conectar com as políticas residuais da condição pós-política. Toque de
Queda capta a potencialidade da intimidade ilimitada que se desdobra
na e através da pele por meio da transmissão viral da violência e da
disseminação das marcas dos mortos-vivos. Apesar da rejeição de uma
teoria e método dos subcomuns, sentir esses resíduos abre a política da
condição pós-política e as relacionalidades excluídas que a subtendem.

Referências
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Filmes
1.Toque de Queda [Curfew] (2011)
Directors: Ray Figueroa, Elías Jiménez Trachtenberg
Writer: Ray Figueroa
http://www.imdb.com/title/tt1909357/?ref_=nm_flmg_wr_5

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DEMOCRACIA,
E S C R I TA ,
CRÍTICA

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DIREITO E LITERATURA: DA
BUSCA DO AUTÊNTICO A UMA
PRAGMÁTICA DO DISFORME
Alexandre F. Mendes

1. INTRODUÇÃO
Este artigo integra um conjunto de reflexões compartilhadas no âm-
bito do I Seminário Internacional de Direito e Literatura: estudos con-
temporâneos entre Direito, Política e Literatura, realizado, em 2019,
na Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ). O principal objetivo do encontro foi debater a atualidade da
relação entre estudos jurídicos e literários, levando em consideração
novas propostas metodológicas coerentes com os problemas político-
-teóricos trazidos no contexto de uma globalização em crise.
Neste sentido, o cenário brasileiro não poderia levantar questões
mais desafiadoras. Nos últimos anos, o país testemunhou o maior ciclo
de protestos de sua história (2013-2015) e, também, todas as perigosas
armadilhas que acompanham a frustação de um impulso de transfor-
mação não realizado. Em livro recente, seguindo a filosofia de Deleuze
e Guattari, argumentei que a ascensão da extrema direita e o colapso do
progressismo político no Brasil, não apenas colocam em questão o fun-
cionamento das instituições democráticas, mas trazem um problema
ligado à percepção (MENDES, 2018).
Segundo essa linha de análise, os protestos de Junho de 2013 podem
ser caracterizados como um acontecimento, não somente político-so-
cial, mas da ordem do sensível, afetando e recriando a lógica do sentido

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(DELEUZE; GUATTARI, 2004; ZOURABICHVILI, 2000). Através das
mobilizações, as percepções singulares e coletivas foram reorganizadas
produzindo uma visão do que é intolerável na sociedade brasileira: a
realidade dos modos de vida nas metrópoles e nas florestas, cada vez
mais precários e violentos, e os impasses de uma democracia que não
consegue ultrapassar o seu viés apenas formal ou oligárquico (CAVA;
COCCO, 2014; SAFATLE, 2014; PEREIRA et al. 2016, BRAGA, 2017).
Por outro lado, diante da insuficiência de agenciamentos concretos
(políticos, sociais, econômicos etc.) ou de “reconversões subjetivas” (DE-
LEUZE; GUATTARI, 2004) que pudessem dar continuidade ao aconte-
cimento, a mobilização social foi se confinando em sufocantes batalhas
de narrativas e de identidades morais, recaindo naquilo que James Davi-
son Hunter denomina de guerras culturais (HUNTER, 2001; HUNTER;
WOLFE, 2006). Neste novo cenário, as universidades acabam atingidas
pela lógica do confronto de narrativas e se transformam em um ambien-
te especialmente sensível às disputas dominadas pela polêmica.
Neste artigo, pretendo abordar a questão através de um balanço da re-
lação entre direito e literatura, considerando o histórico dessa proposta in-
terdisciplinar e suas pretensões não realizadas. Para delimitar a abordagem,
proponho um recorte histórico do debate americano sobre a relação entre
direito e literatura centrado nos anos 1980 e, por fim, explicito a diferen-
ça entre uma política centrada na disputa de narrativas e outra entendida
como uma pragmática do disforme. O ponto de partida que escolhemos
para este propósito, e que será central no desenvolvimento da exposição, é
a crítica realizada por Julie Stone Peters, em artigo intitulado Law, literature
and the vanishing real: on the future of an interdisciplinary illusion (2005).

2. DIREITO E LITERATURA: UMA ILUSÃO?


O artigo de Julie Peters tornou-se incontornável porque, ao contrário
do consenso celebratório produzido desde a década de 1980, ele des-
creve o encontro interdisciplinar entre direito e literatura como um

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sucessivo fracasso, tanto em relação às mútuas expectativas que foram
lançadas, quanto em relação às possibilidades político-teóricas que ali-
mentaram o movimento desde o início. Antes de entrar na análise dessa
dupla frustração é preciso sublinhar dois pontos que podem passar des-
percebidos do artigo de Peters. Primeiro, existe no texto uma dimensão
geracional que indica que pelo menos parte dos protagonistas do movi-
mento Direito e Literatura eram herdeiros das lutas pelos direitos civis
e contra a guerra do Vietnam (ou seja, herdeiros do ciclo de 1968). Se-
gundo, há também uma dimensão temporal que inscreve o movimento
no interstício que vai da crise do próprio ciclo de 1968 até a ascensão da
direita a partir dos anos 1980.
Essa dupla inscrição indica que a relação interdisciplinar entre di-
reito e literatura possui uma dimensão de reação, no sentido específi-
co de ser mais uma resposta à crise político-criativa do pós-1968, que
uma agenda contemporânea ao ciclo de lutas americano (WEISBERG,
2016). Para Julie Peters, essa reação se deu através de uma via de mão
dupla e, por isso, a busca de uma interdisciplinaridade para solucionar
duas angústias que eram simultâneas. A primeira, que atingia a Lite-
ratura, partia da percepção de que a crítica literária não dava conta
de uma intervenção no real que o Direito poderia suprir. Assim, uma
aliança com as teorias jurídicas poderia inserir a literatura no campo de
ativismo judicial que se seguiu às lutas de 1968 e oferecer uma dimen-
são concreta à disciplina. A segunda, que atingia o direito, dizia respeito
à busca de um fundo valorativo sólido que pudesse enfrentar tanto o
formalismo jurídico, como a crescente influência das teorias ligadas ao
Law and Economics, garantindo, ao mesmo tempo, um arsenal interpre-
tativo para levar a cabo o ativismo jurídico no âmbito da Justiça.
Julie Peters tem razão ao perceber que essa tentativa de reencontro
com o real acabou sendo movida por um vago espírito humanizador,
que serviu de ponto de ligação das duas angústias: “a literatura poderia
salvar o direito de si mesmo ao lembrá-lo de sua humanidade perdida,
garantindo-lhe uma nova realidade através da infusão do humano. Ao

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mesmo tempo, ao dizer a verdade ao poder [através do direito], a li-
teratura poderia, finalmente, fazer alguma coisa real” (PETERS, 2005,
p. 445, nossa tradução). A armadilha que podemos apontar, desde já,
seguindo e ampliando a crítica de Peters, é que esse real, na esteira da
crise dos movimentos dos anos 1960 e da ascensão da direita americana,
foi concebido através de uma inflação da própria ideia de narrativa ou
de representação pela narração, tornando-se presa fácil de mecanismos
ligados às guerras culturais dos anos 1980 e dos modelos de polêmica
que analisaremos posteriormente (BERCOVITCH, 1986).
Peters prossegue a sua análise a partir de três eixos de aproximação
entre direito e literatura: a) o direito como retórica de James Boyd Whi-
te; b) o direito como hermenêutica em Ronald Dworkin; c) o direito
como narrativa ou como contação de estórias (narrative jurisprudence e
legal storytelling movement).
(a) O livro de James Boyd White The Legal Imagination (1973/1985)
se transforma num dos pontos de partida mais reconhecidos do mo-
vimento Law and Literature ao afirmar que “o direito não é um siste-
ma de regras, ou algo que pode ser reduzido às escolhas políticas ou
conflitos de interesse, ele é antes aquilo que eu chamo de linguagem”
(WHITE, 1985, p. xiii). Isso significa que o direito deveria ser enten-
dido como uma área específica da retórica, uma arte manuseável por
seus operadores, que participam do processo de compor e estruturar
narrativas, mesmo que através de mecanismos de coerção previstos
legalmente.
A partir dessa premissa, White define duas questões essenciais que
deveriam interrogar o direito: (a.1) até que ponto o outro pode contar
a sua história, ser ouvido e ser reconhecido, sem ser desumanizado ou
manipulado?; (a.2) como o direito poderia colocar essas falas em con-
tato, integrando as diferenças em uma única composição? É no enfren-
tamento dessas duas questões que a relação entre direito e literatura
se mostraria profícua: a literatura poderia colaborar com o direito ao
trazer narrativas não tradicionais e dilemas éticos que demonstram os

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limites do formalismo jurídico; o direito poderia integrar essas narrati-
vas em seu processo de persecução da justiça.
(b) Alguns anos mais tarde, o debate jurídico americano recebeu ou-
tra proposta de aproximação entre direito e literatura, elaborada por
Ronald Dworkin, que postulou a conhecida imagem do direito como
um grande romance em cadeia no qual os julgadores são comparados
a escritores comprometidos com a integridade de uma obra em cons-
trução (DWORKIN, 2001, p. 217-251). Embora essa imagem tenha sido
tomada apenas em seus efeitos hermenêuticos - ou seja, como possibi-
lidade de superar interpretações baseadas unicamente em textos legais,
na intenção dos legisladores ou em concepções heterodoxas do direito,
existe nela uma clara dimensão política, que ainda é pouco explorada.
Julie Peters, mais uma vez, oferece uma boa pista ao constatar que a
“virada hermenêutica” dworkiana cumpria o duplo papel de afastar as
interpretações jurídicas conservadoras e tradicionalistas (em ascensão
naquele momento pelas nomeações de Reagan no Sistema Justiça) e
realizar um esforço de reconstrução. O alicerce desse esforço pode ser
encontrado na ideia de uma “comunidade de princípios”, fundada na
história institucional americana e movida por um potencial reflexivo
voltado para as melhores interpretações dessa mesma história. A figura
do direito como romance em cadeia encarnava, portanto, a retomada
de um ideário de cooperação social e de progressismo político-jurídico,
num ambiente cultural fraturado pelo ceticismo, pelo radicalismo va-
zio, ou pela ascensão ultraconservadora.
(c) Julie Peters, por fim, comenta duas agendas de pesquisas com-
plementares denominadas narrative jurisprudence e storytelling movement,
que também se consolidaram a partir dos anos 80, propondo uma nova
teoria crítica adequada às lutas dos movimentos sociais (DELGADO,
1993). A proposta parte de duas premissas: (c.1) a primeira, de que o
direito exerceria uma violência baseada em narrativas majoritárias, cuja
origem e estrutura deveriam ser reveladas; (c.2) a segunda, que, se essas
narrativas controlavam os espaços da justiça e as decisões judiciais, uma

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crítica radical do direito deveria promover as contranarrativas e as estó-
rias daqueles que são destituídos de poder jurídico.
O real aqui é reconstituído, não por sua indexação a uma cadeia
de interpretações ligada à história institucional americana, como em
Dworkin, mas por uma invocação moral e direta da fala dos oprimidos
e de suas experiências verdadeiras. Peters não deixa de apontar para o
resultado curioso dessa operação: a crítica literária e jurídica encontra
uma fundação ética de bases essencialistas, após décadas de teorias que
apontavam para a direção oposta:

Muitos teóricos do direito e da literatura, quando escreveram sobre a juris-


prudence narrative [teoria narrativa do direito], foram críticos com relação
às pressuposições de uma verdade inerente, de uma função exemplar ou
moral das estórias trabalhadas. Mas a teoria narrativa do direito vestiu, de
forma atraente, suas pretensões de verdade com uma retórica humanis-
ta requentada, tornada palatável por um deslocamento para o campo do
conflito político e da psicologia da opressão (PETERS, 2005, p. 449, nossa
tradução).

Em sua conclusão, Peters explicita a dimensão de idealização pre-


sente nas expectativas recíprocas que aproximaram direito e literatu-
ra. Na ávida busca de refundação de um real estilhaçado pela crise do
pós-1968, as duas disciplinas acabaram entrando em uma “sala de espe-
lhos” onde a literatura reforçava a dimensão idealista do ativismo jurí-
dico e o direito reforçava as pretensões humanizadoras da literatura.
Cada disciplina buscava, justamente, aquilo que a outra não podia mais
oferecer: a literatura já havia perdido suas pretensões universalizadoras
e humanistas despindo a narrativa de sua carga autoral, exemplar ou
moral; o ativismo jurídico, por sua vez, se mostrava enredado numa
teia de regulações, procedimentos dispersos e pressões utilitárias que li-
mitavam qualquer expectativa englobante de intervenção na realidade.
Ainda assim, nos escombros deixados pelos levantes americanos, ambas

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as disciplinas se encontraram na busca de um real que aspirava “por au-
tenticidade ética, certeza ontológica e honestidade narrativa” (Peters,
2005, p. 450, nossa tradução).

3. A PESQUISA JURÍDICA E AS ARMADILHAS DA POLÊMICA


Partindo da mesma hipótese sugerida por Peters, outras questões pode-
riam ser colocadas: (a) o deslocamento do campo político-jurídico para
a esfera das narrativas não deixa de lado uma interrogação sobre as con-
dições de emergência do próprio sentido e a sua relação com combina-
ções concretas, práticas e expansivas?; (b) a virada narrativa funcionaria
como uma recomposição da representação no campo estético e políti-
co suscetível ao que Foucault e James Davison Hunter denominaram,
nos anos 80, de polêmica ou de guerra cultural?; (c) uma compreensão
pragmática do problema poderia estabelecer outro método de inter-
venção no real e de aproximação entre estética, política e direito?
O primeiro ponto pode ser enfrentado pelo exemplo de tendências
acadêmicas que ganharam força no Brasil, não por acaso, na sequência
do derrotismo político que marcou o contexto do pós-junho de 2013 e
a crise do progressismo latino-americano (FALBO et al., 2016). O meca-
nismo funciona da seguinte forma: o pesquisador realiza um trabalho
de campo que aponta para diversas linhas de conflito, práticas coletivas
e novas formas de produção de subjetividade nos territórios e, diante da
impossibilidade de estabelecer uma série expansiva que articule as di-
versas partes da experiência por adição, subtrai o processo para incluí-lo
em grandes narrativas ou fundações éticas inquestionáveis.
Por exemplo, se existe um conjunto de práticas jurídicas dos mo-
vimentos indígenas latino-americanos que apontam para um novo ci-
clo pós-constitucional e para a crise do progressismo, essas práticas e
seus efeitos são descolados e religados através do apelo a uma autenti-
cidade narrativa fundada na ideia de Outro, desconsiderando as novas
composições heterogêneas e os impasses que elas carregam. Se existem

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práticas concretas que apontam para diversas lutas no interior dos
“ensaios desenvolvimentistas” (SINGER, 2016) realizados nos últimos
anos, elas são apresentadas de forma confusa como o resultado de uma
genérica adesão ao “neoliberalismo”. Se existe uma cartografia de ques-
tões e resistências que emerge nos últimos quinze anos nos territórios
militarizados das metrópoles, elas são reinterpretadas a partir de nar-
rativas estabelecidas segundo a alternância entre governos e partidos
políticos e não pela continuidade efetiva das práticas coletivas4.
Isso significa que quanto mais permanecemos presos ao “real que se
esvanece”, mais tentamos suprir a realidade com séries que funcionam
por subtração e não por adição, interrompendo o processo para fazê-lo
descansar em fundações que parecem seguras, mas ao preço de uma
atraente idealização. O resultado é que a pesquisa jurídica tende a assu-
mir, paradoxalmente, a forma tradicional de um processo judicial com
a participação de acusadores, vítimas, réus, juízes, confissões e provas
extraídas do material empírico analisado.
Podemos aqui desdobrar o segundo ponto da argumentação. Em
uma entrevista para o antropólogo Paul Rabinow, realizada em Ber-
keley, em 1983, Foucault analisa a função da polêmica, como um ele-
mento parasitário na produção de verdade, afirmando que o polemista
tem como objetivo final: “não chegar mais próximo possível de uma
verdade difícil, mas sim obter o triunfo da causa justa que ele manifes-
tamente sustenta desde o princípio” (In: RABINOW, 2002, p. 18). Para
Foucault, a história da polêmica poderia ser traçada através da presen-
ça do modelo religioso, jurídico e político. No primeiro, é a intangi-
bilidade de algum ponto do dogma que serve para demonstrar a falta
moral do adversário que o negligenciou, desencadeando uma lógica de

4.  Esses debates metodológicos estão sendo realizados, mesmo que de maneira descontínua,
no âmbito da Linha de Teorias e Filosofia do Direito do Programa de Pós-Graduação da Facul-
dade de Direito da UERJ (PPGD). Até que ponto a lógica da disputa de narrativas e das polêmi-
cas afeta a pesquisa jurídica interdisciplinar, fazendo o pesquisador se desconectar do próprio
material levantado?

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culpabilização e de revelamento dos interesses subjetivos internos e in-
confessáveis presentes na violação. No modelo jurídico, por sua vez, a
polêmica serve, não para abrir uma oportunidade de discussão igualitá-
ria, mas para instruir um processo: “[ela] não lida com um interlocutor,
mas com um suspeito; colhe as provas da sua culpa, designa uma infra-
ção cometida por ele, emite um veredito e o condena (...). O polemista
diz a verdade, mas na forma de um julgamento e segundo a autoridade
que conferiu a si mesmo” (idem, p. 19).
No entanto, é o terceiro modelo - o político - que, segundo Foucault,
seria o mais poderoso na atualidade. A polêmica “define alianças, recru-
ta partidários, une interesses ou opiniões, representa um partido; ela
também situa o outro como um inimigo que apoia interesses opostos
aos seus e contra o qual é preciso lutar até que, derrotado, se renda
ou desapareça” (idem). Embora todos esses procedimentos - condena-
ções, batalhas, vitórias, derrotas e as narrativas que as acompanham -
constituam, para o filósofo, uma grande teatralização, ou mesmo uma
comédia, eles validam sistematicamente práticas políticas reais. A po-
lêmica possui, assim, uma dimensão horizontal estabelecida entre os
participantes e, também, vertical, sustentando um tipo de representa-
ção política que afasta a liberdade de crítica através da teatralização ge-
neralizada.
É interessante notar que Foucault realizou essa análise justamente
no período compreendido pelo artigo de Julie Peters, oferecendo uma
leitura que será semelhante às análises existentes, também nos Estados
Unidos, sobre o conceito de guerras culturais. No livro Cultural Wars:
the struggle to define America (1991), James Davison Hunter sustenta que
a guerra cultural americana tem como principal característica, não uma
disputa em torno de diferentes teologias, dogmas, ou tradições, mas
um conflito entre grandes narrativas sobre como interpretar o passado
e o futuro da América e o seu fundamento moral.
A novidade, portanto, não seria a disputa entre múltiplas interpreta-
ções ligadas à vida material ou religiosa, mas um realinhamento difuso

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que une diferentes grupos pré-legitimados moralmente em torno de
duas grandes narrativas opostas. Por isso, as guerras culturais promo-
vem uma mutação na relação entre política e produção de sentido: as
palavras se tornam mais importantes que as ações, que os usos práticos
e o contexto; o debate político é dominado por poucos símbolos esco-
lhidos como objetos de acirramento e de disputa, a relação com os par-
tidos políticos se estabelece através de uma forte identificação moral;
os próprios partidos tendem a se colocar como fiadores das grandes
narrativas e da disputa pelo predomínio de um modo de vida sobre os
outros.
Mesmo partindo de perspectivas diferentes, Foucault e Hunter pare-
cem incomodados com o mesmo tipo de questão: como sair dos mode-
los da polêmica para restabelecer um tipo de prática coletiva que colo-
que problemas para a política e para os próprios sujeitos, tendo como
ponto de partida um campo de experiências concretas e difíceis? Como
estabelecer uma relação entre sujeito e verdade que não esteja, desde o
princípio, indexada em concepções já legitimadas por grandes narrati-
vas morais e belicosas? Como se liberar de uma compreensão de si ba-
seada na obediência e no sacrifício subjetivo exigido pelos tribunais da
polêmica, em direção ao exercício do livre direito de interpelar o poder
e suas formas de produção de verdade?

4. DA POLÊMICA À PRAGMÁTICA: COMO EXPERIMENTAR A


REALIDADE?
Esse conjunto de perguntas também poderia se voltar para o debate
entre direito e literatura descrito por Peters: em que medida a virada
narrativa proposta por diversas correntes a partir dos anos 1970 não se
tornou permeável à expansão da polêmica em detrimento da proble-
matização? Como estabelecer uma relação entre direito, estética e po-
lítica que possa liberar a interpretação das coordenadas definidas pela
polêmica em seu modelo religioso, jurídico e político? Uma das chaves

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de compreensão, e este é o terceiro ponto do meu argumento, poderia
passar pela própria noção de “real evanescente”, ou de um “real em
desaparecimento”, escolhida por Peters para explicar as mútuas expec-
tativas que alimentaram a aproximação entre direito e literatura. Mas
o que seria “o real” e porque ele dá a impressão, às vezes, de fugir das
nossas mãos?
Numa conferência intitulada Pragmatismo e Humanismo (1907/1979),
William James sustenta que a realidade é normalmente vista como algo
já existente, como uma entidade independente a espera de ser desco-
berta e revelada. Mas, ao invés de nos perguntarmos “o que é a reali-
dade” deveríamos nos colocar, antes, a pergunta de “como se fabricam
as realidades”, questão que altera completamente o problema. Para Ja-
mes, seguindo aqui de perto o seu colega pragmatista Ferdinand Schil-
ler, a realidade não é uma entidade única e estabelecida de antemão,
podendo ser desmembrada em três partes que estão sempre em mo-
vimento ( JAMES, 1979, p. 89). A primeira corresponderia a um fluxo
de sensações que nos envolve e se precipita sobre nós (“se força contra
nós”); a segunda seria formada pelas relações que percebemos direta-
mente no interior desse fluxo, permitindo sua ordenação em conceitos
e ideias, a terceira se refere ao conjunto de verdades prévias e conso-
lidadas que qualquer abordagem sobre a realidade precisa se reportar
(idem).
A ideia de que uma parte da realidade é composta por fluxos anôni-
mos, “completamente cegos e evanescentes” (idem), anteriores a qual-
quer conceito ou abstração, é um deslocamento fundamental realizado
pelo pragmatismo. É o que permite afirmar que a realidade não possui
qualquer suporte prévio e englobante; que ela possui uma dimensão
“plástica” aberta às adições, mutações e criações. Da mesma forma, é
o que faz com que uma parte da realidade esteja sempre vazando pelos
lados, rompendo com a estabilidade pretendida por nossas crenças, há-
bitos e conceitos. Ela “vem ao nosso encontro sem se deixar possuir”,
afirma Schiller (apud JAMES, 1979, p. 90). Ou, então, a partir da imagem

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jurídica criada por James: ela é um cliente cuja causa precisa ser condu-
zida por um advogado, mas essa relação se dá sempre através de uma
procuração limitada e parcial.
É curioso que, no mesmo texto, James tenha escolhido também as
figuras do juiz de direito e do professor de gramática para usar de mo-
delo para a crença em princípios e verdades estabelecidas de antemão.
Essas figuram tentam, segundo James: “convencer a audiência de que
estão se referindo a entidades pré-existentes às suas decisões, às palavras
ou à sintaxe, impondo-as de forma unívoca e clamando por obediência”
(idem, p. 88). Mas essas concepções abstratas de verdade, do direito e da
linguagem “evaporam-se com o menor toque de um fato novo” (idem),
fazendo-nos lembrar que elas são mais o resultado de processos ligados
à experiência e à realidade, do que a aplicação de fórmulas abstratas e
pré-estabelecidas.
Por isso, a preocupação central da concepção de verdade em James
é saber se ela pode assegurar a passagem do estoque de ideias acumu-
ladas na experiência para as novas realidades que se precipitam contra
nós, sem que a verdade seja enclausurada em modelos pré-existentes
ou fundações idealizadas. Se a passagem for bem sucedida poderemos
retomar o vínculo com a realidade e restabelecer a crença e a con-
fiança no mundo, através de novas ideias e experiências que se acres-
centam àquelas já existentes. Não se trata de buscar o conforto de
uma nova origem, de uma grande narrativa ou de uma autenticidade
primeira, mas de explorar as bordas onde o fluxo do sensível escapa,
adicionando-lhes um novo processo no interior do qual verdade, cren-
ça e intervenção no mundo tornam-se inseparáveis. Daí a formulação
de David Lapoujade em seu livro sobre James, que pode também ser
lida em contraposição às três vertentes do movimento Direito e Lite-
ratura descritas por Peters: “o que o pragmatismo em geral exige são
comunidades semiológicas múltiplas cujas regras de interpretação se
elaboram pouco a pouco e de forma imanente” (LAPOUJADE, 2017,
p. 117).

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5. CONCLUSÃO: UM RETORNO AO ACONTECIMENTO
Se partirmos da premissa de que acontecimentos como os levantes de
1968 ou de Junho de 2013 promovem “choques” que alteram radical-
mente os parâmetros que organizam a relação entre o fluxo sensível, a
ordenação das ideias e as verdades prévias - isto é, se colocam na gênese
do próprio sentido - uma série de novos problemas surgem. Na leitura de
Zourabichvili, trata-se de um momento em que a realidade é fissurada
e foge a toda significação prévia, abrindo um estranho campo polívoco
onde novas possibilidades são criadas (ZOURABICHVILI, 2000). É justa-
mente do paradoxo lógico da coexistência de possibilidades radicalmen-
te diferentes que surge o (não) sentido que irá redistribuir as condições
de emergência das significações, das manifestações e das designações,
oferecendo um novo sentido à linguagem (DELEUZE, 1974).
Novos signos surgem, atraindo novas comunidades múltiplas de in-
terpretação e exigindo critérios éticos forjados no interior desse pro-
cesso de criação. A vantagem de uma abordagem pragmática é realizar
uma exigência que se revela, não através da figura do “juiz de direito”
ou do “professor de gramática” (personagens que chegam sempre de-
pois do acontecimento, já para homologar e exigir uma obediência às
narrativas), mas através de um tipo de “medicina do mundo”: aquela
que avalia a saúde, os sintomas e os riscos inscritos na gênese dos pró-
prios sentidos.
É o paradoxo de Junho de 2013: quanto mais ele desaparece diante
do peso dos entulhos deixados pelas polêmicas, guerras culturais e pe-
las disputas de narrativa, mais ele emerge como critério de avaliação
do próprio sentido da atualidade. É ele que permite avaliar o fim de
um ciclo político diante da nova repartição operada no sensível e a cria-
ção de uma nova realidade - uma distribuição que deriva do encontro
abrupto com as nossas próprias condições de vida (nas metrópoles, nas
florestas, no mundo...). E é ele que indica o quão insatisfatórias são as
novas crenças forjadas com o objetivo de transformar o acontecimento
em teatralização e a expressão desse acontecimento em representação.

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Aqui reside também o raciocínio que permite um deslocamento da
estética, como estudo das formas prontas, para uma espécie de “prag-
matismo do disforme”, na definição dada por Talita Tibola e Bárbara
Szaniecki: “o estilo não diz respeito à beleza, à proporção ou ao equi-
líbrio, mas à capacidade de desvio, de provocar derivas no real” (...). É
preciso fabricar um estilo para “escapar das capturas, arrancar pedaços
do real e da linguagem” (TIBOLA; SZANIECKI, 2016; Cf. SZANIEC-
KI, 2018). Talvez um dos motivos do fracasso do movimento direito e
literatura, em suas primeiras intenções, tenha sido exatamente um pro-
blema de estilo. As ansiedades recíprocas diante de um real evanescente
empurraram o movimento para uma tentativa de refundação ética que,
curiosamente, deixava de lado os critérios de avaliação e de interpreta-
ção que podem existir na fronteira entre a gênese e o sentido. A “sala de
espelhos”, mencionada por Peters, revelou-se como a antessala de um
Tribunal: o direito reencontrou um fundamento para continuar emitin-
do os seus juízos, a literatura encontrou o real na forma pré-estabeleci-
da da Justiça.
O que aconteceria se substituíssemos, na relação entre direito e li-
teratura, a busca do autêntico por uma pragmática do disforme? Se
abríssemos mão de todo o fundamento para encontrar, no real evanes-
cente, não uma matéria a ser julgada, mas um material vivo e aberto a
novas adições, desvios, práticas e combinações? Se à imagem da escul-
tura, lembrada nos primeiros textos do pragmatismo, fosse acrescenta-
da também a figura da bricolagem ou do improviso? Talvez, assim, en-
contraríamos não apenas uma arte da retórica e da interpretação, com
suas comunidades pressupostas e idealizadas, mas toda uma lógica mais
aquém, composta de artifícios, usos, recombinações concretas e regras
práticas de avaliação: uma útil e efetiva “estética da gambiarra”, segun-
do a feliz síntese de Barbara Szaniecki.

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PARA ALÉM DA LINHA? PARADOXO
DA EMANCIPAÇÃO: EROS, DEMOS
E O ESTADO DEMOCRÁTICO
Cécile Roudeau
Trad. Clarissa Naback

 
From this hour I ordain myself loosed of limits and imaginary lines!
Walt Whitman, “Poem of the Open Road,” Leaves of Grass, 18551

Prólogo: a linha em todas as suas modalidades


No princípio era a linha. A linha que, cortando o Verbo, esfolando a
carne, fez surgir o logos, a própria articulação, aquilo que dá origem
aos nomes, aos conceitos, às espécies, ao que podemos chamar, na
falta de uma definição melhor, de categorias. Se quisermos partir de
algo, então devemos partir daí: da linha como origem do discurso,
da palavra e do mundo tal como o conhecemos; isto é, tal como o
construímos, como lhe damos forma; tal como o transformamos.
Pensar o mundo sob o aspecto da linha é, antes de tudo, concebê-lo,
apreendê-lo e compreendê-lo através do conceito - do latim concipere,

1.  [N.T.] “Daqui em diante ordeno a mim mesmo o fim de limites e linhas imaginárias!” - Walt
Whitman, Canção da estrada aberta, Folhas de Relva, 2011, p. 135. A tradução dos poemas
de Walt Whitman referentes à obra Leaves of Grass são citações da edição brasileira da obra
publicada pela editora Hedra em 2011, sob organização e tradução de Bruno Gambarotto.
Optou-se também por deixar no corpo do texto a versão original em inglês, assim como o
fez a autora. Procedeu-se, assim, com todos os outros textos que já tinham tradução para
o português.

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aquilo que se apreende em conjunto. É trinchar o continuum2, inarti-
culado por definição, e distinguir nele os compartimentos, as partes
e os partidos. Pensar o mundo sob o aspecto da linha é desbravá-lo
equipado de uma bússola; é percorrer o mundo como um cartógra-
fo, com o intuito de esquadrinhá-lo e de registrá-lo. Escolher a li-
nha, ou melhor, o traçado, é, portanto, optar por uma visão de cima,
pelo olhar soberano e pelo olhar do soberano. A linha será entendida,
aqui, como o instrumento do poder e do poder de nomear, o qual é,
de igual modo, o poder de fazer e de realizar; o poder de classificar e
de hierarquizar.
Este é sem dúvida o segundo atributo da linha. Se a linha permi-
te ordenar, compreender e apreender, ela é também o instrumento da
disciplina. Ela é a ferramenta da partilha entre disciplinas (humanida-
des/ciências, ciências duras/ciências humanas); em outras palavras,
ela disciplina o próprio conhecimento, organizando-o em categorias
herméticas. A capacidade da linha de vedar é, assim, essencial. A linha
delimita as esferas que não se sobrepõem, não se interpenetram nem
se hibridizam. A linha é agente de controle. Só se cruza a linha por sua
própria conta e risco. A linha, aqui, é a fronteira. Ela para e, ao parar,
define e autoriza a captura, a propriedade e a especulação. Protetora ou
profilática, a linha previne as misturas, as contaminações e as interpe-
netrações. Ela mantem de fora o estrangeiro e o vírus. Ela é aquilo sem
o qual não se é próprio; sem o qual não há o eu. A linha faz a diferença,
a instaura, a fabrica e a legitima. A linha é o instrumento da lei. Que
embaraço.
A linha é embaraçante justamente porque, como instrumento do
possível - se não a própria condição do possível - é, também, o que o
embarrera. É desse paradoxo da linha que devemos partir, é esse para-
doxo que diz respeito, igualmente, à estética, ao filosófico e ao político.

2.  [N.T.] Optamos em colocar em itálico todas as palavras provenientes do latim que mantém a
forma antiga, mesmo que assim não tenha sido procedido pela autora.

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Se não há um pensamento sem a linha - no sentido de que o logos não
pode acontecer sem a ordem ou a razão; se não há escritura, arte ou
representação sem a linha - uma vez que a estética também é uma ques-
tão de traçado; se o próprio político se baseia na partilha do sensível
- voltaremos a esse ponto - a linha, essa mesma que permite o advento
do sentido, da forma e da ação, é, simultaneamente, culpada pela perda
do contínuo e pelo continuum desordenado de possibilidades. Agente
da disciplina e do controle, ela é un post-scriptum trágico do caos dio-
nisíaco ou monstruoso que precede à criação. Ela coloca em perigo o
em-comum em favor do que nos separa e nos define: a nação, a espécie,
o indivíduo. Pharmakon do pensamento, da arte e da política, a linha é,
portanto, um desafio lançado àqueles e àquelas que gostariam ainda
de dizer ou desenhar o mundo sem arregimentá-lo. Este desafio da li-
nha não é novo. Enfrentá-lo não é (ou pelo menos não imediatamente)
desembaraçar-se da linha, mas, antes, tentar contornar as suas armadi-
lhas. É tentar resistir à linha quando essa, ao tornar-se um cordão sani-
tário ou de segurança, sob o pretexto de preservar uma pureza sempre
ameaçada de adulteração, cria uma cilada.
Poderíamos, de forma muito esquematizada, sem dúvida, identificar
três modalidades de eficácia da linha: oposição, divisão e crise. O poder
da linha, o que a linha pode, para os pós-estruturalistas - estou pensando
aqui, em particular, em Roland Barthes em sua releitura de Ferdinand
de Saussure – está ligado à eficácia da oposição que ela materializa. A
linha é o instrumento do paradigma, diz Barthes, e o paradigma é o
móbil do sentido.

O paradigma, o que é? É a oposição de dois termos virtuais dos quais eu


atualizo um, para falar, para produzir sentido. Exemplos: 1) Em japonês:
ausência de oposição ente l e r, simplesmente uma indecisão de pronún-
cia, portanto, não há paradigma ≠ do francês l/r, pois je lis ≠ je ris: criação
de sentido. […] Em outras palavras, segundo a perspectiva saussurienne, à
qual, nesse ponto, continuo fiel, o paradigma é a móbil de sentido: onde há

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sentido, há paradigma, e onde há paradigma (oposição), há sentido à dito
elipticamente: o sentido assenta no conflito (escolha de um termo contra
o outro) e todo conflito é gerador de sentido: escolher um e rejeitar outro é
sempre sacrificar o sentido3

A diferença representada pelo traço oblíquo (/)4 é uma ferramenta


de distinção, aquela que transforma a indecisão, o ruído, ou até mesmo
o rebuliço, em fala articulada. Da diferença emerge, então, o sentido,
que só poder ser fruto do conflito resultante de uma lógica de oposição,
aqui, binária. O neutro é assim sacrificado e, com ele, a porosidade que
permite o não-pertencimento à uma categoria. Não podemos, portan-
to, ter o sentido e a nuança, lamenta Barthes; nem a clareza do conceito
concomitante ao claro-escuro do sensível ainda inarticulado. A injun-
ção da linha, que separa a noite do dia, o som da fala, o feminino do
masculino, o humano do animal etc., não faz concessões. De acordo
com essa abordagem semiótica, a injunção do significado desarma a ar-
madilha das identidades.
Essa injunção do sentido é, conforme Barthes, desde já política. A
linha é política, como é político o neutro que tenta despistar o controle.
A literatura - que se recusa a sacrificar o sentido e a sacrificar, no senti-
do, a complexidade e a desordem do sensível; que se recusa, então, a ser
refém da linha, sem prescindir dela - torna-se o lugar no qual se desen-
rolam infinitos subterfúgios diante desta linha que o texto literário vai,
incessantemente, deslocar, retraçar, engrossar, distorcer, sem, apesar
disso, se separar dela. É nesse sentido que a literatura é política e que
ela somente e estruturalmente pode ser assim. É isto que, quase trinta
anos depois de Barthes, Jacques Rancière reafirma em alto e bom som,
em seu texto Política da Literatura, publicado em 2007:

3.  [N.T] Utilizamos a edição brasileira: Roland Barthes, O Neutro: anotações e aulas ministradas
no Collège de France (1977-78), tradução Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes,
2003 - (Coleção Roland Barthes) p. 17.
4.  [N.T] Parênteses do tradutor.

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Essa distribuição e essa redistribuição dos espaços e dos tempos, dos lu-
gares e das identidades, da palavra e do ruído, do visível e do invisível for-
mam o que eu chamo de a partilha do sensível. A atividade política re-
configura a partilha do sensível: ela introduz no cenário comum objetos
e sujeitos novos; ela torna visível o que estava invisível; ela torna audíveis
como seres dotados de palavra aqueles que apenas eram ouvidos como
animais ruidosos.
A expressão “política da literatura” implica, portanto, que a literatura
intervém enquanto literatura na decupagem dos espaços e dos tempos, do
visível e do invisível, da palavra e do ruído. Ela intervém dentro da relação
entre as práticas das formas de visibilidade e dos modos de dizer que recor-
tam um ou vários mundos comuns.5

A linha divisória que garantia o sentido, a despeito da possibilidade


do neutro; que sacrificava a nuance em favor da lógica da exclusão mú-
tua dos opostos; essa linha é, aqui, retomada em boa parte. A política
da linha abre possibilidades mais do que as fecha. Como a linha se movi-
menta, tendo em vista que nós podemos movê-la, a linha é potencial-
mente redistributiva: ela reconfigura os espaços, deixando-os visíveis
e audíveis - o que Rancière havia chamado, em outro momento, dos
sem-parcela6. Recompor-se da própria possibilidade de trinchar, repe-
tidamente, o continnum sensível se torna ato político por excelência. E
quem o faz melhor do que a literatura? A literatura é esse espaço onde
a linguagem joga com o sentido; onde o sentido não está ancorado no
traço do paradigma; onde ele pode vagar em zona proibida. A linha, ou
melhor, os seus deslocamentos no interior do mundo comum, torna-se

5.  [N.T] Utilizamos a edição brasileira: Jacques Rancière, Política da Literatura, Revista A!, tra-
dução de Renato Pardal Capistrano, Rio de Janeiro, v. 5, n. 5, 2016/01, p. 1-2
6.  [N.A.] Ver Jacques Rancière, La Mésentente: politique et philosophie, Paris : Galilée, 1995. [N.T.]
A expressão “sem-parcela” tem como base a tradução da obra para o português realizada por
Ângela Leite Lopes para a 1a edição publicada pela editora 34 em 1996. Cf. O desentendimento.
Política e Filosofia. São Paulo: Ed. 34, 1996.

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um instrumento de crítica ou uma ferramenta que instaura uma crise
do mundo conhecido.
Eis a terceira modalidade do trabalho da linha. Se ela, a guilhotina
do sentido, é o instrumento do inteligível; se, ao reconfigurar a partilha
do sensível, a mesma dá origem ao político; a linha é também uma li-
nha crítica: aquela que passa pelo interior do comum e o obriga a se re-
fletir sobre si mesmo. Deste modo, a linha é o instrumento da diferença
interna; ela deixa a própria estrutura entreaberta. Em termos políticos,
ela abre a estrutura para a contestação do interior. Em suma, a linha,
princípio de exclusão que funda o sentido (modalidade 1, semiótica),
é, também, aquilo que permite, pois ela produz e é produto de uma
constante redistribuição do mundo, de uma função de multiplicar as
possibilidades ao invés de restringi-las (modalidade 2, modalidade polí-
tica), ou ainda, ao se inserir na própria estrutura, uma função de minar
o poder de coerção que esta estrutura representa e exerce (modalidade
3, modalidade crítica).
No entanto, essa mesma ideia de crítica está, agora, em crise, tanto
no campo das letras quanto no âmbito de uma certa filosofia política
onde a questão da eficácia da linha é levantada novamente. Dois en-
saios, The Undercommons: Fugitive Planning and Black Study (Stefano Har-
ney e Fred Moten, 2013) e The Limits of Critique (Rita Felski, 2015), ten-
tam, cada um ao seu modo, por fim à linha7. Mas o fazem a que preço?

2. Beyond the beyond: acabar com a linha ?


A primeira vista, o manifesto de Hareng e Moyen (2013) e o ensaio
de Rita Felski (2015) tem pouco em comum. O primeiro é um ataque
geral contra o domínio do Estado sobre as potencialidades criativas
e performativas, sobre aquilo que eles chamam de undercommons (os

7.  Stefano Harney & Fred Moten, The Undercommons: Fugitive Planning & Black Study, Wive-
nhoe: Minor Compositions, 2013; Rita Felski, The Limits of Critique, Chicago: Chicago UP, 2015.

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subcomuns)8; o segundo pretende abrir um debate, no seio das humani-
dades, e mais particularmente dos estudos literários, sobre a oportuni-
dade de acabar com a hermenêutica da suspeição - uma versão de críti-
ca em que os atores, como se entrincheirados atrás de arames farpados,
estivessem prontos à enfrentar um texto já suspeito de cumplicidade
com a ideologia, com o poder e com a dominação. O que os aproxima,
porém, além de sua contemporaneidade, é a desconfiança que ambos
nutrem com relação à eficácia da linha tal como a que eu defini até
agora: a linha no sentido de uma linha divisória, de instrumento de dis-
criminação e de julgamento, relacionada diretamente com a crise (no
sentido etimológico do termo), com o momento decisivo ou crítico.
Para Harney e Moten, a linha só é válida por causa de seu próprio
fracasso em recortar do fluxo ou da carne do mundo os fundamentos
de uma identidade ou de uma estrutura. A única linha que vale recupe-
rar é a típica linha de fuga deleuziana: “linha frenética de variação, em
fita, em espiral, em zigue-zague, em S…”9. É a fugitividade10 da linha,
não seu traçado imutável, decisivo, que eles defendem ao defender os
subcomuns, isto é, a possibilidade de fiar, de fazer a tangente habitar
em outro lugar, para além da regulação. A linha de fuga deve, portanto,
substituir urgentemente a linha divisória e a linha do paradigma, que
são apenas instrumentos de coerção de uma governança que esmaga
e nunca liberta. A linha de fuga passa por outro lugar e não pode sim-
plesmente deixar a estrutura entreaberta, como faz a linha crítica, pois
a estrutura deve primeiro – sendo este o seu próprio pré-requisito - ser
desmontada. A defesa e a ilustração dos subcomuns envolvem, portan-
to, o esquecimento da crítica, que Felski, a seu modo, também imagina

8.  A tradução da obra de Harneu e Moten para o francês esta em curso. A publicação é prevista
pela Brooks, em 2021, sob o título « Les sous-communs : plans fugitifs et étude noire ».
9.  [N.T] Utilizamos a edição brasileira Deleuze, G.; Guattari, F. Mil platôs: capitalismo e esqui-
zofrenia 2, vol 5, 2ª ed., tradução de Peter Pál Pelbart e Janice Caiafa. São Paulo: Editora 34,
2012. p. 226
10.  [N.T] Para se referir a esse caráter da linha, a autora utiliza o neologismo fugitivité em fran-
cês. Como se trata de um conceito, manteremos a mesma construção em português.

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quando ressoa as vozes de quem denuncia a cumplicidade da crítica
com o poder. O paradoxo do discurso crítico, nesse sentido, é que, ao
interrogar seu objeto a partir de dentro, ao enfatizar suas contradições
internas, ao fazê-lo gaguejar, ele o preserva e deixa intacta a estrutura.
O problema da crítica, compreendida como tal, é que ela corre sempre
o risco de ser cooptada, resgatada e domesticada. A resistência é, desse
modo, apenas outra forma de aquiescência. A figura heróica do crítico,
a ser desmistificada, é apenas o lado burlesco do bajulador do poder.
Como para a crítica não há exterioridade à estrutura (seja ela o mundo,
ou o texto), a linha que ela faz ziguezaguear em seu interior nunca se
parte a ponto de balançar os próprios fundamentos.
Neste ponto, Harvey e Moten demandam nada menos que isso.
Para eles, chegou a hora de “destroçar, demolir, desmontar a estrutu-
ra que, até agora, tem limitado a nossa capacidade nos encontrarmos,
nossa capacidade de olhar além, de acessar os lugares que sabemos exis-
tir fora de suas paredes”11. O requisito é claro: não se trada mais de uma
crítica, a não ser em seu sentido mais radical, aquele dado pela Escola
de Frankfurt. A linha divisória, aquela que permitia distinguir e, assim,
dar sentido; que, segundo Rancière, dá origem à política; essa linha
não tem mais o direito de cidadania, pois, agora e sempre, é chama-
da à ordem. “Gestão”, “logística”, “governança”, “polícia”, todos estes
mecanismos que causam terror, estão associados ao que muitas vezes

11.  [N.A] « If you want to know what the undercommons wants, what Moten and Harney
want, what black people, indigenous peoples, queers and poor people want, what we (the “we”
who cohabit in the space of the undercommons) want, it is this – […] we want to take apart,
dismantle, tear down the structure that, right now, limits our ability to find each other, to see
beyond it and to access the places that we know lie outside its walls. » ( Jack Halberstam, « The
Wild Beyond: With and For the Undercommons ». Stefano Harney & Fred Moten, The Under-
commons: Fugitive Planning & Black Study, Wivenhoe : Minor Compositions, 2013, p. 6.). [N.T]
Se você quer saber o que os undercommons querem, o que Moten e Harney querem, o que os negros, povos
indígenas, queers e pobres querem, o que nós (o “nós” que convivemos no espaço dos undercommons)
queremos, é isso – (...) queremos desmontar, desmantelar, demolir a estrutura que, neste momento, limita
a nossa capacidade de nos encontrarmos, de vermos para além e de termos acesso aos lugares que sabemos
que estão fora das suas paredes.

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se designa como “Estado”. Em vez dessa divisão do sensível, Harney e
Moten propõem a desordem como uma espécie de viático12:

The call is always a call to dis-order and this disorder or wildness shows up
in many places: in jazz, in improvisation, in noise.
[…]
We refuse order as the distinction between noise and music, chatter and
knowledge, pain and truth. (Harney and Moten, 2013, p.7; 9)13.

Ir além da estrutura (ela própria condenada à aniquilação) é se tor-


nar selvagem, abraçar o que Harvey e Moten (2013, p. 7) designam sob
o nome de “the wild” [o selvagem], “the wild beyond” [o além do selva-
gem] ou “beyond the beyond” [além do além] 14. Esse espaço desestrutu-
rado, não-regulado (“outlawed social life of nothing” [a vida social mar-
ginal do nada], “unregulated wildness” [a selvageria desregulada]), esse
espaço de desorientação, porque sem ancoragem, sem pertencimento;
espaço fugitivo ou sem oposição, é o espaço que os undercommons [os
subcomuns] desenham para si mesmo: um espaço informal, mas não
informe; um espaço fluido desembaraçado da injunção da linha; em
outros termos, um espaço de improvisação.
Portanto, não é surpreendente que Harney e Moten tomem a poe-
sia e o jazz como exemplos dessa forma que não é oposta ao informe,
mas antes é a sua continuação. Passamos, então, da linha que separa,

12.  [N.T] Palavra que origina do vocábulo víveres. Trata-se de um conjunto de provisões para
comer, de gêneros alimentícios. No sentido católico, viático significa a eucaristia dada aos
enfermos.
13.  [N.T.]. “O apelo é sempre um apelo à des-ordem e essa desordem ou selvageria aparece em muitos
lugares: no jazz, na improvisação, no barulho [...] Recusamos a ordem como distinção entre barulho e
música, tagarelice e conhecimento, dor e verdade.” Livre tradução. Conforme a autora manteve no
corpo do texto a citação na língua original das obras que ainda não possuem tradução para o
francês, procedemos da mesma forma, mantendo o texto original no corpo e realizando a tra-
dução para o português nas notas de rodapé.
14.  [N.A] “There is a wild beyond to the structures we inhabit and that inhabit us” (Halbers-
tam, 2013 p. 7) [N.T] Há um além selvagem das estruturas que habitamos e que nos habitam.

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que opõe e organiza os domínios, ordens, significações, para a linha po-
rosa que, ao contrário, permite a passagem, que é o instrumento de
contiguidade, ou mesmo de contágio: a linha-interface. A linha é, desse
modo, o lugar do toque: menos o lugar da fabricação do sentido (da
significação) e mais aquele de onde os sentidos afloram. Esta é uma
das características essenciais dos subcomuns, dessa nova forma social
não regulada que se efetua – sobretudo quando ainda não toma forma15
- em uma interação entre os corpos que se tangenciam em vez de se
distinguir; que se confundem a despeito de qualquer ordem imposta
pela estrutura.

Thrown together touching each other we were denied all sentiment, denied
all the things that were supposed to produce sentiment, family, nation, lan-
guage, religion, place, home. Though forced to touch and be touched, to sen-
se and be sensed in that space of no space, though refused sentiment, history
and home, we feel (for) each other. (Harvey & Moten, 2013, p. 98)16.

O “nós” dos subcomuns é aquele dos escravizados no porão do na-


vio negreiro (the hold), o “nós” daqueles aos quais tudo foi negado – fa-
mília, nação, linguagem, religião, fixação doméstica. Prisioneiros, acor-
rentados, confinados nesse espaço, eles inventaram, ao mesmo tempo,
não só a fugitividade como os sentidos em comum (the feel), isto é, essa
linha de fuga que é também a interface; não tanto a mediação, mas o
contato. No porão, onde mal conseguiam caber, os escravizados imagi-
naram uma modalidade do social que resiste à estrutura, o que Harvey
e Moten chamam de “hapticality”17:

15.  Grifos do autor [N.T.].


16.  [N.T] “Jogados juntos, tocando uns aos outros, nos foi negado todo sentimento, negado todas as
coisas que deveriam produzir sentimento, família, nação, idioma, religião, lugar, lar. Embora forçados a
tocar e a ser tocados, a sentir e a ser sentidos naquele espaço sem espaço, embora nos fora recusado senti-
mento, história e lar recusados, nós sentimos (por) um ao outro”. Livre tradução.
17.  [N.T.] Correlato ao táctil no português. Ou então, “háptico” ou aptidão de ser “háptico”.

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To feel others is unmediated, immediately social, amongst us, our thing, […]
Hapticality, the touch of the undercommons, the interiority of senti-
ment, the feel that what is to come is here. Hapticality, the capacity to feel
through others, for others to feel through you, for you to feel them feeling
you, this feel of the shipped is not regulated, at least not successfully, by a
state, a religion, a people, an empire, a piece of land, a totem […]
This is the feel that no individual can stand, and no state can abide.
This is the feel we might call hapticality. (Harvey e Moten, 2013, p. 98)18.

Para compreender esta potência do táctil no coração da agência dos


subcomuns, é preciso operar o deslocamento de uma linha divisória
para outra – isto é, da partilha que separa, distribui, exclui, para a par-
tilha que significa compartilhamento. No entanto, este deslocamento é
também aquilo que Rita Felski contempla, à sua maneira, enquanto ela
tenta imaginar uma leitura pós-crítica.
Seria perigoso querer reduzir essas duas tentativas a uma única e
mesma causa, mas é forçoso constatar que a tentativa de acabar com a
linha da crise termina, em ambos os casos, por invocar um pensamento
e uma prática da relação; relação essa que abrange todos os níveis entre
os corpos e que chega a questionar as fronteiras do eu (o indivíduo) e os
contornos da estrutura. Quando nos livramos da linha-fronteira, aquela
que para definir exclui e para discernir discrimina; quando a crítica não
está mais posta, não sendo mais oportuno contestar a estrutura do inte-
rior, é urgente voltar-se para uma epistemologia, ou mesmo para uma
pragmática da relação. “The condition of being ‘linked in’ is not option [A
condição de estar ‘conectado’ não é uma opção]”, conclui Felski:

18.  [N.T.] “Sentir o outro é não-mediato, imediatamente social, entre nós, coisa nossa, [...] Hapticality
[tatilidade], o jeito próprio do undercommons [subcomuns], a interioridade do sentimento, a sensação de
que o que está por vir está aqui. Hapticality [tatilidade], a capacidade de sentir através dos outros, de os
outros sentirem através de você, de você senti-los sentindo você, essa sensação de partida não é regulada,
pelo menos não com sucesso, por um estado, uma religião, um povo, um império , um pedaço de terra,
um totem (...)Essa é a sensação de que nenhum indivíduo pode remanescer em si e nenhum estado pode
permanecer. Essa é a sensação que podemos chamar de hapticality [tatilidade]”. Livre Tradução.

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What would it mean to halt this critical machinery for a moment? (…) To
forge a language of attachment as robust and refined as our rhetoric of de-
tachment? At the least it would require us to treat texts not as objects to be
investigated but as cofactors that make things happen, not just as matters
of fact but also matters of concern.
What is needed in short is a politics of relation rather than negation,
of mediation rather than co-option, of alliance and assembly rather than
alienated critique (Felski, 2015, p. 180)19

Se ela dá pouca atenção à política dos subcomuns, porém, ao criar


um modelo de relação texto-leitor sobre o co-sentir ou o co-agir - ao
invés do distanciamento, da alienação e da crítica - Felski tenta respon-
der ao mesmo desafio enfrentado por Harneu e Moten: como traçar
uma comunidade de agir e de sentir sem se basear na oposição frontal?
“Reading, in this light, is a matter of attaching, collating, negotiating, as-
sembling – of forging links between things that were previously unconnected
[Ler, sob esta luz, é uma questão de juntar, agrupar, negociar, reunir, de
forjar ligações entre coisas que antes eram desconectadas] (Felski, 2015,
p.173)”. Essas relações – o que Richard Kearney designa pela expressão
visceral de “carnal hermeneutics” 20 (“hermenêutica carnal”) – co-impli-
cam, a cada instante, o corpo e o pensamento, o sensível e o sentido.
Elas escapam da fixidez de uma configuração imposta de cima - de uma
soberania indiscutível.
Chegamos, então, ao ponto. Como, em uma lógica de emancipação,
ativar um vínculo social que não pode ser capturado pela “estrutura”,

19.  [N.T] “O que significaria parar esse mecanismo crítico por um momento? (...) Forjar uma lingua-
gem da associação tão robusta e refinada quanto nossa retórica de distanciamento? No mínimo, exigiria
que tratássemos os textos não como objetos a serem investigados, mas como co-fatores que fazem as coisas
acontecerem, não apenas como questões de fato, mas também como questões de interesse.O que é necessá-
rio em suma é uma política de relação em vez de negação, de mediação em vez de cooptação, de aliança e
assembleia em vez de crítica alienada”. Livre tradução.
20.  Richard Kearney, “What is Carnal Hermeneutics?” New Literary History, vol. 45, 2015, p.
99-124.

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para usar os termos de Harney e Moten? Ou como um social pode, sem a
linha, se originar? Essa questão, que os anos 2010 trouxeram com força na
interseção da estética e da política, não é nova. No restante deste ensaio,
desejo voltar quase dois séculos, aos anos 1830-1840, que são sem dúvida
um dos momentos da história transatlântica em que a tensão entre go-
verno e emancipação estava no auge - pelo menos de acordo com uma
certa narrativa histórica que leu a era das revoluções ao longo da linha
divisória entre, de um lado, a energia emancipatória e a democracia fugi-
tiva do momento insurrecional e, do outro, as formas de administração
e de Estado, cúmplices a priori da opressão21. Nesta narrativa, o traçado e
a lei, a ordem e a regra, das quais a linha é o instrumento, opõem-se à es-
pontaneidade da revolta, ao indescritível levantamento democrático que
só pode ser exprimido por uma arte que assume para si o papel revolucio-
nário e deixa soprar a “tempestade no fundo do tinteiro” 22.
Isso não significa negar que uma forma de Estado – tanto nos dias
atuais como nas primeiras décadas do século XIX - infelizmente foi capaz
de lançar as bases para uma repressão institucionalizada - tão crucial ago-
ra como foi antigamente, se sopesarmos suas consequências. Todavia,
urge também tentar compreender, na esteira de uma história revisionista
do Estado democrático23, o que pode nos custar reificar o traçado que

21.  A respeito da fugitividade compreendida como característica primeira da democracia, ver a obra
seminal Sheldon S. Wolin, « Fugitive Democracy », Constellations, vol. 1, no. 1, 1994, p. 11-25.
22.  Estas são as famosas palavras de Victor Hugo, retomando o período 1830-1843, em Les Con-
templations. Et sur l’Académie, aïeule et douairière,/ Cachant sous ses jupons les tropes effarés,/
Et sur les bataillons d’alexandrins carrés,/ Je fis souffler un vent révolutionnaire./ Je mis un bon-
net rouge au vieux dictionnaire./ Plus de mot sénateur ! plus de mot roturier !/ Je fis une tempête
au fond de l’encrier,/ Et je mêlai, parmi les ombres débordées,/ Au peuple noir des mots l’essaim
blanc des idées » Victor Hugo, « Réponse à un acte d’accusation », Les Contemplations, Livre pre-
mier (« Autrefois, 1830-1843), VII, 1856. [N.T] E na Academia, avó e viúva,/ Escondendo os tropos
arlamantes sob suas anáguas,/ E nos batalhões de Alexandrinos quadrados,/ Eu soprei um vento revolucio-
nário./ Coloquei um boné vermelho no dicionário antigo./ Sem mais palavra senador! Nenhuma palavra
mais homens do povo!/ Eu fiz uma tempestade no fundo do tinteiro,/ E eu me misturei, entre as sombras
oprimidas,/ Para os negros de palavras, o enxame branco de ideias. Livre tradução.
23.  Sociólogos, juristas e historiadores da história dos Estados Unidos e da França trabalharam
desde a virada do século para desafiar o pressuposto empírico e normativo de que a democracia

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pertence à fronteira estreita entre democracia e Estado. Convém, portan-
to, não só questionar os perigos do binarismo - quando a linha se torna
uma muralha ou quando a lógica de oposição nos cega para as possibi-
lidades de combinações frutíferas (Estado / democracia; estético / po-
lítico) – como também o perigo inverso, mas conexo, de sacrificar cega-
mente a linha, de estabelecer limites a serviço da democracia, mesmo não
sendo contra ela. Como, então, a questão colocada pelas insurgências do
século XIX pode ainda ser atual para nós; isto é, como conciliar fugitivi-
dade e organização, levante democrático e governança usual?

3. Whitman não alinhado? Eros, Demos e a governança


democrática.
Walt(er)Whitman (1819-1892), arauto da democracia americana, foi
por muito tempo celebrado pelo poder emancipatório de sua poesia e
pela liberdade radical de seus versos que, ao longo de toda sua carreira,
atacaram audaciosamente as tradições e as estruturas estabelecidas.

From this hour, freedom!


From this hour I ordain myself loosed of limits and imaginary lines!
Going where I list—my own master, total and absolute,
Listening to others, considering well what they say,
Pausing, searching, receiving, contemplating,
Gently but with undeniable will divesting myself of the holds that would
hold me24.

e o Estado são mutuamente exclusivos - pressuposto que dominou o mundo da historiografia


sobre o Estado e a democracia. A este respeito, ver, em particular: Sawyer, Stephen W., William
J. Novak, and James T. Sparrow, “Beyond Stateless Democracy.” The Tocqueville Review, vol. 36,
no. 1, 2015, pp. 21-41.
24.  [N.A] Walt Whitman, « Poem of the Road » (Leaves of Grass, 1856, p. 226), que a partir de
1867 traz algumas correções, “Song of the Open Road.” Todos os textos de Whitman citados
aqui são consultáveis no site The Walt Whitman Archive. Matt Cohen, Ed Folsom, & Kenneth
M. Price, eds. https://whitmanarchive.org/ . A data e edição dada corresponde à primeira

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Nessa canção, que pode ser lida como uma ars poética 25, a poesia é
essa força performativa que rompe os limites. O poeta se auto-engen-
dra e se estabelece livre - livre aqui é liberado, desobstruído daquilo que
poderia prendê-lo (“lines”), contê-lo (“hold”), confiná-lo ou defini-lo. O
poeta é absolutamente livre (absolute). A voz poética é, portanto, a voz
da emancipação - e na segunda metade do século XIX, essas palavras
carregavam sobre si o peso da história recente ou em vias de acontecer:
a história da emancipação dos escravos, dos acorrentados no inferno do
porão (the hold), daqueles e daquelas que não tiveram a sorte de serem
chamados de “maître” [senhor]26. A emancipação, apresentada nestes
versos como libertação da linha – aqui com o sentido de limite e de-
finição (a linha paradigmática, portanto) – é tanto um assalto político
quanto um ato estético, em que a linha (que, em inglês, também signi-
fica verso) não tem mais qualquer força vinculativa. Em Whitman, a li-
nha não tem mais força de lei. O poema se institui como poema de um
novo gênero, em verso livre (free verse), liberado da forma imposta e das
injunções de uma literatura institucional da qual estava na hora - seja

ocorrência. [N.T] Na edição brasileira: “Daqui em diante ordeno a mim mesmo o fim de limites e
linhas imaginárias,/ Indo para onde me apraz, sou meu próprio senhor, total e absoluto,/ Escutando os
outros, pensando bem no que dizem,/ Parando, procurando, recebendo, contemplando,/ Gentilmente,
mas com desejo inegável, despindo-me de tudo que pudesse me parar”. Whitman, Canção da Estrada
Aberta, Folhas de Relva, 2011, p. 135.
25.  [N.T.] Referência à obra de Horacio Ars Poetica ou A Arte Poética que trata da arte de escre-
ver poesia.
26.  As ligações de Whitman com o racialismo de sua época e a luta abolicionista são comple-
xos; os praticantes da “crítica”, no sentido de Felski, mostraram como o texto é atravessado de
falhas em sua lógica de emancipação. Em seu panfleto de 1856, nunca publicado durante sua
vida, Whitman, como os outros Free Soilers, se opôs ao Fugitive Slave Act de 1850, mas o fez
em benefício dos brancos (“on account of the whites”) , devendo a escravidão ser “abolida de
seus interesses”, a fim de lhes preservar os empregos devidamente remunerados (Complete
Poetry and Collected Prose, 1982, p. 1321). Além disso, a posição de Whitman sobre a questão
do direito de voto dos afro-americanos é igualmente muito confusa: se ele apela para que os
votos tenham “a mais ampla abertura” do sufrágio (“the widest opening of the doors,” - Com-
plete Prose Works, 1892, p. 205), porém, ele suprime essa passagem de seu texto Democratic Vis-
tas. Em particular, conferir: George Hutchinson & David Drews, “Racial Attitudes” (https://
whitmanarchive.org/criticism/current/encyclopedia/entry_44.html) et Ivy G. Wilson, ed.,
Whitman Noir : Black America and the Good Gray Poet, Iowa City: University of Iowa Press, 2014.

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para Whitman seja para o contemporâneo Victor Hugo - de se livrar.
Sem fazer apologia ao informe, o poeta rejeita o formalismo estreito, a
prisão e o túmulo. Dessa rejeição, uma nova forma ainda está a surgir.
E o poeta a continuar e quase a concluir:

Allons! the road is before us!


It is safe—I have tried it—my own feet have tried it well.
Allons! be not detained!
Let the paper remain on the desk unwritten, and the book on the shelf
unopened!
Let the tools remain in the workshop! let the money remain unearned!
Let the school stand! mind not the cry of the teacher!
Let the preacher preach in his pulpit! let the lawyer plead in the court, and
the judge expound the law! (Leaves of Grass 1856, p. 239)27

Whitman nos exorta: devemos recusar a detenção pela palavra escri-


ta, a tradição literária, as escolas e seus mestres e capatazes; os minis-
tros de todas as religiões, tribunais e leis. Fugir então – eis o gesto poéti-
co – escapar de qualquer controle, de qualquer governo ou da “gestão”
das palavras e dos corpos28. A poesia será fugitiva ou não será poesia.
Essa poesia desenha um além (beyond, para usar a expressão cara a Har-
ney e Moten), o único horizonte possível para a multidão de pessoas
sem importância, que quase não têm onde morar; mas para os quais o
poeta oferece a perspectiva de uma terra sem registro oficial; de uma

27.  [N.T.] Na edição brasileira: Allons! A estrada está diante de nós!/ Ela é segura – já passei por ela
– meus pés já passaram por ela – não demore!/Deixe o papel sobre a mesa sem recado e o livro na estante
sem abri-lo!/ Deixe as ferramentas na caixa de ferramentas! Deixe o dinheiro na carteira!/ Deixa a
escola sem frequentá-la! Não ligue para os gritos do professor!/ Deixe o pastor pregando em seu púlpito!
Deixe o advogado apelando na corte e o juiz expondo a lei (Canção da Estrada Aberta, Folhas de Relva,
2011, p. 140).
28.  A primeira edição do Leaves of Grass, de 1855, foi publicada por conta do autor, sem a auto-
rização de uma editora para a sua impressão. Sendo o poeta, aprendiz de tipógrafo na juventu-
de, ele se permitiu alinhar, ou melhor, desalinhar as palavras e os modelos de página.

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terra por onde se passa, uma terra onde um caminho se traça e que
não tem vocação para se tornar uma linha - “an open road [uma estrada
aberta]”.
Quem são eles, esses caminhantes descompromissados? Whitman
os entoa em um de seus inúmeros versos - aqui, do mesmo poema:

Enjoyers of calms of seas and storms of seas,


Sailors of many a ship, walkers of many a mile of land,
Habituès of many distant countries, habituès of far-distant dwellings,
Trusters of men and women, observers of cities, solitary toilers,
Pausers and contemplators of tufts, blossoms, shells of the shore,
Dancers at wedding-dances, kissers of brides, tender helpers of children,
bearers of children,
Soldiers of revolts, standers by gaping graves, lowerers-down of coffins,
Journeyers over consecutive seasons, over the years, the curious years each
emerging from that which preceded it,
Journeyers as with companions, namely their own diverse phases,
Forth-steppers from the latent unrealized baby-days, […] (Leaves of Grass
1856, p. 234)29

Esses caminhantes não são exatamente indivíduos com contornos


bem definidos, átomos do social; mas funções, práticas: amantes dos
mares, acostumados a países distantes, beijoqueiros de noivas... A poe-
sia de Whitman realiza o que anuncia. Ela interroga o próprio indiví-
duo, o qual se torna uma modalidade de ação coletiva; o “eu” é volátil

29.  [N.T] Na edição brasileira: Amantes das calmarias dos mares e das tempestades dos mares,/ Ma-
rinheiros de muitos navios, andarilhos de muitas milhas, / Habitués de muitos países distantes, habitués
das casas mais distantes,/ Que confiam em homens e mulheres, observam cidades, trabalham solitários,/
Que param e contemplam ramo, botões, conchas marinhas,/ Que dançam nas/ festas de casamento,
beijam as noivas, ajudam com delicadeza as crianças, carregam as crianças,/ Que são soldados nas
revoltas, ficam de pé nas covas abertas, depositam o caixão,/ Que viajam consecutivas estações, anos
afora, os anos curiosos que emergem uns depois dos outros,/ Que vão acompanhados de suas próprias e
diversas fases,/ Que andam à frente de seus latentes e irrealizados dias de criança (Whitman, Canção
da estrada aberta, Folhas de relva, 2011, p. 138).

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e plural. Então ele pode se tornar ordinário ou selvagem. O trabalho da
escrita poética é aqui um trabalho de derrotar os contornos da palavra,
de disseminar o “eu”.
Desde a primeira edição do Song of Myself, o poeta se põe diante de
uma criança, talvez um avatar de si mesmo, e lhe pergunta: O que é a
relva? (What is the grass ?). A canção se desenvolve desfazendo o próprio
princípio da questão epistêmica: o que é isso?

A child said, What is the grass? fetching it to me with full hands;


How could I answer the child? . . . . I do not know what it is any more than
he. (Leaves of Grass 1855, p. 16)30

A palavra mais reflexiva do texto talvez seja o nome “grass”, tornan-


do-se uma paronomásia da expressão da conjectura (grass/guess) :

I guess it must be the flag of my disposition, out of hopeful green


stuff woven.
Or I guess it is the handkerchief of the Lord, […]
Or I guess the grass is itself a child . . . . the produced babe of the ve-
getation.
Or I guess it is a uniform hieroglyphic, (Leaves of Grass 1855, p. 16)31

Através da anáfora, a relva é ao mesmo tempo poeta, Deus, criança


e signo a ser decifrado. No final da seção, o poema ainda não responde-
ra à injunção da voz infantil; não teremos definido a palavra ou a coisa
senão retirando o limite e a linha, que poderia conter a proliferação da

30.  [N.T] Na edição brasileira: “Uma criança diz o que é grama? trazendo-as para mim com as mãos
cheias;/ Como posso responder para a criança? Eu não sei mais do que ela” (Whitman, Canção de
mim mesmo, Folhas de relva, 2011, p. 48).
31.  [N.T] Na edição brasileira: “Acho que pode ser a bandeira da minha disposição, tremulando de seu
verde-esperança./ Ou acho que é um lenço de Deus, [...]/ Ou acho que a própria grama é uma criança,
o bebê produzido da vegetação,/ Ou acho que é um hieróglifo uniforme” (Whitman, Canção de mim
mesmo, Folhas de relva, 2011, p. 48)

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analogia. Whitman repele o contorno o máximo que pode. A canção
implode o nome e a coisa ao desdobrar e multiplicar as relações numa
totalidade em expansão, a ponto de frustrar qualquer noção de interior
e exterior. A linha, novamente, se distancia; o texto devém assíntota de
toda a essência; o nome - unidade semântica definida pela linha para-
digmática que o opõe a seus antônimos (se acreditarmos em Saussure
retomado por Barthes) - não se sustenta mais. A língua, então, delira
em atrito com a possibilidade do inarticulado, do ruído.
Quando a relva devém carne, a língua devém grito. Álvaro de
Campos, aliás, Fernando Pessoa, não estava enganado: em Saudação
a Walt Whitman, ele celebra o rugido bárbaro (“bárbaro yawp”32) que o
poeta da estrada empurra no final de Song of Myself: “Deixa-me tirar
a gravata e desabotoar o colarinho. / Não se pode ter muita energia
com a civilização à roda do pescoço…”, glosa Pessoa33. O grito poé-
tico e inarticulado não se acomoda à discriminação primeira - aquela
que Rancière chama de “política”; aquela que separa a linguagem do
ruído, o poeta do animal, o civilizado do bárbaro. A poesia aqui é po-
lítica pelo próprio fato de esfumaçar esta linha, pois ela desafiar aqui-
lo que separa o corpo e a alma, o “eu” e o “tu”. Quando a linha, que
garantia o sentido, o nome, o conceito e até a essência, já não se sus-
tenta mais; quando a linha, que estruturava o sensível ao distribuí-lo
e que mantinha distinto o “eu” do “outro”34, se embaralha; quando,
enfim, não existe outra coisa a não ser a diferença interna, que frustra
até mesmo a crítica, o que resta - no próprio princípio da poética - é a
relação.

32.  “I too am not a bit tamed…. I too am untranslatable, / I sound my barbaric yawp over the
roofs of the world (Leaves of Grass 1855, p. 55). [Sou também nem um pouco domável, sou também
intraduzível,/É meu berro cheio de fúria o que lanço pelos telhados do mundo (Canção de mim mes-
mo, Folhas de Relva, 2011, p. 89)].
33.  Álvaro de Campos, Ode maritime et autres poèmes, trad. D. Touati et Michel Chandeigne,
Paris, Orphée La Différence, 1990, p. 126-127.
34.  [N.T.] Grifos do tradutor.

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A relação é um princípio proliferativo em Whitman. O “outro”35
não é uma opção: ele é a própria condição de emancipação de si. Reto-
memos os versos já citados:

From this hour I ordain myself loosed of limits and imaginary lines,
Going where I list, my own master total and absolute,
Listening to others, considering well what they say, (Leaves of Grass 1856, p. 226,
grifo meu)

Paradoxalmente, talvez, a liberação do “eu” proceda da negociação


com os outros. Nos termos de latourianos, a emancipação não é o inver-
so de um compromisso, mas é a escolha de uma articulação mais adequa-
da36. Nesse sentido, em Whitman, o advento da liberdade não depende-
ria tanto de uma libertação absoluta do eu (um eu liberal que exerceria,
ao enunciar, os direitos que lhe caberiam ser, então, defendidos) que da
própria instituição do social. Em outras palavras, a liberdade do indivíduo
democrático passaria pela instituição de vínculos corporais e carnais entre
“camaradas”. No entanto, esta não é a imagem que os críticos nos lega-
ram de Walt Whitman. Mesmo os leitores que acertadamente insistiram
na valência política das ligações eróticas do poeta, dificilmente se aventu-
raram a ler o inegável poder erótico da escrita de Whitman em conjunto
com o que me parece ser uma das propostas políticas essenciais de sua
poesia: a da auto-instituição democrática do social.

Whitman contra Whitman: por uma democracia na América


Que, em um poeta como Walt Whitman, a intimidade erótica seja tam-
bém política ou a promiscuidade amorosa e rebelde desenhada em seus
textos participe também do projeto democrático de uma América ainda

35.  [N.T.] Idem.


36.  “Emancipation does not mean ‘freed from bonds,’ but well-attached” (Bruno Latour, Reas-
sembling the Social: Introduction to Actor-Network-Theory, Oxford: Oxford UP, 2005, p. 217).

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à beira da ruptura – isso já foi bem desenvolvido pela crítica. A poética
de Whitman tem sido entendida como o reflexo e o instrumento de
uma democracia fundada sobre as relações amorosas entre estranhos;
vínculos que, para Peter Coviello, por exemplo, poderiam confrontar,
ou até mesmo superar, a linguagem da segregação racial que assolava
a democracia de seu tempo37. Mais recentemente, Erica Fretwell, lendo
Whitman através de Harney e Moten, conclui, por sua vez, que o pro-
jeto democrático americano é indestrinçável da própria forma do navio
cargueiro (hold), que reúne enquanto exclui, que performa o “nós” e o
poema, rejeitando para fora de suas fronteiras o outro racializado38. Se
para Fretwell a poética de Whitman não pode ser desprendida de uma
cumplicidade com um aparato estatal racista e opressor, Coviello per-
siste em traçar uma linha de demarcação entre um sonho democrático,
onde o Eros inventa o comum, e um Estado definido pelo monopólio
da violência e pela injustiça da lei. Para Coviello e outros, o final vibran-
te de Folhas de Relva - quando o poeta passa o bastão ao leitor estenden-
do a mão e oferecendo seu corpo para um abraço final - é um ato políti-
co: na própria performatividade do discurso, eu, você e quem quer que
seja (whoever you are39) somos apelidados de “futuros poetas” (“poètes à
venir”). E esse desejo só poderá ser desregulado e fora do perímetro -
para além da estrutura e contra o Estado.

37.  Ver Peter Coviello: “Intimate Nationality : Anonymity and Attachment in Whitman” Ame-
rican Literature 73. 1 (March 2001): 85-119. “What if the language of racial intimacy is, in fact,
complicated, entangled, and perhaps finally overruled by a rival model of intimacy and attach-
ment?” [N.T] E se a linguagem da intimidade racial for, de fato, complicada, emaranhada e talvez final-
mente dominada por um modelo rival de intimidade e apego?”, pergunta Coviello (2001, p. 99). Tra-
dução livre. “[I]t is difficult not to read sexuality as a counternarrative to the racial nationalism
Whitman sometimes endorses, since sexuality seems most intensely meaningful to him when
it expresses a nearly boundless human capacity for relation to others, for affiliation”. [N.T] É
difícil não ler a sexualidade como uma contra-narrativa ao nacionalismo racial que Whitman às vezes
endossa, uma vez que a sexualidade parece mais intensamente significativa para ele quando expressa
uma capacidade humana quase ilimitada de relação com os outros, de afiliação (p.100)”.
38.  Erica Fretwell, « Haptic Feelings », ed. Matt Cohen, The New Walt Whitman Studies, Cam-
bridge: Cambridge UP, 2020, p. 144-160.
39.  A expressão retorna incessantemente em Leaves of Grass, desde a primeria edição.

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Whitman’s love for America […] only barely exceeds his vitriolic contempt
for the state, its institutions, and its agents […].To be properly American is
thus, as Whitman conceives it, to feel oneself related, in a quite intimate
way, to a world of people not proximate or even known to oneself. […]
and from this belief springs his utopian vision of an America given cohe-
rence not by the state but by the passionate ties that join together its far-
-flung citizens (Coviello, p. 86, grifo meu).40

Coviello não é o único a traçar uma distinção clara entre projeto


democrático e gestão estatal. De acordo com uma tradição vivaz, da
qual a postura radicalmente anti-institucional de Harney e Moten é
sem dúvida a exacerbação, Whitman, o insurgente moderno, só podia
lutar contra um Estado, para o qual somente o que vale é a “lealda-
de” e a “obediência”41. Contudo, esse jogo de soma zero entre Estado e
democracia - mais Estado, menos democracia; mais democracia, me-
nos Estado - só tem como condição de definir o Estado como detentor
do monopólio da violência, sinônimo de uma burocracia despótica e
galopante, “o mais frio dos monstros frios” (Nietzsche) 42. Indubitavel-

40.  [N.T] “O amor de Whitman pela América [...] apenas supera seu desprezo mordaz pelo estado, por
suas instituições e por seus agentes [...]. Ser propriamente americano é, assim, como Whitman o concebe,
sentir-se relacionado, de uma forma bastante íntima, a um mundo de pessoas não próximas ou mesmo
conhecidas por si mesmas. [...] e dessa crença brota sua visão utópica de uma América tornada coerente
não pelo Estado, mas pelos laços apaixonados que unem seus distantes cidadãos”. Livre tradução.
41.  “Whitman cannot too often repeat that the nation is an entity not of institutions and abs-
tract structures but of relation: to talk of ‘America’ is to talk of the bonds of ‘beautiful and sane
affection of man for man’ that ‘effectually weld’ a dispersed and mutually anonymous citizenry.
The ‘real America’ is thus not to be found in the government, because governments deal only in
proclamations and strictures, to which one’s expected relation is that of allegiance or, more poin-
tedly, obedience” (Coviello, 2001, p. 87). [N.T] “Whitman não pode repetir muitas vezes que a
nação é uma entidade, não de instituições e restrições abstratas, mas de relação: falar da ‘América’
é falar dos laços de ‘bela e sã afeição do homem pelo homem’ que ‘efetivamente unem’ cidadãos
dispersos e mutuamente anônimos. A ‘verdadeira América’, portanto, não pode ser encontrada
no governo, porque os governos lidam apenas com proclamações e restrições, às quais a relação
esperada é de fidelidade ou, mais claramente, obediência” Livre tradução.
42.  Citado em Wendy Brown, States of Injury: Power and Freedom in Late Modernity, Princeton:
Princeton UP, 1995, p. 166.

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mente, o aparato estatal nos Estados Unidos do século XIX desenhou
os contornos da hegemonia racial com base na violência institucional.
Todavia, ao aceitar reproduzir, sem problematizar, a separação entre
o aparelho de Estado e uma série de práticas de governo de múltiplas
escalas e finalidade democrática (o que Michel Foucault designou sob o
termo de “estatização”43), os críticos da literatura americana ignoraram
toda uma parte da história do Estado e das tentativas de democratizá-
-lo. Fizeram não apenas de forma arriscada, mas também contrária aos
próprios textos. Os escritos de Whitman, sem exceção, estão repletos
de referências ao Estado e aos vários regulamentos em vigor na época
- o que torna gravemente complicada a leitura antiestado do poeta e
exige que revisitemos a oposição um tanto apressada, embora eficaz,
entre uma poesia de amores fugazes e a auto-instituição do social por
meio do estabelecimento de normas democráticas.

Às avessas: e o Estado em tudo isso?


O termo “instituição” pode inicialmente surpreender quando se trata
de Whitman. O poeta - impetuoso como de costume - ataca a questão
de frente em uma curta seção de Cálamo:

I HEAR it is charged against me that I seek to destroy institutions,


But really I am neither for nor against institutions,
(What indeed have I in common with them? or what with the destruction
of them?)
Only I will establish in the Mannahatta and in every city of These States
inland and seaboard,
And in the fields and woods, and above every keel little or large, that dents
the water,

43.  Michel Foucault, « Leçon du 31 janvier 1979 », Naissance de la biopolitique. Cours au Collège
de France (1978-1970). Edição feita sob a direção de François Ewald e Alessandro Fontana, por
Michel Senellart. Paris : Gallimard/Seuil, 2004, p. 79.

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Without edifices, or rules, or trustees, or any argument,
The institution of the dear love of comrades. (“Calamus,” Leaves of Grass
1860-61, p. 367-368)44

Como é comum, a voz poética levanta mais perguntas do que forne-


ce respostas. Entretanto, a própria insistência com que o poema martela
a palavra “instituição”, isto é, a retomada quase incongruente, na últi-
ma linha, onde a palavra é anexada àquilo mesmo que pareceria desafiar
qualquer instituição – “a ternura entre camaradas” – tem algo a inter-
pelar o leitor, mesmo aquele experiente com as contradições de Whit-
man. Que instituição é essa “sem edifícios nem regras” que o poeta quer
“fundar” na cidade, nos campos e sobre os mares dos Estados Unidos da
América? Se esse poema em forma de paradoxos nos impressiona ainda
hoje, é porque esquecemos que Whitman, antes de se tornar poeta de
Folhas de Relva, foi jornalista, editor de vários jornais – além de promotor
imobiliário! – e, como tal, ele esteve veemente implicado na política lo-
cal e nacional. Walter Whitman era, então, um ativista bem conhecido,
sempre pronto a usar a sua pena para defender as reformas do sistema
escolar, se preocupar com o aumento dos assaltos no Brooklyn, recla-
mar das condições das infraestruturas municipais, demandar uma me-
lhor gestão das águas residuais e da iluminação pública. Esse Whitman
não virava às costas para a regulação. Se ele criticava a corrupção dos
governos locais, não pedia a sua dissolução, mas antes, o seu fortaleci-
mento, exigindo: mais polícia e também mais regulamentação; tarifas
adaptadas para os usuários de barca; interdições que visassem preservar
o comum; o não corte de árvores sob pretexto de construção de bancos;
investimentos públicos em um parque bem iluminado e bem cuidado...

44.  [N.T] Na edição brasileira: “Ouvi aquilo que fui acusado, de querer destruir as instituições,/ Mas,
na realidade, não sou nem a favor nem contra as instituições,/ (O que eu teria em comum com elas? E o
que ganharia com sua destruição?)/ Apenas fundarei na Mannahatta e em todas as cidades desses Esta-
dos, do interior e do litoral,/ E em todos os campos e bosques e sobre todo barco pequeno ou grande que
singrar as águas,/ Sem edifícios, regras, fiadores ou qualquer discussão,/ A instituição do querido amor
dos camaradas” (Whitman, Cálamo, Folhas de Relva, 2011, p. 118).

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Todavia, com esse Whitman não sabemos muito o que fazer. Na análi-
se dos poemas, tendemos a deixar este Whitman de lado, o empregado
pelo governo federal, que trabalhava como secretário no gabinete do
Procurador-Geral em Washington logo após a Guerra Civil, de 1865 a
1873. Este personagem não corresponde ao carrasco das linhas, daquelas
que constrangem, daquelas que delimitam, que subscrevem a ordem e
servem aos interesses da gestão. Assim, a crítica geralmente pressupõe
uma distinção clara entre poeta e funcionário público, poeta e jornalista
ativista; o que contradiz, porém, com a sobreposição biográfica das duas
atividades e coloca em questão sua própria prática de escrita45.
Whitman, como sabemos, por seus manuscritos, gostava de compor
seus poemas, ou o embrião de seus poemas, no verso de folhas avulsas,
muitas vezes rabiscadas por ele. A seção de arquivos on-line dedicada aos
manuscritos de Whitman oferece aos leitores a capacidade de ver e de
ter, virtualmente em suas mãos, esses folhetos. A questão de como lê-los
permanece aberta e difícil. Lê-los segundo a lógica da linha paradigmá-
tica, que separa e distingue a prosa da poesia, as missivas amorosas dos
panfletos reformistas, é aceitar a lógica binária e categorial que reproduz
as exigências do sistema editorial - aliás, com o qual o próprio Whitman,
editor de suas obras, havia consentido. Essa lógica deixa intactos a obra e
o modelo heurístico, segundo o qual é necessário distinguir o Whitman
reformador e jornalista, do Whitman poeta. Ler esses manuscritos sem

45.  Em 1857, depois de ter publicado duas edições de Leaves of Grass, Whitman retoma, por
exemplo, sua função de editor em período integral no Brooklyn Daily Times, depois de um inter-
valo de nove anos. A respeito do Whitman jornalista, ver, por exemplo: Douglas A. Noverr, et
Jason Stacy, eds. Walt Whitman’s Selected Journalism. Iowa City: University of Iowa Press, 2015.
Sobre Whitman reformador e ativista ver: Malcolm Andrews, “Walt Whitman and the Ameri-
can City,” The American City: Literary and Cultural Perspectives. Ed. Graham Clarke. New York:
St. Martin’s, 1988, p. 179–197; Thomas Brasher, Whitman as Editor of the Brooklyn Daily Eagle.
Detroit: Wayne State UP, 1970; Mark Bauerlein, “Whitman and the City,” J. R. LeMaster and
Donald D. Kummings, eds., Walt Whitman: An Encyclopedia, New York: Garland, 1998, p. 121-
124 ; Dennis K. Renner, “Brooklyn Daily Times,” J. R. LeMaster and Donald D. Kummings,
eds., Walt Whitman: An Encyclopedia, New York: Garland, 1998, p. 81-82; M. Wynn Thomas, “La-
bor and Laborers” Donald D. Cummings, A Companion to Walt Whitman, Wiley, 2008, p. 60-75.

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procurar fazer uma triagem do que é poético e do que tangencia a polí-
tica, especialmente a municipal; lê-los de frente e segundo o princípio da
contiguidade, e não segundo a injunção da linha (aqui no sentido de cor-
te), é aceitar, em contrapartida, ser surpreendido por uma proximidade in-
trigante. Dois exemplos serão suficientes para ilustrar o que se ganha ten-
tando manter unidos Whitman, o insurgente, o onanista e o blasfemador,
e Whitman, o ardente defensor da regulamentação rigorosa, campeão da
temperança, da pureza e da proteção da moral.

Whitman de frente e verso: reversibilidades do Estado


democrático
Encontra-se, entre as inúmeras folhas avulsas, catalogadas no Walt
Whitman Archive, um manuscrito não datado, escrito sem dúvida em
torno de 1855, que apresenta no verso alguns versos (rasuras) e, na fren-
te, uma nota que trata do uso das vias públicas na cidade de Nova York.

Frente:
Citizens took by mutual agreement from the Jamaica turnpike Co the
charge and keeping of the Fulton st from the ferry up to sands street, and
made side-walks and pavement]46.
Verso:
From the tips of his fingers
from the breaths of his lungs
from the sparkle of his eyes,
from the odor of his body
[cut away]47

46.  Whitman Archive ID: loc.05704. [N.T] “Frente: Os cidadãos assumiram, de comum acordo com
a Jamaica Turnpike Co., a carga e a manutenção do Fulton st desde a balsa até a Sands Street, e fizeram
calçadas e ruas”. Livre tradução.
47.  Whitman Archive ID: loc.05705. [N.T] “Verso: Pelas pontas dos dedos/ da respiração de seus
pulmões/ do brilho de seus olhos,/ do odor de seu corpo [cortar]” Tradução livre.

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Na frente: o memorando relata uma decisão de moradores de um
bairro de Nova York exigindo que a construção de ruas e calçadas, até
então confiadas a uma empresa privada, passem a ser de sua responsa-
bilidade. A prosa se assemelha aos muitos textos jornalísticos escritos à
mão por Whitman que foram publicados no Brooklyn Daily Eagle, onde
ele foi editor de março de 1846 a janeiro de 1848, ou no Brooklyn Daily
Times, onde trabalhou no final da década de 1850. Se virarmos a folha,
o que a digitalização dos manuscritos permite 48, descobrimos outro
fragmento: a imagem de um corpo que nos convida à leitura, sem que
se saiba muito bem o que é o objeto, quem é o sujeito, ou, para usar a
definição de “háptico”49, de Harney e Moten, quem toca quem. O cor-
po anônimo aqui descrito é tocado pela pena do poeta, pelo olhar do
leitor ou por sua mão? Ou é o próprio leitor/poeta que se comove com
esse texto vibrante, que é agente ou “co-agente”, para usar as palavras
de Felski, ou que é parceiro no crime ou no êxtase? O fragmento fala
bem desta poética da relação que convida o leitor a inventar uma ou-
tra linguagem não mais desprendida, inquisitiva ou “crítica”, mas uma
linguagem conduzida pelo desejo. Como ler, então, essa expressão de
um afeto que tem toda a cara de parecer ilícito, com e não contra a exi-
gência de uma governança municipal - uma governança precisamente
incompatível, segundo Harney e Moten, com a fugitividade dos sub-
comuns? Como ler - contra a polícia da linha e, assim, sem solução de
continuidade - este apelo a uma governança mais eficaz e mais demo-
crática com esta dimensão háptica fugidia, definida como “aquilo que
não pode ser regulado, pelo menos com sucesso, por um Estado, uma
religião, um povo, um império”?
Rastrear a aparência desse fragmento na edição publicada de Folhas
de Relva confere a ele um pouco mais de textura: o corpo anônimo
que encontramos no manuscrito torna-se o do “selvagem” - branco,

48.  Trata-se da seção « In Whitman’s Hand » do site Walt Whitman Archive. (https://whitma-
narchive.org/manuscripts/transcriptions/index.html)
49.  [N.T.] Grifo do tradutor.

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indiscutivelmente -, oferecido ao toque de homens e mulheres que o
desejam e desejam ser tocados por ele.

The friendly and flowing savage . . . . Who is he? […]


Wherever he goes men and women accept and desire him,
They desire he should like them and touch them and speak to them and
stay with
them.
Behaviour lawless as snow-flakes . . . . words simple as grass . . . . uncom-
bed head
and laughter and naivete;
Slowstepping feet and the common features, and the common modes and
emanations,
They descend in new forms from the tips of his fingers,
They are wafted with the odor of his body or breath . . . . they fly out of
the glance
of his eyes. (Leaves of Grass 1855, p. 44)50.

Os leitores de Whitman estão familiarizados com as cenas de en-


contros fortuitos ou marcados em calçadas, ruelas, trens, balsas - esses
espaços públicos dos quais o poema poderia servir de avatar. Porém, ler
esse fragmento poético, transformado em poema, como um texto de
dupla face, nos leva a outra interpretação da potência erótica da poesia
whitmaniana. Uma vez que tais encontros clandestinos ocorriam nos
espaços que, de fato, nas décadas de 1840 e 1850, estavam em vias de
se tornarem públicos, logo, o afeto desenfreado a que o poeta se entre-
ga e, através dele, seu leitor, revela-se tributário do estabelecimento de

50.  [N.T] Na edição brasileira: Selvagem amigável e leve, quem é ele? [...]/ Para onde quer que ele
vá, homens e mulheres o aceitam e desejam,/ Desejam que ele goste deles, que os toque, que fale com eles,
que fique com eles,./ Comportamento tão sem lei quanto o dos flocos de neve, palavras simples como a/
grama, cabeça despenteada, sorridente e ingênuo,/ Passos lentos, feiões comuns, modos comuns e ema-
nações,/ Em novas formas eles descem da ponta de seus dedos,/ Flutuam com o odor de seu corpo ou seu
hálito e voam de um único olhar de seus olhos (Canção de mim mesmo, Folhas de relva, 2011, p. 77).

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uma governança do espaço urbano. Se, para voltar à expressão de Eri-
ca Fretwell (p. 145, tradução nossa), “o imediatismo sensorial servia de
lubrificante à visão de uma igualdade democrática de Whitman”, essa
fricção erótica, então, requer também uma máquina de governança
municipal para ser eficaz. Em outros termos, trata-se do contato amo-
roso, anônimo, fortuito entre corpos estranhos, aos quais são recusados
o reconhecimento e a legitimidade (em Whitman, operários, pedreiros,
mecânicos, condutores de balsas ou bombeiros fazem parte de funções
indexadas ao investimento no bem público). “Oh estrada pública, digo
novamente que não tenho medo de deixa-la, mas, ainda assim, eu te
amo”, escreve Whitman em Canção da estrada aberta (Folhas de Relva,
p. 134, grifo nosso). Novamente, em Canção de mim mesmo, ele celebra
esses lugares públicos onde os seus amantes o sufocam.

My lovers suffocate me!


Crowding my lips, thick in the pores of my skin,]
Jostling me through streets and public halls, coming naked to me at night, (Lea-
ves of Grass 1855, p. 50, grifo nosso)51.

Paradoxalmente, sem uma regulação pública, sem uma linha coerci-


tiva em nome do bem público, o frisson dissidente, a felicidade clandes-
tina do contato fugaz, talvez pudesse não se realizar.
Isso significa que a diatribe de Harney e Moten - contra a governan-
ça, a logística, a lógica de gestão, o Estado e a favor da fugitividade, do
escape por fora do sistema, e da aniquilação pura e simples da estru-
tura - só se mantém enquanto um discurso retórico e não tanto como
um programa? Que não poderia haver linha de voo sem que haja algu-
ma linha? Whitman e seus contemporâneos, de fato, e ao contrário de
certa leitura, tinham outro objetivo e buscaram soluções práticas para

51.  [N.T] Meus amantes me sufocam,/ Tumultuando meus lábios, densos nos poros da minha
pele, / Me empurrando pelos salões e pelas ruas, nus chegando à noite, (Canção de mim mesmo,
Folhas de Relva, p. 84,)

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“instituir” modalidades de vida em comum. Para tanto, tiveram que
responder a outros desafios: como fazer com que permaneçam juntos a
emancipação e o social, a fugitividade e o comum, a liberdade e as pró-
prias condições de sua possibilidade? Como as linhas coercitivas, que
são os regulamentos e proibições, poderiam escapar da arbitrariedade
de um Estado não democrático? Mais concretamente, como assegurar,
sem conciliar, ruas limpas, reguladas, pavimentadas e iluminadas52, com
amores rebeldes e a força insurrecional dos contatos clandestinos? Visto
que um não poderia passar sem o outro, como possibilitar uma institui-
ção, ou auto-instituição, não despótica do social? Whitman trata dessa
questão e a coloca no verso de um outro rascunho de poema.
Na frente do manuscrito, o poeta se lembra de suas paixões juvenis
que ficaram para trás. Todavia, quando retornamos aos folhetos, uma
outra voz se faz escutar – a do cidadão Walter Whitman, protestando
contra as deficiências da legislação municipal.

Frente53:
I am that foolish half grown ^angry boy, fallen asleep,
The tears of foolish passion yet undried
upon my cheeks.
Years with all their events pass for me,
Some are spent in travel—some in the hun

52.  Em um editorial do Brooklyn Daily Eagle datado de 16 de Agosto de 1847, Whitman se or-
gulha, por exemplo, dos méritos de “Myrtle Avenue”: “This wide and extended thoroughfare
seems likely to become one of the most business places in the city of Brooklyn […] It is re-
gulated, paved, lighted and pumped, to the “head of the pavement” … (ênfase do original) Cf.
https://bklyn.newspapers.com/image/50252008/>). [N.T]. “Esta ampla e extensa via parece
vir a ser um dos locais mais comerciais da cidade do Brooklyn […] É regulada, pavimentada,
iluminada e equipadas com bombas d’água, até ao ‘começo do passeio’”. Tradução livre.
53.  [N.A]. Whitman Archive ID: duk.00027. [N.T.]. Frente: Eu sou aquele tolo meio crescido menino
zangado, adormecido,/ As lágrimas da paixão tola ainda não secadas minhas bochechas./ Anos com to-
dos os seus eventos passam para mim,/ Alguns são gastos em viagens, alguns em títulos/ usual caça para
posterior fortuna./ Eu passo por viagens e fortunas? de quarenta e trinta/ anos, e envelhecer,/ Cada qual
em sua devida ordem vem e vai,/ E então uma mensagem aparece para mim]. Livre tradução.

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usual hunt for after fortune.
I pass through ^the travels and fortunes ? of forty thirty
years, and become old,
Each in its due order comes and goes,
And then a message for me comes.
 
Verso54:
 

Se Whitman se insurge contra “a pletora de leis, decretos, estatutos


e outras restrições” que, como mostraram recentemente historiadores,
juristas e sociólogos do Estado americano55, regulavam quase todos os

54.  [N.A] Whitman Archive ID: duk.00885. [N.T.] Imagem extraída do site Walt Whitman Archi-
ve. [Legislação municipal, convida exemplos de em um lugar alto, é sempre inclinada a ser intrometida, e
a sempre multiplica ordenanças, restrin[indo] e o melhor governo . Eu recomento a inteira abolição do sis-
tema todo inteiro de licenças ou permissões especiais para qualquer negócio, qualquer não importa qual
seja. Qualquer (O controle do governo municipal tem sobre as operações comprando operações comerciais
dos cidadãos deve ser feito por leis gerais, destinadas igualmente a todos, e não leis especiais, dando a um
homem ou a um conjunto de homens o privilégio de participar em qualquer trabalho, o qual está proibido
para o resto deles) –(Cada homem e mulher tem o direito legal, livre de qualquer tributo ou licença espe-
ciais para se envolver em algum passatempo ou negócio qualquer, sem gratuidade ou licença especial; e
responsável mais tarde as autoridade por qualquer negligência dele ou dela – o carroceiro ou o motorista,
por exemplo, quando ele obstrui a via pública – uma física para [qualquer?] grave injúria ao paciente – o
dono da taverna pelos hábito de manter incômodos habituais ou violação das regras de urbanidade do
bairro]. Livre tradução.
55.  “A distinctive and powerful governmental tradition devoted in theory and practice to the
vision of a well-regulated society dominated US social and economic policymaking from 1787
to 1877. […] that tradition matured into a full-fledged science of government by midcentury.
At the heart of the well-regulated society was a plethora of bylaws, ordinances, statutes, and

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aspectos da economia e da sociedade antes da Guerra de Secessão; po-
rém, ele não chega a recomendar a abolição de todo governo. Aqui, o
que ele tem como aspiração é o cancelamento do sistema de “licença
ou tributo especial” (“special tax or licence”). Por quê? Por se tratar de
regulamentos locais arbitrários. Em outras palavras, Whitman não está
pedindo a revogação de todas as formas de poder estatal - o risco no
fragmento “The best govern” sugere que ele considerou inadequado o
famoso slogan de que “O melhor governo é aquele que menos gover-
na”. O problema posto consiste no arbitrário do sistema local de regula-
ção e o remédio a ser encontrado está nas leis gerais, que se direcionam
para todos igualmente (“general laws, bearing equally on all” [leis gerais,
afetando igualmente a todos]). Qualquer um que vier a violar a linha
que protege o comum, sejam as vias públicas (“public thoroughfares”),
seja a urbanidade dos bairros ou a moralidade pública (“the decorum of
the neighborhood”), deve ser responsabilizado perante um órgão ema-
nado do povo considerado em sua totalidade. O que Whitman estig-
matiza, então, no verso de um de seus poemas dedicados às paixões da
juventude, não é nada menos do que a questão do estabelecimento de
formas não arbitrárias de regulação. Estamos longe de um “governo
que somente é retórica e restrição” (Coviello); longe, também, de uma
defesa dos subcomuns que os definiram como a antítese de qualquer
estrutura e de qualquer regulação, sob o pretexto de que toda regula-
ção é intrinsecamente criminosa, cúmplice da violência de Estado e da
opressão institucionalizada.
O Estado, ao contrário, deve ser democratizado, com a aposta nas
leis gerais e não no poder demasiadamente “especial” dos ordenamen-
tos “locais”. Ler os manuscritos de Whitman segundo o princípio da

common law restrictions regulating nearly every aspect of early American economy and so-
ciety, from Sunday observance to the carting of offal. These laws—the work of mayors, com-
mon councils, state legislators, town and country officers, and powerful state and local jud-
ges—comprise a remarkable and previously neglected record of governmental aspiration and
practice.” (William J. Novak, The People’s Welfare: Law and Regulation in Nineteenth-Century Ame-
rica, Chapel Hill: University of North Carolina Press, 1996, p. 1)

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contiguidade e não o da discriminação, ou ler Whitman, frente e verso,
é assim recuperar uma compatibilidade inimaginável entre Eros e insti-
tuição democrática do social, que não é distinta do amor entre camara-
das, mas que é a sua própria condição.

4. Staying with the Trouble, voltar à linha


Trata-se, portanto, de resistir à tentação de alistar Whitman nos bata-
lhões do antiestatismo, em que vimos serem também inscritos Thoreau,
Hawthorne, Melville, Douglass e outros. Ler a literatura dos Estados
Unidos do século XIX como o terreno privilegiado de um contrapoder
democrático concebido como uma resistência ao aparelho do Estado cer-
tamente deu frutos e nos permitiu sublinhar como esses textos propõem
uma crítica do Estado em nome da emancipação, de uma vigorosa so-
ciedade civil e da democracia. Essa visão limitada de um Estado que é
cúmplice da opressão em nome da supremacia branca e fiador de uma
vigilância generalizada, ou de um Estado que é desprovido de todo po-
tencial democrático, pode, no entanto, ter nos conduzido a um impasse.
Como se uma verdadeira redistribuição de recursos pudesse ocorrer sem
as políticas fiscais de larga escala; como se o racismo sistêmico pudesse
ser combatido sem uma autoridade pública responsável por todos; como
se, em outros termos, nós pudéssemos dispensar um Estado democráti-
co. Já é tempo de tornar a movimentar as linhas e de questionar a lógica
do paradigma, isto é, aquela da exclusão mútua da democracia e do Es-
tado – lógica da linha a que Whitman, bem como outros poetas de sua
geração, não subscreveram, conforme eu tentei demonstrar.
Em Democratic Vistas - texto que tantas vezes foi lido como o pro-
duto de um Whitman desiludido com o fracasso do sonho democrá-
tico - Whitman não diz algo de diferente do que dissera antes e, longe
de propor nos livrarmos de uma governança de Estado, ele ressalta a
urgência, em plena fase da Reconstrução, de democratizá-lo. Assim, re-
tornando ao tema da prática estatal, ele escreve:

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Anything worthy to be call’d statesmanship in the Old World, I should say,
among the advanced students, adepts, or men of any brains, does not de-
bate to-day whether to hold on, attempting to lean back and monarchize,
or to look forward and democratize—but how, and in what degree and
part, most prudently to democratize.56

Democratizar a prática de Estado (statesmanship), eis o desafio e a


urgência. A democracia whitmaniana não é fugitiva, ela não busca es-
capar de toda a estrutura; ao invés disso, é a estrutura e a governança o
que se precisa democratizar. Ele destaca e repete:

We believe the ulterior object of political and all other government, (ha-
ving, of course, provided for the police, the safety of life, property, and for the
basic statute and common law, and their administration, always first in order,)
to be among the rest, not merely to rule, to repress disorder, &c., but to
develop, to open up to cultivation, to encourage the possibilities of all
beneficent and manly outcroppage, and of that aspiration for indepen-
dence, and the pride and self-respect latent in all characters. (Democratic
Vistas, p. 218; grifo nosso)

As possibilidades ou perspectivas democráticas, tão caras ao poeta,


só serão viáveis uma vez garantidas – o parêntese é eloquente – a segu-
rança, a propriedade, a administração e a polícia, conforme eram en-
tendias no século XIX; ou seja, uma governança cotidiana e local que
permite uma vida em comum, onde cada um possa prosperar com
respeito ao outro e a si mesmo. A democracia whitmaniana não é o
inverso do Estado. A linha que os distingue não os opõe, ao contrário,

56.  [N.A] Walt Whitman, « Democratic Vistas » [1871] Complete Prose Works, Philadelphia: Da-
vid McKay, 1892, p. 221. [N.T] “Alguém digno de ser chamado de estadista no Velho Mundo, devo di-
zer, entre os estudantes avançados, especialistas ou homens com algum cérebro, não está debatendo, hoje,
se seria o caso de conservar, voltar atrás e monarquizar, ou simplesmente olhar para frente e democratizar
- mas como, e em que grau e parte, democratizar com mais prudência”. Livre tradução.

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ela nos convida a lê-los em conjunto, frente e verso - e não dos à dos [de
costas um para o outro]. A linha, nesse sentido, é mais a ligação do que
a fração. Ela convida a pensar segundo uma lógica da reversibilidade
poética e política - Eros e regulação, democracia e Estado. Se a demo-
cracia de Whitman permanece escandalosamente branca - o que deve-
mos sempre lamentar - sua provocação mantem-se e exige ser ouvida
e ampliada nesse momento; pois, no auge de uma pandemia mundial
que só faz exacerbar as desigualdades entre raças, classes, continentes e,
na medida em que paira sobre nós a ameaça de um desastre ambiental
planetário, continuamos apenas a abraçar a lógica da linha que opõe
democracia e Estado, insurgência e administração, tudo isso por nossa
conta e risco.
Assim, levando em conta que as democracias estão em crise, que o
republicanismo parece ultrapassado, que o liberalismo não seja mais
uma opção para muitos, urge, nesse momento, questionar aquilo que,
nos anos 2010, ainda parecia ser a única opção concebível: a rejeição da
linha – de forma paradigmática, política ou crítica - para abraçar a linha
de fuga: o escape para um outro lugar não regulado, onde o afeto em
comum sirva de princípio da insurgência. Voltar à linha hoje – confor-
me eu quis propor ao fazer este percurso pela literatura do século XIX
nos Estados Unidos – não consiste em regressar à logica da oposição
binária e à luta frontal entre amigos e inimigos, esta lei do paradigma
que sozinha garantiria o político; mas sim consiste em examinar como
a regulação não-despótica e a contestação criativa, como a estética e
a política, podem se entrelaçar. Voltar à linha, ao traçado da linha, é
se interrogar, novamente, sobre a eficácia da instituição, da adminis-
tração, que foram jogadas fora, apressadamente, junto com as águas
residuais do despotismo ou do totalitarismo; é recolocar a questão de
saber como o social pode se auto-instituir, isto é, se auto-regular, não
pela operação da mão invisível, mas pela prática cotidiana conjunta de
uma linha que garante a emancipação através dos diferentes registros de
vinculação. Não se trata, portanto, de acabar com a linha, de fazer uma

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apologia da flexibilidade ou da lógica do compromisso, pela qual a pró-
pria democracia tantas vezes pagou o preço; mas também não se trata
de fazer com que a linha tenha unicamente a responsabilidade de uma
salvação comum, como se somente ela pudesse garantir, através da
luta que engendra, um amanhã que exige menos falsidade. O que nos
diz Whitman - o Whitman cidadão do Brooklyn e o Whitman poeta -
é que temos tudo a ganhar tornando o traçado da linha contingente,
pragmático e provisório - a linha que, ao instituir regulações públicas,
consiste na própria condição das paixões livres e fugazes; na condição
também da governança sem a qual não há democracia - eis o nosso pro-
blema. Um problema com o qual precisamos, atualmente, e talvez mais
do que no século XIX, conviver, ou, para dizer com Donna Haraway,
um problema com o qual temos que permanecer57.

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O ESGOTAMENTO DA CRÍTICA
Letícia Paes

Introdução
O que queremos alcançar com os estudos críticos do direito? O que a
critica torna possível? Pode parecer uma pergunta ingênua, mas vale
a pena refletir sobre ela. O ato de criticar é realizado, mas o propósi-
to é realmente considerado? Quem são nossos inimigos? Esta é certa-
mente também uma questão fundamental para qualquer crítica, pois
a crítica nasce de um encontro com um inimigo que vale a pena ser
combatido, ou seja, de um encontro com um verdadeiro problema1.
Contudo, existem tantas teorias críticas sobre o direito que emergiram
no mundo acadêmico nos últimos anos2, que perdemos de vista essas
indagações óbvias.
Nessas breves reflexões, não temos como objetivo fazer um juízo
de valor sobre as teorias críticas que permeiam os estudos jurídicos,
mas o que esses diferentes aportes teóricos tem em comum é pensar
a lei e suas operações dentro de uma complexa relação com as ques-
tões políticas, sociais e econômicas que nos rodeia. Assim, a lei é apre-
sentada tanto como uma extensão do jogo do poder político quanto

1.  Referência ao conceito de falso problema desenvolvido por Gilles Deleuze. Em termos ge-
rais, falso problema é aquele que só se afirma negando.
2.  Seria um erro dizer que existe um movimento homogêneo do que se entende por estudos
críticos do direito, que corresponde a tradução da expressão em inglês critical legal thinking,
mas me refiro sobretudo ao movimento defende uma interpretação politicamente engajada do
direito, em oposição ao positivismo jurídico.

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como uma força compensatória contra os excessos do poder estatal.3
Em tais estudos, a questão analítica torna-se então uma questão de
como reconciliar essas diferenças operacionais aparentemente funda-
mentais dentro de um modelo de lei. Esta problemática é perseguida
juntamente com uma investigação dentro do eixo lei-política: se a lei
foi mobilizada para legitimar e dar autoridade ao poder estatal, pode-
ria um novo acordo (uma espécie de novo pacto) ser estabelecido para
que a lei sirva como uma forma de resistência contra os excessos do
poder estatal? Para muitos estudiosos do critical legal thinking, vindos
de uma formação constitucionalista, buscar as origens da autoridade
tornou-se um motivo central. Schmitt, por exemplo, é leitura essen-
cial, até o ponto de se tornar uma espécie de nova ortodoxia. Schmitt
é duplamente interessante para muitos desses estudiosos pela conexão
que ele faz entre o território (o espacial) e o estado (como governan-
ça daquilo que pode e foi esculpido, delimitado e fechado). Isso refle-
te não apenas com a preocupação de fixar as origens (a preocupação
constitucionalista), mas também com um interesse crescente na “es-
pacialidade”.
Esse artigo está interessado em refletir como pensamos a crítica
e, em termos geral, a imagem do pensamento em si. Também está
interessado em refletir sobre a espacialidade e as relações entre e di-
reito e política, mas de uma forma muito diferente daquela que se
tornou predominante nos estudos críticos. As formas dominantes de
engajamento teórico empregadas pelos representantes do critical le-
gal studies estão restringidas por um “uso” limitado do potencial do
que podemos pensar como “pensamento espacial” (ou talvez “espaço
para pensar”). Deleuze e Guattari estabeleceram uma distinção entre
“mero ​​traçar” (aquilo que já conhecemos ou estamos familiarizados)

3.  Ver por exemplo: Fitzpatrick, Peter. Law as resistance: Modernism, legalism, imperialism.
Farnham: Ashgate, 2008; Golder, Ben, and Peter Fitzpatrick. Foucault’s law. London: Routled-
ge-Cavendish, 2009; Matthew Stone, , Illan rua Wall, and Costas Douzinas. New critical legal
thinking: Law and the Political. Taylor & Francis Group, 2012.

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e formas de “mapeamento”, que nos ajudam a tornar visível o que é
difícil “ver” e “saber”, e com o qual ainda não estamos familiariza-
dos.4 Muito do desenvolvimento atual de uma dimensão “espacial”
dentro dos estudos críticos “traça” e repete o que já é história sedi-
mentada em modelos de lei, estado e política derivados de debates
políticos forjados no contexto dos séculos XVII e XVIII. Mesmo que
autores como Lacan, Zizek, Judith Butler, Foucault, ou Deleuze e
Guattarri, Fanon, entre outros, sejam utilizados por alguns autores
desse movimento, muitas vezes os limites traçados são excessiva-
mente simplistas entre direito e estado (lá fora) e estudos críticos do
direito (aqui).
Essa forma não nos permite lidar, totalmente, com o específico con-
texto político em que nos encontramos, em particular com o surgi-
mento das sociedades de controle5, atualmente intensificadas com a go-
vernança algorítmica, termo desenvolvido por Antoinette Rouvrouy.6
Ainda não desenvolveram modos de engajamento teórico que nos per-
mitam confrontar de forma satisfatória a política do direito dentro dos
mecanismos de controle. Em parte, isso ocorre porque o próprio sur-
gimento do controle é difícil de apreender - e assim permanecerá até
que tenhamos encontrado modalidades de estudo que nos permitam
visualizá-lo e articulá-lo.

4.  Deleuze, Gilles. 1992. Cinema 1: The movement-image (trans: Tomlinson, H. and B. Hab-
berjam).
London: The Athlone Press, p. 12.
5.  Foucault, Michel. 2000. Essential works of Foucault 1954–1984: Power (trans: Hurley, R.
et al.).
London: Penguin Books; Deleuze, Gilles. 1995. Postscript on control societies. In Negotiations
(trans: Joughin, M.). New York: Columbia University Press.
6.  ROUVROY, A. Data Without (Any)Body? Algorithmic governmentality as hyper-disadjoint-
ment and the role of Law as technical organ. General Organology Conference, University of
Kent, Canterbury, Reino Unido, nov. 2014; ROUVROY, A.; BERNS, T. Gouvernementalité algo-
rithmique et perspectives d’émancipation: Le disparate comme condition d’individuation par la
relation ? Réseaux, v. 1, n. 177, p. 163-196, 2013.

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CONTROLE
Deleuze no Pós-escrito sobre as sociedades de controle (1990) descreve bre-
vemente a passagem das sociedades disciplinares (das quais Foucault
foi o grande intérprete, mas também aquele que primeiro previu seu
fim) para as sociedades de controle. O caminho para as sociedades de
controle representa uma mudança profunda no que diz respeito à dis-
ciplina (que ainda hoje está presente, porém não mais de forma domi-
nante). Trata-se de estabelecer novas coordenadas espaço-temporais, já
que não se trata mais de lugares predominantemente fechados nem de
tempos de adestramento. Antes de descrever brevemente o controle e
suas técnicas de poder, vale lembrar que Deleuze não foi o único a nos
mostrar essa passagem, Foucault também escreveu sobre isso, usando
um termo diferente e amplamente conhecido como biopolítica.
As sociedades de controle oferecem uma nova espacialidade, que di-
fere da arquitetura disciplinar. Deleuze descreve, em particular, essa mu-
dança com a passagem da internação para a modulação e também com
o que ele denomina de “sociedades de comunicação” em que máquinas
cibernéticas e computadores se correspondem, estabelecendo um tipo
de comunicação que leva o nome de modulação que consiste na troca de
informações através de um sistema de input/output no qual a mensagem
transferida é baseada. Esse espaço de modulação deve ser interpretado
de forma totalmente negativa, uma vez que o risco é transformar a lin-
guagem e o comportamento do cotidiano no sistema binário da infor-
mática, ou seja, em um mundo de códigos cada vez mais controlável.
Precisamente por isso, as sociedades de controle não precisam mais
construir muros, já que podem facilmente exercer seu poder no espaço
aberto. Afinal, seria inútil trancar alguém quando se tem uma máquina
disponível a identificar sua posição a qualquer momento.
A modulação, dessa forma, é menos estática do que a internação,
pois pode mudar continuamente. Enquanto a disciplina tem que ho-
mogeneizar o espaço, o controle parece funcionar sem essa operação.
Enquanto os espaços disciplinares eram sólidos, os espaços de controle

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tornam-se suaves, mas não mais livres por conta disso. Agora os dispo-
sitivos de segurança são utilizados de forma que o poder não precisa
mais se apropriar de um território (como no regime soberano), nem
de construir um espaço (como acontecia na disciplina), pois passa a ser
o regulador de um meio, o que significa não tanto estabelecer limites e
fronteiras, ou fixar localizações, mas, predominantemente “viabilizar,
garantir e assegurar a circulação: a circulação de pessoas, mercadorias,
ar, etc.”7. Ou seja, as técnicas de poder simplesmente mudaram, não se
trata de julgar se é melhor ou pior, mas de fato, representam um sinto-
ma das sociedades contemporâneas que precisamos enfrentar.
No centro desse regime, não existe o objetivo de conquistar um ter-
ritório ou de estruturar um espaço para torná-lo mais eficaz e produ-
tivo, mas sim de construir um ambiente “vivo” e facilmente controlá-
vel. Para que isso aconteça, o novo poder precisa de outra operação,
desta vez referente a uma nova temporalidade. Não existe apenas uma
regulamentação do meio ambiente, mas também do inesperado e do
“caso”. Foucault fala em termos de uma nova relação entre o gover-
no e o événement.8 Enquanto a disciplina atua verificando cada detalhe
e procurando evitar a qualquer custo qualquer mudança considerada
negativa, os dispositivos de segurança aceitam a variação como par-
te da realidade e procuram estruturar o ambiente de acordo com os
eventos possíveis, que não serão evitados, mas serão regulamentados.

7.  Foucault, M., Security, Territory and Population, lesson of 18 January 1978. Edited by Mi-
chel Senellart. General Editors: François Ewald and Alessandro Fontana. Translation Graham
Burchell. UK: Palgrave: macmillan, 2007 p. 51[tradução livre]
8.  Foucault, M., Security, Territory and Population, lesson of 18 January 1978. Edited by Mi-
chel Senellart. General Editors: François Ewald and Alessandro Fontana. Translation Graham
Burchell. UK: Palgrave: macmillan, 2007 Na forma como Foucault entende o evento: ”Événe-
ment: il faut entendre par là non pas une décision, un traité, un règne, ou une bataille, mais un
rapport de forces qui s’inverse, un pouvoir confisqué, un vocabulaire repris et retourné contre
ses utilisateurs, une domination qui s’affaiblit, se détend, s’empoisonne elle-même, une autre
qui fait son entrée, masquée. Les forces qui sont en jeu dans l’histoire n’obéissent ni à une
destination ni à une mécanique, mais bien au hasard de la lutte”, Foucault, M., Dits et Écrits II,
1976-1988, Gallimard, Paris, 1996. p. 148.

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O acontecimento e o inesperado, que para o dispositivo disciplinar de-
viam ser absolutamente evitados por meio da imposição de normas,
agora não são evitados de forma alguma. A variação de um elemento
é posta em jogo com outras oscilações do real, para que este último
se contenha e se limite a si mesmo. É evidente que esta nova articula-
ção espaço-temporal que visa regular tanto o ambiente quanto o caso
particular, encontram sua própria expressão no plano econômico, isto
é, no neoliberalismo. Como nos lembra Foucault, este último não é o
simples renascimento do princípio liberal do “laissez faire”, mas a orga-
nização do mercado como um ambiente competitivo.
É precisamente neste ponto que surge um dos elementos funda-
mentais do novo regime de poder. Para que os dispositivos de segu-
rança funcionem e regulem efetivamente o meio ambiente (cada vez
mais redutíveis ao mercado), todos devem entrar em sua dinâmica. O
neoliberalismo assume, portanto, uma forte intervenção social voltada
para a inserção de todos no mercado mundial, e é assim que se eviden-
cia uma importante mudança no que diz respeito ao regime disciplinar.
Este último visava ao indivíduo e ocupava sua produção por meio de
um processo de subjugação social. O controle (ou o que Foucault deno-
mina de biopolítica), por outro lado, não tem mais como alvo o indiví-
duo, mas a população. 9
Obviamente, as tecnologias de segurança também se dirigem ao cor-
po agora entendido como uma multiplicidade, não como um organismo
individual. A população, portanto, deve ser entendida como uma massa,
cujo volume e densidade são considerados por meio de cálculos e esta-
tísticas. O que acontece com o indivíduo dentro dessa massa? Deleuze
cunhou a expressão ‘dividuais’10 a qual está associada a uma estratégia que

9.  Foucault, M., Security, Territory and Population, lesson of 18 January 1978. Edited by Mi-
chel Senellart. General Editors: François Ewald and Alessandro Fontana. Translation Graham
Burchell. UK: Palgrave: macmillan, 2007 p. 141
10.  Deleuze, Gilles. 1992 .“Post-Scriptum. Sobre as sociedades de controle”. In:Conversações:
1972-1990. Rio de Janeiro: Ed. 34

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não tem mais o seu eixo na subjugação social, mas na escravidão maquínica.
O funcionamento deste último nunca diz respeito a uma individualidade,
mas apenas a números. Enquanto o sujeito individual sempre foi concebi-
do a partir do dualismo entre sujeito e objeto, o dividual não se relaciona
nem com um objeto que se encontra, nem com outros sujeitos. A relação
que ele constitui é, em vez disso, com seu ambiente, que se tornou uma
máquina. Em outras palavras, não só o dividual não é um sujeito, mas
também não é uma pessoa, é antes uma função desta, que o faz ele mes-
mo uma peça/ conjunto da máquina, uma parte da engrenagem. O divi-
dual não é o usuário da máquina, como poderia ser o sujeito, pois agora,
sujeito e objeto, humano e não humano, não mais se distinguem. Juntos,
eles formam uma maquinaria gigantesca. A escravidão atua, portanto, na
construção dessa megamáquina, cujos agentes não são mais pessoas ou
indivíduos, pois apenas estão envolvidos os componentes moleculares,
intensivos e sub-humanos da subjetividade.
A escravidão maquínica, portanto, não é um poder personalístico;
não passa pela consciência, mas se utiliza da semiótica definida por
Guattari como assignifier11, como por exemplo o dinheiro, o código de
computador, o mercado de ações. São signos que atuam imediatamente
e transformam o real. Enquanto a subjugação social atuava em contato
direto com a política, colocando-se como uma potência externa peran-
te a sociedade civil, a escravidão maquínica opera junto com a econo-
mia e a ciência, repousando sob uma dimensão molecular imanente.
Baseia-se em forças pré-individuais e impessoais, portanto inconscien-
tes e a-subjetivas, ou seja, fluxos humanos, fluxos tecnológicos, fluxos
de signos, tudo misturado na máquina. Desta forma, não só o indiví-
duo é reduzido a uma figura / imagem, mas também a massa se torna
nada mais do que um imenso banco de dados. Assistimos, portanto,
ao desenvolvimento de uma modulação universal através das técnicas

11.  Guattari, F., La révolution moléculaire, Recherches, Paris, 1977; Lazzarato, M., Le «pluralisme
sémiotique» et le nouveau gouvernement des signes. Hommage à Félix Guattari, EIPCP, 2006, http://
eipcp.net/transversal/0107/lazzarato/fr .

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computacionais e das ciências estatísticas, que colocam o empreende-
dorismo no centro e desenvolvem um capitalismo que não se interessa
mais tanto em produzir, mas em vender. O foco do poder passa simbo-
licamente da fábrica para o mercado e para as finanças.
De acordo com Nathan Moore, as características normativas dos siste-
mas de controle e disciplina são semelhantes. Nas sociedades de controle,
as normas, como padrão de medida, ainda são extraídas de uma gama
de diferenças. Porém, os corpos não precisam se conformar a essas me-
didas, pois as normas existem apenas como uma abstração, como uma
forma de representar as qualidades de um determinado grupo. Enquanto
no regime disciplinar, a norma se refere a uma média e se articula imedia-
tamente com um espaço, ou seja, uma localidade para o poder agir, no
controle a norma não é capaz de ser ocupada como o espaço padrão por
nenhum indivíduo. O controle sabe bem que os corpos, exatamente por
serem corpos marcados pelas diferenças, divergem da norma. A norma
acaba sendo a impossibilidade de conformar os corpos e, por isso, o con-
trole celebra as diferenças e a promoção da divergência. Moore escreve:
“Ao contrário do propósito preciso da disciplina em excluir o anormal, o
propósito específico do controle é ramificá-lo. Ou seja, inovar, estimulan-
do a anormalidade como vetor de adaptabilidade”.12
No controle, a distinção entre normal e anormal deixa de ter impor-
tância. Vale a pena citar Moore novamente:

O controle retira a aparente garantia normativa no cerne do regime discipli-


nar, de forma que o indivíduo não está mais disponível, mas exposto. Aqui,
é menos uma questão de excluir, de antemão, o que é indesejável, mas de
economizar esse próprio poder de exclusão, de modo que o indivíduo seja
chamado, repetidamente, a se transformar - não a se tornar negativamente
‘normal ‘através da exclusão de’ anormalidade ‘, mas para exercer a exclusão

12.  Moore, Nathan (2013) Diagramming control. In: Rawes, P. (ed.) Relational Architectural Eco-
logies: Architecture, Nature and Subjectivity. Abingdon, UK: Routledge, p. 63. [tradução livre].

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como uma operação formal, onde o que é excluído deixa de ser importante,
ou mesmo de ter significado. A anormalidade de hoje é a normalidade de
amanhã, de modo que os dois termos deixam de ter qualquer distinção real -
ou, pelo menos, não funcionam mais como se fossem distintos.13

No entanto, a promoção do anormal é um gesto cínico de controle,


como parte do funcionamento axiomático do capital que visa um proces-
so de captura modulatória: “É a mobilização que o controle busca, uma
espécie de nomadismo relativo e perpétuo”14. Em vez de estabelecer o
que é desejável alcançar, o controle nunca permite que alguém alcance
nada. Enquanto nas sociedades disciplinares tudo recomeçava (da escola
ao quartel, do quartel à fábrica), nas sociedades de controle “nunca se ter-
mina nada”15. Diante das sociedades de controle, o padrão torna-se um
meio de inovação sobre a inovação, e o indivíduo não é considerado em
sua unidade, mas é sua dividualidade que importa, aquilo que “pode ​​ser
subdividido e dissecado em camadas cada vez mais finas. O indivíduo é
transformado em dados de informação onde o que conta não são as cau-
sas e efeitos, mas tendências e probabilidades.”16 Essa é a razão pela qual
Deleuze descreve os controles como modulação, como uma “como uma
peneira cujas malhas mudassem de um ponto a outro.”17
O maior perigo desse regime é a captura, não tanto e não só da liber-
dade do indivíduo e da população (afinal, não se poderia gozar de maior
liberdade no regime disciplinar), mas sim do futuro. A captura da dimen-
são utópica e virtual que Deleuze entende como essencial para a cria-
ção de um novo povo e uma nova terra. Se a disciplina tentou regular o
caso particular e tornar o inesperado impossível, o controle, por sua vez,

13.  Moore, Nathan. Proposta de manuscrito ainda não publicada. 2019 [tradução livre]
14.  Moore, Nathan. Proposta de manuscrito ainda não publicada. 2019, [tradução livre].
15.  Deleuze, Gilles. 1992 .“Post-Scriptum. Sobre as sociedades de controle”. In:Conversações:
1972-1990. Rio de Janeiro: Ed. 34, p. 219-226.
16.  Moore, Nathan. Proposta de manuscrito ainda não publicada. 2019 [tradução livre]
17.  Deleuze, Gilles. 1992. “Post-Scriptum. Sobre as sociedades de controle” (...), p. 220.

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aprendeu a conviver com o inesperado do caso, mas apenas “levando-o
em conta”, subtraindo-o à dimensão do inesperado. No entanto, os de-
senvolvimentos atuais na ciência da computação e nas ciências estatísticas
não se contentam mais em levar o “caso” em consideração, mas parecem
ter se tornado capazes de prevê-lo. É assim que surge o cenário denomi-
nado governança algorítmica18 e que não deve ser entendido como uma
nova arte de governo, mas sim como uma intensificação das técnicas de
controle, segurança e escravidão. Uma captura sem precedentes da expe-
riência dos indivíduos é característica de nossa era contemporânea, nos-
so tempo livre aproveitado e colocado para trabalhar. O tédio parece ser
análogo ao que a justiça era para Kaf ka, tecnicamente possível, mas não
para nós. Poderia algum sujeito contemporâneo reivindicar hoje estar “vi-
vendo bem”, como Aristóteles previra para aqueles que estavam na polis?

IMAGEM DO PENSAMENTO
A imagem do pensamento19 em que vivemos funciona como um meca-
nismo de frustrar o próprio pensamento. Tanto que acreditamos que a

18.  A governança algorítmica, expressão cunhada pela filósofa do direito Antoinette Rouvroy,
representa a situação atual de intensificação e radicalização da biopolítica e das sociedades de
controle. Trata-se de uma nova forma de governar, orientada a antecipar, modular e selecio-
nar as oportunidades e ações futuras dos indivíduos, por meio do monitoramento de dados
e meta-dados de seus “perfis” intrapessoais e, de forma mais geral, por meio de dispositivos
digitais informatizados de captação e coleta desses dados que formam o material com o qual as
redes digitais se organizam. Rouvroy desenvolve uma compreensão mais profunda a respeito
do conceito de “dividual”, no sentido de uma reativação da crítica deleuziana das sociedades de
controle. É uma compreensão mais contemporânea das sociedades de controle de hoje que vai
além da análise de Deleuze, na qual estamos testemunhando uma digitalização do mundo e do
indivíduo, o que novamente modifica o espaço-tempo nos atos de poder. Como mencionado,
trata-se, em particular, da redução da espacialidade e temporalidade a meros dados e códigos,
provocando a intensificação dos dispositivos de segurança e da escravidão maquínica.
19.  O termo “imagem” é usado da forma como Deleuze usa em Diferença e Repetição, onde ele
desenvolve o conceito de imagem do pensamento. A imagem do pensamento pode ser pensada
como um conceito preocupado com o surgimento de imagens especificas que surgem dentro de
determinadas circunstâncias. Ou seja, as imagens fazem parte de um processo de desenvolvimento,
transformação e complicação em torno da construção do modo como pensamos.

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ditadura financeira veio para ficar20, com todos os seus modos subsidiá-
rios de raciocínio: a maximização do lucro e o consenso quase universal
do valor da abstração matematizada para a governança da vida cotidia-
na. Estamos continuamente lutando com uma imagem de pensamento
que é simultaneamente pressuposto para o pensamento começar, e que
também funciona para impedir o próprio pensamento. É por isso que
falamos a linguagem da abstração, e as decisões são baseadas em infor-
mações, dados e estatísticas. Uma ponderação de riscos, probabilidade,
em uma tentativa de prorrogar o futuro. Uma preocupação com o fu-
turo que visa afastar qualquer ameaça em potencial, inclusive a ameaça
de qualquer crítica eficiente ao funcionamento desse sistema.
É nesse sentido que se pode entender a noção de realismo capitalista
de Mark Fisher como “uma atmosfera penetrante, condicionando não
apenas a produção de cultura, mas também a regulação do trabalho
e da educação, e atuando como uma espécie de barreira invisível que
limita o pensamento e a ação”.21 Um sistema que se alimenta de so-
nhos, desejos e potencialidades, mas também das críticas ao seu próprio
funcionamento. Estruturada sob a premissa de renovação e reativação
constante, a máquina convida ativamente a criticar, solicita reclama-
ções e cria um espaço para divergências; uma força verdadeiramente
totalizadora. O pensamento e a crítica surgem como um jogo que deve
ser sempre jogado nos termos do déspota.
Nesse sentido, somos facilmente capturados por um labirinto episte-
mológico: explicamos, criticamos e denunciamos, lemos comentários e
comentários sobre comentários. Testemunhamos revelações que não re-
velam nada além da revelação em si. Do mesmo modo, o movimento da
crítica do direito, não consegue produzir nada novo além da crítica. No
máximo a crítica que impulsiona a luta por direitos consegue reconhecer

20.  Como Mark Fisher escreveu parece mais fácil imaginar o fim do mundo, do que o fim
do capitalismo. Em: Fisher, Mark. 2009. Capitalist realism: Is there no alternative?. Winchester:
Zero Books.
21.  Fisher, Mark. 2009. Capitalist realism: Is there no alternative?. Winchester: Zero Books, p. 16

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certos direitos, mas ela nunca é suficiente, tal como ela se propõe, para
transformar a lógica de poder dominante que é rapidamente reestabeleci-
da. Como Briam Maussumi nos lembra: “É fácil ser contra as coisas, mas
é difícil colocar-se por algo e saber como produzi-lo”.22 É ainda mais difícil
entender, exatamente, o que estamos combatendo ou criticando, já que
o inimigo não é claramente visível, mas, como já mencionado sobre os
mecanismos de controle, caracterizado por um monitoramento contínuo,
onde o poder muda para se conformar ao fluxo do capital e de troca, for-
çando sobre nós um modo de existência que celebra as diferenças, desde
que estas operem em consonância com os desejos do capital.
A imagem deve ser compreendida como radicalmente desestabiliza-
dora. Não podemos mais estar presos ao preceito ontológico da neces-
sidade de, por exemplo, criar um “outro” como algo exterior, combina-
do a necessidade de criar um ponto de referência externo estável como
forma de recusá-lo. Não existe uma perspectiva transcendente ou justiça
a partir da qual uma situação possa ser completamente compreendida
ou radicalmente transformada. Este é um erro rudimentar de muitas
teorias críticas: criticar a lei em nome de outra lei abstrata, como su-
perior; pensar que a primeira questão é estabelecer o fundamento ou
a justiça de nossa crítica.23 Precisamos de novas formas de mapeamen-
to, novas práticas espaciais, caso contrário, nos limitaremos a recontar
velhas histórias (mesmo se, aparentemente, a intenção seja outra). Em
particular, os modos de construção de modelos que presumem a ne-
cessidade de uma origem ontológica e, portanto, continuam a buscar
uma solução final, ignoram os desenvolvimentos críticos tanto da ciên-
cia quanto na filosofia, que têm desafiado fundamentalmente como nós
‘pensamos’, como podemos ‘saber’. Se o pensamento falha em captar
o seu começo, diz Deleuze, é precisamente porque estamos sempre no

22.  Massumi, Brian. 2005. A shock to thought. Expression after Deleuze and Guattari. Routledge:
London. p. 103. [Tradução livre].
23.  Da Costa Paes, L. Rethinking Critique: Becoming Clinician. Law Critique 30, 265–289
(2019), p.8

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meio, não há começo, apenas devires. Não existe uma “essência”, uma
vez que a lei é continuamente moldada e modificada pelas muitas rela-
ções e forças nas quais está envolvida.
Isso nos leva diretamente ao problema do problema: é uma questão
de descobrir algum princípio, alguma verdade, a partir da qual os proble-
mas são formulados? Há algo necessário no problema que pode nos pro-
teger, indo à frente de nós, já estando lá? Um princípio abstrato a partir do
qual todas as possibilidades se seguem? Isso é inteiramente correto, desde
que se compreenda que o princípio não estava lá, esperando que o esgo-
tássemos: antes, o princípio foi construído para tornar possíveis as possi-
bilidades em questão - as escolhas aparentemente necessárias. No estudo
de Stenger sobre Whitehead, isso fica claro: um princípio, uma hipótese,
é apresentado, não para testar sua verdade, mas pelo que tal princípio ou
hipótese torna possível.24 Similarmente, o argumento de Nietzsche é de
que os gregos inventaram seus deuses por um sentimento de gratidão: os
deuses tinham que ser inventados para possibilitar um modo particular
de vida, para tornar possível um particular modo de vida. Querendo che-
gar à essência das coisas, consideramos que o problema é determinado
por este ou aquele princípio, em vez do princípio dos princípios em si,
ou seja, o problema do problema; mas como Whitehead afirmou: não é
o abstrato que explica o real (o concreto), e sim a própria abstração que
requer, em primeiro lugar, uma explicação.25

ESGOTAMENTO DA CRÍTICA
Se insistirmos em enquadrar a crítica, ou a imagem do pensamento,
em referência a um princípio específico, acabamos perdendo de vista
os mecanismos de poder desestabilizadores que operam no mundo

24.  Isabelle Stengers, Thinking with Whitehead: A Free and Wild Creation of Concepts 16–18
(Michael Chase trans., 2011), pp. 77-78
25.  Isabelle Stengers, Thinking with Whitehead: A Free and Wild Creation of Concepts 16–18
(Michael Chase trans., 2011), pp. 77-78

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contemporâneo e, consequentemente, a possibilidade de transforma-
ção em algo novo26. O capitalismo não precisa de nenhuma lei trans-
cendente para operar, o que torna a crítica do capitalismo pela lei27 só
mais um instrumento delirante a serviço do próprio capital. Em termos
espinosistas, ainda não sabemos o que a crítica pode fazer, e talvez seja
necessário esgotar a própria operação do pensamento crítico, para a
possibilidade de transformar tanto a esfera do pensar quanto do agir.
Nesse sentido, o “esgotamento da crítica” é o potencial para repensá-la.
De acordo com Deleuze, o esgotado é muito mais do que o cansado.
Diferente do cansado que percorre todas as possibilidades, fazendo es-
colhas atrás de escolhas, o esgotado não busca possibilidades, mas bus-
ca o esgotamento do problema ou do princípio específico que tornou
as possibilidades possíveis em primeiro lugar. Ou seja, é o esgotamento
das possibilidades, não pela realização de cada uma delas, mas pelo es-
gotamento do princípio de abstração que as tornou possíveis. Nas pala-
vras do Deleuze:

O cansado não dispõe mais de qualquer possibilidade (subjetiva) – não


pode, portanto, realizar a mínima possibilidade (objetiva). Mas esta per-
manece, porque nunca se realiza todo o possível; ele é até mesmo criado à
medida que é realizado. O cansado apenas esgotou a realização, enquanto
o esgotado esgota todo o possível. O cansado não pode mais realizar, mas
o esgotado não pode mais possibilitar.28

Deleuze explica que o esgotamento não é algo que acontece no fi-


nal do dia, pois a pessoa está esgotada desde o início. Ela está esgotada
mesmo antes do nascimento, porque é apenas a partir do esgotamento

26.  O novo pode sempre ser novamente capturado.


27.  Muito comum encontrar na literatura dos estudos críticos do direito um apelo pela mudan-
ça “radical” da sociedade através da lei como instrumento de resistência.
28.  Deleuze, G. “O esgotado”. In: Machado, R. [Org.]. 2010. Sobre o teatro. Rio de Janeiro: Zah-
ar, p. 22.

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que ela é capaz de nascer, ou seja, é apenas no esgotamento que é pos-
sível ser afetado. Por que isso acontece? O esgotamento, por ter acaba-
do com as possibilidades de um problema, possibilita a possibilidade de
uma ordem diferente, em que ocorre a transição de um problema para
outro. É o esgotamento que leva um problema para outro: uma linha
de fuga. No entanto, a questão é que o problema não é dado de ante-
mão, não é uma abstração esperando para ser descoberta, mas algo que
precisa ser construído. Possibilidade é artifício, mas esse esgotamento
não envolve escolha: a pessoa é transportada, implacavelmente, para
um novo problema, o que significa que ela não tem escolha a não ser
empreender a construção desse novo problema, elaborar um novo con-
junto de possibilidades nessa transição.
Não é, portanto, uma questão de escolher o melhor ou menos pior,
mas colocar em prática um vetor de desterritorialização total.29 Seguin-
do Deleuze, a crítica nunca será uma simples oposição nem denúncia.
No caso específico do direito, não basta dizer não para a lei em nome de
uma outra instância de julgamento. Nesse caso, dobramos o problema:
é a imagem transcendente da lei mais uma vez. Presumir como julgar
como teórico ou crítico do direito significa um fracasso na construção
de uma prática que permite o surgimento de qualquer “novo modo de
existência”. O julgamento se preocupa em repetir o passado, falta-lhe
futuro. No entanto, não temos possibilidade de saber de antemão quais
relações se revelarão boas ou más, mas cada uma de nossas existências
surge como um experimento preocupado em descobrir. Não há possi-
bilidade de um conhecimento total, não há Ser do qual emergem todas
as outras coisas, mas devires.
Se afirmamos saber de antemão o que a imagem da crítica ou do
pensamento pode fazer, estamos separando-a de seu poder de agir. A
crítica passa a ser um instrumento de busca de “aprovação”, em vez

29.  “Nietzsche reinvents a total critique which is at the same time a creation, a total positivity”,
Deleuze, Gilles. Capitalism and schizofrenia. In Desert islands and other texts (1953–1974) (trans:
Taormina, M.), ed. David Lapoujade. Cambridge: MIT Press, 2004. p. 139

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de afirmar a diferença. Nessas circunstâncias, a diferença é crucifica-
da, tornando-se, citando Deleuze, um objeto de representação “sem-
pre em relação a uma identidade concebida, a uma analogia julgada,
a uma oposição imaginada, a uma similitude percebida (...)”30. Essa é
o tipo de comunicação cansativa, que passa de uma questão a outra,
sem questionar o que a abstração torna possível, o problema é pensa-
do em termos kantianos (mesmo que toda teoria crítica o critique) em
que se espera que o bom ou o melhor possa ser recuperado em nome
de uma justiça, comunidade ou ontologia reconhecível. O cansado é
aquele que revindica a falta de legitimidade da lei ou demanda leis e
intuições mais efetivas, buscando sempre um “outro” como redenção
(estudos críticos do direito, estudos decoloniais, etc). Importante notar
que não se trata de tendências opostas, mas funções necessárias de um
capitalismo que opera no limite da comunicação, capturando a própria
crítica ao sistema. Como Franco Berardi escreve, é a “proliferação de
tagarelice, irrelevância de opinião e discurso, e de tornar o pensamento,
a discordância e a crítica banais e ridículas.”31 Nestes termos, reivindicar
uma escola crítica de pensamento que visa destruir o inimigo, acaba
alimentado o seu desejo.
Abstrações não são pré-estabelecidas, mas devem ser moldadas no
contexto de um problema concreto e urgente: a figura do esgotado, ao
invés do crítico, esse ser chato e cansado que permite a realização sem
fim das possibilidades sem nunca permitir que a própria realização se
esgote. Isso exige trabalho braçal e o desenvolvimento de métodos para
pensar com intensidade: isto é, pensar em movimento. Na medida em
que isso não é apreendido, fica-se atrás da operação de um semiocapita-
lismo32 que entendeu plenamente o que são as imagens, mas à maneira

30.  Deleuze, Gilles. 2018. Diferença e Repetição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, p. 136.
31.  Beradi, Franco Bifo. After the Future. Gary Genosko & Nichols Thoburn eds., Arianna
Bove et al. trans., 2011, p. 109. [Tradução livre].
32.  De acordo com Berardi: “O semiocapitalismo é o modo de produção em que a acumulação
de capital se faz essencialmente por meio da produção e acumulação de signos: bens imateriais

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de um grande caçador, capturando a imagem para estabilizá-la (colocá-
-la em um lugar adequado), e nos cansar. Consequentemente, a pessoa
é encorajada a nutrir seu “ponto de vista”33. Basta pensar na necessida-
de de “tweetar” tudo que nos apavora.
É necessário desestabilizar os relatos de padrões espaciais que depen-
dem de posicionamentos opostos: dentro/fora, perto/longe, etc. Deve-
mos deixar de nos fixar em limites e recusar o esvaziamento do meio
termo, mas, ao dizer isso, não se pretende encontrar neste “espaço” o
lugar de ausência. Ao invés disso, o que foi esvaziado, negado, são os
fluxos transversais confusos e vazantes que não podem ser contidos por
dualismos e fronteiras. O que é necessário agora é encontrar maneiras
de trazer à visibilidade esse meio desordenado e as correntes cruzadas
que fluem entre ele; padrões diferentes de pensamento, permitindo-nos
explorar e criar terrenos novos e desconhecidos - uma espacialidade di-
ferente, para uma política orientada para o futuro. Talvez não à toa,
Deleuze falava de seu interesse pela jurisprudência associando-a a vida,
“uma vida” nunca compreendida com uma forma a ser alcançada, mas
como uma forma de respeitar o caso concreto, o contingente, o sin-
gular. Seria um movimento modesto porque não visa nenhum plano
revolucionário, mas uma forma de se engajar com movimentos reais
que nos deparamos: controle, imanência, impessoalidade... A questão,
portanto, não é “O que deve ser feito?”, mas trata-se de colocar imedia-
tamente em prática um vetor de desterritorialização. Ou seja, nenhuma
crítica é capaz de destruir o inimigo, a não ser que seu modo de operar
se torne insustentável. Apenas o esgotado pode fazer isso.

que atuam na mente coletiva, na atenção, na imaginação e no psiquismo social. Graças à tec-
nologia eletrônica, a produção passa a ser elaboração e circulação de signos. Isso acarreta duas
consequências importantes: que as leis da economia acabem influenciando o equilíbrio afetivo
e psíquico da sociedade e, por outro lado, que o equilíbrio psíquico e afetivo que se espalha na
sociedade acabe atuando por sua vez sobre a economia.” [tradução livre] https://www.lavaca.
org/notas/quien-es-y-como-piensa-bifo/ Acesso em 15 de outubro de 2020.
33.  Nesse sentido, ver: Sherwin, Richard k. Visualizing Law in the Age of the Digital Baroque:
Arabesques and Entanglements. Front Cover. Richard K.. Routledge, 2011

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REFERÊNCIAS:
Deleuze, Gilles.“Post-Scriptum. Sobre as sociedades de controle”. In:Conversações:
1972-1990. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.
________. “Capitalism and schizophrenia”. In Desert islands and other texts (1953–1974)
(trans: Taormina, M.), ed. David Lapoujade. Cambridge: MIT Press, 2004.
________. “O esgotado”. In: Machado, R. [Org.]. 2010. Sobre o teatro. Rio de Janei-
ro: Zahar
________. Diferença e Repetição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2018
Da Costa Paes, L. Rethinking Critique: Becoming Clinician. Law Critique 30, 265–289
(2019). https://doi.org/10.1007/s10978-019-09249-4
Guattari, F., La révolution moléculaire, Recherches, Paris, 1977
Beradi, Franco Bifo. After the Future. Gary Genosko & Nichols Thoburn eds., Arian-
na Bove et al. trans., 2011
Fisher, Mark. 2009. Capitalist realism: Is there no alternative?. Winchester: Zero
Books, p. 16
Lazzarato, M., Le «pluralisme sémiotique» et le nouveau gouvernement des signes. Hommage
à Félix Guattari, EIPCP, 2006, http://eipcp.net/transversal/0107/lazzarato/fr .
Moore, Nathan (2013) Diagramming control. In: Rawes, P. (ed.) Relational Architectu-
ral Ecologies: Architecture, Nature and Subjectivity. Abingdon, UK: Routledge, pp. 56-70.
Massumi, Brian, A shock to thought. Expression after Deleuze and Guattari. Routled-
ge: London 2005
Sherwin, Richard k. Visualizing Law in the Age of the Digital Baroque: Arabesques
and Entanglements. Front Cover. Richard K.. Routledge, 2011
Stengers, Isabelle. Thinking with Whitehead: A Free and Wild Creation of Concepts
16–18 (Michael Chase trans., 2011

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DROPANDO KAFKA NAS
SOCIEDADES DE CONTROLE
Renan Nery Porto

N um artigo recente sobre o esgotamento do mundo e as condições


materiais de reflexão sobre mundos possíveis na filosofia con-
temporânea, Rafael Saldanha traça muito bem uma metamorfose da
percepção do tempo desde o início da modernidade até os seus atuais
pontos de tensão e torção, que ainda não se sabe bem o que pode virar,
mas já se anuncia como esgotamento e cancelamento do futuro (SAL-
DANHA, 2019).
Essa metamorfose desemboca num futuro que se apresenta agora
enquanto risco a ser administrado e minimizado em sua complexida-
de. A relação com o futuro se orienta pela securitização máxima do
presente e tudo o que se apresenta como ameaça deve ser extermina-
do. Enquanto a forma de experienciar o presente por parte dos sujeitos
se torna um constante cálculo de investimentos e probabilidades dos
resultados que se pode ter a cada ato. Se um dia houve para alguns a
abundância que permite a liberdade despojada e inconsequente, hoje
há para muitos a escassez que exige maior cuidado a cada aposta.
É interessante observar como pensadores do mercado vem pensan-
do isso e há tempos já traçam estratégias para lidar com essas transfor-
mações. No seu clássico livro sobre Gestão de Pessoas (2009), Idalberto
Chiavenato tem como uma forte referência o livro do sociólogo espa-
nhol Manuel Castells, A Sociedade em Rede: A era da informação (1996).

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Chiavenato descreve as formas de organização das empresas correspon-
dentes a cada contexto histórico: organizações burocratizadas e hierar-
quizadas, com lideranças centralizadas, no contexto da era industrial
e no modelo de produção fordista; organizações departamentalizadas,
com decisões distribuídas por setores, no início das sociedades pós-for-
distas; por fim, organizações descentralizadas, com decisões distribuí-
das, não mais orientadas por regras rígidas, mas orientadas a valorizar
mais os resultados positivos que os meios para alcançá-los, o que de-
pende mais da capacidade criativa e agilidade dos funcionários que de
qualquer comando prévio.
Esse modelo de gestão visa corresponder a um contexto de incerte-
zas, mudanças constantes e muita fluidez. Portanto, ele coloca como
princípios de gestão valores como flexibilidade, tolerância com a am-
biguidade, criatividade e inovação. Por outro lado, para os sujeitos que
trabalham para essas empresas, quando há emprego, a vida precária
diante da incerteza constante é insuportável e desencadeia uma série
de problemas de saúde mental, aumentando os níveis de ansiedade, de-
pressão, baixa autoestima, insegurança etc.
Esse conjunto de transformações nas formas de produzir, trabalhar
e administrar a partir de modulações de tendências e previsões se co-
necta bem ao que Deleuze chamou de sociedades de controle (DELEU-
ZE, 2010), em que o poder é exercido como antecipação de condutas
possíveis, estimadas a partir de probabilidade algorítmica e estatísticas
extraídas das informações acumuladas em redes digitais e mecanismos
de vigilância. O modelo de governo e condução das condutas nessas
sociedades passa a fazer maior uso de ferramentas da cibernética. Uma
ciência que se desenvolve nos anos 50 por autores como Norbert Wie-
ner, William Ross Ashby, John von Neumann, Frank Rosenblatt, dentre
outros. A cibernética tem como focos principais a comunicação, a in-
formação, a organização e o controle. Com canais de comunicação po-
tentes e imediatos fazendo circular torrentes de informações e dados,
maior a capacidade de predição e controle dos sistemas e das trocas de

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informações entre eles; suas trocas de inputs – as informações que re-
cebem e são processadas a partir de seus códigos internos, que os dife-
renciam do ambiente – e outputs, as decisões tomadas depois do proces-
samento das informações recolhidas. E não paramos de alimentar os
algoritmos com informações através do uso intenso de redes sociais e
internet.
Parece até meio absurdo pensar como funciona uma rede social.
Você cria um espaço para as pessoas se comunicarem, se expressarem,
se conhecerem etc. A própria interatividade delas é o trabalho que pro-
duz informações, dados, afetos e sociabilidades que enriquece a rede de
informações e a sustenta. É uma invenção realmente inteligente. Mas
meio perversa: tudo isso que é produzido aqui é explorado estatistica-
mente para aperfeiçoar o aplicativo, seus mecanismos de reconheci-
mento, busca etc. O aprimoramento do learning machine depende da
extração de dados (CRAWFORD; JOLER, 2018). Mas não só isso, a cir-
culação de afetos, expressões e sociabilidades é explorada também para
a elaboração de brandings, marcas, identidades, que produzem valor
sobre as mercadorias. Este tipo de análise vem do que autores ligados
ao operaísmo italiano chamaram de capitalismo cognitivo e trabalho
imaterial (PASQUINELLI, 2013).
Se não fosse pouco produzirmos tanto sem ganhar nada, toda essa
carga de dados e informações que produzimos também é usada para
aperfeiçoar o controle, monitoramento e vigilância sobre nós mesmos.
Assim produzimos a polícia mais perversa possível mesmo quando pen-
samos agir contra ela nessas plataformas. Isso é o que o Nick Land cha-
ma de feedback positivo do capitalismo, essa capacidade do sistema se
auto-aprimorar absorvendo e aprendendo com as cargas negativas que
ele mesmo suscita1.

1.  Para uma introdução ao debate aceleranionista passando por autores como Nick Land,
Mark Fisher, Nick Srnicek e Alex Williams, etc, ver meu artigo Ciborgues sonham com britadei-
ras?, publicado na revista Lugar Comum, n. 50.

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O uso de ferramentas cibernéticas como, por exemplo, as redes
neurais que são usadas para o reconhecimento facial em sistemas de
vigilância, a gestão algorítmica, a extração de dados dos usuários da
internet, dentre outras coisas, permite aos governos uma gestão social
e política também baseada na fluidez, tentando dirimir a imprevisibi-
lidade e os riscos. Essas transformações nas formas de governar, ape-
sar do uso de ferramentas tão recentes, podem ser observadas do que
pesquisas como as de Michel Foucault já vinham mostrando desde os
anos 70. Em seu livro Vigiar e Punir, Foucault mostra transformações
nos modos de regulação social que não passam mais pela rigidez da
norma e do que é estabelecido pelo direito, mas sim pela modulação
dos processos sociais em sua própria instabilidade. Ele observa como o
exercício do poder deixa de requerer o contato imediato com o corpo
para discipliná-lo e passa agir como uma forma de investimento sobre
as condutas possíveis, no que as subjetividades podem vir a ser, agindo
positivamente na produção das formas subjetivas.
Além de todos os casos que o direito considera como excepcionais,
como o uso explícito da violência pelo Estado para conter a entro-
pia social, mas que constituem a normalidade das práticas do estado
há muito tempo – como argumenta Denise Ferreira da Silva (SILVA,
2014), o Estado precisa da violência para fazer valer a norma que em
si mesma não tem eficácia alguma –, foram desenvolvidas nas últimas
décadas um conjunto de práticas de governo que passam pelo uso de
novas tecnologias de poder para gerir o corpo social em sua própria
instabilidade.
Mas, curiosamente, Deleuze disse que o profeta das sociedades de
controle era Franz Kaf ka, que escreveu nas décadas de 10 e 20 do sé-
culo XX!
Percebo principalmente três traços na obra de Kaf ka que se conec-
tam diretamente a essa discussão: 1) através das suas personagens, Kaf-
ka cartografa formas de subjetividades neuróticas, paranoicas e esqui-
zofrênicas. Nas sociedades de controle, essas três características não são

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desvios ou meras patologias, mas formas de subjetivação que consti-
tuem a normalidade neoliberal. 2) É muito comum que as personagens
de Kaf ka fiquem sempre pensando suas possíveis condutas e relações
como se estivessem num jogo de xadrez, ou melhor, de go, em que não
há regras tão bem definidas para orientar as condutas. O personagem K
no romance O Castelo é um ótimo exemplo disso. 3) Principalmente nos
seus romances, onde o funcionamento das instituições é investigado
sob um ponto de vista literário, Kaf ka mostra também uma atividade
esquizofrênica, involuntária e não intencional de personagens que esca-
pam a todo momento do que são programados a realizar. O funciona-
mento das instituições não segue as regras jurídicas, mas se configura
a partir dos hábitos que se formam nas relações cotidianas do trabalho,
os pequenos desvios, adaptações e jogos de interesses.
No sexto capítulo de seu famoso livro Capitalist Realism (2009), Mark
Fisher toma Kaf ka como referência para analisar o que chamou de “sta-
linismo de mercado”. Fisher diz que no mercado neoliberal a gritan-
te ineficiência, baixa qualidade e disfuncionalidade das empresas deve
ser a todo momento maquiada por uma aparência dura e exigente de
eficiência, prestatividade, automatismo e rigor. Fisher destaca que essa
presença de uma forma stalinista no mercado capitalista não seria um
desvio do “verdadeiro espírito do capitalismo”, mas uma dimensão do
stalinismo que foi inibida por causa de sua relação com um projeto so-
cial, que era o socialismo. Essa dimensão stalinista só pode emergir na
cultura capitalista porque nela as imagens ganharam uma força autôno-
ma. Por isso, diz Fisher, o valor gerado nas bolsas de valores depende
mais das imagens performáticas da empresa do que o que ela realmente
faz. Parodiando Marx, Fisher diz: “No capitalismo, tudo o que é solido
se desmancha em relações públicas”.
No romance O Castelo, há uma situação em que K. vai ao escritó-
rio do prefeito saber sobre seu contrato enquanto agrimensor, função
que ele nunca consegue desempenhar desde que chega na aldeia. A se-
cretária do prefeito junto com os ajudantes de K. começam a revirar

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um armário de papéis, fazem uma bagunça na sala, nunca conseguem
achar os documentos que lhe pedem para procurar, enquanto o prefei-
to faz um longo discurso sobre o profissionalismo, o rigor técnico e o
cuidado dos funcionários do Castelo.
É muito comum encontrar na fortuna crítica de Kaf ka o comentário
de que seus romances anteciparam as formas burocráticas que o Estado
tomaria no século XX, que foram o stalinismo, nazismo e americanis-
mo. Fisher comenta que Kaf ka consegue essa façanha por revelar uma
dimensão do totalitarismo que não pode ser entendida apenas sob o
modelo do comando despótico. Os intermináveis labirintos burocráti-
cos que Kaf ka explora são carregados de uma certa semiótica do poder.
Neles, a autoridade nunca se presentifica totalmente, mas tampouco
deixa de interpelar cada situação. Há certos sinais que as personagens
tentam intuir e perseguir, mas nunca levam a qualquer fonte da qual o
poder emana. Fisher diz que Kaf ka intensifica essas situações de ambi-
guidade em relação ao poder.
Permitam-me uma longa citação do início do capítulo 5 d’O Castelo,
onde o personagem K. vai encontrar o prefeito da aldeia e expõe bem a
hipótese do parágrafo anterior:

A relação direta com as autoridades não era, na verdade, difícil demais,


pois as autoridades, por mais bem organizadas que fossem, sempre tinham
de defender coisas remotas e invisíveis em nome de senhores remotos
e invisíveis, ao passo que K. lutava o mais vivamente possível por coisas
próximas, ou seja, por ele mesmo e, além disso, ao menos nos primeiros
tempos, por vontade própria, uma vez que ele era o agressor, sem ser
apenas ele que lutava por si, mas também, ao que parece, outras forças
que não conhecia, mas nas quais podia crer a partir das medidas toma-
das pelas autoridades. Mas por se mostrarem amplamente receptivas, em
caráter prévio e em coisas menos essenciais — até agora não se tratara
de nada mais que isso —, as autoridades o privavam da possibilidade de
pequenas e fáceis vitórias e, com essa possibilidade, também da satisfação

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correspondente e da segurança bem fundada, que dela derivava, para ou-
tras lutas maiores. Em vez disso deixavam K. deslizar por toda parte que
quisesse, se bem que apenas no interior da aldeia, minando-o e enfraque-
cendo-o com isso: aqui elas eliminavam qualquer luta que houvesse e des-
se modo o deslocavam para a vida extra-administrativa, totalmente sem
transparência, turva, estranha. (KAFKA, 2000)

Em Kaf ka, a indecidibilidade parece estar impregnada no próprio


corpo. Dou voltas e voltas numa cidade inteira e não saio do lugar. A
atmosfera é claustrofóbica. Luto para me livrar dos mesmos rostos que
me deixam saturados de exposição, mas nunca me livro da minha própria
face. Quanto mais estou rodeado de personagens, mais impossível é a
comunicação, como as garotas que rodeiam K. nas escadas do tribunal no
romance O Processo. E quando a chance de tocar o que busco está dian-
te de mim, sou incapaz de alcançá-la – como no Castelo, nos momentos
quando K. está prestes a ter acesso a Klamm, mas ele sempre lhe escapa.
Talvez essa doença seja a nossa e o vigor de Kaf ka seja fazê-la doer.
Tenho a impressão de que Kaf ka é como um psicanalista que vai susci-
tando e apalpando sintomas e sofrimentos que nós temos encobertos.
No Castelo ele me faz sentir que além de eu não conseguir realizar os
meus ideais ascéticos, por mais que eu me esforce nunca vou chegar
onde quero chegar. Quando na verdade o que quero nunca deixou de
me rodear. O combate mais necessário, o ponto a se alcançar, é o que
está mais próximo, mas parece inatingível.
A radicalidade com que Kaf ka demonstra um quadro no future em
que nenhuma alternativa parece viável e tudo o que se tem como ex-
pectativa é um colapso final pode ser sintetizada nesse pequeno conto
intitulado Pequena Fábula:

“Ah”, disse o rato, “o mundo torna-se a cada dia mais estreito. A princípio
era tão vasto que me dava medo, eu continuava correndo e me sentia fe-
liz com o fato de que finalmente via à distância, à direita e à esquerda, as

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paredes, mas essas longas paredes convergem tão depressa uma para a ou-
tra, que já estou no último quarto e lá no canto fica a ratoeira para a qual
eu corro.” – “Você só precisa mudar de direção”, disse o gato e devorou-o.
(KAFKA, 2011)

Foi Mark Fisher quem cunhou o termo “cancelamento do futuro”


para caracterizar esse quadro temporal em que nos encontramos ago-
ra. O primeiro livro de Fisher, Capitalist Realism publicado em 2009, co-
meça com o diagnóstico de que nos tornamos incapazes de imaginar
um futuro radicalmente diferente do nosso presente. Essa incapacidade
de imaginar qualquer alternativa possível é o que ele chamou de realis-
mo capitalista. No último livro que estava preparando e não concluiu,
Fisher elaborava o conceito de comunismo ácido. Numa brincadeira se-
mântica entre algo corrosivo e psicodélico, o comunismo ácido era não
qualquer tipo de modelo já dado de sociedade, mas uma propulsão da
imaginação para pensar o Fora do capitalismo. No livro anterior a esse,
The Weird and the Eerie (2016), Fisher explorava através de ficções cien-
tíficas essa categoria do “weird”, do esquisito, como algo que era total-
mente estranho aos nossos padrões empíricos.
A ideia de cancelamento do futuro é correlata ao conceito de rea-
lismo capitalista. A saída que ele estava tentando delinear para isso foi
com o conceito de comunismo ácido. Mas o livro The Weird and the Ee-
rie já vinha explorando essa trilha. O conceito de “eerie”, o insólito, tem
a ver com o tipo de espectralidade com o que o poder passa a ser exer-
cido nas sociedades de controle, produzindo realidades das quais se au-
senta. Já o conceito de esquisito me parece ter uma relação muito mais
direta com o comunismo ácido, pois indica uma irrupção de um Fora
naquilo que nos é mais comum, tornando estranho o que é mais fami-
liar – tal como o conceito de unheimlich do Freud, que já é usada pelo
Fisher na sua tese de doutorado, Flatline Constructs (1999), mas que pos-
teriormente ele irá diferenciar do conceito de weird na introdução do
seu último livro. O esquisito parece querer intensificar essa irrupção do

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virtual no atual e possibilitar que consigamos enunciar e tornar atual o
possível, ou seja, o futuro.
O capitalismo se alimenta de suas quebras e lucra com suas próprias
ruínas. Crises e turbulências fazem parte do seu próprio funcionamen-
to. O neoliberalismo é uma forma de gerir a instabilidade. Trabalhos
como o curso O Nascimento da Biopolítica, de Michel Foucault, O Anti-
-Édipo, de Gilles Deleuze e Félix Guattari, Capitalist Realism, de Mark
Fisher, dentre outros já buscaram elucidar esse processo. Mas ainda não
descobrimos como desativar o loop da máquina capitalista.
O que rendeu do último ciclo de lutas globais que envolvem even-
tos como o Occupy Wall Street, Primavera Árabe, 15M, Junho de 2013,
etc., na maior parte dos países não foram um conjunto de reformas,
mas um acirramento dos governos neoliberais. No entanto, hoje mui-
tos dos governos que se instalaram nos lugares onde ocorreram esses
eventos mal conseguem manter uma governabilidade estável. Além dis-
so, reformas e substituições dos atores políticos poderiam no máximo
segurar a pressão por mais um tempo diante de tensões iminentes que
têm emergido com as transformações tecnológicas e ambientais afe-
tando as formas de conviver, pensar e organizar a vida nas sociedades.
O capitalismo é um zumbi: um morto que ainda precisa ter a carcaça
estourada de uma vez. E não acho que já conhecemos o que vai dar
essa cartada.
As atuais crises que encaramos não começaram num curto prazo
de dois anos com os governos da nova direita que assumiram o poder
estatal em lugares como o Brasil e os Estados Unidos. Chegamos até
aqui também com a gerência de governos de esquerda. Como concluiu
o Paulo Arantes numa entrevista para o jornalista Leonardo Sakamoto,
talvez as saídas não venham de onde realmente esperamos (SAKAMO-
TO, 2019).
Estamos no trânsito de transformações globais com transformações
técnicas que têm um aspecto central em tudo isso e ainda não foram
bem compreendidas em suas implicações nas estruturas institucionais

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e formas de governo. Os modos como a vida humana e suas formas de
associação vão se recompor e se amoldar a isso através de novas rela-
ções de troca e conflito é algo que ainda não conseguimos prever preci-
samente.
Que não haja mais futuro, no sentido moderno e progressivo do ter-
mo, talvez não seja nem exatamente o problema. É esse próprio quadro
temporal de transformação constante, rupturas e demanda de inovação
que chegou ao limite; e as posições políticas que se coagulam aí entre
conservar ou mudar podem ficar às vezes embaralhadas. A gente mal
consegue mais distinguir o novo do velho. A inovação se tornou uma
constante releitura e pastiche do passado.
Há um ensaio do T. S. Eliot chamado Tradição e Talento Individual
em que ele diz algo sobre como o artista que consegue inovar é aquele
que readapta a leitura da tradição e a faz passar adiante. O que no caso
do Eliot seria uma posição conservadora. Mas ainda o seria no caso de
lermos outras tradições que foram subalternizadas em relação à tradi-
ção dominante? A tradição dos vencidos, as tradições indígenas ou afri-
canas, a experiência das mulheres negras... São o que alimentam uma
grande parte da esquerda hoje. O que é interessante aí é encontrar uma
nova forma de compor o tempo. Não mais numa linha acumulativa que
vai do menos desenvolvido ao mais elaborado, mas como um conjun-
to de quadros e janelas e hiperlinks que vamos atravessando e criando
miscelâneas para recriar a vida.
O que podemos encontrar em outubro de 1917, maio de 68, o 1977
italiano, as batalhas de Seattle em 1999, as formas coletivas de Canudos,
a cosmologia Yanomami, junho de 2013, a revolta dos Malês, a batalha
de Argel, a primavera árabe, a primeira marcha das vadias em Toronto
em 2011, além do que nos permite também o empirismo especulati-
vo do cinema e da literatura, mostrando pontos de vistas de diferentes
quadros de configuração possíveis da realidade?
O livro Staying with the Trouble da Donna Haraway é um experi-
mento interessante nesse sentido. Ela vai em busca de experiências

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diversas, conectando-as com especulações fabulativas, fazendo pas-
sagens do atual para o virtual, remodelando diferentes quadros de
histórias.
Se o que chamamos de futuro é a transformação da história, o fu-
turo não está à frente, mas ao redor. É com uma grande densidade de
passado pressionado num ponto de atualização que o tempo tensiona o
instante presente até seu ponto de transmuta.
A obra de Giorgio Agamben também nos ensina algumas coisas so-
bre isso... Agamben parece bem afastado de toda concepção moderna
do tempo como constante progressiva orientada ao futuro. O modo
como ele trata a história parece não ter mais uma orientação bipolar
entre passado e futuro. Ele vai em busca de cacos da história que articu-
lados com outros pontos do tempo apontam para uma compreensão da
atualidade que permita alterá-la, apontando um lampejo de possível em
que a vida se libere do que a esmaga.
Enfim, o tempo e a história parecem ser algo como a galáxia da in-
ternet, mas que assim como esta, também podem ser encaixotados
em menos de uma dezena de sites com as mesmas entradas e saídas de
sempre. Essas plataformas nos prendem aqui em possibilidades contro-
ladas e limitadas. Também como elas, o tempo e a história modernos
precisam ser implodidos. E daí de repente a gente tem que sair corren-
do atrás dos cacos e experimentando outras coisas, novas teias e arran-
jos que nos permitam experiências diferentes.
Por fim, concluo com duas citações...
A primeira é do Fisher no livro Capitalist Realism:
“A política emancipatória deve sempre destruir o semblante de uma
‘ordem natural’: deve revelar que aquilo que é apresentado como ne-
cessário e inevitável é uma mera contingência, assim como deve fazer o
que antes era visto como impossível parecer possível”.
A outra, um famoso aforismo de Kaf ka:
“A partir de certo ponto não há retorno. Esse é o ponto que é preciso al-
cançar”.

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CAMUS E A DEMOCRACIA
Marcio Pereira
Amsterdan Duarte

INTRODUÇÃO
A noção de democracia não é das mais conhecidas no pensamento de
Camus. Parece existir, nas recepções de sua obra, muito mais espaço para
noções como absurdo e revolta. Isso transparece, a título de exemplo, na
iniciativa relativamente comum de fazer referência à sua filosofia sob o
rótulo absurdismo. Porém, um olhar mais atento pode revelar um outro
quadro. Embora o tema da democracia não receba tratamento sistemá-
tico na obra do autor (característica esta, diga-se de passagem, frequente
em seus escritos), a leitura cuidadosa de seus textos revela que o tópico da
democracia é sim uma preocupação importante do filósofo. Desse modo,
servindo-nos de alguns de seus artigos jornalísticos, bem como do ensaio
O Homem revoltado, desejamos neste artigo esboçar uma noção de demo-
cracia a partir do pensamento do autor. Um dos principais objetivos des-
ta empreitada é apontar que – ao invés de conceber a democracia como
mero regime político formal (dentre outros), com previsões abstratas de
liberdade e igualdade, checks and balances, etc. – os escritos do filósofo per-
mitem ir além: possibilitam pensar a democracia como processo vibran-
te, inacabado, experimental e, principalmente, em constante abertura a
novas intervenções sociais antagônicas. Dito isso, nosso itinerário aqui
será o seguinte: primeiro, apresentaremos algumas ideias do autor sobre
a democracia publicadas em seus textos do pós-guerra; em seguida, ten-
taremos produzir uma articulação entre tais ideias e a noção de revolta; e,
por fim, apresentaremos uma conclusão ao artigo.

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DESENVOLVIMENTO
O tema da democracia surge de modo mais evidente no pensamento
de Camus em seus primeiros textos do pós-guerra. Nos textos iniciais
do jornal Combat1, o filósofo defende a criação de uma democracia, de
uma democracia de fato, a partir das ruínas da França. Nesse primeiro
momento, encontramos um Camus entusiasmado com a possibilida-
de democrática – um entusiasmo produzido, sobretudo, por conta da
liberação da França. A crença do filósofo na possibilidade de se erguer
uma verdadeira democracia na França se dá pelo seguinte: segundo ele,
assim como as diversas resistências (católicos, comunistas, nacionalistas
conservadores, revolucionários internacionalistas, etc.) foram capazes
de trabalhar em conjunto para derrotar um inimigo comum durante a
guerra, no pós-guerra, esses mesmos grupos seriam capazes de abstrair
de suas diferenças políticas em prol da construção de uma democracia
de fato (CARROLL, 2006, p. ix).
Se tal abstração é possível, e mesmo desejável; se os vieses polí-
ticos são passíveis de uma suspensão metodológica em nome do es-
forço democrático, isso é porque a democracia vale aqui como um
princípio, por assim dizer, supra-político. Ela representa mais do que
um posicionamento ou uma bandeira específica. Tudo se passa como
se Camus invertesse as fichas das definições tradicionais em teoria po-
lítica, segundo as quais a democracia seria uma modalidade de regi-
me político, para dizer que ela é, isto sim, condição de possibilidade
da política. A democracia guarda, em sua perspectiva, uma abertura
fundamental que as expressões de troca, diálogo e confronto propo-
sitivo da política propriamente dita supõem e que nenhum regime
ou tendência saberia especificar. É isso que temos em mente quando
nos referimos à democracia como um princípio supra-político. Ela é
menos um estado de coisas do que um índice para a instauração de

1.  Jornal do qual Camus intensamente participou entre 1944 e 1947, inclusive como editor-che-
fe. Combat funcionou na clandestinidade durante a Ocupação, servindo de importante veículo
da Resistência francesa.

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um patamar mínimo no qual as singularidades podem se encontrar e
confrontar, no sentido da afetação mútua.
Com efeito, um traço inicial que já podemos extrair do discurso ca-
musiano sobre a democracia é uma espécie de aposta na pluralidade ou
diferença. Democracia aqui não tem que ver com pensamento único,
com homogeneidade; pelo contrário, tem que ver com um fazer con-
junto pelas múltiplas forças e singularidades que compõem a sociedade.
Por outro lado, acrescente-se, desde já, que Camus não defendia uma
ordem democrática apenas para França, mas, cf. veremos mais adiante,
a todo os países e povos.
O entusiasmo inicial em relação à possibilidade de construir uma de-
mocracia real na França (bem como nos demais países) não dura muito.
Em relação à França, Camus enxergava uma série de obstáculos, dentre
eles as flagrantes injustiça e hipocrisia do discurso colonial. Para ele, li-
berdade e justiça não poderiam ser exclusividade de alguns poucos países.
Como diz, num texto publicado no Combat, em 13 de outubro de 1944, a
França não poderia continuar a ter duas políticas opostas no que tange à
democracia: “uma conferindo justiça ao povo da França e outra conferin-
do injustiça ao Império” (CAMUS, 1965b, p. 1530)2. Camus demandava,
assim, um tratamento minimamente coerente e paritário, i. e., garantir
aos demais países/povos os mesmos princípios democráticos que os fran-
ceses se propunham experimentar. Conforme assinala Carroll (2006, p.
xix): “Na visão de Camus, nem a França, nem nenhum outro país, po-
deria autoproclamar-se uma democracia de fato caso continuasse a ser
um poder colonial ou imperial, subjugando e oprimindo outros povos,
negando a outros o tipo de liberdade que avocava para si mesma.”
A partir da crítica ao colonialismo, nota-se um outro traço da noção
camusiana de democracia: o internacionalismo. Percebendo a interco-
nexão dos problemas humanos (numa notável antecipação do que viria
a se tornar um senso comum do pensamento progressista do séc. XXI),

2.  Em nosso artigo, exceto quando indicado de forma diversa, todas as traduções são nossas.

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Camus defendia a necessidade de construir uma ordem democrática
não apenas para a França, mas para o planeta inteiro. Numa famosa
série de artigos publicada no Combat, sob o título geral Nem vítimas,
nem carrascos, o filósofo afirma o seguinte num texto publicado, em 26
de novembro de 1946, com o subtítulo Democracia e ditaduras interna-
cionais:

Sabemos hoje que não há mais ilhas e que as fronteiras são fúteis. Nós
sabemos que em um mundo em constante aceleração, onde se atravessa o
Atlântico em menos de um dia, onde Moscou fala a Washington em pou-
cas horas, somos forçados à solidariedade ou à cumplicidade, de acordo
com o caso (CAMUS, 1965d, p. 341).

Toda a análise de Nem vítimas, nem carrascos procura fazer avançar


a tese do caráter necessariamente expansivo e internacionalista da de-
mocracia. Não que seja necessário unificar numa mesma trama global
as diversas demandas locais; o ponto é que, na verdade, essas deman-
das já se encontram articuladas. Pelo menos em termos econômicos e
tecnológicos, já existe uma ordem internacional. Trata-se, para Camus
(1965d, p. 342), de propor uma formatação democrática dessa ordem:
“a nova ordem que procuramos não pode ser nacional nem continen-
tal, nem especialmente ocidental ou oriental. Deve ser universal. Não
é mais possível esperar por soluções ou concessões parciais”. Trata-se,
portanto, de pensar a democracia em um mundo no qual todas as misé-
rias, mas também todas as lutas, se encontram conectadas.
Para Camus, além do colonialismo, a crescente polarização decor-
rente da Guerra Fria (contexto em que se cobrava alinhamento a uma
das duas principais forças político-ideológicas em disputa: União Sovié-
tica e Estados Unidos), também sufocava a pretensão democrática. Sin-
teticamente, pode-se dizer que Camus considerava todas as ideologias
que lutavam por dominância no pós-guerra como potencialmente mor-
tíferas. Para ele, cada uma delas contribuía, de diferentes formas, para

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criar um estado de terror e de depreciação da vida3. Para o filósofo, o
terror ou a utilização do medo como método significava fazer crer que
não havia alternativas fora da polarização das “ideologias mortíferas”
(CARROLL, 2006, p. xi). A construção de uma ordem democrática só
seria possível, de acordo com o autor, caso os vários grupos se livras-
sem de suas “abstrações ideológicas”, i. e., se parassem de perseguir
fins abstratos, absolutos, em detrimento do presente, em prejuízo dos
corpos. Pode-se afirmar que, durante a Guerra Fria, Camus almejava
erguer uma espécie de compromisso democrático entre os países, uma
atitude de cooperação internacional como condição de possibilidade
para a democracia, em suma, uma atmosfera social mais respirável4.
Nesse sentido, Camus adverte que aquilo que é comumente chama-
do de democracia na verdade não o é; ao menos não no sentido real,
factual. Segundo diz, a mera proteção abstrata de liberdades individuais
– sem justiça social – não apenas exacerba as desigualdades econômicas
e sociais, mas, também, destrói a liberdade dos mais pobres. Por ou-
tro lado, sacrificar as liberdades individuais em nome de justiça social
costuma resultar na formação de um estado burocrático, centralizador
e opressivo, no qual a igualdade é apenas abstrata e não real. Em um
editorial do Combat, de 1 de outubro de 1944, ele diz:

Nós [...] chamaremos de justiça um estado social em que cada indivíduo


recebe todas as oportunidades desde o princípio, e onde a maioria de um
país não é mantida em uma condição indigna por uma minoria de privi-
legiados. E chamaremos de liberdade um clima político onde a pessoa
humana é respeitada no que ela é e no que expressa (CAMUS, 1965a, pp.
1527-1528).

3.  Nesse sentido, ver o editorial de Camus de 19 de novembro de 1946 intitulado O século do
medo (CAMUS, 1965h, p. 331).
4.  Na conferência A crise do homem, de 1946, Camus alude à necessidade de “descongestionar o
mundo do terror que nele reina e que impede que se pense bem” (CAMUS, 2006, p. 744).

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Desta breve citação, pode-se, além de extrair uma das tensões mais
recorrentes no pensamento camusiano, qual seja, a tensão entre liber-
dade e igualdade5, recolher mais uma pista da noção que o filósofo traz
de democracia. Quando Camus se debruça sobre o tema da democra-
cia, não parece estar se referindo a uma ordem meramente formal,
constitucional de democracia, com previsões abstratas de liberdade e
igualdade. Na verdade, ao se referir à democracia, o filósofo parece con-
cebê-la como uma forma de viver em conjunto capaz de produzir liber-
dade e igualdade num plano imanente. De certa forma, pode-se dizer
que Camus propunha essa forma de viver como terceira via em relação
ao binômio político-ideológico dominante.
A ideia de modéstia é um outro traço recorrente da noção camu-
siana de democracia. Aliás, esse é exatamente o título de um de seus
artigos do Combat: Democracia e modéstia, de 30 de abril de 1947, texto
este que é, posteriormente, retomado no artigo Democracia, um exer-
cício de modéstia, publicado na revista Caliban, em 21 de novembro de
1948. De forma sintética, pode-se afirmar que modéstia em demo-
cracia significa basicamente duas coisas. Primeiro, que todo progres-
so democrático em direção à liberdade e à justiça é sempre relativo
(pode ser destruído ou revertido). Logo, devemos nos manter sóbrios
(na falta de uma expressão melhor) em relação a eventuais aprofun-
damentos democráticos e, ao mesmo tempo, sempre vigilantes em
relação a possíveis retrocessos. A segunda acepção da noção de mo-
déstia em democracia significa que esta nunca deve silenciar seus
dissidentes e críticos. Nesse sentido, diz Camus (CAMUS, 1965e, p.
320), “quando um partido ou grupo imagina possuir a verdade abso-
luta” então um clima de terror se instala e a democracia encontra-se
em risco. E, em outra passagem, definindo o que é um democrata,
emenda:

5.  Sobre esse tópico, ver, p. ex., Crowley (2007).

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Democrata é a pessoa que admite que seu adversário pode estar certo,
e que, por isso, permite que ele fale e concorda em considerar seus ar-
gumentos. Quando partidos e pessoas estão tão convencidas de seus ar-
gumentos que eles estão prontos a fazer uso de violência para silenciar
aqueles que deles discordam, a democracia não existe mais. [...] Modéstia é
sempre salutar nas repúblicas (CAMUS, 1965e, p. 320).

Nesse segundo sentido, modéstia na democracia significa, portan-


to, que partidos, pessoas, grupos e/ou sistemas políticos nunca atin-
gem a verdade, um modelo definitivo, um momento de ultrapassagem
de nossa condição e sociabilidade sempre precárias e conflituosas. Ao
contrário, no artigo A democracia por fazer, de 2 de setembro de 1944,
o filósofo sustenta que a democracia se trata de um projeto sempre
aberto, inacabado, “a ser construído” e nunca alcançado de uma vez
por todas (CAMUS, 1965f, p. 1525). E, em um excerto de seus Cadernos,
complementa: “não [creio] em doutrinas absolutas e infalíveis, mas no
melhoramento obstinado, caótico, mas incansável, da condição huma-
na” (CAMUS, 1965c, p. 282). Em suma, em sua segunda acepção, mo-
déstia em democracia implica uma abertura permanente ao dissenso e
à crítica, de modo que as diferenças possam se confrontar sem que isso
implique em silenciá-las ou, muito menos, destruí-las. E, nesse sentido,
a existência, p. ex., de uma imprensa livre é, para Camus, peça funda-
mental para o exercício do dissenso e da crítica e, consequentemente,
para a existência de uma verdadeira democracia.
Até aqui, e em resumo, a noção camusiana de democracia que
emerge dos textos examinados possui os seguintes aspectos: 1. Aposta
na pluralidade, i. e., na capacidade de as diversas forças sociais e singula-
ridades trabalharem suas diferenças para erguerem uma democracia de
fato. 2. Internacionalismo, que pode ser resumido na seguinte fórmula:
o projeto democrático será global ou não será; haja vista ser inviável
(além de flagrantemente hipócrita e injusto) o discurso que sustenta
a democracia tão-somente no plano local ou regional. 3. Democracia

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como forma de vida em conjunto capaz de produzir liberdade e igual-
dade num plano imanente (e não como mero regime política formal).
Por fim, 4. Modéstia, que fundamentalmente implica: reconhecer a de-
mocracia como processo sempre inacabado e por construir, e daí a ne-
cessidade de permanente abertura ao dissenso e à crítica.
Mas isso é tudo? Embora a noção camusiana de democracia até aqui
apresentada possua aspectos potentes (vide, p. ex., o tema do internacio-
nalismo), seria esse o ponto máximo do projeto democrático do filósofo?
Se a resposta for positiva, pode-se então dizer que o que temos em mãos
é uma espécie de projeto de democracia “liberal” (na falta de um termo
melhor), mais vigoroso, por certo, do que a grande maioria dos países
que, hoje, se autoproclamam democráticos. Sobretudo, os aspectos do
internacionalismo e da liberdade e igualdade imanentes parecem abonar
essa afirmação (visto que a abertura permanente à crítica, imprensa livre,
e a aposta na pluralidade costumam ser elementos um mais comumente
presentes nas chamadas democracias contemporâneas).
Porém, pensamos que há mais a se recolher do pensamento do au-
tor. Mais especificamente, acreditamos que a articulação das ideias do
autor sobre a democracia com uma de suas noções mais conhecidas, a
noção de revolta, permite entrever um projeto democrático ainda mais
potente (e arrojado) do que aquele que expusemos até o momento.
Com efeito, nos parágrafos que se seguem, tentaremos mostrar que a
articulação das noções camusianas de democracia e revolta pode impli-
car em uma ideia de democracia não apenas aberta permanentemente
ao dissenso argumentativo e à crítica (imprensa livre, p. ex.); porém,
mais profundo que isso, aberta permanentemente à insurgência de for-
ças sociais antagônicas. Vejamos, a seguir, em linhas gerais, alguns as-
pectos da noção de revolta para, depois, articular tal noção à ideia de
democracia.
Tratando-se de um movimento pluridimensional (metafísico, histó-
rico, estético...), Camus pensa a revolta não tanto como uma atitude
entre outras (nem muito menos como uma variação de humor ou uma

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indignação passageira), mas, na verdade, como movimento constituinte
do ser humano. Diante do espaço que temos aqui e de nosso interesse,
Privilegiaremos aqui, notadamente, a revolta histórica; mais exatamen-
te, a maneira como a revolta histórica (em seu fundo metafísico) dá o
tom da concepção camusiana de democracia.6
Em termos resumidos, a revolta, é, antes de tudo, um movimento
individual; um movimento que emerge de uma percepção do escravo
(para usar o termo do próprio Camus) de que um “direito” seu foi ul-
trapassado, de que a outra parte foi “longe demais”. A revolta, nesse
sentido, explode inicialmente em forma de um “não!”; “desse ponto em
diante, basta!”. Porém, esse “não!” do escravo carrega, desde o seu pri-
meiro movimento, algo afirmativo, traz também um “sim” (ainda que
isso, a princípio, possa soar contraditório). Dizer “não!”, nesse contex-
to, é também afirmar algo em si, algo, como diz Camus, que o escravo
considera “valer a pena” em si, um valor. E, ao afirmar esse algo (esse
valor) enquanto nega, o escravo termina por evocar um limite (la me-
sure): um limite não apenas para o senhor, mas também para si. Se não
há esse limite, se não há um único valor comum ao qual possamos nos
referir, então, diz Camus, “o homem se torna incompreensível para o
próprio homem” (CAMUS, 2005, p. 25-26/39). Revolta e limite, com
efeito, mantêm entre si uma relação de permanente tensão. O limite
– cujo elemento fundamental, diga-se logo, é a preservação da vida hu-
mana – modula constantemente a atitude revoltada para que esta não
descambe em niilismo, para que esta não termine por suprimir a pró-
pria condição de possibilidade de emergência da revolta7.

6.  O homem revoltado (1951) é a obra em que Camus se debruça com fôlego sobre o tema. Para
uma articulação interna entre as dimensões da revolta, ver: Folley (2014).
7.  “A liberdade mais extrema, a liberdade de matar, não é compatível com as razões da revolta.
A revolta não é, de forma alguma, uma reivindicação de liberdade total. Ao contrário, a revolta
ataca sistematicamente a liberdade total. [...] Longe de reivindicar uma independência geral, o
revoltado quer que se reconheça que a liberdade tem seus limites em qualquer lugar onde se
encontre um ser humano, já que o limite é precisamente o poder de revolta desse ser. [...] O
revoltado exige sem dúvida uma certa liberdade para si mesmo; mas em nenhum caso, se for

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Por outro lado, vale notar que o movimento da revolta não é um
movimento egoísta. Pelo contrário, como diz Camus (2005, p. 29), “na
revolta, o homem se transcende no outro”. Explicando melhor esse
ponto, note-se que o limite, o valor que o revoltado afirma em face de
uma medida que o oprime afirma, também, um princípio de solidarie-
dade, um campo de implicação ao mesmo tempo metafísico e político
da revolta. É que, conforme referimos acima, ao afirmar um limite o
revoltado não afirma um princípio que diz respeito apenas a ele, mas a
todos (inclusive àquele que o oprime), abrindo-se, portanto, a possibi-
lidade para que múltiplas revoltas possam se implicar reciprocamente.
Nas palavras de Camus (2005 p. 28): “o oprimido se insurge por todos
os seres ao mesmo tempo quando julga que, em face de uma determi-
nada ordem, algo dentro dele é negado, algo que não pertence apenas a
ele, mas que é comum a todos os homens, mesmo àquele que o insulta
e o oprime”. Em suma, para Camus, a solidariedade humana baseia-se
na revolta; e a revolta, a seu turno, pode apenas encontrar a justificação
nessa solidariedade (de ordem, no fundo, metafísica). Essas duas no-
ções – revolta e solidariedade, ou revolta e limite – são a base para um
engajamento legitimamente democrático.
Numa tentativa de ilustrar essa noção de democracia (articulada
com a de revolta) podemos lançar mão aqui do romance A peste (1947),
do próprio Camus. Como se sabe, representada no século XX, A pes-
te retrata a luta dos habitantes de uma cidade imaginária no norte da
África (Orã) contra a propagação aniquiladora de uma peste bubônica
entre seus concidadãos. Como se sabe também, uma das interpretações
mais influentes do romance propõe que a luta contra a peste seria uma
metáfora para a luta da Resistência francesa contra a ocupação nazista
(GRAY, 2007). Descolando a obra desta interpretação mais conhecida,
podemos também pensá-la como ilustração para a noção camusiana

consequente, reivindicará o direito de destruir a existência e a liberdade do outro. Ele não hu-
milha ninguém. A liberdade que reclama, ele a reivindica para todos; a que recusa, ele a proíbe
para todos” (CAMUS, 2005, p. 326-327).

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de democracia. Nesse sentido, a luta dos habitantes da cidade pode ser
concebida como movimento de revolta e expressão do desejo de demo-
cracia. (O princípio de solidariedade que se instala entre os vários com-
batentes da peste na cidade; a noção de limite que emerge dessa luta;
enfim, todos esses elementos, acreditamos, possibilitam pensar a luta
travada no romance nessa chave). Por outro lado, é possível conceber
a peste que assola Orã como metáfora para a (recorrente) tentativa de
limitação/supressão, por parte poderes constituídos, do movimento da
revolta e lutas por aprofundamento democrático. A peste seria assim
qualquer tipo de subterfúgio empregado por grupos/partidos/pessoas
com vistas a limitar ou suprimir a condição de possibilidade de emer-
gência da revolta. Luta dos habitantes de Orã e peste; movimento de
revolta e tentativas de sua supressão: democracia sempre por fazer, pro-
cesso sempre inacabado.
Articulando agora o tema da democracia com a noção de revolta,
podemos, na esteira de Camus, dizer o seguinte: democracia real ou
verdadeira seria aquela que se mantém permanentemente aberta não
apenas ao dissenso argumentativo e à crítica (imprensa livre, p. ex.); po-
rém, mais profundo que isso, seria aquela que se mantém permanente-
mente aberta a novas forças sociais antagônicas, leia-se, ao movimento
da revolta. Democracia de fato é, portanto, aquela que permanente-
mente garante as condições de possibilidade de emergência da revol-
ta ou, dito de outra maneira, é aquela que permanentemente garante
a defesa e a atualização da noção de limite. “A verdadeira democracia
sempre refere-se à base”, diz Camus no artigo Democracia, um exercício
de modéstia, de 21 de novembro de 1948 (CAMUS, 1965g, p. 1582).
É nesse diapasão que a importância elementar da modéstia pode ser
realçada na economia do pensamento de Camus sobre a democracia.
A modéstia tem aqui uma função programática: ela seria para o proje-
to democrático o que a noção de limite é para a atitude revoltada, ou
seja, sua função seria modular a experiência democrática de forma a
manter o seu autêntico horizonte de referência, qual seja, a intervenção

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constante da pluralidade no plano político, a permeabilidade intencio-
nal às quebras de consenso e homogeneidade. O argumento da modés-
tia passa, assim, não por uma recorrência à virtude, e sim pela assunção
consciente dos limites do poder e da ação humanas (tanto no sentido
de um nec plus ultra da opressão quanto no das limitações naturais de
qualquer engajamento).
Por fim, a articulação com a revolta permite justificar a insistência
própria ao pensamento camusiano de uma democracia internacional.
A afirmação do caráter expansivo da democracia não se configura, ape-
nas, numa contraposição à hipocrisia e à incoerência do discurso e da
política colonialistas. Trata-se, na verdade, se insistirmos na pertinência
conceitual entre democracia, revolta e limite, de reclamar para a or-
dem política aquele universalismo que a revolta traz à tona mediante
o “sim” que reveste o “não” do oprimido. É o ideal da liberdade e da
dignidade afirmadas para todos que inspira o lema de uma cooperação
transfronteiriça, do compromisso apesar das diferenças. No pensamen-
to de Camus, a revolta preside a um movimento que vai da solidarieda-
de metafísica à democracia internacional.
Traduzida em termos de um ato de posicionamento na geopolítica
de sua época, a ideia camusiana de democracia se situa em meio à des-
confiança generalizada para com toda a realpolitik vigente. Por um lado,
Camus expressa um resoluto distanciamento em relação à opção sovié-
tica e sua política asfixiante. Por outro lado, previne-se contra qualquer
forma de conivência com as chamadas democracias liberais – dada,
entre outras coisas, a posição de cúmplices, quando não responsáveis
diretas, das práticas coloniais. A lógica dos grandes blocos, a acirrada
partilha do mundo entre as superpotências e seus satélites, no entender
de Camus, inviabiliza a experiência democrática (pelo menos nas pro-
porções que o vimos lhe atribuir), constituindo talvez a barreira mais
grave que um engajamento democrático – balizado pela tensão revol-
ta-limite, pelo internacionalismo, pelo anticolonialismo e, sobretudo,
pela modéstia – precisa romper.

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A estratégia, portanto, o programa político de Camus – na medida
em que se pode tentar definir um – é investir na luta pela democracia a
partir de duas frentes: num plano que podemos chamar de macropolí-
tico, Camus advoga a disputa pelo espaço para pautas progressistas no
âmbito dos poderes institucionais, de forma a fazer com que os Estados
nacionais se aproximem cada vez mais do que seria uma ordem política
favorável ao cultivo da democracia. A outra frente procuraria dar con-
ta das iniciativas extra-institucionais, dos movimentos autônomos ou,
se quisermos, das linhas de ação horizontais que atravessam o plano
social. Camus pontua aqui uma série de estratégias (criação de comu-
nidades de trabalho, fortalecimento de associações sindicais e coopera-
tivas, além do ativismo artístico e intelectual)8 cujo sentido seria intro-
duzir, como que pelas brechas das instâncias governamentais, o desejo
democrático. Caberia, por sua vez, à frente macropolítica, dar vazão e
formalizar esse desejo, retroalimentando assim os movimentos que o
estruturam desde a base. Assim organizado, esse sistema seria capaz de
combinar as garantias da igualdade jurídica e das liberdades civis à efeti-
vação da justiça social, inclusive em termos econômicos.

CONCLUSÃO
As ideias de Camus sobre a democracia (sobretudo, quando articu-
ladas com a noção de revolta) são capazes de inscrever o autor em
uma rica tradição de pensadores do tema. Tradição essa que, ao invés
de conceber a democracia como mero regime político formal (dentre
outros), com previsões abstratas de liberdade e igualdade, checks and
balances, etc., pensa a democracia como processo vibrante, inacaba-
do, experimental e, sobretudo, em permanente abertura a novas in-
tervenções sociais antagônicas (no caso de Camus, a revolta). Ainda
em relação a Camus, tal noção de democracia traz consigo, além do

8.  Camus (2006).

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potente aspecto do internacionalismo, o signo da modéstia. Assim,
distante dos discursos grandiloquentes (ou mesmo inocentes) sobre
a democracia, o autor propõe a inscrição da modéstia naquela, que,
como vimos, significa manter-se permanentemente aberto ao dissen-
so argumentativo e, conforme argumentamos aqui, também aberto
ao dissenso ontológico (à revolta). O operador da modéstia não nos
deixa esquecer, portanto, que a democracia é sempre um processo
inacabado, por construir.
Não vivemos hoje, certamente, num mundo bipolar. No entanto,
a realidade tanto das esferas nacionais quanto na dinâmica interna-
cional ainda é a da concentração das decisões em salas de paredes es-
pessas, em larga medida impermeáveis ao dissenso, à crítica e à plu-
ralidade. Assim, embora as últimas décadas tenham testemunhado,
em termos estatísticos globais, uma significativa ascensão numérica
de regimes democráticos seguida de decréscimo dos regimes autoritá-
rios9, os desafios em campos como o do Direito, do desenvolvimento
tecnológico (vigilância, engenharia genética, armamentos etc.), e dos
meios de informação tornam o chamado camusiano à democracia e
ao descongestionamento do mundo10, diríamos, mais premente hoje
do que quando, em meados dos anos 40, as ruínas da guerra ainda
estavam frescas. Ao mesmo tempo, talvez estejamos hoje (mais do se
poderia estar à época de Camus) melhor municiados das ferramentas
discursivas e práticas de intervenção aberta e plural; mais experimen-
tados no domínio da revolta; mais conscientes de que a democracia
representa hoje não tanto uma proposta como, na verdade, uma cor-
rida contra o relógio; não tanto uma opção, como, na verdade, uma
condição de sobrevivência.

9.  Ver, p. ex., ourworldindata.org/democracy. Acesso em 25 de nov. 2019.


10.  Ver nota 6 acima.

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REFERÊNCIAS
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mard, Calmann-Lévy, 1965a.
______. “Combat, 13 octobre 1944”. In: CAMUS, Albert. Essais. Paris: Gallimard,
Calmann-Lévy, 1965b.
______. “Combat, 24 novembre 1944”. In: CAMUS, Albert. Essais. Paris: Gallimard,
Calmann-Lévy, 1965c.
______. Démocratie et dictature internationales. In: CAMUS, Albert. Essais. Paris:
Gallimard, Calmann-Lévy, 1965d.
______. Démocratie et modestie. In: CAMUS, Albert. Essais. Paris: Gallimard, Cal-
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______. La démocratie à faire. In: CAMUS, Albert. Essais. Paris: Gallimard, Cal-
mann-Lévy, 1965f.
______. La démocratie exercise de la modestie. In: CAMUS, Albert. Essais. Paris:
Gallimard, Calmann-Lévy, 1965g.
______. Le siècle de la peur. In: CAMUS, Albert. Essais. Paris: Gallimard, Calmann-
-Lévy, 1965h.
______. La crise de l’homme. In: CAMUS, Albert. Œuvres complètes II. Paris: Gal-
limard, 2006.
______. O homem revoltado. 6 ed. Trad. Valerie Rumjanek. Rio de Janeiro: Re-
cord, 2005.
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bat: Writing 1944-1947. New Jersey: Princeton University Press, 2006.
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Cambridge Companion to Camus. Cambridge: Cambridge University Press, 2007.
FOLLEY, John. Albert Camus: from the absurd to revolt. London: Routledge, 2014.
GRAY, Margaret E. Layers of meaning in La Peste. In: HUGHES, Edward J. (org.). The
Cambridge Companion to Camus. Cambridge: Cambridge University Press, 2007.

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LEITOR SELVAGEM: ESPECTROS
DO HOMEM PÓS-TCHERNÓBIL
Marcio Tascheto da Silva

1. LECTORES AUSENTES
 
“Monterroso escribío que tarde o temprano un escritor latino-americano enfren-
ta tres posibles destinos: destierro, encierro o enterro.” (VILA-MATAS, 2018, p.63)
 
As sombras da caverna de Platão? Opa, isso eu não apostaria, mas até pelo tama-
nho do cogumelo atômico eu me inclinaria pelas sombras. Ou seja, eles estão
olhando para nós, e nós vemos as sombras deles refletidas no fundo da caverna.
Não, estão de costas para nós, olhando para a boca da caverna, porque no ho-
rizonte, bem distante, explodiu uma bomba atômica. (BOLAÑO, 2017, p.67)
 
Para isso me faltava... me faltavam conhecimentos, e faltavam em todos
os livros que eu havia lido na minha vida. Eu acabava de regressar de uma
viagem de trabalho, estava perplexo olhando as minhas estantes de livros
no escritório. Eu li...Se não tivesse lido...Uma coisa totalmente desconhe-
cida destruía o meu mundo anterior. Era algo que se introduzia, que pene-
trava em você. À margem da sua vontade. (ALEKSIÉVITCH, 2017, p.173)

No Museu da Memória em Rosário1 a instalação lectores convoca o vi-


sitante ao silêncio. Uma sala de leitura vazia. Há poucos móveis na sala.

1.  Criado em 1998, na cidade de Rosário, Argentina, o Museu da Memória possibilita o acesso
ao conhecimento e a pesquisa sobre direitos humanos e memória social, destacando aspectos
relativos a última ditadura argentina (1976-1983).

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Alguns livros abertos sob os púlpitos. Do alto, preso ao teto, estende-
-se fios de náilon transparentes com carteiras de leitores da Biblioteca
Municipal de Rosário. As carteiras estão suspensas e giram ao menor
deslocamento de ar. As carteiras são de antigos leitores desaparecidos
na última ditadura argentina.
A tese desse ensaio é que a epígrafe de Vila-Matas citando Monterro-
so se estende também a todos os leitores pós-Tchernóbil. É sobre essa
tríade do destino que caracteriza os leitores-escritores da era das catás-
trofes, sujeitos trágicos como disse Ricardo Piglia. “O leitor como cri-
minoso, que utiliza os textos em benefício próprio e faz deles um uso
indevido, funciona como um hermeneuta selvagem. (PIGLIA, 2006, p.
34). Fadado ao isolamento, a prisão, ao desaparecimento, o leitor arbi-
tra em causa própria, decide ler mal, a marca da autonomia absoluta do
leitor em Borges (PIGLIA, 2006).
Não por acaso o grande gênero moderno é a narrativa policial,
gênero criado por Poe e que viralizou nosso modo de ler não só a
literatura mas a própria História. Gênero tão popular como as tragé-
dias o foram no passado grego (século V a.C.) e a catástrofe o é no já
velho século XXI. Mais do que detetives espetaculares o gênero po-
licial inventou um leitor. O leitor desconfiado, que suspeita da mais
inocente das presenças, que busca ler o que passou batido no grosso
da História. Que nos faz duvidar o tempo todo das aparências e bus-
car leituras secretas de um texto que só se apresenta na superfície.
Porém, não se trata de um segredo que funcione como uma reve-
lação, um segredo fechado e inacessível, mas, como disse Ezequiel
Rosso, um segredo que se apresenta como um lugar produtivo. Um
segredo sempre em circulação. Uma máquina distópica escrita na es-
cala do roentgen.
“A teoria do iceberg de Hemingway é a primeira síntese desse pro-
cesso de transformação: o mais importante nunca se conta” (PIGLIA,
2017, p. 91). O que já havia pressentido Borges sobre a dupla estrutura
de um conto. A leitura do inesperado, de algo que entra na trama como

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uma epifania que revela o que estava oculto mas visível a todo tempo
por meio de diferentes sinais. O que está em jogo é a leitura, o modo de
ler a própria História. Se “a leitura é a arte da microscopia, da perspec-
tiva e do espaço” (PIGLIA, 2006, p. 20), isso se deve porque os minia-
turistas sempre foram acólitos do demônio. “A vida toda acreditei que
a Maldade, antes de estrear, ensaia suas piruetas em escala reduzida”
(BOLAÑO, 2017, p. 139).
Talvez uma das grandes imagens do intelectual pós-Tchernóbil, seja
a do detetive, e, sobretudo, a dos leitores [ausentes]. Seja os lectores de
Rosário, inflexão de todas as ditaduras em uma sala de leitura onde li-
vros borgeanamente aguardam de páginas abertas, insolentes ao desa-
parecimento dos lectores. Seja nos inúmeros desterros que a América
Latina exportou ao mundo. Seja nas nuvens radiativas de Tchernóbil
inaugurando a era das catástrofes e, talvez, o enterro do futuro. (ALEK-
SIÉVITCH, 2017).
Este ensaio se propõe a tipificar as metamorfoses do leitor, co-
locando-o no ponto de indeterminação que a era das catástrofes
abriu na virada do século XX para o XXI. Sobretudo, via os ecos
da literatura de Roberto Bolaño e as vozes de Tchernóbil coletadas
por Svetlana Aleksiévitch. Não só por tudo que trazem à tona com
sua estrutura montada sobre vozes dissonantes e contraditórias,
com sua virtude maior no enigma e menos na revelação. Mas por-
que inauguram um outro tipo de leitor, o leitor selvagem. Imagem
abrupta que rasga a cena da literatura pós-Tchernóbil dos seus véus
do realismo mágico e das utopias populistas de esquerda. Tecido
que marcou a forma de escrita e de leitura da História dos habitan-
tes do lado de cá e do lado de lá do mundo. O único lugar de fala
que insiste em sobreviver depois da era dos extremos. “Da guerra
regressou a geração “perdida”, de Tchernóbil vive a geração “deso-
rientada”. Vivemos no desconcerto. A única coisa que não mudou
foi o sofrimento humano. O nosso único capital. Intocável” (ALEK-
SIÉVITCH, 2018, p. 224).

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2. TIPOS LEITORES
 
(...) há algum tempo, tenho reivindicado que, fora e além do livro, há uma
multiplicidade, aliás, que vem aumentando historicamente. Além do leitor
de imagem, no desenho, pintura, gravura, fotografia, há também o leitor
de jornal, revistas. Há ainda o leitor de gráficos, mapas, sistemas de nota-
ções. Há o leitor da cidade, leitor da miríade de signos, símbolos e sinais,
em que se converteu a cidade moderna, a floresta de signos de que já fala-
va Baudelaire. Esse leitor só pode se movimentar no ambiente urbano das
grandes metrópoles porque lê os sinais de trânsito, as luzes dos semáforos,
as placas de orientação, os nomes das ruas, as placas dos estabelecimentos
comerciais etc (SANTAELLA, 2013, p.266).

Santaella (2013), partindo da premissa da expansão do conceito de leitu-


ra, sistematizou a multiplicidade dos leitores em quatro grandes tipos:
o leitor contemplativo, o leitor movente, o leitor imersivo e o leitor ubí-
quo. Passamos a uma breve descrição dos tipos de leitores agrupados
por Santaella e os seus perfis cognitivos.
O primeiro tipo destacado por Santaella é o leitor contemplativo. “O
perfil cognitivo do leitor do livro pressupõe a prática, que se tornou do-
minante a partir do século XVI, da leitura individual, solitária, silencio-
sa” (SANTAELLA, 2013, p. 268). Trata-se de uma relação íntima com o
livro, destacada do contexto geral, feita em lugares silenciosos. Uma lei-
tura iminentemente contemplativa, apartada das atrações mundanas.
“É o mundo do papel e do tecido da tela” (SANTAELLA, 2013, p. 268).
Exige do leitor retidão e entrega perceptiva, imaginativa e interpretati-
va que suspendem o tempo.
As mudanças da modernidade em meados do século XIX, principal-
mente pelo aumento demográfico, a aceleração capitalística e o cresci-
mento das cidades, trouxeram à tona o leitor movente. Um perfil cog-
nitivo que lê a multidão das grandes cidades, os sinais luminosos das
ruas, as tabuletas de publicidade, as inúmeras distrações do trânsito,

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adaptando-se a novos ritmos da atenção. “A impressão mecânica, alia-
da ao telégrafo e à fotografia, gerou a linguagem híbrida do jornal,
testemunha do cotidiano, fadada a durar o tempo exato daquilo que
noticia. Com ela nasce o leitor fugaz, novidadeiro, de memória curta,
mais ágil” (SANTAELLA, 2013, p. 269). Aliado a isso, a velocidade dos
novíssimos meios de transporte como o trem, os automóveis, bondes,
ônibus e o movimento das câmeras do cinema inauguraram uma nova
sensibilidade, fugidia e incessante. Uma sensibilidade inerentemente ci-
nematográfica, como um paralelo aos choques e intensidades na vida
urbana.
Preparado pelo leitor movente, mas já contemporâneo da era digital
de meados do século XX, o leitor imersivo navega entre nós e interfaces
alineares dos espaços virtuais da internet. “O leitor imersivo inaugura
um novo modo de ler que implica habilidades muito distintas daquelas
que são empregadas pelo leitor de um texto impresso (...)” (SANTAEL-
LA, 2013, p. 271). Torna-se imersivo porque navega em um universo
de signos e informações evanescentes e eternamente disponíveis. Con-
trário à sequencias lineares de um texto impresso em que se pode ma-
nusear e folhear da esquerda para direita, segue roteiros multilineares,
multissequenciais e abertas. O próprio leitor é capaz de montar outras
séries, interagir e construir novas configurações do espaço informativo,
interagir com outros leitores, incluir músicas, vídeos, imagens.
Fruto das rápidas mudanças dos últimos quinze anos, o quarto leitor
tipificado pela autora, é o leitor ubíquo.

É ubíquo porque está continuamente situado nas interfaces de duas pre-


senças simultâneas, a física e a virtual, interfaces que reinventam o corpo,
a arquitetura, os espaços urbanos e as relações complexas nas formas de
habitar, o que repercute nas ofertas de trabalho, de entretenimento, em
que os games ocupam posição privilegiada, de serviços, de mercado, de
acesso e troca de informação, de transmissão de conhecimento e aprendi-
zado. (SANTAELLA, 2013, p. 277).

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Efeito imediato do acesso as inúmeras janelas digitais que tonaram
onipresentes as formas de conexão, por via de smartphones, terminais
eletrônicos, terminais em aeroportos, bancos e shoppings, o leitor ubí-
quo está instalado na fronteira da mutação tecnológica, financeira e
tecnopolítica. Constitui-se no borramento do tempo do trabalho e o
tempo de lazer, na intersecção do virtual e do físico que o enquadra em
outra economia da atenção.
Diante da síntese de leitores propostos por Santaella, que perpas-
sam os séculos sem, no entanto, eliminar a existência de um ao outro,
propomos um quinto tipo: o leitor selvagem. Avizinhado ao leitor
úbiquo, mas funcionando como um espectro deste, principalmente
por se tratar de um leitor que mais se assemelha aos leitores ausentes
do museu de Rosário descrito no começo desse ensaio. Uma espécie
de sombra que tangencia todos os leitores tipificados pela autora, mas
que escapa pelas ranhuras das linhas, com a tenacidade de um arqui-
vista por vir. Leitor que funciona como um cronista do futuro, não de
qualquer futuro. Do futuro pós-Tchernóbil e a leitura da catástrofe
que a acompanha como um diorama da História nas décadas finais da
era dos extremos.

3. ESPECTROS DO LEITOR SELVAGEM


Lançamos a hipótese do leitor selvagem em duas escritas sintomáticas
que inauguram a narrativa literária e historiográfica do século XXI. A
labiríntica literatura de Roberto Bolaño e a intensidade das vozes de
Svetlana Aleksiévitch. Nas limitações desse ensaio, faremos pequenos
apontamentos que emergem de leituras perturbadoras de ambos, bus-
cando identificar pequenas evidências e aporias que funcionam muito
mais como digressões iniciais do que estudos exaustivos sobre ambos.
Na seção “Precursores e Anti-Iluministas”, Bolaño, nos apresen-
ta o primeiro dos dois únicos brasileiros que integram o inventário da

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Literatura Nazista na América2. Luiz Fontaine de Souza nascido no Rio de
Janeiro, em 1900. Morto, na mesma cidade, em 1977. Célebre pelo con-
junto de refutações aos grandes pensadores do mundo contemporâneo
como: Voltaire, Diderot, D’Alembert, Montesquieu, Rousseau, Hegel,
Marx, Feuerbach. Conta o chileno que em 1939, Fontaine surpreendeu
a todos com a publicação de um romance sentimental, onde narra os
galanteios de um professor de literatura portuguesa à uma jovem rica e
semi-analfabeta de Novo Hamburgo. O romance, “Luta dos Contrários”,
recebeu elogios e uma continuação no ano seguinte “Luta dos Contrá-
rios: Crepúsculo em Porto Alegre”, acrescido do subtítulo “Apocalipse
em Nova Hamburgo”. O romance se destaca pelo estilo fragmentário,
narrado por diversos pontos de vista do mesmo personagem, assombra-
do por um crepúsculo interminável, e, no entanto, velocíssimo.
O breviário de vidas imaginárias que constrói Bolaño, uma espécie
de história universal da infâmia elidida sobre os auspícios de um cânone
literário esquecido e narrado sob a pena de uma personagem remota
no tempo, parece nos convocar a equivocidade da leitura. Ao segredo
(algo que se coloca a parte, mas circulante) da história perdida da infâ-
mia. Ou da história infame que se perdeu no “universal”.
Aspecto que o autor levará ao ápice no romance Os Detetives Selva-
gens, onde os narradores sempre estão ausentes. Narrado por cinquen-
ta vozes diferentes e discrepantes que não constroem um mosaico co-
mum à investigação sobre os protagonistas do romance, Ulises Lima e
Arturo Belano.

Neste sentido, é como se Bolaño operasse neste livro como um docu-


mentarista ou como um mau estudante universitário: deixa que o sentido
emerja da leitura sequencial das partes e das frequentes contradições entre

2.  Estratégia narrativa que funciona com um espelho de História Universal da Infâmia e Vidas
Imaginárias, dos escritores Jorge Luiz Borges e Marcel Schwob. Nesse livro, Bolaño constrói
um inventário de autores e obras imaginárias agrupados pelo cânone provocativo da literatura
nazista na América.

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elas, negando-se a fornecer um discurso pretensamente neutro, explicati-
vo, que suplemente as falas das testemunhas (LYRA, 2016, p. 136).

Complementa Clarissa Lyra que Bolaño faz uso da controvérsia


como método, tornando a experiência somente possível pelos olhos de
outro. Como Perseu diante da Górgona, nunca encaramos os prota-
gonistas de frente, pelo menos por suas próprias vozes. Os leitores de
Detetives Selvagens leem um inquérito policial em que tudo que sabem
sobre Ulises Lima e Arturo Belano são os relatos desencontrados de
uma miríade de vozes que compõem a polifonia de uma história incoe-
rente. Mais do que recursos técnicos, jogos de linguagem e artifícios es-
téticos, Bolaño parece propor uma política da leitura-escrita forjada na
violência. A verdade está estilhaçada e seus cacos quando remontados
não fazem sentido.
O dissímile, o contraditório, o ritmo policial que imprimi no roman-
ce, a história como pesadelo, a iminência do mal que se esgueira a cada
novo mistério que desvia o leitor do essencial, impulsiona uma leitura
selvagem. Mais do que isso, ao encontro de um leitor selvagem, capaz
de evocar memórias involuntárias da espoliação das vidas (Proust en-
contra Marx) no absurdo da mais insignificante das mortes (Camus en-
contra eco). Tudo isso girando no vazio que o século XX inventou para
além de qualquer ficção, “há em Dostoiévski a ideia que a humanidade
sabe muito mais sobre si mesma do que aquilo que consegue fixar na
literatura” (ALEKSIÉVITCH, 2017, p. 372).

4. AS ABELHAS SABIAM
No impressionante livro de Svletana Aleksievitch (2017), Vozes de Tcher-
nóbil – Crônica do Futuro, a autora revela a impossibilidade de entender o
tempo do desastre: passado ou futuro?
Tchernóbil, foi muito mais além do que qualquer ficção e de todas
as outras tragédias do século XX. Representou um ponto final, o início

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de outro julgamento da História. “Gostaríamos de esquecer Tchernó-
bil, porque diante dele a nossa consciência capitula. É uma catástrofe
da consciência” (ALEKSIEVITCH, 2017, p. 49). Uma nova sensação de
tempo, abalando os sentidos e as representações sobre o mundo. Svetla-
na coletou inúmeros relatos orais das vítimas da explosão do reator. O
mais impressionante não é o acontecimento em si, mas a forma com
a vida segue no que podemos entender como uma restruturação dos
sentimentos.
Um coro de vozes narra as lascas de memórias e dramas individuais
que se seguiram às evacuações, doenças, mortes, descasos e abusos de
autoridade que compõem a substituição do homem soviético pelo ho-
mem de Tchernóbil. A maior das perestroikas que o povo soviético vi-
veu em meados da década de 1980.
A opção de Svetlana em aderir as lições de Dostoiévski narrando por
diferentes vozes o puzzle impossível de Tchernóbil, tece uma verdade
aterradora sobre a impossibilidade de entender os seus significados.
Pois, não se trata somente da polifonia da verdade, mas da cacofonia
da consciência diante da História. O que aconteceu? Como entender
aonde estamos? O que se passou? Parecem levar o homem pré-tchernó-
bil ao balbucio de uma impossibilidade do ato de ler o acontecimento
depois da catástrofe.
No entanto, é pela vida que segue aos relatos dos sobreviventes (ain-
da que temporários), dos atingidos pela radiação (sem saber dosar o sig-
nificado), das testemunhas (mesmo na impossibilidade de estar à altura
do acontecimento), que a tragédia se apresenta em toda sua crueza.
A zona de exclusão, havia chegado bem mais longe que os campos de
concentração, o holocausto e as bombas de Hiroshima e Nagasaki.
Entre tantos relatos impressionantes coletados por Svetlana, a reinci-
dência do espanto das testemunhas diante do comportamento dos ani-
mais abre um novo enigma que a pequena cidade soviética produziu. A in-
dústria atômica havia colocado a nu uma outra linguagem, mais além do
que qualquer tratado de segurança e da burocracia do estado vermelho.

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Lembro-me também do que me contou um velho apicultor (e depois ouvi
de outras pessoas): “Saí pela manhã ao jardim e notei que faltava algo, fal-
tava o som familiar. Nem sequer uma abelha... eu não ouvia nem uma
abelha! Nem uma! O que é isso? O que está acontecendo? No segundo
dia, elas não voaram. E também no terceiro...Depois me informaram que
tinha acontecido um acidente na central atômica, que era perto. Duran-
te muito tempo não soubemos de nada. As abelhas sabiam, mas nós não.
Agora, se noto algo estranho, vou observá-las. Nelas está a vida” (ALEK-
SIEVITCH, 2017, p. 48).

Longe das informações e do real significado que estava acontecendo,


os sobreviventes aprenderam uma outra forma de ler que ultrapassava
as manipulações do estado soviético. Hermenêutica selvagem que se
imiscuía nas omissões do regime soviético abrindo espaço para outros
signos. Gramáticas outras que se inscreviam na natureza da catástrofe.
“O rádio e os jornais ainda não diziam nada, mas as abelhas já sabiam
de tudo. Só no quarto dia elas saíram para voar” (ALEKSIEVITCH,
2017, p. 84), conta outra vítima.
Ressonâncias de uma literatura selvagem que se aloja nas vozes indi-
viduais que arranjam a ópera do inexorável. Uma literatura que “(...) se
instala descobrindo sob as aparentes pessoas a potência de um impes-
soal, que de modo algum é uma generalidade, mas uma singularidade
no mais alto grau: um homem, uma mulher, um animal, um ventre,
uma criança... (DELEUZE, 2004, p. 13).
Parece haver uma nova leitura que se apresenta nas vozes do ho-
mem de Tchernóbil que é capturada nos leitores selvagens de Bolaño.
Dostoiévski está para Svetlana como Borges está para Bolaño, mas sob
o véu, em ambos, de uma narrativa após a era das catástrofes. Nem o
mundo, nem os homens, nem a literatura podem ser a mesma depois
das últimas décadas do breve século XX. As abelhas imóveis e silencio-
sas que Svetlana lê como uma crônica do futuro encontram os detetives
selvagens na mesma impossibilidade de narrar na primeira pessoa. O

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núcleo vazio em que giram os soldados, bombeiros, cientistas, políti-
cos, civis de Tchernóbil exige a mesma ausência de imagem que a “ven-
tana” aberta para o futuro gasto do escritor chileno na última página
dos Detetives Selvagens. O mundo sob outro enquadramento exige outro
leitor.

5. À GUISA DE INCONCLUSÕES
Entre as tipificações proposta por Santaella, em um lugar indefinido,
mas sempre atual, o leitor selvagem é o paradigma do nosso tempo.
Filho das ditaduras, catástrofes ambientais, da derrocada da ciência, a
ubiquidade da sua presença ombreia com todas as zonas de exclusão
que compõem suas heranças malditas.
Nossa hipótese neste ensaio foi que os lectores ausentes de Rosário,
os detetives de Bolaño e as vozes de Svetlana são suas marcas fantas-
máticas. Da geração “perdida” à geração “desorientada”, passando pela
longa noite da América-Latina, vemos a mesma capitulação da Histó-
ria. Se o nosso tempo é uma usina gigantesca de distopias, atentemos
para suas epifanias negras e suas novas políticas de escrita. Como afir-
mou Enrique Vila-Matas em seu discurso de recepção do Prêmio Rulfo,
em Guadalajara:

Esa realidade que ya há sucedido, pero aún no se percebe del todo, pero
está aqui ya, entre todos nosotros, sussurra el coro trágico. Y ustedes ah-
ora me van a perdonar, pero lo que dicen las voces de Chernóbil, el gran
coro, es el futuro (VILA-MATAS, 2018, p. 23).

O passado aterrador como enigma para o futuro é uma das varia-


ções que unem os escritos do chileno e da bielorussa. No entanto, o
leitor selvagem que parece emergir das suas linhas e vozes se apre-
senta muito mais no transbordamento da utopia. Dos restos draga-
dos das grandes tentativas de renovação do mundo nas malogradas

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experiências do século XX. Como confessa Svetla em seu discurso
proferido na cerimônia do prêmio Nobel de Literatura: “Escrevi cin-
co livros, mas tenho a impressão de que todos eles são apenas um.
Um livro sobre a história de uma utopia” (ALEKSIEVITCH, 2017,
p. 370).
A história da derrocada da utopia soviética faz coro com a história
eclipsada das utopias latino-americanas. “Sonhávamos com a utopia e
acordamos gritando”, diz um fragmento de um poema de Bolaño. É
como se o leitor selvagem emergisse das ruínas das utopias derrotadas,
sem olhar para os seus entulhos nostálgicos, mas para aquilo que foi in-
visibilizado diante de olhos que insistiam em olhar apenas para frente.
O leitor que nos falta, o leitor porvir, é o leitor das frestas do tempo da
história, do fim do homem soviético e do fim do escritor latino-ame-
ricano acostumado com sua cadeira cativa nas histórias e na História.
Não mais “escravos da utopia” (ALEKSIEVITCH, 2017, p. 372), mas,
talvez, hermeneutas selvagens.

REFERÊNCIAS
ALEKSIEVITCH, Svetlana. Vozes de Tchernóbil. São Paulo: Ed. Cia das Letras, 2017.
BAKTHIN, Mikhail. Problemas da Poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro: Ed. Foren-
se, 2011.
BOLAÑO, Roberto. Os Detetives Selvagens. São Paulo: Ed. Cia das Letras, 2016.
______. O Espírito da Ficção Científica. São Paulo: Ed. Cia das Letras, 2017.
______. A Literatura Nazista na América. São Paulo: Ed. Cia das Letras, 2019.
______. Estrela Distante. São Paulo: Ed. Cia das Letras, 2009.
______. Noturno do Chile. São Paulo: Ed. Cia das Letras, 2009.
______. O Terceiro Reich. São Paulo: Ed. Cia das Letras, 2011.
BORGES, Jorge Luis. História Universal da Infâmia. São Paulo: Ed. Globo, 2001.
DELEUZE, Gilles. Crítica e Clínica. São Paulo: Ed. 34, 2004.

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LYRA, Clarisse. ‘Los Detectives Salvajes’: Sua Promessa de Sentido. In: PEREIRA, An-
tonio Marcos; RIBEIRO, Gustavo Silveira. Toda a Orfandade do Mundo: escritos sobre
Roberto Bolaño. Belo Horizonte: Ed. Relicário, 2016. p. 135-148.
PEREIRA, Antonio Marcos; RIBEIRO, Gustavo Silveira. Toda a Orfandade do Mundo:
escritos sobre Roberto Bolaño. Belo Horizonte: Ed. Relicário, 2016.
PIGLIA, Ricardo. Formas Breves. São Paulo: Ed. Cia das Letras, 2017.
______. O último leitor. São Paulo: Ed. Cia das Letras, 2006.
SANTAELLA, Lúcia. Comunicação Ubíqua. São Paulo: Ed. Paulos, 2013.
SCHWOB, Marcel. Vidas Imaginárias. São Paulo: Ed. 34, 1997.
ROSSO, Ezequiel. Una lectura conjetural: Roberto Bolaño y el relato policial. In:
MANZONI, Celina (Org.). Roberto Bolaño: la escritura como tauromaquia. Buenos
Aires: Corregidor, 2006. p. 133-143.
VILA-MATAS, Enrique. Impón tu Suerte. Barcelona: Ed. C/T, 2018.

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“LA PARTE DE LOS CRÍMENES”:
EXEMPLOS DE UMA ESCRITA FORENSE
Karl Erik Schøllhammer

É necessário apresentar brevemente o conceito de literatura e – mais


amplamente – o de estética forense. Dentro de sua conceituação
contemporânea, sempre se encontra em tensão com outro paradig-
ma discursivo que teve impacto na literatura e também nas artes e nas
formas narrativas da mídia comercial das décadas de 1980 e 1990. Re-
firo-me ao paradigma do testemunho e ao privilégio que ele oferece
ao depoimento pessoal e à expressão da vivência subjetiva dos fatos
históricos, frequentemente marcados pelos efeitos traumáticos diante
da violência e da ameaça de extinção. Entretanto, é bom lembrar que
não se pretende explorar o binarismo entre duas abordagens polares:
a testemunhal e a forense. Muito ao contrário, a proposta é defender
a necessidade de conciliar a discussão e situar o testemunho a partir
da perspectiva forense para resgatar seu valor e sua potência judicial e
política, e não apenas ética.
O ponto de partida é o romance 2666, do chileno Roberto Bolaño,
lançado em 2004, um ano após o falecimento do autor. Foi escrito no
eclipse da obra de Bolaño, com plena consciência da morte prematura
que a doença prolongada do fígado lhe reservava. É sabido que preparava
o livro em cinco partes na intenção de oferecer à família uma garantia
econômica póstuma, e é legítimo ao mesmo tempo ver o romance como
uma espécie de testamento literário em que temas centrais de sua obra se

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sintetizam de maneira madura. Um tema recorrente na ficção de Bolaño
era a relação entre a criação literária e o mal. Vários contos e romances gi-
ram em torno desse tema, e basta pensar em personagens como Auxilio
Lacouture, do romance Amuleto, ou Urrutia Lacroix, de Nocturno de Chile,
ou o sinistro poeta Ruiz Tagle/Carlos Wieder, de Estrella distante, para ter
uma ideia dos contornos do tema. Entretanto, em nenhum outro lugar
o tema se apresenta de maneira mais explícita do que em 2666. É fato
bastante conhecido que o enredo narrativo do romance é composto de
uma procura detetivesca de um pequeno grupo de críticos literários que
seguem os passos do misterioso escritor alemão Benno Archimboldo ao
mesmo tempo que se desenvolve a história biográfica desse escritor, ao
longo da segunda metade do século 20. As duas linhas narrativas acabam
finalmente coincidindo ou se relacionando de maneira complexa com os
assassinatos de mulheres na cidade de Santa Teresa, lugar imaginário, po-
rém suspeito na fronteira do México com os Estados Unidos.
Em 2666, a lacuna e a elipse são princípios fundamentais da narra-
tiva, e a história dos críticos de literatura em busca do escritor enig-
mático Benno Archimboldo de certa maneira se confunde com a pro-
cura por algo, um mistério, um fascínio, uma sedução que podemos
entender como o literário genuíno nunca concretamente explicitado
nem exemplificado a não ser através dos títulos e de breves descrições
dos livros pelos personagens críticos comentando o autor. É claro que a
tentativa de compreensão desse princípio essencial do literário é fadada
ao fracasso, ao inacabamento e ao inconcluso, mas o ponto que destaco
aqui é que a procura se confunde enigmaticamente com o mistério,
agora sim, histórico e recente do feminicídio de Santa Teresa, municí-
pio que evoca Ciudad Juárez, em Chihuahua, México, e aparece aqui
como expressão capital do mal anônimo. O mistério do personagem
fictício Benno Archimboldo leva a um confronto com o mistério de
Ciudad Juárez, que na década de 1990 ficou conhecida pelos frequentes
assassinatos de mulheres, quase sempre sem solução investigativa e que
em 2012 somavam 700 vítimas.

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O capítulo 4 – “La parte do los crímenes” – é o maior do romance
e se apresenta basicamente como uma relação minuciosa das vítimas
reais desses assassinatos cometidos entre 1995 e 1997. Segundo o tra-
balho investigativo do jornalista mexicano Sergio González Rodríguez,
resumido no livro Huesos en el desierto, foram mortas e documentadas
109 mulheres nesse período. Bolaño conhecia o autor mexicano pes-
soalmente e se propôs a trabalhar na elaboração desse capítulo de 152
páginas, que se desenrola como uma longa relação de cenas de crimes,
a partir da investigação de Rodríguez. A força dessa parte do livro não
se deve apenas à inserção de um caso histórico de violência, um índice
potente de uma violência sistêmica que não se explica por nenhuma
hipótese de natureza conspiratória de assassinatos em série, mas prin-
cipalmente ao fato de expor a vulnerabilidade letal da mulher trabalha-
dora numa situação de exploração múltipla.
Além de ser um documento factual, criado em parceria com um
jornalista investigativo, Bolaño não abre mão de um trabalho de escri-
ta que recua diante da tentação dramática de procurar a história por
trás de cada episódio do clássico relato detetivesco e policial. Cada cena
é exposta em sua visibilidade indexical, descrita objetivamente com
atenção aguda aos detalhes, às evidências, no sentido mais preciso da
palavra latina evidentĭa: visibilidade, clareza, transparência – ou sim-
plesmente aquilo que se vê. O que não escutamos aqui é a voz das mu-
lheres vitimizadas, seu testemunho subjetivo, seu depoimento de sobre-
viventes do crime. Ainda assim, suas histórias aparecem implícitas nas
descrições feitas por um olhar exterior comprometido com a revelação
dos fatos:

A mediados de febrero, en un callejón del centro de Santa Teresa unos ba-


sureros encontraron a otra mujer muerta. Tenía alrededor de 30 años y
vestía una falda negra y una blusa blanca escotada. Había sido asasinada a
cuchilladas, aunque en el rostro y el abdomen se apreciaron las contusio-
nes de numerosos golpes. En el bolso se halló un billete de autobús para

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Tucson que salía esa mañana a las nueve y que la mujer ya no iba tomar.
También se encontró un pintalabios, polvos, rímel, unos pañuelos de pa-
pel, una cajetilla de cigarrillos a medias y un paquete de condones. No te-
nía pasaporte ni agenda ni nada que pudiera identificarla. Tampoco llevaba
fuego. (p. 446)

Há uma certa apropriação por Bolaño do estilo da ficha policial, mas


a aparência engana, pois os detalhes indicam uma existência desarrai-
gada de mulher à procura de uma posição melhor na vida. Além do
relato dos fatos da cena do crime, os objetos encontrados expressam a
experiência subjetiva da vítima; a evidência já não é um dado positivo, e
a objetividade da cena desaparece sob a emergência do testemunho de
tal fragilidade e inocência que só a literatura consegue criar.

A finales de septiembre fue encontrado el cuerpo de una niña de trece


años, en la cara oriental del cerro Estrella. Como Marisa Hernández Sil-
va y como la desconocida de la carretera Santa Teresa-Cananea, su pecho
derecho había sido amputado y el pezón de su pecho izquierdo arrancado
a mordidas. Vestía pantalón de mezclilla de marca Lee, de buena calidad,
una sudadera y un chaleco rojo. Era muy delgada. Había sido violada repe-
tidas veces y acuchillada y la causa de la muerte era rotura del hueso hioi-
des. Pero lo que más sorprendió a los periodistas es que nadie reclamara o
reconociera el cadáver. Como si la niña hubiera llegado sola a Santa Teresa
y hubiera vivido allí de forma invisible hasta que el asesino o los asesinos
se fijaran en ella y la mataran. (p. 584)

A extrema violência da tortura, da violação e da morte da menina,


que inicialmente aponta um padrão de assassinato, ganha um contras-
te com os detalhes da roupa (“de buena calidad”), sua delicadeza física
(“muy delgada”) e sua existência aparentemente anônima, que facilitou a
empreitada sinistra do assassino. A descrição repetida e fatídica das víti-
mas e das circunstâncias de sua morte produz certo anonimato mesmo

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quando as meninas são de fato identificadas. São existências indefesas
que enfrentam uma violência individual, sempre singular, mas ao mes-
mo tempo estrutural e mecânica. São vítimas não de um assassino em
série, mas provavelmente de vários assassinos, talvez de narcotrafican-
tes, de traficantes de migrantes – polleros e coyotes – e principalmente
do sistema do feminicídio. Bolaño expressa em poucos detalhes, de um
lado, a humanidade frágil das mulheres vítimas de violência corporal
e, de outro, o anonimato de uma violência sistêmica ligada a uma eco-
nomia global de fronteira que incentiva a exposição dos corpos mais
fracos.

Nadie acudió a identificarla. Al cuarto día de su muerte, el jefe de policía


Pedro Negrete se desplazó personalmente al cerro Estrella [...]. Por el lado
oeste vio los techos de zinc de algunas casas. Las calles que caracoleaban
en medio de un trazado anárquico. Por el este vio la carretera que llevaba
a la sierra y el desierto, las luces de los camiones, las primeras estrellas,
estrellas de verdad, que venían con la noche desde el otro lado de las mon-
tañas. Por el norte no vio nada, sólo una gran planicie monótona, como si
la vida se acabara más allá de Santa Teresa, pese a sus deseos y conviccio-
nes. (p. 452)

Meu argumento de leitura é que a narrativa de Bolaño pode ser vista


como parte de uma mudança de paradigma, do testemunhal para o fo-
rense, na cultura contemporânea, criando uma tensão crescente entre
a expressão subjetiva de vítimas de violência traumática na descrição
sensível das circunstâncias de sua morte e o plano objetivo do registro
policial e legal que procura revelar o plano sistêmico de uma violência
anônima. Esse movimento não suspende nem supera a centralidade do
testemunho, mas reposiciona o testemunho a partir do que podemos
chamar de perspectiva forense. Hoje, o Fórum é identificado com o
exercício legal da lei, mas a perspectiva forense da literatura recupe-
ra a dimensão retórica da palavra, em que a performance retórica não

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só expressava as circunstâncias do argumento, mas também criava seu
próprio Fórum, em que o discurso ganhava visibilidade. Longe do obje-
tivismo cientificista, o aspecto forense na estratégia narrativa de Bolaño
é a maneira como a descrição ganha realidade, e possibilita a percep-
ção não só da circunstância, mas também das ações implícitas de sua
imagem. Assim, a escrita se afasta da subjetividade da voz em primeira
pessoa, impedida pela violência, porém presente graças a certa distân-
cia descritiva, e os fatos circunstanciais ganham valor afetivo, conden-
sando uma dor que já não tem palavras. A descrição das cenas do cri-
me permite a depuração do testemunho subjetivo com relação à forte
influência das teorias psicanalíticas do trauma desenvolvidas durante
a década de 1990. Como observou Andreas Huyssen no livro Culturas
do passado-presente (2003), a teoria do trauma engendrou um ideal de
irrepresentabilidade e silêncio que favorecia uma estética experimental
– ocidental, estreita e elitista – que se propunha a transmitir o trauma
e rejeitava ceticamente a cronologia e a coerência da narrativa. A ob-
servação de Adorno sobre a impossibilidade de escrever poesia depois
de Auschwitz tornou-se um ponto de referência para a revitalização da
noção de sublime estético e sua preferência dogmática pela irrepresen-
tabilidade. Ao mesmo tempo, a narrativa do trauma aparecia na década
de 1990 como uma solução de explicação fácil para assuntos sociais e
políticos ao exagerar seu potencial de cura e de restauração, ignorando
a própria condição no contexto socioeconômico.
Mas, se a narrativa forense permite situar o testemunho afastado da
teoria do trauma e reposicioná-lo como parte retórica da explanação
das evidências, ao mesmo tempo ela corrige a presunção do discurso
jurídico de oferecer uma análise científica objetiva de objetos e corpos
sem considerar a subjetividade humana e sua importância na negocia-
ção do sentido do passado.
A centralidade do capítulo 4 no romance 2666 não se dá apenas em
função do compromisso com os eventos enigmáticos dos assassinatos
de Ciudad Juárez, culminação da história da violência política do século

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20 que perpassa o romance inteiro. O capítulo lança mão da potência
singular da ficção literária de explorar os mecanismos da representação,
da interpretação e da narração dos fatos históricos. Os fragmentos ofe-
recem uma série de tableaux descritivos comprometidos com sua reali-
dade documental, mas explorados ficcionalmente como depoimentos
anônimos de quem não tem voz. O que convence na descrição são os
traços autênticos do passado perdido que aparecem no lugar do silên-
cio das verdadeiras vítimas da violência. As coisas ganham voz anôni-
ma e em seu rastro material expressam a aniquilação. No entanto, o
resultado é um discurso que não é imediatamente decifrável para o leitor. A
pista forense recusa a decodificação simples porque ela potencialmente
atesta todos os complexos fatores e forças históricos que a moldaram.
Sua força é enigmática e sugere uma explicação inerente que não se
realiza, mas convida o leitor a procurar respostas que a descrição em si
deixa inacessíveis.
É dessa maneira que a ficção do romance se afasta da tendência cien-
tificista e positivista do paradigma forense, dando concretude à relação
entre evidências visuais e materiais e as várias formas de testemunho
que discretamente se inserem no compromisso de descrever a cena de
modo objetivo.

REFERÊNCIAS
BOLAÑO, Roberto. 2666. Barcelona: Anagrama, 2004.
HUYSSEN, Andreas. Present Past: Urban Palimpsests and the Politics of Memory.
Stanford University Press, 2003.
______. Culturas do passado-presente. Rio de Janeiro: Contraponto, 2014.
RODRÍGUEZ, Sergio González. Huesos en el desierto. Barcelona: Anagrama, 2006.
WEIZMAN, Eyal; KEENAN, Thomas. Mengele’s Skull: The Advent of a Forensic Aes-
thetics. Berlim: Sternberg Press, 2012.

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A IMAGEM DO HERÓI ARISTOCRÁTICO
EM SEU DESENVOLVIMENTO ATRAVÉS
DO TEMPO: RESUMO DO ESTUDO
DO CASO DO HEAVY METAL
Guilherme Klausner

1. INTRODUÇÃO
O filme Pantera Negra, parte do Marvel Cinematic Universe, ou seja, da re-
construção, no cinema, do universo criado nos comic books da Marvel Co-
mics, tem como premissa a existência de um Estado africano, Wakanda,
rico e tecnologicamente desenvolvido em razão da exploração do me-
tal fictício conhecido como vibranium, isolacionista, para proteger sua
riqueza de outras potências, e super-centralizado em torno da figura
do Pantera Negra, seu rei. No enredo do filme, o rei T’Challa, tem que
enfrentar seu primo, Erik Stevens, também conhecido como Killmonger,
pelo trono de Wakanda. Uma vez conquistado o trono, o objetivo de
Killmonger era distribuir armas feitas de vibranium para afro-descenden-
tes em diversas nações para que eles conseguissem se insurgir contra
seus opressores. T’Challa, depois de muitos percalços, que constituem
o enredo do filme, muda sua postura em relação à política internacio-
nal (e mantém o trono). Wakanda deixa de ser um país isolado e se
integra à comunidade internacional
O filme gerou grande repercussão na sociedade, com o Smithsonian’s
National Museum of African American History and Culture comprando diver-
sos itens usados em sua produção e a ele relacionados por crer que eles
integram de forma mais plena a história da cultura e da identidade negras

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na América1, com seu diretor, Ryan Coogler, exclamando que a cultura
afro-americana era feita de scraps, resquícios, da cultura africana original,
que era patrimônio de todos os afro-descendentes, e sendo aplaudido por
isso2, e diveros jornalistas simplesmente se dedicando à apologia ao filme e
à autocomiseração por fazer parte do “Ocidente”3, mas também gerou al-
gumas críticas: o filme exigiria do espectador que ele tomasse partido en-
tre o vilão (Killmonger) e o herói (o Pantera Negra, T’Challa), ou seja, entre
aqueles que defendem a libertação dos negros em escala mundial, associa-
dos a um afro-estadunidense, e aqueles que defendem uma mitigação dos
aspectos mais racistas do sistema político-econômico mundial em prol de
um globalismo humanista, associado a um nobre africano4; no texto, da
The New Yorker, a centralidade da personagem Killmonger é destacada, com
ele sendo identificado com todos os filhos da diáspora africana, órfãos de
sua história com ele o é de pai, e que retorna em busca de vingança contra
aqueles que o tornaram órfão de pai e de história5.

1.  HARING, Bruce. ‘Black Panther’ Items To Be Displayed At Smithsonian African-American


Museum. Deadline, [S.l.], 21 jun. 2018. Disponível em: https://deadline.com/2018/06/black-
-panther-items-to-be-displayed-at-smithsonian-african-american-museum-1202415299/.
2.  COBB, Jenali. “Black panther” and the invention of “Africa”. The New Yorker, [S.l.], 18 fev.
2018. Disponível em: https://www.newyorker.com/news/daily-comment/black-panther-and-
-the-invention-of-africa.
3.  “[...] Pantera Negra é poder, força, reflexão e preservação da identidade africana. Também
é um espelho do passado quando levamos em consideração a história do colonialismo. E isso é
o que devemos fazer, o que o filme muito francamente – corretamente – sugere. Com excelên-
cia, Pantera Negra coloca duas ideologias muito distintas uma contra a outra, transformando
finalmente o nosso herói, T’Challa, através da elegante convergência desse choque de ideias.
Este é um filme de profunda relevância cultural e sem quaisquer limitações, além de uma lição
de história e uma experiência ruminante sobre a crueldade provocada pela civilização ocidental
contra a África e seus descendentes modernos.” GONZALEZ, Carlos Rosario. The remnants
of colonialism still haunt us, but Black Panther offers a solution. Fansided, [S.l.], 2018. Dispo-
nível em: https://bamsmackpow.com/2018/02/19/black-panther-movie-theme-colonialism/.
4.  LEBRON, Christopher. ‘Black Panther’ Is Not the Movie We Deserve. Boston Review: [S.l.],
17 fev. 2018. Disponível em: http://bostonreview.net/race/christopher-lebron-black-panther.
O texto ainda estende suas análises para outras obras recentes da Marvel, como a série Luke
Cage, disponível na plataforma Netflix.
5.  Em outros textos, o papel de Killmonger de vilão chega mesmo a ser questionado, como
em RICKFORD, Russell. I have a problem with ‘Black Panther’. Africa is a country, [S.l.], 22 fev.

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Uma das críticas mais interessantes foi a de que, por trás de todo
o ímpeto de ser algo provocante, profundo, político e afinado aos
novos tempos, reconhecido pela maior parte da mídia e de alguns
setores da academia como bem-sucedido, o filme era uma pérola do
neo-colonialismo, ainda que pudesse aprofundar o questionamento
acerca do quão colonizado era entender algo como africano em si,
por sua ascendência, e o quão autêntica poderia ser a visão de um
afro-descendente em um país ocidental, filho de pais ocidentais ou
ocidentalizados, sobre a África6. Uma outra reação particularmente

2018. Disponível em: https://africasacountry.com/2018/02/i-have-a-problem-with-black-pan-


ther/. Tanto esse texto quanto o citado na nota 3, acima, citam o autor Frantz Fanon, mostran-
do a interlocução estabelecida entre o diálogo acadêmico e a cultura pop. Neste mesmo senti-
do, WILT, James. How Black Panther liberalizes black resistance for white comfort. Canadian
dimension, [S.l.], 21 fev. 2018. Disponível em: https://canadiandimension.com/articles/view/
how-black-panther-liberalizes-black-resistance-for-white-comfort. Alguns destes textos colocam
o internacionalismo revolucionário de Killmonger em contraste com a monarquia absoluta de
Wakanda.
6.  “No fundo, o filme é sobre um continente dividido e tribalizado, descoberto por um homem
branco que não quer mais nada além de levar recursos minerais, um continente dirigido por
uma elite rica, sedenta de poder, bélica e feudalista, onde uma nação com as tecnologias e ar-
mas mais avançadas do mundo, no entanto, não têm pensadores para desenvolver sistemas de
transição de governo que não envolvam combate letal ou golpe de estado.
De fato, Wakanda é muito parecida com os retratos habituais da África, até por seus residen-
tes invisíveis. Outras cidades da Marvel são povoadas por muitas pessoas comuns, de policiais
a estudantes do ensino médio a aposentados e super-ricos, todos os quais, pelo menos teo-
ricamente, têm alguma chance de se tornar super-heróis. Wakanda, por outro lado, é sobre
realeza e guerreiros. Sua riqueza não vem do gênio de seu povo, mas de um meteoro da sorte
e da benevolência de seus sábios governantes.” GATHARA, Patrick. ‘Black Panther’ offers a
regressive, neocolonial vision of Africa. The Washington Post, [S.l.], 26 fev. 2018. Disponível em:
https://www.washingtonpost.com/news/global-opinions/wp/2018/02/26/black-panther-of-
fers-a-regressive-neocolonial-vision-of-africa/. Uma perspectiva positiva sobre a questão pode
ser encontrada aqui: WALLACE, Carvell. Why ‘Black Panther’ Is a Defining Moment for Black
America. The New York Times Magazine, [S.l.], 12 fev. 2018. Disponível em: https://www.nyti-
mes.com/2018/02/12/magazine/why-black-panther-is-a-defining-moment-for-black-america.
html (as personagens são “são governantes de um reino, inventores e criadores de tecnologia
avançada. Nós não estamos lidando com dor negra, sofrimento negro e pobreza negra”). Neste
mesmo artigo, o diretor do filme relembra de ter tido uma sequência de conversas com os pais,
quando criança, sobre a questão da raça nos Estados Unidos da América, sobre a escravidão e
sobre a busca do que precedeu estes momentos de submissão. A ideia da busca de um passado
glorioso é bem tratada por Goodrick-Clarke em seus estudos sobre o surgimento da ideia míti-
ca do ariano na Alemanha e na Áustria pós-Primeira Guerra Mundial (GOODRICK-CLARKE,

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interessante foi a de um veículo muito importante da Alt-Right nor-
te-americana, que afirmou que a Wakanda do início do filme, objeto
de louvor para muitos, era um retrato dos Estados Unidos da Améri-
ca que a Alt-Right desejava criar: isolacionista, anti-globalista e racial-
mente homogênea7.
Este impacto variado do filme é um dos alertas mais importantes
de nossos tempos para algo muito importante: não é mais possível
pensar em política (e, consequentemente, em direito) sem pensar
nos demais fenômenos culturais e em especial naquele ramo mais
vinculado ao entretenimento conhecido como cultura pop. A aca-
demia jurídica tem uma relação complexa com a ideia de estudar o
direito a partir de outras perspectivas, em especial a partir daquelas
consideradas artísticas8. No entanto, em uma época essencialmente
democrática, é impossível se furtar a buscar compreender as imagens
popularmente cultivadas da política e do direito, imagens que não es-
tão contidas nos códigos e nas decisões dos tribunais, mas sim na
cultura do povo (SCHMITT, 2000)9.

2005 – devemos sempre nos lembrar que a ideia de um protagonismo tedesco na Europa fica
fortemente abalada, em especial após a Guerra dos Trinta Anos, sendo parcialmente recupera-
da só com a ascensão do Segundo Reich).
7.  PERKINS, Carl. R. The Alt-Right Has a New Hero and it’s Black Panther. International
Policy Digest, [S.l.], 26 jun. 2017. Disponível em: https://intpolicydigest.org/2017/06/26/
the-alt-right-has-a-new-hero-and-it-s-black-panther/. Também neste sentido: HARWELL,
Drew et al. How white nationalists are trying to co-opt ‘Black Panther’. The Washington
Post, [S.l.], 14 mar. 2018. Disponível em: https://www.washingtonpost.com/news/the-s-
witch/wp/2018/03/14/how-white-nationalists-are-trying-to-co-opt-black-panther/; BER-
KOWITZ, Joe. Desperate Alt-Right Is Trying To Co-Opt Black Panther (Because They’re
Pathetic) . Fast Company, [S.l.], 15 mar. 2018. Disponível em: https://www.fastcompany.
com/40544896/desperate-alt-right-is-trying-to-co-opt-black-panther-because-theyre-pathe-
tic; e ATWELL, Ashleigh Lakieva. Why The Alt-Right Loves ‘Black Panther’. Blavity News,
[S.l.], 14 mar. 2018. Disponível em: https://blavity.com/why-the-alt-right-loves-black-pan-
ther?category1=news.
8.  Não é o momento de fazer uma recuperação desta história, mas recomendamos, neste sen-
tido, Mittica (2015).
9.  Não damos aqui qualquer sentido qualitativo à noção de povo. Não se trata, nos parece, de
pensar em uma cultura popular em relação a uma cultura erudita, mas simplesmente pensar
em uma imagem suficientemente difundida a ponto de ser conhecida por todos. Schmitt ainda

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É esta espécie de estudo que tenho tantado fazer em meu tra-
balho, mas com o Heavy Metal (KLAUSNER, 2019). Nele eu tenho
confirmado minha hipótese de que há uma vinculação clara entre
alguns subgêneros do estilo de música conhecido como Heavy Metal,
a literatura heroico-aristocrática e o pensamento reacionário. Todas
essas forças passam pela rejeição da sociedade burguesa em prol de
uma sociedade hierarquizada, pela concessão da posição de primazia
(acompanhadas de autonomia absoluta – traço reforçado a partir do
romantismo) nesta sociedade hierarquizada ao herói e pelo funda-
mento cosmológico de embasamento desta sociedade. Esta vincu-
lação se dá, na prática, através de uma série de leituras que vão de
Homero a Vingadores, extrapolando o âmbito da literatura enquanto
meio, para incluir o cinema, os quadrinhos e as artes plásticas e a fi-
losofia em toda uma tradição que, por trás de uma maior ou menor
adequação aos preceitos da sociedade burguesa, lhe faz crítica e ela-
bora sua própria visão de homem e de sociedade. O Heavy Metal ser-
ve, nesta tradição, enquanto criador de espaços de convívio e debate,
sintetizador de pensamentos e fonte de leituras.
O Heavy Metal é um estilo que nasce na década de 70, especifica-
mente no ano de 1970, com lançamento do primeiro álbum do Black
Sabbath, homônimo. Ele surge como uma rejeição ao Flower Power, ao
Love and Peace e a toda experimentação da psicodelia, apesar de incor-
porar diversos de seus aspectos mais propriamente musicais (KLAUS-
NER, 2019, p. 9, com base em COPE, 2010, p. 4; TURMAN; WIE-
DERHORN, 2015, p. 17 – 22 e 45; e CHRISTE, 2010, p. 13 e ss.). O
álbum é uma crítica à visão de mundo do movimento hippie, não tanto
aos seus objetivos quanto à crença de que eles poderiam ser concreti-
zados (basta que pensemos na descrição da realidade política trazida
em War Pigs), e às contradições que a maculavam (para a análise deste

pontua, neste mesmo sentido, que não é a mera difusão, mas o caráter mítico desta imagem que
permite identifica-la como significativa para o direito e para a política, ou seja, sua capacidade
de mobilizar as massas por ser o pivô de uma narrativa (SCHMITT, 2000, p. 68).

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e de outros fatores, SKLOWER; WHITELEY, 2014, especialmente p.
98 – 99; PARTRIDGE, 2004, p. 155 e 156, e 2005, p. 102 e 103; e COPE,
2010, p. 30, citados em KLAUSNER, 2019, p. 136)10.
Desde este momento inicial, o Heavy Metal se dividiu em uma gran-
de diversidade de subgêneros11. Em meu estudo, escolhi desses subgê-
neros alguns específicos: o Black Metal, o Power Metal, o Gothic Metal e o
Doom Metal, admitindo relacionar alguns de seus aspectos com aspectos
de outros subgêneros (como do Symphonic Metal e do Folk Metal) e de
alguns outros gêneros musicais (como do neo folk). Meu interesse é en-
tender a relação existente entre as obras destes subgêneros e gêneros
musicais a partir dos temas que eles tratam, em suas letras e em sua
música, ou seja, através das imagens que essas obras portam.
Os metal studies, a área da academia que se dedica a estudar o Heavy
Metal enquanto fenômeno cultural, muitas vezes se volta exclusivamen-
te para os aspectos musicológicos do gênero, deixando de lado o con-
teúdo das letras das músicas. Da onde vem esse conteúdo? De outros
meios culturais (cinema, literatura etc) e da tradição própria do Heavy
Metal (ou seja, dos temas habitualmente tratados nas letras dos ante-
cessores dos autores atuais). E eu identifiquei uma relação entre estas
fontes de conteúdo que eu remeto a uma tradição literária (mas, nova-
mente, não só literária, mas que tem suas origens na literatura), qual
seja, a da literatura heroico-aristocrática.

10.  É importante também entender as conexões diretas entre o movimento hippie e o roman-
tismo alemão, em especial o movimento neoromântico Wandervogel, tanto em suas vertentes
mais à esquerda do espectro político quanto em suas vertentes mais à direita, justo em razão da
importância do romantismo na trajetória que tracei. Neste sentido, o livro de Williams (2007).
11.  “O conceito de subgênero, apesar de não estar bem definido na Academia, é amplamente
utilizado e visa designar um estilo de Heavy Metal que se origina a partir de uma divisão es-
tilística em relação ao próprio Heavy Metal original, como definido holisticamente (em seu
estilo musical, poético, comportamental etc.) pelas bandas fundadoras do estilo (que podem
variar desde a tríade Sabbath – Purple – Zeppelin até o reconhecimento do Sabbath como úni-
co fundador ou mesmo a adesão do Judas Priest ou de outras bandas cronologicamente mais
tardias), ou em relação a outro subgênero. Assim, por exemplo, o Death Metal é um subgênero
do Heavy Metal e o Death Metal Melódico é um subgênero tanto do Heavy Metal quanto do
Death Metal.” (KLAUSNER, 2019, p. 9, nota 1)

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O que se quer dizer com “literatura heroico-aristocrática”? É sim-
plesmente a literatura que tem como personagem heroica o aristocra-
ta. Um dos problemas mais complexos que me pûs a resolver surgiu
exatamente aí: como definir aristocrata? Este será o tema principal des-
te texto. Antes de adentrarmos na exposição, cumpre explicar que:

a) eu trabalhei com o desenvolvimento de certas imagens em um processo


histórico. Isso significa que não me furtarei a utilizar a primeira pessoa do
singular para reportar os resultados de minha pesquisa, que não indagarei
as razões psicológicas que podem ou não existir para a definição de uma
certa imagem, apesar de ter, por vezes, feito observações da espécie no tra-
balho que serve de base para este artigo (i.e. KLAUSNER, 2019, p. 49, nota
40), e que esta é uma exposição fundada no meu trabalho, no qual escolhi
o Heavy Metal como ponto final de pesquisa sobre uma determinada tra-
dição cuja trajetória histórica busquei reconstruir – é esta trajetória que
constitui o cerne da pesquisa e do texto da dissertação, e foi dela que eu
extraí os conceitos com os quais trabalharei neste texto;
b) sempre citarei, junto com a referência ao texto de minha pesquisa, os traba-
lhos que usei como base para a escrita da parte referenciada do mesmo.

2. O HERÓI PRÉ-MODERNO
Em um primeiro momento, tive que definir com qual material traba-
lharia. Excluí, dos estilos literários da Antiguidade ocidental (vez que o
Heavy Metal é um estilo musical que se origina no Ocidente e, mesmo
quando passa para outros ambientes culturais, tende a manter um diá-
logo baseado em topoi essencialmente ocidentais – KLAUSNER, 2019,
p. 140, com base em WEINSTEIN, 2009, p. 282 – 290, e no documen-
tário Global Metal), os cômicos ou os que se desenvolveram a partir da
comicidade, bem como os voltados para a “crítica social”12. Restaram

12.  Para fazer esta análise, usei a obra de Otto Maria Carpeaux, História da Literatura Ocidental.

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a Epopeia e a Tragédia e suas grandes obras fundadoras, quais sejam,
a Ilíada e Odisseia13. Nestas obras, e em suas sucessoras nos estilos refe-
ridos, a ideia de aristocracia tem como ponto nevrálgico o conceito de
virtude; aien aristeuein kay hypeirochon emmenai allon é a frase em grego
que define o comportamento heroico14.

13.  Homero é a expressão máxima do que os gregos consideravam como tradição compor-
tamental, educacional e ética a ser transmitida (CARPEAUX, 1959, p. 52; JAEGER, 2010, p.
25, 61 e 66). A partir dos heróis homéricos, e muitas vezes em uma relação bem dúbia com
eles, se definirá tanto a romanitas, a partir da obra virgiliana (COCHRANE, 2012, p. 107-108),
quanto o conceito medieval de cavalaria (Eneias e Heitor são citados expressamente, junto com
Alexandre e César, como modelos da Antiguidade na “história santa da cavalaria” – verbete
Cavalaria por Jean Flori em LE GOFF; SCHMITT (Orgs.), 2017, p. 223 – 224), em relação com
a Cristandade e com o passado pré-greco-romano dos povos que eventualmente vieram a fazer
parte do Império Romano. Para uma leitura ampla das conexões entre estas obras fundadoras
da narrativa heroica no Ocidente, suas precursoras e sucessoras no mundo clássico, medieval
e moderno-contemporâneo, ver KLAUSNER, 2019, e, especialmente para compreender as cir-
cunstâncias socioeconômicas da apreensão destas obras nas sociedades que sucederam as socie-
dades nas quais elas se originaram, p. 52 – 56.
14.  A frase em grego significa ser sempre o melhor e destacar-se entre os outros, e foi extraída da Ilía-
da, Canto VI, verso 208. Veio a ser considerada o lema sintetizador do ideal de cavalaria ( JAE-
GER, 2010, p. 28). Há uma conexão linguística que também não pode escapar a esta análise. As
próprias palavras heros e aristos, das quais as expressões acima mencionadas se originam, são de
origem grega, significando, respectivamente, “protetor, defensor” (HERO. In: Online Etymology
Dictionary. Disponível em: https://www.etymonline.com/word/hero#etymonline_v_9195.
Acesso em 24 fev. 2020) – a própria etimologia da palavra, vinculado ao proto-indo-europeu
–ser, que significa proteger, a relaciona a conservar, preservar, reservar etc (que chega ao portu-
guês através de expressões como servare, que em latim significa guardar); os gregos atribuíam
a sua origem sempre à sabedoria e à força de heróis-fundadores, dentre os quais Licurgo, em
Esparta, e Teseu, em Atenas (COCHRANE, 2012, p. 144) – e “excelente, supremo” (BENVE-
NISTE, 1969, p. 373) – o termo aristos, se significa melhor, mais nobre, mais virtuoso, mais co-
rajoso, deriva imediatamente do radical proto-indo-europeu ar-, que significa mais adequ(-ado)
(-ável) (*AR-. In: Online Etymology Dictionary. Disponível em: https://www.etymonline.com/
word/*ar-?ref=etymonline_crossreference. Acesso em 24 fev. 2020); Benveniste afirma que o
vocábulo deriva de ārya, termo com o qual os indo-iranianos designavam a si mesmos enquan-
to homens livres (BENVENISTE, 1969, p. 368), em contraposição aos anāryas, os escravos, os
estrangeiros, os inimigos (idem, p. 369). A relação entre as duas expressões não poderia ser mais
interessante. Nas hierarquizadas sociedades tradicionais, o heros, representante máximo do aris-
tos, é aquele que defende aquilo que governa/pretende governar em razão de sua excelência
(uma análise muito semelhante consta em KLAUSNER, 2019, p. 44).
Já aretè, que partilha do radical ar-, indica excelência, mas também virtude moral, conforme
tradição da tradução da obra aristotélica (ARISTÓTELES, 2014, p. 51, nota 35) que, neste con-
texto, é caracterizada como hexis, hábito, “que remete ao verbo ēchon, ter, no sentido de ter

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Quando tratei de aristocracia, não busquei uma classe fechada em um
momento histórico. Na prática, a aristocracia poderia se confundir com
uma classe fechada15. O que importava para mim, no entanto, é que, nos
textos com os quais trabalhei, os aristocratas não compunham uma clas-
se fechada, mas uma que era acessível aos excelentes. Então mesmo um
homem comum, se desempenhasse as virtudes e alcançasse excelência,
ou seja, se proferisse palavras e realizasse ações (é importante perceber que
se trata de operar sobre o mundo, e não cultivar uma interioridade – por
esta ideia de operar sobre o mundo que não há autonomia para o aristocrata
enquanto imagem social até o romantismo, como dito acima), poderia ser
considerado um aristocrata (ainda que, em diversos contos que que tra-
zem a jornada de um herói, esta designação de excelência viesse acompa-
nhada da descoberta de um parentesco aristocrático – uma relação entre
aristocracia de espírito e aristocracia de sangue cujo momento original será
brevemente tratado mais à frente, e cuja permanência cultural podemos
perceber, por exemplo, na série Star Wars, seja com o parentesco de Luke
Skywalker, revelado no filme O Império Contra-Ataca, seja com o parentes-
co de Rey, revelado no filme A Ascensão Skywalker).
Essa literatura do herói como aristocrata e do aristocrata como o
praticante da virtude é produto de uma sociedade assim como Pantera

potência. Segundo a antropologia aristotélica, hexis é a forma de passagem da dynamis, da po-


tência, para o ato (energia). Ethos é a palavra usada para habitude ou seja, hábito no sentido
contemporâneo da palavra em português (i.e. este é um hábito de um determinado sujeito,
implicando que ele pratica esta ação frequentemente). Ēthos, por sua vez, significa caráter, vez
que o ethos dá o ēthos do sujeito – só o hábito dá o caráter. Curiosamente, tudo deriva de ter a
potência ou não, e a ética é a busca da potência propriamente humana, que Aristóteles conclui
ser para a eudaimonia, a Felicidade (VOEGELIN, 2000, p. 351; AGAMBEN, 2013b, p. 98 – 102).”
(KLAUSNER, 2019, p. 25 – 26)
15.  Com a nobreza, por exemplo. Foquei, para esta escolha terminológica, na origem acima
tratada do termo aristos. Se um aristos (que nós traduzimos por aristocrata – uma escolha polê-
mica, vez que aa junção de aristos com kratos já acrescenta um caráter que pode levar à confu-
são no que se está a tratar aqui) é uma imagem social derivada dos primórdios de uma sociedade
fundada institucionalmente no carisma da excelência, pensar o aristocrata como parte de uma
classe social já o coloca como função social, o que não me interessa fazer neste texto. Para um
estudo mais aprofundado sobre o tema, ver Klausner (2019, p. 47, nota 39).

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Negra é produto da nossa. Então eu desejava também descobrir a for-
ma desta sociedade. Era uma sociedade dividida hierarquicamente que
perdurou durante muito tempo, entecedendo em milênios a Grécia ho-
mérica e sucedendo a ela em diversas variações (neste sentido, KLAUS-
NER, 2019, p. 52 – 56). Só que se retorna constantemente a esta figura
do herói aristocrático, quer dizer, daquele que exerce o poder não por
causa da mera dominação econômica, mas sim porque se acredita que
ele seja o melhor no exercício de suas funções.
É claro que se trata de uma narrativa, mas é uma narrativa que tem
uma relação com o substrato material (econômico) da sociedade que a
produz. Essa narrativa da aristocracia da virtude permanece pelo medie-
vo inteiro, formando o ideal da cavalaria cristã, o ideal do cavaleiro que
busca o Santo Graal, enfrenta dragões para salvar as donzelas ou o exér-
cito dos infiéis pela Igreja, narrativas comuns, todas fundadas na ideia
de excelência (KLAUSNER, 2019, p. 56 – 62). Não é a mera ascendência
que classifica o cavaleiro; seus inimigos também são de estirpe nobre,
sendo distinguidos os dois pela excelência (ainda que esta se expresse no
reconhecimento da verdade cristã – Saladino foi considerado, em seu
tempo e pela própria Europa cristã, como um grande cavaleiro, mas
ainda assim um infiel).
Esta é a primeira noção de aristocracia dentro da Literatura. Mas ela
vai se confrontar, como dito, desde Píndaro (518 – 446 a.C.), com a ideia
da aristocracia de sangue (KLAUSNER, 2019, p. 47, nota 38, com base em
JAEGER, 2010, p. 264 – 267), na qual podemos colocar desde Ragnar Lo-
thbrok personagem semi-histórico das sagas islandesas e da série Vikings
do History Channel, até Drácula e Luke Skywalker. O herói, seu mito e
as narrativas nas quais esse mito se desenvolve são usados para reforçar
dinastias (KLAUSNER, 2019, p. 37, nota 26, com base em BLOCH, 1987,
p. 426; e GINZBURG, 2012, p. 238 – 239, para a teoria do mito do herói
aristocrático indo-europeu). A aristocracia de sangue é particularmente
complexa porque ela biologiza a ideia de virtude, ao afirmar que, porque
um determinado sujeito apresentou determinada qualidade (que pode

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ser pensada como uma aretè, como uma excelência em sentido lato), seus
descendentes provavelmente possuem essa mesma qualidade. Esta narra-
tiva ainda tem alguma força na cultura popular, seja na forma das expec-
tativas parentais que pesam sobre a descendência na sociedade burguesa,
seja na forma do culto à pureza de sangue, que vai encontrar sua forma
mais violenta na política nazista16 e sua forma mais usual no racismo es-
trutural presente nas sociedades de passado escravista.
Se a ideia da aristocracia de sangue existe desde Píndaro, ela certamen-
te adquire uma maior potência a partir do século XV. Neste momento

16. A aristocracia de sangue é o que conduz, enfim, aos ideais do nacional socialismo. Voegelin é
quem conta esta história, partindo de “estudos especificamente zoológicos, com o Homo euro-
paeus de Lineu, a ideia de Johann Blumenbach de caucasiano, a ideia de Klemm de que, entre as
raças ativas, uma era mais clara e a outra mais escura, o ‘gigante loiro, de cabeça longa e olhos
azuis’ de Gobineau, a raça indo-germânica de Schlegel, o ariano que se põe como inimigo do
semita na obra de Renan, o alemão enquanto tipo biológico de Chamberlain e Woltmann, a
recuperação, por Vacher de Lapouge, do Homo europaeus para associá-lo ao ariano e, por fim,
‘a criação do termo raça nórdica por Joseph Deniker’ (ibid., p. 101); queria-se, associando este
elemento biológico a elementos míticos, associar o alemão aos ‘antigos heróis teutônicos das
sagas islandesas, os Eddas, e o Nibelungenlied como representativos do melhor da humanidade’
(ibid.). Alfred Rosenberg, editor do Völkischer Beobachter, ideólogo da Volkskultur nórdica, teóri-
co racista, anti-semita e anti-católico, era o arauto nazista desta ‘tradição intelectual’” (KLAUS-
NER, 2019, p. 120 – as citações do trecho são de SANDOZ, 2010). Mas podemos seguir a análise
de Foucault, que apresenta o bárbaro como aquele que se opõe ao bom selvagem, e que surge
enquanto imagem da aristocracia francesa em relatos como o de Boulainvilliers (a quem Marc
Bloch associa um discurso germanista nobiliárquico, um “Gobineau antecipado”, e a criação
da ideia de regime feudal como peculiaridade própria do medievo – BLOCH, 1987, p. 11 – 12;
deve-se pensar que o bom selvagem surge como um modelo de novo homem que contesta as cer-
tezas civilizacionais europeias – HAZARD, 1964, p. 28 – 29). Segundo Foucault, o bárbaro é a
personagem da história, da tradição (enquanto o bom selvagem seria uma imagem do Terceiro
Estado e da “ausência de tradição” do poder econômico – FOUCAULT, 2005, p. 231 – 233). A
associação que Bloch faz entre Boulainvilliers e Gobineau e que, passando por Wagner (o gran-
de poeta da tradição do heroísmo teutônico – BOSI, 2013, p. 300), pode se estender até Hitler, não
parece tão absurda quando se segue a linha traçada por Voegelin da ideia nórdica, Se somarmos
a isto a filosofia nietzschiana e sua apreensão errada do código de comportamento aristocrático
(ver ELIAS, 1997, p. 167 e MACINTYRE, 2007, p. 129), que envolve uma complexa troca de
opiniões entre o filósofo e Wagner, conseguimos imaginar uma paisagem que Eco define como
Idade Média da Bárbarie, uma terra de sentimentos crus e fora da lei. Segundo ele, é nesta Idade
Média que vive a personagem Conan, o Bárbaro, do escritor abertamente fascista Robert E.
Howard (POOLE, 2018, p. 199 – 201), e a obra wagneriana (ECO, 1986, p. 129). Trato destes
temas em KLAUSNER, 2019, p. 68.

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histórico há a diminuição das oportunidades de ascensão para o grupo
social que poderíamos chamar cavaleiros, ou seja, os membros da noblesse
d’epée, da nobreza de espada, aos estratos que detinham mais poder nas
organizações políticas cada vez maiores, mais centralizadas e mais hierar-
quizadas17. A possibilidade de livremente manifestar suas pulsões dimi-
nuiu vertiginosamente em relação aos períodos imediatamente anterio-
res, justo em razão das novas hierarquia e centralização, bem como desta
organização política maior e, consequentemente, capaz de mobilizar ma-
terialmente mais forças. Surge o Estado Moderno e, ao mesmo tempo,
uma literatura aristocrática que dá vazão a estas pulsões que não encon-
travam mais expressão na realidade física e que, muitas vezes, celebravam
também esta insurgência contra o rei e contra o Estado que lhe servia18 – é
o surgimento do que chamo de literatura reacionária dentro do espectro
maior da literatura heroico-aristocrática, na forma do romance de cava-
laria Amadis de Gaula (KLAUSNER, 2019, p. 63 – 70, com base em CAR-
PEAUX, 1961(a), p. 395 – 398, e ELIAS, 1993, 159 e 203).
Eu já podia imaginar que a simbologia da literatura heroico-aristo-
crática se relacionava de forma igualmente recíproca com a imagina-
ção política dos autores que a escreviam. O que eu não podia imaginar
é que as grandes manifestações do reacionarismo político não surgem
dentro de um contexto propriamente político, mas dentro de um con-
texto metapolítico. O Amadis de Gaula é um romance de fúria, por as-
sim dizer, fundado na jornada de um herói de estirpe aristocrática, vir-
tuoso, e que, como o herói da tradição das Matérias medievais, enfrenta
dragões e salva donzelas19. A questão é que sua personagem principal
não faz isso dentro das regras.

17.  Ou seja, a aristocracia de sangue também não se confunde com uma classe social, mas se
relaciona com o enrijecimento da classe social nobreza.
18.  Esta literatura encontra um espelho teórico na obra de Boulainvilliers citada na nota 16 e
que também celebra a independência e a autonomia do cavaleiro aristocrata.
19.  “Amadis representa a última fase de prosificação do ‘roman courtois’”. Mas “Amadis de Gau-
la não morreu; continua as suas aventuras com cavaleiros inimigos, feiticeiros e fadas, em cas-
telos encantados e viagens perigosas, e continua tudo isso no romance policial” (CARPEAUX,

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Como se portaria um bom cavaleiro dentro da narrativa destas gran-
des matérias medievais, em cujo limiar espiritual Amadis se encontra?
Ele deveria ser bom aos olhos de Deus e bom aos olhos da sociedade
monárquica organizada, ou seja, não ser um insurgente. A personagem
principal do Amadis, no entanto, tem um comportamento bastante an-
ti-heroico (KLAUSNER, 2019, p. 59; PRAZ, 1951, p. 83 afirma que ele é
o antecessor genético do anti-herói romântico) e suas ações derivam de
uma revolta contra a perda do reconhecimento de seu status cavaleires-
co. Ou seja, encontrei um rebelde pela ordem perdida, um reacionário.

3. O HERÓI (REACIONÁRIO) MODERNO


Amadis de Gaula é uma referência constante para a literatura que vai
invocar uma determinada ideia de aristocracia (é o livro favorito de D.
Quixote, na obra de Cervantes – KLAUSNER, 2019, p. 67, com base em

1961a, p. 398) – na verdade, continua esta tradição de forma muito mais contundente na li-
teratura fantástica atual, seja em O Senhor do Anéis, em Game of Thrones ou na literatura pulp
(KLAUSNER, 2019, p. 67). E sua tradição continuou viva no Barroco. É L’Astrée, ou par plusieurs
histories et sous personnes des bergers et d’autres sont déduits les divers effets de l’Honnête Amitié, de
Honoré D’Urfé a primeira grande obra do estilo. Misturando o Amadis de Gaula, a Diana de Jor-
ge de Montemayor e “diversas teorias pseudocientíficas”, ela prepara “o caminho do romance
heróico-galante do Barroco, nova forma da epopéia aristocrática.” (CARPEAUX, 1961b, p. 564
– 565 e SUMMERS, 2016, posição 493 e ss.; KLAUSNER, 2019, p. 74) Também no primeiro mo-
mento de recuperação de uma tradição folclórica popular (KLAUSNER, 2019, p. 75, com base
em CARPEAUX, 1960, p. 848 – 849). Ambos estes movimentos definirão o caráter do romance
gótico e o romantismo (KLAUSNER, 2019, p. 83 - 84), gerando impacto até hoje (que se pense
nas releituras da personagem Drácula, ou ainda, nas obras de Anne Rice). No entanto, não se
pode esquecer que muito do material lançado em cada uma dessas fases compõe apenas uma
grande lista de genéricos de umas poucas obras influentes que, sem desrespeitar a tradição, a
adaptam para que ela se comunique com novas realidades. Defendi, com base em Praz (1951),
que estes textos todos, para além de um conteúdo propriamente político comunicado através
da sua personagem principal, o herói aristocrático, compunham sempre circunstâncias através do
ajustamento de índices e máquinas abstratas que se organizavam em imagens (cenário, clima,
personagens coadjuvantes – o ambiente reconstruído com fins narrativos, a cosmologia da qual se
falou na introdução, e seu fundamento) que auxiliavam na transmissão deste conteúdo político
reacionário, fosse através da indução do medo, de sentimentos de grandeza e superioridade, da
demonstração da violência e da força bruta – uma estética própria, que perpassa gêneros literá-
rios, a estética do desequilíbrio (KLAUSNER, 2019).

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CARPEAUX, 1961(a), p. 398 – o que é uma crítica ao livro). Se, como
toda grande tradição, há uma série de genéricos que meramente reite-
ram o argumentos dos trabalhos considerados autênticos, seu impacto
em autores como Schiller, por exemplo, revela aspectos sobre ela que
consideramos importantes para o argumento aqui veiculado, qual seja,
da adaptação da imagem do herói aristocrático. Schiller é um autor com-
plexo quando se vai falar de aristocracia. Como ele se apropria do Ama-
dis? Em Die Räuber, ele cria um anti-herói aristocrático, Karl Moor. Ele
é um bandido aristocrático, retirado do ambiente aristocrático, como
Amadis, mas movido por ideais que são superiores aos de seu irmão,
que a ele se opõe, e que luta contra a opressão feudal. Há, portanto, o
desenvolvimento dessa literatura que é reacionária, por envolver a ima-
gem política do aristocrata, mas ao mesmo tempo transgressiva, porque
ela está disposta a uma revolta que não é meramente política (recon-
quistar os privilégios aristocráticos e as instituições que os mantinham),
mas de valores, no sentido de autonomizar este aristocrata em relação
à moral social de seu entorno. Esta aristocracia não é mais tanto só de
sangue, nem mais tanto só de virtude, mas, essencialmente, de espírito
(KLAUSNER, 2019, p. 92 – 94, baseado em PRAZ, 1951, p. 57 e 83)20.
A narrativa do herói aristocrata de sangue permanece bastante in-
fluente na cultura popular até uma outra virada histórica, qual seja,
a Revolução Francesa. Há, então, um ataque muito direto às bases da
sociedade nobiliárquica, que se via representada nesta imagem da aris-
tocracia de sangue. As declarações de direitos que se que seguem à Revo-
lução representam, muitas vezes, a primeira onda a derrubar os direitos
feudais e alguns lugares esta onda só foi atingir muito posteriormente,
um século depois. Quando a Revolução ocorre, há um alinhamento de
muitas pessoas ao lado da Revolução e dos princípios por ela represen-
tados, mas tantas outras começam a lamentar a derrocada da sociedade

20.  A forma como Schiller absorve o Amadis deriva desta tradição que se desenvolve no Barro-
co, tratada na nota acima.

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“da aliança do trono e do altar” (que não tem necessariamente nem a
forma do Antigo Regime nem a forma da sociedade feudal, mas se fixa
como imagem para além destas realidades históricas). Em muitos luga-
res estes reacionários eram aristocratas, mas em tantos outros, princi-
palmente a leste do Reno, a recepção da Revolução entre a burguesia
é, em um primeiro momento, muito favorável, e depois se torna bem
reativa ao galicismo daqueles valores, por vezes representados pelos
próprios soldados franceses invasores. Essa revolta, principalmente na
historiografia alemã, na crítica literária alemã, se relaciona com a es-
sência do romantismo, ou seja, é uma reação aos princípios iluministas,
não mais tão somente princípios epistemológicos ou antropológicos,
mas princípios ético-políticos (KLAUSNER, 2019, p. 79 – 83, com base
em ELIAS, 1998; WEBER, 1999; LÖWY; SAYRE, 2001).
Muitas escolas denominadas históricas, sejam do Direito, da Litera-
tura, da Política, todas elas nascem nesse momento em razão do ro-
mantismo, todas um pouco apologéticas do medievo. Seus membros,
no entanto, reconhecem a impossibilidade do retorno à ordem “da
aliança do trono e do altar” (KLAUSNER, 2019, p. 102 – 103, com base
em LÖWY; SAYRE, 2001, p. 56 - 61). Esse reconhecimento faz parte de
um processo de conversão da ideia de uma aristocracia que poderia se
consolidar em uma classe em uma aristocracia que se torna um baluar-
te moderno da anti-modernidade: uma aristocracia do espírito, que vai
alcançar o cume de seu desenvolvimento no século XIX com a figura
do dandy. O dandy é um homem que se define pelo seu gosto, pela au-
tonormatização do seu corpo e da sua vivência, encarnando todas as
normas da aristocracia na sua própria aparência. Ele crê poder passear
pela sociedade sem se contaminar, fazendo tudo o que quer por ser in-
cólume21.

21.  Baudelaire compara o dandismo (“que nada mais é que o exercício da poesia”) com a regra
monástica mais severa (AGAMBEN, 2012, p. 85). Para ele, para Balzac e para Barbey D’Aure-
villy, todos em maior ou menor grau defensores de propostas políticas reacionárias, o Dandy,
esta personagem poeta, era como um autômato que podia transformar sua própria vida em

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A aristocracia do espírito tem uma vinculação muito grande com a
construção da autoimagem do poeta no século XIX (como visto na
nota 21). Podemos pensar, por exemplo, em Oscar Wilde e, em sua

uma vida vivida segundo uma regra (uma forma-de-vida no sentido mais radical da palavra),
ou seja, transformá-la em uma obra de arte, em última instância. O Dandy era o autômato de
si mesmo, no sentido de que ele deveria buscar um meio de ter um absoluto controle sobre
si. Baudelaire crê que o oposto do dandismo é a decomposição para o entendimento científico
ou metafísico, como se pudesse haver uma essência por trás da superfície do ser (ibid., p. 96).
Tudo isso vinha acompanhado de uma profunda rejeição da vida burguesa. Esta poesia “des-
mascara a ideologia humanitária, tornando rigorosamente sua a boutade que Balzac põe nos
lábios de George Brummell: ‘rien ne ressemble à 1’homme moins que l’homme’ [‘nada se pa-
rece menos com um homem do que um homem’). Apollinaire formulou de modo perfeito tal
propósito, escrevendo, em Les peintres cubistes, que ‘avant tout les artistes sont des hommes qui
veulent devenir inhumains’ [‘antes de mais nada, os artistas são homens que querem tornar-se
inumanos’]. O anti-humanismo de Baudelaire, o ‘se faire 1’áme monstrueuse’ [‘tornar a alma
monstruosa’] de Rimbaud, a marionete de Kleist, o ‘c’est un homme ou une pierre ou un arbre’
[‘é um homem ou uma pedra ou uma árvore’] de Lautréamont, o ‘je suis véritablement décom-
posé’ [‘eu estou realmente decomposto’] de Mallarmé, o arabesco de Matisse, que confunde
figura humana e tapeçaria, o ‘meu ardor é sobretudo da ordem dos mortos e dos não-nascidos’
(Klee), ‘nada a ver com o humano’ de Benn, até ao ‘traço madreperolado de um caracol’ de
Montale, e a ‘cabeça de medusa e o Automa’ de Celan, expressam todos a mesma exigência:
‘ainda há figuras para além do humano’!” (ibid., p. 86)
É nesta mesma época que adquire novo folêgo os contos sobre seres inanimados que adquirem
vida, que tem como antecessor imediato E.T.A. Hoffmann, que se inclui na tradição da fantasia
e do gótico citada na nota 19. Freud parte deles para trabalhar o seu conceito de Unheimliche,
ou seja, aquilo que tem o familiar (Heimliche) removido, o estranho. É só aquilo que de alguma
forma remete ao homem que pode ser, de certa forma, horrível ao homem; só aquilo que é
possível de ser percebido enquanto representação – uma representação de familiaridade que,
desprovido de um de seus índices (no caso do autômato, figura principal do desenvolvimento
do conceito), se torna, então, absolutamente estranho ao homem (ibid., p. 88-89). Este é, em
última instância, o objetivo do dandismo, e por isso é exigida a autocracia. O ímpeto de um es-
tado governado pelas massas é sempre a equalização, seja através da compulsão econômica, da
repressão legal ou da violência civil.
Baudelaire foi profundamente reacionário durante toda a sua vida, chegando a afirmar que só
havia três espécies de seres respeitáveis: o padre, o guerreiro e o poeta. O resto todo do mundo
era composto de servos ou escravos, criados para ter profissões, e qualquer democracia era, em
si, fraca e absurda (BAUDELAIRE, 1919, p. 230 – 231 – devemos aqui lembrar da ideia das so-
ciedades tripartites indo-europeias, estruturadas em torno das funções sacerdotais e guerreiras,
sendo as demais funções relegadas a um terceiro estado, dos comuns – neste sentido, KLAUS-
NER, 2019, p. 28, com base em DUMÉZIL, 1988). Sem muita surpresa, vê-se que ele reconhece
Joseph de Maistre (que defende a desconstrução de uma ideia de humanidade universal, não
pensando, no entanto, para um inumano, mas para as nacionalidades) e Edgar Allan Poe como
seus professores (ibid., p. 245). Neste mesmo sentido, Klausner (2019, p. 98).

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literatura, na personagem Dorian Gray, o dandy por excelência, com
todos os seus vícios. Ele tem até mesmo a dimensão nietzscheana de
transvaloração de todos os valores, quer dizer, a crença de que o ho-
mem pode viver todas as experiências se ele conseguir converter essa
própria vivência em algo que lhe seja eticamente significativo, que ca-
racteriza a ideia de aristocracia de Nietzsche (citada na nota 16 – que é
a imagem do übermensch). Essas duas imagens, a do dandy e a do über-
mensch nietzscheano, estão, entendo, encarnadas na ideia da aristocracia
do espírito.

4. CONCLUSÃO: THE KING WILL COME


No momento da centralização dos Estados ocorre, então, a formação
de um novo conceito de herói aristocrático, que chega a assumir feições
anti-heroicas, por ser resquício de uma ordem passada (KLAUSNER,
2019, p. 85 – 88), sendo caracterizado por mim como reacionário. Este
modelo de herói persiste, como vimos. Já o primeiro grande momento
político do reacionarismo foi a contrarrevolução que se segue à Revo-
lução Francesa, e eu optei por pensá-la a partir do autor tedesco Carl
Schmitt, nos autores nos quais ele a figura, quais sejam, Joseph de Mais-
tre, Louis Bonald e Donoso Cortéz, para entender como se conectavam
suas imagens do aristocrata com as imagens literárias do aristocrata
em seus períodos e como elas eram articuladas e passadas em frente
(KLAUSNER, 2019, p. 114, nota 80, com base em SCHMITT, 2006, p.
49 - 58). Configuradas estas imagens, coube entender, ao fim da disserta-
ção, seu movimento em direção ao Heavy Metal22.

22.  Poder-se-ia falar dos aspectos psicológicos dessa personagem aristocrática, que são, impres-
sionantemente, os mesmos através do tempo, em especial quanto mais se verifica à soma da
ânsia pela glória, a melancolia, a ideia da superioridade do carisma e o pathos trágico. Fiz uma
análise mais focada na personagem Drácula (KLAUSNER, 2019, p. 85 – 88, com base em PUN-
TER, 1996, p. 22), entendendo-a como sucessora absoluta desta tradição, que, antes de con-
vergir neste anti-herói aristocrático por excelência, culmina no quase vilanesco tirano barroco
(KLAUSNER, 2019, p. 71 – 75, com base em BENJAMIN, 2016). Quando Agamben afirma que

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Os subgêneros do Heavy Metal por mim estudados são permeados
por estas imagens da literatura reacionária ou de uma literatura que é
sua antecessora (KLAUSNER, 2019, capítulo 4, no qual analiso o Heavy
Metal). Estas releituras propostas pelo Heavy Metal podem falar do
bom rei ou do grande guerreiro, mas sempre falam a partir de uma
perspectiva moderna anti-moderna, ou seja, a partir de uma cognição
propriamente moderna das temáticas e sua realocação para o enfrenta-
mento de afetos propriamente modernos, de rejeição da modernidade.
O Heavy Metal, nestes subgêneros, opera então na reconstrução destas
imagens a partir da apreensão dos elementos vistos pelo romantismo
(KLAUSNER, 2019, p. 137).
Quando os músicos do Heavy Metal buscam essas referências anterio-
res, eles não buscam a partir de uma mente não contaminada, eles bus-
cam através do romantismo e do neo-romantismo: através de Renan,
Goethe, Stoker, Baudelaire e até mesmo Tolkien. Todos esses autores
recuperam a imagem mítica do herói aristocrático (KLAUSNER, 2019,
p. 175 – 178), que está na base do desenvolvimento da tradição política
indo-europeia. Mas estes subgêneros do Heavy Metal não só recuperam
estas imagens, mas podem ser propriamente reacionários.
Diversos movimentos recuperaram essa mitologia, do bom rei, do
bom líder, do bom reino, da unidade entre rei, reino e povo, do vigor do
povo (basta que lembremos da imagética do nazismo e da famosa má-
xima Ein Volk, ein Reich, ein Führer – tratei deste tema em KLAUSNER,
2019, p. 77 – 83 e 106 – 121). Estes subgêneros estudados do Heavy Metal
em geral não se associam diretamente à política, mas na maior parte
das vezes em que se associam, esta associação é ao nazismo. Basta que

“[T]oda a poesia de Baudelaire pode ser entendida [...] como uma luta mortal contra a acídia e,
ao mesmo tempo, como uma tentativa de invertê-la em algo positivo”, não se deve descuidar
de lembrar que, como expresso por Benjamin, “[O] príncipe é o paradigma do melancólico”
(ibid., 2016, p. 147) – está enfim concluída a transição da aristocracia de sangue para a aristocracia
de espírito, já contida, de qualquer forma, na máxima rex illiteratus quase asinus coronatus, de João
de Salisbury (LE GOFF, 2010, p. 224 – 225). O positivo da acídia, da melancolia, é a soberania, e,
aqui em concordância com as reflexões do Barroco, ela não é prazerosa.

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pensemos no National Socialistic Black Metal ou no neofolk, gênero este
associado às ideias da extrema direita europeia, ainda que não propria-
mente ao nazi-fascismo.

Der Bannerträger, Hubert Lanzinger, circa 1935.

Este enfoque destes subgêneros do Heavy Metal estudados nestas


imagens distingue-se do enfoque imagético dos outros gêneros da mú-
sica popular, de uma forma geral. Então, por exemplo, não só não é
possível imaginar a Beyoncé cantando de modo não expressamente me-
tafórico sobre dragões como também não é possível imaginá-la defen-
dendo bandeiras, como, por exemplo, as da banda Marduk (uma banda
cuja suposta afiliação ao nazismo foi discutido em diversos momentos
do meu trabalho).
Este enfoque imagético está vinculado a um imaginário mais amplo,
povoado por diversas outras imagens, trazidas em diversas outras outras
mídias, como o RPG ou como, por exemplo, os comic books e os filmes
da Marvel, que tem uma popularidade maior que o Heavy Metal, mas
um engajamento menor de seu público (vez que é também mais vasto).
Por isso que optei por começar esta exposição falando do filme Pantera
Negra, um filme que não só teve boa recepção de público e de crítica,
mas que também gerou uma repercussão de caráter propriamente po-
lítico. O Heavy Metal também tem suas próprias cadeias de associações

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imagéticas, que percorrem as mais diversas mídias. E, em uma apreensão
subjetiva, como fã do gênero, ou seja, como alguém que passou por um
processo de educação no gênero, e em um julgamento histórico destas
associações, verifiquei que elas estão imbuídas daqueles afetos que em
geral chamamos reacionários (anti-progressistas e anti-modernos).
A permanência dessas imagens dentro de uma democracia é muito
complexa, este mito do herói aristocrático é constantemente reatualiza-
do em detrimento dela. Não se trata de jogar estes produtos culturais e
as imagens que eles veiculam fora – eles são muito mais presentes e são
muito mais antigos em nossas culturas que a própria democracia. Seria
impossível que nos livrassémos deles sem nos livrarmos do que nos faz
“nós”. O principal, portanto, é ter prudência e, reconhecendo o poder
do mito do herói aristocrático e de suas imagens através do tempo, en-
tendê-lo como mais forte que qualquer pretensão humanística de uma
educação utópica, para que ele possa ser utilizado a favor de boas causas.

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CULTURA POPULAR CARIOCA E A
CONTESTAÇÃO AO DISCURSO DE
SUPERAÇÃO DA CENTRALIDADE DA
CATEGORIA SOCIOLÓGICA TRABALHO:
BEZERRA DA SILVA E CANDEIA
Bruna da Penha de Mendonça Coelho

Introdução
Se o trabalho, em seu sentido ontológico primeiro, pode ser concebido
como toda atividade vital consciente (MARX, 2008), o samba é tam-
bém, fundamentalmente, trabalho. E se o trabalho funda o ser social
(LUKÁCS, 1980), a cultura popular, por sua vez, está diretamente im-
bricada a essa sociabilidade: a formação e o desenvolvimento do samba
urbano carioca se entrelaçam com processos históricos de resistência da
classe trabalhadora às investidas de perseguição, disciplinamento, apa-
gamento da memória coletiva e tomada de controle do samba e das
relações de trabalho.
Partindo dessas provocações iniciais, vale assentar que este artigo
tem como objetivo central, na interface entre a sociologia do trabalho
e a música, debruçar-se sobre a seguinte questão: em que medida a
cultura popular, com foco para a produção musical de Bezerra da Sil-
va e de Candeia, encarna a potencialidade de contestação do discur-
so que prega uma suposta descentralização da categoria sociológica
trabalho na sociedade contemporânea? Em outras palavras, em que
medida o samba reafirma a centralidade que o trabalho ocupa nas
relações sociais?

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A hipótese aqui lançada se centra na compreensão de que o samba
carioca, através da construção de discursos contra-hegemônicos que
partem, epistemologicamente, das assimetrias sociais materiais, é capaz
de desvelar as contradições da tese de uma propalada crise (ou mes-
mo fim) da sociedade do trabalho. É capaz, portanto, de escancarar as
desigualdades materiais fundantes do conflito capital-trabalho, ínsitas
à reprodução do capitalismo. E de explicitar, ainda, como o tema é ex-
tremamente atual, especialmente se tomarmos em conta a realidade
social brasileira, marcada pela aguda precarização histórica das relações
de trabalho.
Como forma de análise, parte-se do materialismo histórico dialé-
tico. Isto é, alicerça-se o processo de construção dos argumentos por
meio das bases reais, das condições (conflituosas) materiais de existên-
cia – que, por sua vez, não são dadas, mas, sim, criadas e transformadas
historicamente pelos seres sociais (MARX & ENGELS, 2017). Parte-se,
ademais, da conjugação entre pesquisa bibliográfica (com foco para es-
tudos de sociologia do trabalho, além de outras obras do pensamento
social relativas ao samba e à cultura popular carioca em geral) e pes-
quisa empírica documental (isto é, pelas composições de samba sele-
cionadas).
A atualidade e a relevância do tema se justificam pelo aprofunda-
mento das disparidades entre capital e trabalho, bem como pela cres-
cente onda de ataque às manifestações culturais de matriz africana. Pas-
sam, ainda, pela necessidade de enfrentamento à adesão, no discurso
hegemônico, das teses de descentralização do trabalho vivo na socieda-
de contemporânea. Tal adesão desencadeia extensas implicações polí-
ticas, como o afastamento do capitalismo enquanto categoria analítica
de estudo e o respaldo discursivo a investidas de supressão de garantias
trabalhistas. Afinal, é muito mais fácil sustentar uma suposta superação
da exploração do trabalho ao se afirmar que este mesmo trabalho esta-
ria em vias de desaparecimento.

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1. A pluralidade de sentidos da categoria sociológica trabalho

A categoria trabalho encerra um conceito essencialmente polissêmi-


co. Analisar a amplitude deste conceito releva tanto para compreender
o mecanismo basilar de funcionamento do capitalismo, quanto para
empreender reflexões acerca da relevância do trabalho nos processos
sociais de resistência à reprodução de desigualdades sociais. É precisa-
mente essa extensão do conceito que permite reafirmar a sua centrali-
dade axiológica na organização de nossa vida social.
Antes de mais nada, vale resgatar a noção primeira de trabalho en-
quanto toda atividade vital consciente e, portanto, verdadeiramente
livre (MARX, 2008). Pode-se afirmar, inclusive, segundo essa perspecti-
va, que o trabalho nos caracteriza enquanto seres sociais. Note-se que,
quando se fala que o trabalho é a categoria mais propriamente humana,
por conferir sentido à vida, mediar as relações sociais e possibilitar a
transformação material da realidade, não se pressupõe uma concepção
individualizada de trabalho, mas, sim, um sentido social. O trabalho,
em seu ato teleológico, funda o próprio ser social e sua especificidade,
não se reduzindo a um mero ato decisório: trabalho é, precisamente,
um processo (LUKÁCS, 1980, pp. 20 e 32).
Nesse sentido primeiro, o trabalho pode ser compreendido enquan-
to processo que visa à satisfação das necessidades do próprio trabalha-
dor, e que institui a sociabilidade humana através do desenvolvimento
de relações interpessoais. É a partir desta concepção que se pode en-
tender o trabalho como protoforma da práxis social, pois certo é que
“as formas mais avançadas da práxis social encontram no ato laborativo
sua base originária” (ANTUNES, 2009, p. 141). Assim, é indiscutível a
centralidade axiológica que o trabalho ocupa na configuração socioló-
gica da realidade, bem como nos processos de resistência que visam à
emancipação do trabalho alienado.
Tomar em conta essa noção basilar de atividade vital verdadeira-
mente livre (e fundante do ser social) permite compreender como se

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opera o processo de alienação do trabalho, que consiste na inversão da
consciência para reduzi-la a mera (tentativa de) subsistência. A ativida-
de vital se converte, portanto, em artigo de venda. E mais: em venda
obrigatória, uma vez que, historicamente expropriados dos meios de
produção, os trabalhadores não dispõem das condições materiais de
controlar sua própria sobrevivência. Daí a especificidade do modo de
produção capitalista: a expansiva extração de valor a partir da transfigu-
ração da força de trabalho em mercadoria – e mercadoria de tipo espe-
cial, vez que é, ela própria, fonte de valor (MARX, 2017). O inalienável
(força de trabalho) é impelido a lançar-se ao mercado, sob pena de não
ser possível sobreviver ao dia seguinte.

Em que consiste, então, a exteriorização (Entäusserung) do trabalho? Pri-


meiro, que o trabalho é externo (äusserlich) ao trabalhador, isto é, não per-
tence ao seu ser, que ele não se afirma, portanto, em seu trabalho, mas
nega-se nele, que não se sente bem, mas infeliz, que não desenvolve ne-
nhuma energia física e espiritual livre, mas mortifica sua physis e arruína o
seu espírito. [...] Igualmente, quando o trabalho estranhado reduz a auto-
-atividade, a atividade livre, a um meio, ele faz da vida genérica do homem
um meio de sua existência física. A consciência que o homem tem do seu
género se transforma, portanto, mediante o estranhamento, de forma que
a vida genérica se torna para ele um meio (MARX, 2008, pp. 82-85).

E este trabalho estranhado, alienado, não deixa de ser trabalho. O


controle das relações de trabalho é mais central do que nunca para a
reprodução da acumulação capitalista e para que suas crises estruturais
sejam contornadas, pois se trata do mecanismo básico de autovalori-
zação do capital. A superação emancipatória do trabalho alienado não
deve se dar pela superação da própria noção de trabalho, mas, sim, pela
reivindicação do conteúdo deste trabalho em si. De um trabalho que
possa ser, em sua plenitude, verdadeiramente livre, atividade vital cons-
ciente e doador de sentido a nossa própria existência.

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2. O trabalho não é mais central?
Nas palavras de Marx, “o ferro enferruja, a madeira apodrece. O fio que
não é tecido ou enovelado é algodão desperdiçado.” E é por isso que “o
trabalho vivo tem de apoderar-se dessas coisas e despertá-las do mundo
dos mortos, convertê-las de valores de uso apenas possíveis em valores
de uso reais e efetivos” (MARX, 2017, p. 260). Não há dúvidas de que é
por meio do controle da relação de trabalho que o capital se autovalori-
za, mantém sua engrenagem reprodutora de desigualdades em marcha
e contorna suas crises. A propósito, é bastante sintomático e nada sur-
preendente que, em um cenário nacional marcado por instabilidades
político-econômicas, os direitos trabalhistas sejam os primeiros a, histo-
ricamente, serem colocados em xeque.
Não obstante, especialmente a partir da década de 1970, no bojo do
pensamento social europeu, passaram a ser desenvolvidas teses pauta-
das em uma pretensa tendência de descentralização do trabalho vivo no
chamado capitalismo tardio, tendo em vista as alterações no processo
produtivo e no mundo do trabalho, advindas, sobretudo, do desenvolvi-
mento tecnológico, da chamada financeirização da economia e de um
propalado declínio da prevalência da ética do trabalho na constituição
das relações sociais. A centralidade da categoria trabalho na configura-
ção da vida social e na sua compreensão sociológica passa a ser coloca-
da em questão, levando a estudos baseados no diagnóstico de crise (ou
mesmo fim, em certas versões) da sociedade do trabalho.1
As evidências empíricas demonstraram, contudo, precisamente o
contrário. Isto é, o que se notou foi o alargamento da classe trabalha-
dora em todo o mundo, e não sua retração.2 Mas a ideia aqui é focar,

1.  Focaremos, aqui, apenas nas teorias de Habermas e Offe, pela delimitação metodológica do
artigo – muito embora não sejam os únicos, tampouco unívocos.
2.  Cf. PRIEB, 2012. O autor aponta estudo da OIT que indica uma duplicação no número de
trabalhadores na América do Sul entre 1976 e 1999, tendo o Brasil 38 milhões de trabalhadores
em 1976 e 85 milhões em 2004. No Japão, o número passou de 52,7 milhões de trabalhadores
em 1976 para 63,5 milhões em 2005; e, nos EUA, os dados dão conta de 88,7 milhões em 1976 e
141,7 milhões em 2005 (PRIEB, 2012).

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brevemente, na desconstituição dos principais argumentos que susten-
taram e sustentam tais teses. Para tanto, é preciso ter em mente, dentre
outros fatores, a amplitude conceitual e axiológica da categoria traba-
lho, a indissociabilidade entre automação e intensificação do controle
do trabalho, as estratégias de formação de exército industrial de reser-
va, o recobramento do trabalho empregado nos aparatos tecnológicos,
as assimetrias geográficas na expansão do capital, bem como a interde-
pendência entre capital financeiro e capital extrator de mais-valor.
Comecemos pela tese habermasiana da precedência dos processos
comunicativos em face da categoria trabalho. Em A nova intransparên-
cia: a crise do estado de bem-estar social e o esgotamento das energias utópi-
cas, Habermas anota que a “utopia de uma sociedade do trabalho” teria
perdido “sua força persuasiva”. Na sequência, rememora as palavras de
Claus Offe, que, segundo Habermas, teria compilado “convincentes ‘in-
dicações da força objetivamente decrescente de fatores como trabalho,
produção e lucro na determinação da constituição e do desenvolvimen-
to da sociedade em geral’” (HABERMAS, 1987, p. 106). Offe (1986), por
sua vez, em Trabalho: a categoria-chave da sociologia?, argumenta: “en-
contra-se ampla evidência para a conclusão de que o trabalho [...] não é
tratado como o mais importante princípio organizador das estruturas
sociais”.
De acordo com estas teses, a teoria do valor-trabalho de Marx teria
servido às questões concernentes ao capitalismo liberal e à aparência
de liberdade na consolidação do trabalho “livre”/assalariado, não sen-
do mais suficiente para compreender a fundo as transformações pro-
dutivas contemporâneas. Porém, é preciso observar que o mecanismo
básico de funcionamento do capitalismo (isto é, a extração de valor a
partir da inserção da mercadoria especial força de trabalho no processo
produtivo) se mantém intacto. O conflito capital-trabalho é a relação
social central que funda e possibilita a manutenção do modo de pro-
dução vigente. Ademais, o prognóstico de superação do trabalho não
pode prosperar se tomarmos em conta um conceito ampliado de classe

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trabalhadora: “ela não se restringe, portanto, ao trabalho manual dire-
to, mas incorpora a totalidade do trabalho social [...]” (ANTUNES, 2009,
p. 102).
Quanto ao argumento do desenvolvimento tecnológico, imperioso
observar que o trabalho morto das máquinas não surge do nada; antes
recobra os trabalhos vivos pretéritos. Ademais, uma eventual redução
de postos em certo setor da economia não permite inferir uma dimi-
nuição do trabalho em si, porque se trata de uma perspectiva social que
envolve o rearranjo da dinâmica laboral para atender aos setores em
que se verifica maior demanda (como o de serviços, por exemplo). Em
outras palavras, trabalho e valor são categorias sociais, não individuais.
Fundamental constatar também que o capital controla a formação e o
alargamento de um exército industrial de reserva que viabilize que as
condições de trabalho sejam constantemente rebaixadas.
Vale observar, ainda, que a subordinação ao capital em nada se alte-
ra com a suposta “flexibilização” das relações de trabalho. Pois o con-
trole da dinâmica laboral é de exclusividade do capitalista, propiciando,
ao contrário de uma descentralização do trabalho, a sua intensificação
a partir da sobreposição das atividades laborativas. Automação não é
sinônimo de liberdade do trabalho e do trabalhador: ao revés, implica
a exacerbação do trabalho vivo. Verifica-se que, em verdade, a tendên-
cia é justamente o capital “prolongar mais intensamente a jornada de
trabalho, a fim de compensar a diminuição do número proporcional de
trabalhadores explorados por meio do aumento não só do mais-traba-
lho relativo, mas também do absoluto” (MARX, 2017, p. 480).

Mas essa não é em absoluto a finalidade da maquinaria utilizada de modo


capitalista. Como qualquer outro desenvolvimento da força produtiva do
trabalho, ela deve baratear mercadorias e encurtar a parte da jornada de
trabalho que o trabalhador necessita para si mesmo, a fim de prolongar a
outra parte de sua jornada, que ele dá gratuitamente para o capitalista. Ela
é meio para a produção de mais-valor (MARX, 2017, p. 445).

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Por fim, cabe destacar a imbricação estreita entre capital financei-
ro e capital extrator de mais-valor. Como se sabe, o capitalismo se
reproduz a partir de sua autovalorização, isto é, a partir da extração
de valor em escala crescente (valor este que só pode ser gerado pela
força de trabalho). A financeirização da economia em nada nega a lei
do valor. De forma alguma se prescinde da mediação da mercadoria
especial força de trabalho no bojo do processo de autovalorização. A
ideia de que a operação D – M – D’ pudesse ter-se convertido em
D – D’ (dinheiro gerando mais dinheiro diretamente, sem media-
ção da força de trabalho) não resiste a uma análise mais acurada da
realidade.
Nas palavras de Virgínia Fontes, ao analisar o Livro III d’O Capital,
reafirmando a tese de que o capital financeiro depende diretamente do
capital funcionante:

Desafiando o senso comum, [Marx] aponta as enormes contradições desse


processo: o relativo isolamento dos grandes proprietários de capital mo-
netário (portador de juros) diante do capital funcionante (extrator de mais-
-valor) não significa a redução deste último, mas sua maior expansão. [...]
diferencia, neste capítulo, a propriedade dos recursos sociais de produção da
propriedade dos meios diretos de produção, identificando precisamente
como o processo de concentração tende a adquirir uma nova forma, sob
a qual a propriedade da capacidade potencial da produção se torna central no
capitalismo monopolista (FONTES, 2010, pp. 22/3).

No Tomo II do Livro III de O Capital, Marx observa que o desenvol-


vimento do sistema de crédito implica uma necessidade de aceleração
da acumulação de capital emprestável. E isso não ocorre de forma se-
parada da acumulação real do processo de reprodução capitalista (tra-
ta-se, mais propriamente, de sua consequência). O lucro, que “constitui
a fonte da acumulação desses capitalistas monetários, é apenas uma
dedução da mais-valia extraída pelos reprodutivos ao mesmo tempo,

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apropriação de parte do juro de poupanças alheias”. Afinal, “o capital
de empréstimo acumula-se à custa dos capitalistas industriais e comer-
ciais ao mesmo tempo” (MARX, 1985/6, p. 39).
Em outras palavras, o capital emprestável tem sua existência social
condicionada à perspectiva de realização de mais-valor no futuro. As-
sim, não há qualquer tipo de antagonismo entre capital financeiro e ca-
pital produtivo sob a vigência do regime de acumulação neoliberal. O
capital produtivo (e, com ele, o trabalho vivo) segue sendo central para
a expansão capitalista. Nas palavras de Saad Filho (2011, p. 18), “o ca-
pital industrial está materialmente comprometido com a reprodução do
neoliberalismo [...]”.

3. Bezerra da Silva, o poeta operário


A obra de Bezerra da Silva é central para a compreensão das desigual-
dades sociais que assolam, historicamente, nosso país. Sua contribuição
fundamental ao samba e à análise da realidade social tende a ser ora
completamente invisibilizada, ora associada ao estereótipo de violação
à lei. Esse processo de marginalização de sua obra é fruto direto do ra-
cismo estrutural e da exclusão social (escancarada, por sinal, nas com-
posições de seu repertório).
Tais composições lidam, de forma direta, com os conflitos sociais
patentes que marcam uma sociedade abertamente iníqua: violência po-
licial, miséria, política de drogas, racismo, exploração, dentre outros,
são temas recorrentes. Eduardo Granja Coutinho (2013, p. 141), no ar-
tigo Bezerra da Silva: malandragem, marginalidade e contra-hegemonia, traz
relevante amostragem desse repertório: Preconceito de cor, Pega eu, Na
hora da dura, A semente, dentre outros.
Em depoimento ao documentário Onde a coruja dorme, Bezerra dei-
xa precisas colocações sobre a função da linguagem na manutenção da
desigualdade social, e sobre como a cultura popular pode, também pela
linguagem, criar brechas:

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Quando os escravos, quilombolas, queriam traçar um plano de fuga, usa-
vam gírias para os senhores não entenderem. É justamente, hoje, o que os
intelectuais fazem com a gente. Eles vão para a escola, aprendem o rever-
tere ad locum tucum, burugudum, data vênia. E aí chegam, falam com você
o dia inteiro, chamam você do que querem e você não entende nada. [...]
Então, o que a gente faz? A gente também pode conversar com o doutor
do mesmo jeito, ele ficar o dia inteiro sentado e não entender nada tam-
bém. (SILVA, 2002)

Especificamente quanto à questão do trabalho, a música O poeta


operário, gravada no álbum Eu não sou santo, pode ser tomada, em sua
lucidez e potência, como chave de compreensão do funcionamento da
estrutura social alicerçada no conflito capital-trabalho: “ganha mais
quem nada faz; menos ganha quem produz”. O compositor, aquele que
“canta a tristeza e fala a verdade”, “pinta o sofrimento maior que o sa-
lário”.3 Muito embora o samba se refira, mais diretamente, ao trabalho
do compositor, nada obsta (pelo contrário) que a análise se expanda
para toda e qualquer relação de trabalho.
Sobre a centralidade que a relação de trabalho ocupa na vida daque-
les que dependem da alienação de sua força laboral em troca de uma
tentativa de sobrevivência, a recorrência do tema da malandragem dá o
tom da crítica social potente. Uma “linguagem malandra, escorregadia,
crítica, permanece viva na fala do homem comum, expressando uma
visão de mundo não hegemônica que irrompe nas frestas do discurso
dominante” (COUTINHO, 2013, p. 141).
O malandro sambista não é aquele que nega todo e qualquer tra-
balho, mas, sim, aquele que prega a negação do trabalho alienado,
espoliado e explorado. Aquele que se baseia na “recusa do trabalho-li-
vre-urbano-industrial como fuga e resposta à exploração do trabalho”

3.  ROMILDO; ALBERTO, Nei. O poeta operário. In: SILVA, Bezerra da. Eu não sou santo.
Rio de Janeiro: BMG-Ariola, 1990. Faixa 12.

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(AZEVEDO, 2016, p. 93). A recusa consciente de “um trabalhador so-
frido, lutando contra um capitalismo selvagem” (SILVA apud VIANNA,
1999, p. 39).
As mazelas sociais são tratadas sem rodeios: “minha gente é traba-
lhadeira / nunca teve assistência social / ela só vive lá / porque para
o pobre não tem outro jeito / apenas só tem o direito / a um salário
de fome e uma vida normal”.4 O salário de fome é a única tentativa
de sobrevivência da grande parcela da população que nada mais tem a
vender senão sua força de trabalho. Só resta ao operário a esperança na
justiça divina, que “não tem jeito de enganar / nem o poderoso dólar
dos senhores / lá não consegue subornar / [...] / vocês na vida mate-
rial / abusaram muito do poder e do nome / fizeram injustiça com os
trabalhadores / e milhares de crianças mataram de fome”.5 Sequer em
sonho pode o operário ter sossego: “o operário sonhou / que a elite
condenou ele a morte / depois lhe mandou pro inferno / você é pobre
favelado e não tem muita sorte”.6
As permanências e continuidades históricas entre a violência colo-
nial e as opressões contemporâneas de classe e de raça, que sustentam a
posição dominante daquele que nada produz, marcam a abordagem da
canção É ladrão que não acaba mais: “mas o povo / continua escravizado
/ os direitos são os mesmos / desde os séculos passados / o Marajá /
ele só anda engravatado / não trabalha, não faz nada / mas tá sempre
endinheirado...”.7
Ainda, vale ressaltar que o repertório de Bezerra da Silva traz
importantes contribuições para a crítica do direito e para a com-
preensão de seu papel enquanto mantenedor e legitimador das

4.  MOSCA, Sérgio; PORTELA, Noca da. Eu sou favela. In: SILVA, Bezerra da. Presidente
Caô-Caô, Rio de Janeiro: BMG Ariola, 1992. Faixa 2.
5.  BUTINA, Pedro; MENINÃO, Walter. Sonho de operário. In: SILVA, Bezerra da. Se não fos-
se o samba. Rio de Janeiro: BMG-Ariola, 1989. Faixa 3.
6. Idem.
7.  CAVACO, Ari do; MANGUEIRA, Otacílio. É ladrão que não acaba mais. In: SILVA, Bezerra
da. Eu tô de Pé. Rio de Janeiro: Universal, 1998. Faixa 3.

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desigualdades sociais: “por que o senhor não mete o grampo / no
pulso daquele colarinho-branco / roubou o ouro de toda Serra Pela-
da / somente o doutor que não sabe de nada”. A seletividade racista
do sistema penal é escancarada de forma cristalina: “a lei só é impla-
cável pra nós favelados.”8
Assim, entender a dinâmica social de um Rio marcado pela exclusão
e pela segregação, demanda lançar o olhar para as narrativas daqueles
que são, sistemática e historicamente, olvidados e alijados pela histo-
riografia oficial. Afinal, se Deus desse asa à cobra... “a cozinheira ia pra
sala / e a madame pra cozinha / servente seria chefe / soldado seria
tenente / chefe ia trabalhar lá na vaga do servente.”9

Quando o destino me pisa, o barraco desliza


Sou quase um defunto
E se escapo e não corro me expulsam do morro
Pra outro conjunto
 
Pego o trem de madrugada
Em cada parada não tem solução
Meu verdadeiro endereço
É rua do avesso lá na construção
 
O operário brasileiro é mesmo agulha
Que costura e fica nua
Trabalha de janeiro a janeiro
Passa fome e mora na rua
 
[...]
 

8. Idem.
9.  VIOLA, Cosme da; PANDEIRO, Darci do. Asa à cobra. In: SILVA, Bezerra da. Samba parti-
do e outras comidas. Rio de Janeiro: RCA Vik, 1981. Faixa 1.

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Nem dá pra esquentar a cama
Atleta sem fama, sou banda sem nome
Eu sou apenas mais um que não tenho nenhum
Meu salário é de fome
O trem me pega na esquina e em cada marmita
A comida só mingua
Já não tenho pro café e só provo filé
Quando mastigo a língua10

4. Candeia e a filosofia do samba


Candeia ganhou seu primeiro samba na Portela quando contava de so-
mente dezessete anos, em 1953. O Seis Datas Magnas11, composto com
Altair Marinho, inseria-se no movimento da época de enredos nacio-
nalistas. Ele viria a se dedicar de forma integral ao samba, sobretudo,
após ficar paraplégico em virtude de uma bala que o atingiu enquanto
exercia a função de policial. Nesta sua nova etapa, envolveu-se, direta-
mente, com movimentos sociais, especialmente o movimento negro, o
que se refletiu em suas composições.
Guilherme Ferreira Vargues, sem pretender qualquer tipo de redu-
cionismo na análise de fenômenos sociais e artísticos tão complexos,
aponta, precisa e didaticamente, que, “em um primeiro momento, ele
está com a trupe mais tradicional do samba; em outro, seu engajamen-
to constrói um rompimento com a marcha de espetacularização da
festa carnavalesca” (VARGUES, 2013, p. 209). De sambas de exaltação
nacionalista, Candeia passaria a compor sambas de crítica social mais
explícita. Nessa linha, podemos destacar, aqui, o potente Dia de graça
(1978):

10.  ROMILDO; ALBERTO, Nei; SHOW, Édson. Vida de operário. In: SILVA, Bezerra da. Vio-
lência gera violência. Rio de Janeiro: RCA Victor, 1988. Faixa 3.
11.  CANDEIA; MARINHO, Altair. Seis Datas Magnas. In: PORTELA, Velha Guarda da. Can-
deia. Rio de Janeiro: Funarte, 1988. Faixa 9.

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Vamos esquecer os desenganos (que passamos)
Viver alegria que sonhamos (durante o ano)
Damos o nosso coração, alegria e amor a todos sem distinção de cor
Mas depois da ilusão, coitado
Negro volta ao humilde barracão
Negro, acorda, é hora de acordar
Não negue a raça
Torne toda manhã dia de graça
Negro, não se humilhe nem humilhe a ninguém
Todas as raças já foram escravas também
E deixa de ser rei só na folia
E faça da sua Maria uma rainha todos os dias
E cante o samba na universidade
E verás que seu filho será príncipe de verdade
Aí então jamais tu voltarás ao barracão12

Em 1975, decide fundar o Grêmio Recreativo de Arte Negra Qui-


lombo, após divergências e descrenças com relação ao caminho de
espetacularização que as agremiações tomavam. “Estou chegando...
Venho com fé. Respeito mitos e tradições, trago um canto negro.
Busco a liberdade. Não admito moldes! [...] Não sou radical; preten-
do apenas salvaguardar o que resta de uma cultura.” 13 Assim dizia
o manifesto Escola de Samba: árvore que esqueceu a raiz, redigido por
João Baptista Vargens e logo difundido por Candeia. Afinal, “samba
é a verdade do povo / ninguém vai deturpar seu valor / canto de
novo / canto com os pés no chão / com coração, canta meu povo /
meu samba é bem melhor assim / ao som deste pandeiro / e do meu
tamborim.”14

12.  CANDEIA. Dia de graça. In: CANDEIA. Candeia. Rio de Janeiro: Equipe, 1970. Faixa 1.
13.  Disponível em: CUNHA, 2009, p. 112.
14.  CANDEIA. Nova escola. In: CANDEIA. Luz da inspiração. Rio de Janeiro: WEA, 1977.
Faixa 5.

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A gota d’água para seu afastamento da Portela teria sido a falta de
resposta, por parte do então presidente da escola Carlinhos Maracanã,
à carta enviada, em 1975, em conjunto com os demais diretores do de-
partamento cultural da agremiação: “[...] Escola de samba é povo na
sua manifestação mais autêntica! Quando o samba se submete a in-
fluências externas, a escola de samba deixa de representar a cultura de
nosso povo” (CANDEIA et al. In: CANDEIA & ISNARD, 1978).
Crítico ferrenho do discurso de integração e harmonia racial (recu-
sando conscientemente, portanto, a estratégia outrora usada por Paulo
da Portela de se engalanar e “civilizar” o samba), Candeia dispara, com
precisão, em entrevista de 1978 ao Correio Braziliense: “com toda since-
ridade, mal comparando, não vou dar uma de Pelé, cruzar os braços e
dizer que tá tudo bom, uma democracia bonita, e tal, igualdade, tudo
joia, certo?”.15
O discurso da abstração de igualdade, da suposta superação dos
conflitos, das promessas burguesas de liberdade nunca concretizadas,
fica ainda mais patente quando incorporado em uma realidade social
abissalmente iníqua como a brasileira. Só o samba é capaz de “levar a
melancolia / desta vida desigual / a razão da alegria / do povo é samba,
é carnaval”.16 Em Filosofia do samba, a temática encontra especial refino:

Mora na filosofia
Morou, Maria!

[...]

Amor é tema tão falado


Mas ninguém seguiu

15.  Entrevista de Candeia e Paulinho da Viola em: RABELLO, 1978, disponível em VARGUES,
2013, p. 213.
16.  CANDEIA. A hora e a vez do samba. In: CANDEIA. Raiz. Rio de Janeiro: Equipe, 1971.
Faixa 5.

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Nem cumpriu a grande lei
Cada qual ama a si próprio
Liberdade e Igualdade
Onde estão não sei 17

As supostas liberdade e igualdade (cuja concretização, como Can-


deia, não sabemos onde está) se colocam sempre como promessas nor-
mativas lançadas para o futuro. Dentre essas abstrações, destaca-se,
para os nossos fins, a negação discursiva do conflito capital-trabalho,
sem que em nada se alterem as condições materiais de existência e de
vida social: isto é, importa-se um ideal de igualdade que oculta as desi-
gualdades extremas advindas da exploração histórica e da estrutura so-
cial de reprodução de assimetrias. Especificamente no caso das relações
de trabalho, o discurso da superação da centralidade do trabalho vivo,
para além de negar o conteúdo do conflito capital-trabalho, chancela e
reproduz o aprofundamento dos processos de expropriação e de explo-
ração que recaem sobre a classe trabalhadora nacional.
Para fechar esse tópico, vale a pena mencionar a letra original de Morro
do Sossego, canção de Candeia e Arthur José Poener, censurada em 1971
(por “incentivar a luta de classes”), recuperada pelo Arquivo Nacional e
gravada, em 1988, por Cristina Buarque18: “Tô quieto, sossegado / qui
num vô mais trabaiá / nasci pra sê humiado / é mais negócio deitá / vou
deitá até rolá / [...] / ninguém vai me escravizá / não vô sê esvaziado /
prô meu patrão engordá / homem não consome homem”.19
Engana-se quem pensa que a censura, a exclusão, a espetaculari-
zação do samba e as abstrações de igualdade burguesas possam fazer

17.  CANDEIA. Filosofia do Samba. In: VIOLA, Paulinho da. Paulinho da Viola. Rio de Janei-
ro: Odeon, 1971. Faixa 5.
18.  CANDEIA; POENER, Arthur. Morro do Sossego. In: BUARQUE, Cristina. Candeia. Rio
de Janeiro: Funarte, 1988. Faixa 2.
19.  Disponível em: <http://www.arquivonacional.gov.br/br/na-midia/400-acervo-de-docu-
mentos-da-ditadura-militar-2.html>. Acesso em: 07 nov. 2018.

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apagar a chama: “o tempo que o Samba viver / o sonho não vai se aca-
bar / e ninguém irá esquecer... Candeia.”20 A chama se acende sempre
que se reafirma, em linhas vibrantes, que a verdadeira liberdade mate-
rial só pode ser encontrada no samba, na cultura, no movimento coti-
diano de resistência daqueles que aprenderam a reinventar a vida pelas
brechas da festa hegemônica. Afinal, “vive melhor quem samba”: “a li-
berdade dos prantos / e dos desencantos que a vida nos deu / a liberda-
de que canto é amor, é esperança / pra quem já sofreu / cada qual que
olhar para trás / verá que sempre há uma razão de viver”.21

Considerações finais
Compreender a arte enquanto processo e práxis doadora de sentido à
realidade material, e compreender o trabalho enquanto atividade de
caráter intersubjetivo e cultural, permite expandir nossos horizontes
de análise sobre os movimentos populares de resistência social. Uma
resistência que se perfaz em sentido múltiplo, em cada roda de samba
e em cada ecoar de um tamborim e de um pandeiro. Que não se pre-
tende unívoca, mas que incorpora múltiplas formas de manifestação:
seja pela ironia, pela ode ao trabalho livre, ou mesmo pela negação do
trabalho alienado.
A recepção das teorias que propugnam a pretensa crise (ou desapa-
recimento) da sociedade do trabalho encontra, nestas terras, o discur-
so contra-hegemônico do samba, apto a escancarar suas contradições
e a reforçar a centralidade que o trabalho ocupa nas relações sociais.
Encontra o discurso da cultura popular, que, partindo das assimetrias
materiais concretas, permite desvelar o deslocamento entre a essência
desigual e a aparência de igualdade do discurso hegemônico.

20.  VILA, Luiz Carlos da. O sonho não acabou. In: CARVALHO, Beth. Sentimento brasileiro.
Rio de Janeiro: RCA Victor, 1980. Faixa 10.
21.  CANDEIA. Viver. In: CANDEIA. Candeia. Rio de Janeiro: Equipe, 1970. Faixa 7.

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As evidências empíricas e teóricas desmentem a hipótese de que o
trabalho estaria em vias de declínio enquanto categoria-chave para a
compreensão sociológica de nossa lógica vital. Ao revés, o trabalho
é mais central do que nunca para o capitalismo, porque, afinal, é no
controle das relações de trabalho que reside o mecanismo básico de
autovalorização do capital. Não surpreende, portanto, que, diante de
um cenário marcado pela continuidade e agravamento da instabilidade
política e econômica no Brasil contemporâneo, os direitos trabalhistas
sigam servindo como moeda de troca.
Ainda, a amplitude conceitual do termo trabalho (da noção primeira
de atividade vital consciente à alienação do trabalho) já denota a sua
centralidade axiológica para a constituição das relações sociais. É pre-
ciso notar também que a automação do processo produtivo não gera
uma diminuição da necessidade de usurpação do trabalho humano,
mas, ao revés, demanda sua intensificação e o aprofundamento de seu
controle. Além disso, como também exposto, a difusão da financeiriza-
ção da economia em nada se desgarra da expansão do capital extrator
de mais-valor.
Quando o samba carioca explicita, com Candeia, Bezerra da Silva e
tantos outros, as contradições e a barbárie de uma sociedade material-
mente fundada na manutenção e expansão de desigualdades, reforça,
em cada batida em compasso binário, que a venda da força de trabalho
não se constitui em mera opção para a enorme parcela populacional
que não foi chamada a se sentar à mesa de negociações da organização
e repartição das riquezas sociais. A necessidade de sobrevivência impele
a vender o inalienável e sujeita a um salário de fome e a uma marmita
que só faz minguar.
Construindo seu discurso a partir das assimetrias concretas, e não da
abstração de igualdade, o samba é capaz de fazer estremecer as bases da
aparência ocultadora de conflitos. É capaz de reforçar, uma vez mais, a
centralidade que o trabalho ocupa na vida de um povo que nada mais
tem a vender senão sua força de trabalho – e que, portanto, é impelido

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a fazê-lo sob as mais precárias condições. E de reforçar, também, que
a emancipação da submissão e da alienação não se dá pela negação do
trabalho em si, mas justamente pela reivindicação social do sentido de
trabalho que se quer: um trabalho como atividade vital verdadeiramen-
te livre, um samba-trabalho.

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LUKÁCS, G. The Ontology of Social Being: labour. Tradução: de D. Fernbach. Lon-
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22.  A discografia utilizada se encontra referenciada ao longo das notas de rodapé.

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