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O trab
ALEXANDRE MENDES LINHAS é tentar encontrar uma
Em março de 2019, foi realizado o Seminário Interna-
Professor Adjunto da Faculdade de posição que permita investigar os
a
cional O trabalho das linhas: estética, política, direito,
has:
reito (PPGD); Pós-Doutor em Filoso- sediadas no Rio de Janeiro e instituições de fomento à tada por três movimentos recípro-
fia pela Université Paris-Ouest Nan- pesquisa. Este livro é uma publicação coletiva que cos: (i) considerar insatisfatórias
terre la Défense (2018). Doutor em
C
reúne as contribuições teóricas de uma parte dos par- as narrativas já prontas e à espera
M Direito pela Universidade do Estado
ticipantes, sendo um retrato das discussões que ocor- POLÍT de uma simples adesão (recusa da
do Rio de Janeiro - UERJ (2012). ICA, D
EMOC
Y
GIUSEPPE COCCO
ITA ria ou na política, imprimir uma
CY
Conselho Editorial
Annalisa Murgia – University of Leeds (GB)
Gabriella Alberti – University of Leeds (GB)
Vladimir Sibylla – UNIRIO
Cecilia Paiva – UFRJ
Regina Teixeira – UFRJ
Jeinni Kelly Pereira Puziol – Rede de Laboratórios Moitará
Carolina Salomão – Rede de Laboratórios Moitará
Gerardo Silva – UFABC
Ana Cristina Teodoro da Silva – UEM
Valter Zanin – Università di Padova (Itália)
Raluca Soreanu – Birkbeck University (GB)
Bruno Tarin – LABTeC-UFRJ
Andrea Lampis – USP
Alexandre Mendes – UERJ
Barbara Szaniecki – UERJ
Alexandre do Nascimento – Rede de Laboratórios Moitará
Salvador Schavelzon – UNIFESP
Oscar Garcia Agustin – Aalborg University (Dinamarca)
isbn: 978-65-5531-000-0
1ª edição, dezembro de 2020.
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P O L Í T I C A , T E R R I TÓ R I O S, C O M U M
— 11 —
1. MILANI, Alessandro et al. The Italian war-like measures to fight coronavirus spreading: reo-
pen closed hospital now: The Lancet, [S.l.], 26 mar. 2020. Disponível em: https://www.thelan-
cet.com/journals/eclinm/article/PIIS2589-5370(20)30064-X/fulltext.
— 12 —
2. DRAGHI, Mario. We face a war against coronavirus and must mobilise accordingly. Finan-
cial Times, [S.l.], 25 mar. 2020.
3. PÉREZ-CASTEJÓN, Pedro Sánchez. Même les plus européistes, comme l’Espagne, ont be-
soin de preuves d’un reel engagement de l’UE. Le Monde, [S.l.], 5 abr. 2020. Disponível em: ht-
tps://www.lemonde.fr/idees/article/2020/04/05/pedro-sanchez-meme-les-pays-les-plus-eu-
ropeistes-comme-l-espagne-ont-besoin-de-preuves-d-un-reel-engagement_6035600_3232.html
4. DOPO Bergamo e Ponte San Pietro, l’Esercito porta via le bare da Seriate. Bergamo News,
[S.l.], 25 mar. 2020. Disponível em: https://www.bergamonews.it/2020/03/25/dopo-berga-
mo-e-ponte-san-pietro-lesercito-porta-via-le-salme-da-seriate/362392/.
— 13 —
5. BIRNBAUM, Jean. Étienne Balibar: l’histoire ne continuera pas comme avant. Le Monde,
[S.l.], 22 abr. 2020. Disponível em: https://www.lemonde.fr/livres/article/2020/04/22/etien-
ne-balibar-l-histoire-ne-continuera-pas-comme-avant_6037435_3260.html.
6. LEITÃO, Míriam. Nordeste aposta na ciência como arma. O Globo, [S.l.], 19 abr. 2020. Dis-
ponível em: https://blogs.oglobo.globo.com/miriam-leitao/post/nordeste-aposta-na-ciencia-
-como-arma.html.
7. PERRY, Mark. America’s Pandemic War Games Don’t End Well. Foreign Policy, [S.l.], 1 abr.
2020. Disponível em: https://foreignpolicy.com/2020/04/01/coronavírus-pandemic-war-ga-
mes-simulation-dark-winter/. Cf. também ALLGOWER, Marc. Ces rapports qui prédisaient la
pandémie. Le Monde, [S.l.], 13 abr. 2020.
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8. LAKOFF, Andrew. Les maladies infectieuses ont fait l’objet de mesures de préparation à la
fin des années 1990. Entrevista com Marc-Olivier Bherer. Le Monde, [S.l.], 20 abr. 2020.
9. Cf. LEICHTER-FLACK, Frédérique. Vivre-ensemble à l’épreuve du vírus. Le Monde, [S.l.],
18 mar. 2020.
10. ESPOSITO, Roberto. Immunitas: Protezione e negazione dela vita. Turim: Einaudi Edi-
tor, 2002.
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11. Ibid., p. 7.
12. Cf. AGAMBEN, Giorgio et al. A Sopa de Whuan. [S.l.]: ASPO, 2020.
13. Cf. VISANI, Claudio. Siamo um paese dalla memoria corta. Globalist, [S.l.], 5 abr. 2020.
Disponível em: https://www.globalist.it/life/2020/04/05/siamo-un-paese-dalla-memoria-cor-
ta-il-coronavirus-lo-dimostra-ogni-giorno-2055653.html.
14. É alias o que enfatiza Macron em sua entrevista ao Financial Times, vide supra.
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15. CHÉRON, Bénédicte. À trop mobiliser le registre militaire face à toute crise, les mots per-
dent leur sens. Le Monde, [S.l.], 22 abr. 2020. Disponível em: https://www.lemonde.fr/idees/
article/2020/04/22/benedicte-cheron-a-trop-mobiliser-le-registre-militaire-face-a-toute-crise-
-les-mots-perdent-leur-sens_6037376_3232.html.
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16. Emblemático Esposito: “(...) o ataque terrorista hoje em dia mais temido, porque o menso
controlável, é aquele bacteriológico (...)”. Op. cit., p. 6.
17. Para os vírus emergentes, cf. BURGIO, Ernesto. COVID-19: the Italian Drama. Four avoi-
dable risk factors. Wall Street Journal – Science and Technology, 21 abr. 2020. Disponível em:
https://wsimag.com/science-and-technology/61967-covid-19-the-italian-drama.
18. TROPICÁLIA 2. Produtores: Caetano Veloso e Gilberto Gil. Rio de Janeiro: PolyGram,
1993. 1 CD. A letra da canção Haiti é de Caetano, cf. https://www.letras.mus.br/caetano-ve-
loso/44730/.
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22. Apud VICTOR, Fabio. Terra Desolada. O que o Brasil deixou para trás no Haïti. Revista
Piauí, [S.l.], ago. 2019, p. 18.
23. Em agosto de 2019, 962 militares integravam o poder executivo. Cf. SHINOHARA, Ga-
briel. Número de militares da ativa no governo cresce 13%. O Globo, [S.l.], 5 ago. 2019, p.7. Cf.
também BITTAR, Rosângela. Militares tutelam o governo como partido. Valor, [S.l.], 16 jan.
2019, p. A6.
24. Apud FREEDMAN, Lawrence. The Future of War: a history. [S.l.]: Penguin, 2018, p. 257.
Cf. CHIEF OF STAFF OF THE ARMY (Strategic Studies Group). Megacities and United States
Army: Preparing for a Complex and Uncertain Future, jun. 2014, p. 16. Disponível em:
https://www.army.mil/e2/c/downloads/351235.pdf.
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28. WEBER, Max. Discours de guerre et après-guerre. Textos reunidos e apresentados por
Hinnerk Bruhns. Trad. francesa: Ostiane Courau et Pierre de Larminat. Paris: EHESS, 2015, p.
88. Grifos nossos.
29. Ibid. p. 79.
30. Ibid., p. 80.
31. ENGELS, Friedrich. Anti-Dühring. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, p. 146.
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39. Ibid., p. 267-8. Para uma crítica de Claude Lévi-Strauss e sua noção de violência e sua abor-
dagem na escrita, cf. DERRIDA, Jacques. Op. cit., sobretudo p. 186.
40. Ibid., p. 270.
41. MALABOU, Catherine. Op. cit., p. 303.
42. BALIBAR, Étienne. Violence et civilité. Paris: Galilée, 2010. As conferências aconteceram
em 1996.
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48. Cf. ARON, Raymond. Macht, Power, Puissance: prose démocratique ou poésie démonia-
que? In: Les sociétés modernes, Paris: PUF, 2006, pp. 606 e ss.
49. Ibid., p. 282.
50. « Une violence ‘inconvertible’ ? » Ensaio de tópico. In: BALIBAR, Op. cit., p. 107. Grifo
do autor.
51. Ibid.
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52. BRATTON, Benjamin H. The Stack: On Software and Sovereignty. Cambridge: MIT Press,
2005, p. 4.
53. ENZENSBERGER, Hans Magnus. Die Grosse Wanderung. Aussichten auf den Bürger-
krieg. La grande migration. Suivi de Vues sur la guerre civile. Trad. Bernard Lortholary Galli-
mard. Paris: [S.l.], 1995, p. 83.
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4. GUERRAS MOLECULARES?
Como apontamos acima, já em 1991, Hans Magnus Enzensberger via
o fim da Guerra Fria como o início das “guerras moleculares”. É a ele
que Balibar se refere numa das suas palestras: “O que é uma guerra
que todos sofrem, mas ninguém sofre”? Como resultado, a arqueolo-
gia da violência de Clastres é novamente mobilizada, mas num sen-
tido muito diferente daquele que o jovem etnógrafo estava tentando
traçar. A inversão da abordagem Hobbesiana da guerra de todos con-
tra todos funciona ao contrário: o que para Clastres era uma crítica
libertária da violência do Estado e das suas guerras é agora lido como
o paradigma da guerra generalizada e do caos que caracteriza as no-
vas formas de governo. Bertrand Badie escreve: “(a)n hoje, para além
ou fora do Estado, as novas guerras fundem-se com o próprio fun-
cionamento da sociedade e estão desligadas de qualquer centralidade
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64. BADIE, Bertrand; VIDAL, Dominique. Nouvelles guerres: comprendre les conflits du siè-
cle XXI. Paris: La découverte, 2014, p. 19.
65. FERGUSON, Niall. The Square and the Tower: Networks, Hierarchies and the Struggle for
Global Power. Londres: Allen Lane, 2017, p. 394.
66. Ibid., p. 397.
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71. TROUILLOT, Michel-Rolph. Silencing the Past: Power and Production of History. Boston:
Beacon Press, 1995.
72. Antonio Negri e Michael Hardt retomaram essas críticas em Commonwealth, op. cit., p. 13.
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83. BERKMAN, Alexander. El mito bolchevique: Diario 1920-1922. Madri: Malatesta editorial,
2013, p. 263.
84. MEDVEDIEV, Roy. Au tribunal de l’histoire. New York: [S.l.], [1974].
85. SOUVARINE, Boris. Prefácio (1977). In: Staline. Paris: Ivrea, 1992, p. 579. É bem interes-
sante de descobrir que, após a censura de facto da parte do editor americano que havia, porém,
encomendado o livro (entre 1930 e 1935), o grande livro sobre Stalin de Boris Souvarine (1935)
foi traduzido em inglês por C. L. R. James. Cf. Ibid, p. 14.
86. LA ‘DEFAITE’ de l’Opposition (La Révolution Prolétarienne, n. 23, nov. 1926). In: SOUVA-
RINE, Boris. À contre-courant: écrits 1925-1939. Paris: Denoël, 1985, p. 115.
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REFERÊNCIAS
ARAÚJO, Vera. Matador de carteirinha. Época, [S.l.], 4 abr. 2019.
ARQUILLA, John; RONFELDT, David. The Continuing Promise of the Noösphere
and Noöpolitik: Twenty Years After. SSRN, [S.l.], mai. 2018. Disponível em: https://
papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=3259425.
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1. Favela e asfalto
Favela e asfalto designam uma diferenciação entre duas formas de ocu-
pação da cidade: a primeira informal, sem serviços nem infraestrutu-
ra; e a segunda formal, com direitos consagrados nas leis e normativas
que regulam o desenvolvimento do espaço urbano. O asfalto, evidente-
mente, funciona aqui como um dispositivo semântico para sinalizar ou
reafirmar o modo certo ou legal de se ter direito à cidade. (Não existe
aqui, de fato, uma distinção entre centro e periferia). Já a favela seria
o âmbito da precariedade e da ausência do Estado, da falta de acesso
a qualquer equipamento por causa da sua origem irregular, clandesti-
na ou ilegal. Em termos da cidade formal, ou da lógica do asfalto, não
existe (ou não deveria existir) um direito que garanta para esses territó-
rios os benefícios do progresso urbano, condenando seus habitantes a
1. Uma primeira versão desse texto foi apresentada como conferência no 5º Ciclo de estudos
Metrópoles, Políticas Públicas e Tecnologias de Governo, organizado pela UNISINOS, em
15/05/2017. Uma segunda versão ampliada foi debatida no Seminário Internacional “O traba-
lho das linhas. Estética, Política e Direito”, realizado na UFRJ entre 11 a 15 de março de 2019.
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2. Periferia e Subúrbio
No livro “A aparição do demônio na fábrica. Origens sociais do Eu dividi-
do no subúrbio operário” (2008), o sociólogo José de Souza Martins apre-
senta, na forma de uma entrevista, um debate sobre o sentido de subúrbio
e periferia na cidade de São Paulo, centrando sua análise nos territórios
do ABC paulista. Para o autor, o subúrbio é um processo de transição, no
qual a cidade cresce e se expande em contato com o mundo rural nas suas
bordas, suavizando o contraste entre essas duas formas vida. Nesse sen-
tido, ao mesmo tempo em que afirma a presença expansiva da cidade, o
subúrbio resguarda a memória ativa das fazendas que a precederam. “Em
termos atuais, afirma o autor, se poderia dizer que subúrbio é lugar em
que o passado rural de algum modo sobrevive o urbano” (p. 49).
Outra característica do subúrbio, segundo José de Souza Martins,
que sobrevive até os dias atuais, são as instituições comunitárias e a
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E andavam para o sul, metidos naquele sonho. Uma cidade grande, cheia
de pessoas fortes. Os meninos em escolas, aprendendo coisas difíceis e ne-
cessárias. Eles dois velhinhos, acabando-se como uns cachorros, inúteis,
acabando-se como Baleia. Que iriam fazer? Retardaram-se, temerosos.
Chegariam a uma terra desconhecida e civilizada, ficariam presos nela. E o
sertão continuaria a mandar gente pra lá. O sertão mandaria para a cidade
homens fortes, brutos, como Fabiano, sinhá Vitória e os dois meninos.
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3. Cidadania insurgente
Uma das contribuições recentes mais instigantes desta saga da consti-
tuição das periferias metropolitanas brasileiras, a encontramos no livro
“Cidadania Insurgente” (2013), do conhecido pesquisador norte-ame-
ricano James Holston. Embora o foco do trabalho seja a cidade de São
Paulo, em particular o bairro Jardim da Camélias, localizado na popu-
losa zona leste da capital paulistana, o autor desenvolve uma ampla e
rigorosa exploração dos determinantes históricos que explicam a for-
mação das periferias metropolitanas do Brasil como territórios de se-
gregação social. Em primeiro lugar, diz o autor, os determinantes são
políticos, e têm a ver com o longo caminho percorrido pelos setores
populares na conquista do direito ao voto, isto é, de poder participar
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4. Enraizados
A história do movimento Enraizados, no bairro do Morro Agudo, no mu-
nicípio de Nova Iguaçu (RJ), desde sua fundação em 1999 até 2010, é con-
tada pelo rapper Dudu do Morro Agudo no livro “Enraizados. Os híbridos
glocais”, publicado pela editora Aeroplano na coleção Tramas Urbanas (li-
teratura da periferia do Brasil). Trata-se de um movimento que se origina
no contexto das manifestações culturais do rap e do hip-hop na periferia
da metrópole carioca no fim da década de 1990, e que ao longo do tempo
passa a ser reconhecido tanto pela mídia local como também por outros
coletivos e pessoas do Rio de Janeiro e do Brasil, que começam a participar
ativamente das suas propostas. Em 2007, após 10 anos de labor ininterrup-
ta, assim eram apresentadas suas conquistas no jornal O Dia:
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5. O Sujeito periférico
É no trabalho de doutorado de Tiarajú Pablo D´Andrea, intitulado “A
formação dos Sujeitos Periféricos: cultura e política na periferia de São
Paulo” (2013), que encontraremos uma tentativa de síntese (e defini-
ção) do sentido que assume a periferia como lugar de resistência, cria-
ção e política – em contraposição às definições usuais que à vinculam
apenas com a pobreza, o esquecimento e a violência. Para isso, o autor
faz uma escolha bastante significativa, que é a de trabalhar a partir das
narrativas sobre a periferia na obra dos Racionais MC’s (embora tam-
bém sejam objeto de reflexão outras iniciativas de produção artística
nas periferias de São Paulo). Será através da análise desse conjunto de
elementos que poderá emergir a ideia de um sujeito periférico que, de
acordo com o texto, exige três atributos: 1) assumir a condição de pe-
riférico; 2) ter orgulho dessa condição; e 3) agir politicamente a partir
dessa condição (p. 174).
A contribuição específica dos Racionais MC’s para essa formulação
seria a de ter dado voz à periferia através de um gênero musical como o
rap, na sua manifestação mais radical de crítica da ordem social vigente
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a obra dos Racionais, com suas letras duras e reais, ajudaram a criar uma
nova forma do que seria a periferia. Por um lado, o forte caráter imagético
das letras carregadas de realismo abriu caminhos insuspeitáveis para toda
uma geração cinematográfica brasileira, passando por seriados e novelas.
Também estas narrativas da periferia chamaram a atenção para diversas
carências materiais e violências variadas que ocorriam nas periferias. Por
fim, ajudou a fomentar um novo significado para o termo periferia, agre-
gando possibilidades criativas dessa população, a participação política e as
potencialidades da mesma fundamentalmente no âmbito da ascensão so-
cial por meio do poder aquisitivo e de demonstração da força pelo uso ou
ameaça de uso da violência. (p. 97)
Qual seria então o novo significado para o termo periferia que os Ra-
cionais ajudaram a fomentar e que o trabalho do Tiarajú D’Andrea se
propõe a revelar? Em primeiro lugar, é importante destacar que a obra
dos Racionais se afirmou em um contexto em que a antiga definição
“acadêmica” de periferia, mais focada nos problemas da segregação ur-
bana e na pobreza, perdia fôlego político, perante os novos desafios da
década de ’90. Nesse marco, o rap e o hip-hop, assim como o funk no
Rio de Janeiro, e outras manifestações musicais e artísticas provenientes
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Bibliografia
D’Andrea, Tiarajú. A formação dos sujeitos periféricos: Cultura e política na periferia de
São Paulo. São Paulo: USP/Programa de Pós-Graduação em Sociologia, 2013 (Tese de
Doutorado).
Deleuze, Gilles; Guattari, Félix. Mil Platôs. Capitalismo e Esquizofrenia 2 (5 vol.). São
Paulo: Editora 34, 1995.
Dudu do Morro Agudo. Enraizados. Os híbridos glocais. Rio de Janeiro: Aeropla-
no, 2010.
Holston, James. Cidadania insurgente. Disjunções da democracia e da modernidade no Bra-
sil. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
Martins, José de Souza. A aparição do demônio na fábrica. Origens sociais do Eu dividido no
subúrbio operário. São Paulo: Editora 34, 2008.
Ramos, Graciliano. Vidas Secas. Rio de Janeiro: Record, 2015.
Silva, Gerardo. A experiência dos Pontos de Cultura no ABC paulista. Rio de Janeiro: LAB-
TeC/UFRJ, 2013a (relatório de pesquisa, mimeo.)
Silva, Gerardo. “Política Cultural no Brasil”. In: Marchetti, Victor (org.). Políticas Pú-
blicas em debate. São Bernando do Campo: MP Editora, 2013b.
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1. As observações a seguir devem muito ao trabalho produzido na Plataforma de Investigações Mi-
litantes [Plate- forme d’Enquêtes Militantes], um coletivo político nascido em 2017 após a mobilização
contra a Lei do Traba- lho e do qual participo. Em relação ao movimento Coletes Amarelos, refiro-
-me aos muitos materiais textuais e audiovisuais publicados no site: http://www.platenqmil.com./
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2. Cf., P. Dardot, C. Laval, La nouvel raison du monde, La découverte, Paris, 2010, pp. 459-464
; W Brown, Les habits neufs de la politique mondiale, Les prairies ordinaires, Paris, 2007, pp.
45- 90 ; C. Crouch, Post-demo- cracy, Polity Press, Cambridge, 2004.
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3. Alusão ao subtítulo da obra de J. Chingo, Gilets Jaunes, le soulèvement. Quand le trône a vacillé,
Commu- nard.e.s, Paris, 2019.
4. Sobre a imagem dos CA vistas por uma certa nobreza do Estado, cf. https://aoc.media/
opinion/2018/12/19/ egoistes-imbeciles-illumines-poujadistes-vulgaires-gilets-jaunes-vus-hau-
te-fonction-publique/.
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5. Conferir: https://samuelhayat.wordpress.com/2018/12/05/les-gilets-jaunes-leconomie-
-morale-et-le-pouvoir/ e
https://samuelhayat.wordpress.com/2018/12/24/les-gilets-jaunes-et-la-question-demo-
cratique/.
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6. https://blogs.mediapart.fr/jeremiechayet/blog/021218/liste-des-42-revendications-des-gi-
lets-jaunes.
7. A respeito disso, cf. a página do coletivo “Plein le dos”, que cataloga, Ato após Ato, os gi-
lets jaunes mais marcantes, https://pleinledos.org.. Uma entrevista muito interessante a esse
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9. O que aliás Hayat também não deixou de destacar com acuidade – o primeiro desses dois
textos já conclui pela sinalização da proposição de Commercy de se reunir nas próximas semanas
na “Assembleia das Assembleias” [AdA]... Cf. A excelente vídeo chamada da assembleia de Com-
mercy, https://www.youtube.com/watch?
v=gJI5_us3RJI . Sobre as segunda e terceira enquetes AdA, conferir o artigo e o vídeo-pesquisa
da Plateforme
d’Enquêttes Militantes : http://www.platenqmil.com/blog/2019/04/25/retour-sur-st-nazaire-
--inventer-la-demo- cratie-directe-sorganiser-en-contre-pouvoirs et http://www.platenqmil.
com/blog/2019/10/28/tout-le-pouvoir- aux-assemblees-locales-video-enquete-sur-la-3eme-as-
semblee-des-assemblees.
10. [N.T] Símbolo da República Francesa.
— 75 —
“Estamos aqui”
Para demonstrar isso, e para compreender a força do movimento, é
preciso revisitar a questão sobre as pluralidades de formas de ação11.
Os CAs, de fato, renovaram profundamente as práticas de bloqueio, de
constituição de assembleias e de manifestação, associadas a uma práti-
ca de pesquisa autônoma desenvolvida de uma maneira extremamente
11. Este último momento do texto é largamente inspirado pelas reflexões que nós expusemos
com François-Xavier Hutteau no colóquio Historical Materialism, realizado em Londres de 7 a
10 de novembre de 2019. O texto foi co-publicado, em inglês, pelos sites de livre acesso Notes
from Below et de Viewpoint Magazine, com o título Back to the Future: The Yellow Vests Movement
and the Riddle of Organization.
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12. [N.T.] Maisons du peuple ou “casas do povo” são espaços na França, fundados por cooperati-
vas ou associações, destinadas atendimentos dos trabalhadores e a fins sociais.
13. [N.T.] Lista de desejos ou de reclamações direcionada ao Estado.
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Referências Bibliográficas
ALLAVENA J.; POLLERI, M. Sur la méthode opéraïste. Publicado 10 mai 2019. Dis-
ponível em: <https://acta.zone/s-bologna-et-g-daghini-mai-68-en-france-bonnes-
-feuilles/>.
BROWN W. Les habits neufs de la politique mondiale, Les prairies ordinaires. Paris, 2007,
pp. 45- 90 ;
CHINGO. J. Gilets Jaunes, le soulèvement. Quand le trône a vacillé, Communard.e.s, Pa-
ris, 2019.
CROUCH, C. Post-democracy, Polity Press, Cambridge, 2004.
DARDOT, P.; LAVAL, C. La nouvel raison du monde, La découverte, Paris, 2010, pp.
459-464 ;
GALLO, Davide. La montée des autoritarismes. Contretemps. 6 dec 2019. Disponível:
<https://www.contretemps.eu/montee-autoritarismes-chamayou/>.
______________. Dans la boite noire des années 10: crise, néo-fascisme et mou-
vements sociaux. Vacarme. 21 jun 2019Disponível em: <https://vacarme.org/arti-
cle3256.html>.
_______________. Multiplication du travail, opérations du capital et contre-pou-
voirs. Actuel Marx. [no prelo].
GUILBAUD, D. Égoïstes, imbéciles, illuminés, poujadistes, vulgaires » : les Gilets Jau-
nes vus depuis une certaine haute fonction publique. AOC. [opinion]. 19 dez 2018.
Disponível em: <https://aoc.media/opinion/2018/12/19/egoistes-imbeciles-illumi-
nes-poujadistes-vulgaires-gilets-jaunes-vus-haute-fonction-publique/>.
15. Este artigo foi redigido logo antes do desencadeamento do movimento contra a reforma
da previdência. Sobre o conceito de « gilet-jaunisation » ver: cf. http://www.platenqmil.com/
blog/2019/12/02/5-6-7-8—apres-les- ronds-points-le-grand-pont, http://www.platenqmil.
com/blog/2019/12/29/grevolution--1er-round-dune-greve-
generalisee et https://acta.zone/pour-une-gilet-jaunisation-du-mouvement-social/.
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Sites consultados
Plein le dos. Disponível em: <https://pleinledos.org>.
Plateforme d’Enquêtes Militantes. Disponível em: < http://www.platenqmil.com./ >.
Vídeos consultados
Gilets Jaunes Commercy. Gilets Jaunes: appel de la première assemblée des assem-
blées/ Commercy - 27 janeiro 2019. Youtube. Disponível em: < https://www.youtube.
com/watch?v=gJI5_us3RJI >.
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1. INTRODUÇÃO
Este texto consiste num ensaio produzido a partir das reflexões desen-
volvidas no meu estudo de pós doutoramento na área de planejamento
e gestão do território, tendo como objeto as lutas dos sujeitos do tra-
balho “autônomo”, ou seja, o precariado, e, por palco, as metrópoles,
enquanto lócus da produção difusa do capitalismo pós industrial e, por-
tanto, das lutas.
Parto aqui da hipótese, que construo ao longo do desenvolvimento
do meu estudo, de que as lutas do trabalho, cada vez mais deslocadas
das fábricas para as ruas, as cidades, se aproximam, convergem com as
lutas urbanas e/ou por direitos e cidadania. E não são só os territórios
que favorecem esse encontro, a atual configuração da produção, difusa,
desterritorializada, e a conversão do trabalhador em prestador de servi-
ços, tornando a necessidade de acesso a bens e serviços sociais, condi-
ção para se tornar produtivo, estabelecem o denominador comum para
a aproximação destas lutas que tomam as ruas, praças e espaços públi-
cos. Essa distinção entre lutas urbanas e lutas trabalhistas, lutas políticas
e lutas econômicas, está apoiada na dissociação das esferas da produção
e reprodução promovida no e pelo capitalismo. Afinal, nada mais esqui-
zofrênico do que esta desagregação, visto que a produção, e, portanto,
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Organizar quer dizer pôr ordem, disciplinar, instituir. Tudo isso vai na
contramão da rebeldia, e, quando esta se deixa ordenar, deixa de ser
rebeldia. Este é um dos problemas mais graves dos movimentos antis-
sistêmicos, que muitos estudiosos formulam dizendo que quanto mais
organizado está um movimento, menor capacidade de mobilização tem
e vice-versa ... a não existência da articulação é também um problema ...
o debate sobre a articulação deveria se concentrar em: como evitar a cen-
tralização e a unificação; como evitar converter as articulações ou coor-
denações ou redes difusas ou informais em aparelhos com vida própria;
como potencializar o mundo novo que nasce em meio aos movimentos.
(Zibechi, p. 169 e 170)
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1. A exemplo do Movimento brasileiro das Comunidades Populares (MCP), que conta com
cerca de 60 grupos, a metade dos quais urbanos, de bairros e favelas, e há dez anos criou o
Grupo de Investimento Coletivo na comunidade Chico Mendes, localizada no topo do morro
do chapadão ao norte do Rio de Janeiro, que possui mais de vinte membros e reúne 400 in-
vestidores da comunidade na administração de um fundo de 700 mil reais. Estes recursos são
usados para conceder empréstimos a juros baixos, a maior parte deles, para reformar casas ou
gerar rendas familiares ou coletivas, dispensando a necessidade de se recorrer a um banco para
pedir empréstimos a juros exorbitantes. “Não se acumula capital e todo o dinheiro circulante
está sobre controle comunitário, para que o próprio dinheiro tenha valor de uso, não de troca.”
(ZIBECHI, 2019)
2. A esse respeito vide Cava (2012).
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CONCLUSÃO
Termino este artigo num momento em que o continente latino-ame-
ricano encontra-se em estado de ebulição e não podia estar aqui tra-
tando das lutas contemporâneas e não olhar e considerar os aconteci-
mentos recentes às nossas voltas e em curso. A intensa agitação política
que paira sob o nosso continente, desenha cenários e perspectivas que
tanto apontam para um quadro incerto e preocupante, de retrocessos,
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REFERÊNCIAS
BRAGA, Ruy. A rebeldia do precariado: Trabalho e neoliberalismo no Sul global. São
Paulo: Boitempo, 2017.
BUTLER, Judith. Corpos em aliança e a política das ruas: Notas para uma teoria perfor-
mativa de assembleia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018.
4. Entre as quais, um aumento nas aposentadorias e no salário mínimo, a melhoria no acesso a
saúde, seguro para cobrir despesas médicas e estabilização das tarifas elétricas.
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Introdução
Vivemos há tempos uma crise da representação que, mal encaminhada,
se transformou numa crise da própria democracia brasileira. Uma crise
que não é de hoje e não está ligada apenas aos acontecimentos recen-
tes. É, sobretudo, uma crise do modelo civilizatório, da modernidade
capitalista ocidental (ESCOBAR, 2016). Essa crise se deve ao problema
do projeto de desenvolvimento e o projeto de cidades que vem se de-
senrolando no Brasil e no mundo.
A expectativa gerada pelos últimos governos progressistas do Brasil
e da América Latina de desfazer o descompasso entre acumulação e dis-
tribuição não se concretizou. Esses governos não foram capazes de re-
verter processos de racionalização do Capital e do Estado e terminaram
surfando nessa onda. Com suas políticas de aceleração do crescimento,
políticas neodesenvolvimentistas (COCCO, 2014) geraram danos em
frentes de defesa importantes e tradicionais de grupos progressistas, as
ambientais e sociais, como no caso da construção de Belo Monte entre
outros megaequipamentos problemáticos, das remoções de favelas e do
projeto de pacificação preparado para os grandes eventos. Vale a pena
lembrar que as críticas dos manifestantes em 2013 (hospitais padrões
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4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Consideramos que, em princípio, as lutas do commoning – pela gestão
dos bens comuns assim como o fazer comum – não são hilemórficas.
Os commons demandam um fazer, um processo de crescimento com-
partilhado e se desenrola nos caminhos e nos acontecimentos. No caso
dos baldinhos, havia a priori um desenvolvimento técnico que suporta-
va a possibilidade de realização da compostagem, entretanto, essa só
se deu na articulação das pessoas, nas relações entre moradores e no
aprendizado comum de como a técnica estava viabilizando o proble-
ma do lixo, que o trabalho foi crescendo de acordo com a viabilidade
local. Um “projeto” resultaria naquilo que Ingold se refere ao falar do
exército sul-africano (e nós, dos governos sul-americanos), isto é, linhas
retas de aceleração cujo poder atropela a vida de outros. Por isso o com-
moning precisa ser um processo cauteloso que segue linhas entrando e
saindo, de baixo para cima, em ondas, ora de cima para baixo.
Defendemos que as linhas e as lutas do commoning devem estar sem-
pre buscando a esfera das políticas públicas. Não apenas mudar pelas
influências externas, mas também puxar mudanças maiores, junto com
a rede de comuns. O discurso das tragédia dos comuns até hoje ser-
ve (e hoje mais do que nunca) para justificar privatizações ou grandes
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REFERÊNCIAS
CAVA, Bruno e MENDES, Alexandre. A Constituição do Comum: Antagonismo, Produ-
ção de Subjetividade e Crise no Capitalismo. Rio de Janeiro: Revan, 2017.
COCCO, Giuseppe. Korpobraz: por uma política dos corpos. Rio de Janeiro:
Mauad, 2014.
ESCOBAR, Arturo. Autonomía y diseño: La realización de lo comunal. Popayán: Uni-
versidad del Cauca, Sello Editorial, 2016.
GIVORS, Martin; RASMI, Jacopo. Prêter attention au commun qui vient. Multitudes,
[S.l.], n. 68, 2017.
INGOLD, Tim. A brief history of lines. New York: Routledge, 2007.
______. Being Alive. Londres: Routledge, 2011.
______. On human correspondence. Journal of the royal anthropological institute, [S.l.],
n. 23, 2016.
______. Making. New York: Routledge, 2014.
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1. INTRODUÇÃO
Durante seu discurso na ocasião da entrega do relatório especial da
ONU sobre o direito à moradia adequada ao Conselho de Direitos Hu-
manos, Leilani Farha, relatora do documento, proferiu uma frase que
ressoou pelos meios de comunicação do mundo inteiro: “A moradia
não pode ser reduzida a uma fonte de lucro para os ricos.”2 A frase,
impactante pelo seu contexto, revela uma tendência mundial, que está
presente nos debates sobre moradia adequada e direito à cidade nos
mais diferentes espaços e instituições.
Em seu trabalho, focado da “financeirização da habitação” e suas re-
percussões nos Direitos Humanos, a relatora sugere uma redefinição
do relacionamento dos Estados com investidores privados e instituições
financeiras internacionais e uma reforma na gestão dos mercados finan-
ceiros, deixando de encarar a habitação como uma mercadoria voltada
para a acumulação de riqueza, passando a ser reivindicada como um
1. Este trabalho trata-se de um resumo da monografia de mesmo título apresentada na con-
clusão do curso de Direito na graduação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Esta pes-
quisa se desenvolveu no âmbito das atividades do projeto “Comuns Urbanos: Estudo de Caso
do Horto no Rio de Janeiro, cadastrado junto a UERJ sob a coordenação do Prof. Alexandre F.
Mendes.
2. NAÇÕES UNIDAS DO BRASIL. Moradia não pode se reduzir a uma fonte de lucro para
os mais ricos, diz relatora da ONU. Disponível em: https://nacoesunidas.org/moradia-nao-
-pode-se-reduzir-a-uma-fonte-de-lucro-para-os-mais-ricos-diz-relatora-da-onu/. Acesso em: 7
mar. 2019.
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3. Criada em 1969, a Fundação João Pinheiro é uma instituição de pesquisa e ensino vin-
culada à Secretaria de Estado de Planejamento e Gestão de Minas Gerais. FUNDAÇÃO
JOÃO PINHEIRO. Déficit Habitacional no Brasil. Disponível em https:// http://fjp.mg.gov.
br/index.php/produtos-e-servicos1/2742-deficit-habitacional-no-brasil-3/. Acesso em: 7
mar. 2019.
4. Em São Paulo, segundo a mesma pesquisa, os valores absolutos do déficit habitacional ul-
trapassam um milhão de moradias, totalizando 1,337 milhão de unidades. O ônus excessivo
com aluguel tornou-se desde 2011 o componente de maior peso. Em 2015, metade do total do
déficit está associado a este componente, o que, em número absoluto, representa 3,177 milhões
de famílias urbanas no país. A região Sudeste concentra 61,4% das famílias urbanas associadas a
esse componente, totalizando 1,524 milhões de famílias que comprometem grande parcela da
renda com o aluguel.
5. Azevedo e Falhaber (2015, p. 36) apresentam ainda que, segundo dados coletados da Secre-
taria Municipal de Habitação do município, a gestão do prefeito Eduardo Paes (2009 – 2013)
removeu mais pessoas durante seus dois mandatos do que a gestão de Carlos Lacerda (1961
– 1985) e Pereira Passos (1902 – 1906 ), [...] “que são frequentemente relembrados para repre-
sentar esta política de remoções”. (AZEVEDO; FALHABER, 2015, p. 37)
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6. Neste ponto, a constituição da subjetividade aparece como elemento central da lógica de
governar característica do neoliberalismo. Os elementos comuns inerentes a sociedade e da
relação do homem com seus semelhantes passam a ser tidos como espaços de exploração eco-
nômica, no sentido de que a linguagem, a comunicação, os debates públicos e os atos inerentes
a sociedade civil tornam-se ativos econômicos.
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7. Noberto Bobbio é frequentemente lembrado como a melhor contribuição para con-
sagração das gerações de direitos fundamentais, ao afirmar que “o desenvolvimento
dos direitos do homem passou por três fases”. A segunda geração, nascida junto com a
emersão do estado de bem-estar, são os considerados os direitos políticos, “conceben-
do a liberdade não apenas negativamente, como não impedimento, mas positivamente,
como autonomia. BOBBIO, Noberto. A era dos Direitos. 9. ed. Rio de Janeiro: Elsevier,
2004, p. 32.
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8. Título II Dos Direitos e Garantias Fundamentais. Capítulo II Dos Direitos Sociais: Art. 6º
São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segu-
rança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desampara-
dos, na forma desta Constituição.
9. Esse movimento, em consonância ao exposto no primeiro capítulo, já demonstra uma alte-
ração da dinâmica do capitalismo. Em concomitância com o processo de privatização da seguri-
dade social, transferindo a responsabilidade de gestão das condições da aposentadoria para cada
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indivíduo a partir de um espaço econômico a ser explorado, a moradia passou a ser tratada
como um ativo financeiro valioso.
10. “A Crise do subprime foi uma crise financeira desencadeada em 24 de julho de 2007, a partir
da queda do índice Dow Jones motivada pela concessão de empréstimos hipotecários de alto
risco. Esta prática levou vários bancos para uma situação de insolvência, repercutindo forte-
mente sobre as bolsas de valores de todo o mundo.”
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11. Segundo o Censo 2010 do IBGE, o Brasil tinha cerca de 11,4 milhões de pessoas morando
em favelas e cerca de 12,2% delas (ou 1,4 milhão) residiam no Rio de Janeiro. Ocorre que a
análise desses dados não deve estar à luz da falsa premissa que o fenômeno dos assentamentos
que se situam à margem do ordenamento jurídico estatal, como um ambiente onde há uma
ausência da presença do Estado. Tal premissa entende que nesses assentamentos se constrói
uma legalidade que vem do interior dessas organizações sociais que não se relacionam com o
ordenamento estatal.
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12. Do ponto de vista do desenvolvimento econômico, o programa MCMV teve grande êxito,
repercutindo positivamente no saldo político que levou perpetuação dessa política na eleição da
sucessora do governo Lula. Ao salvar as empreiteiras e incorporadoras imobiliárias da crise, o
aumento das vendas do setor e de seus colaterais levou à recuperação do valor das ações dessas
empresas.
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13. A área onde se localiza a comunidade do Horto Florestal se confunde com esse processo.
A própria urbanização da cidade do Rio de Janeiro, que foi definida a partir desta estratificação
espacial pautada na dicotomia zona sul x subúrbio, contribui para os conflitos nessa região.
Até o início do Séc. XX, a cidade do Rio de Janeiro ainda não havia desenvolvido sua atividade
industrial, era afetada por surtos de industrialização que até à época não conseguiam superar
a dependência do setor agrário e as condições de infraestrutura, como mobilidade urbana e
condições sanitárias nas vilas dos trabalhadores, que impediam o desenvolvimento do setor
industrial.
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14. A maior parte dessas ações tiveram o provimento deferido no final da década de 1990. En-
tretanto, a União não deu seguimento à execução, vez que houve uma grande alteração na
conjuntura jurídico – político, sobretudo com a promulgação da CRFB/88, Estatuto da Cidade,
CC/2002, Lei n. 11481/2007 e Lei n. 11977/2009, que consagram o direito fundamental à mo-
radia através de novos instrumentos de regularização fundiária plena.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
O curso dessa pesquisa, que se iniciou em uma assistência jurídica, foi
tomado por sentimentos de experiências vividas de perto por todos
aqueles que compartilharam a convivência na cidade do Rio de Janeiro
nos últimos anos e puderam assistir e participar do caldeirão de enfren-
tamentos e processos disruptivos que irromperão as ruas desde o início
do anúncio dos grandes eventos esportivos e culminaram nas manifes-
tações que ficaram conhecidas como Jornadas de Junho de 2013.
Essas atividades nos ajudaram a compreender que o bem pelo qual
os moradores dessa comunidade, alinhado a outras favelas, estavam
engajados girava em torno da autonomia e do modo de vida que eles
conquistaram e construíram ao longo da trajetória de suas famílias. As
raízes firmadas naquelas localidades impediam que a troca pelo finan-
ciamento de uma casa em outra localidade fosse encarada como uma
15. Dentre os moradores presentes que organizaram a resistência à remoção truculenta e con-
siderada ilegal, Emerson de Souza destaca que a ação do poder público não abriu caminhos de
diálogo, que a mudança de posição quanto a regularização fundiária iniciou também ações vio-
lentas de amedrontamento contra a comunidade. Outra moradora que presenciou a remoção
da família de Marcelo de Souza, Flávia Inácio Ferreira destaca a ausência de alternativa de mo-
radia por parte do poder público para os moradores que também estão com processos ativos
aguardando o mandado de reintegração de posse:
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Mas eles não querem nada disso! Querem produzir o urbano a partir de
formas de sociabilidade autônomas, horizontais e democráticas. E, para
isso, é preciso conquistar mais direitos, serviços urbanos, espaços, liberda-
des e se apropriar de muito mais riqueza do que a promessa de crescimen-
to gradual oferece. (MENDES, 2019, p. 265).
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REFERÊNCIAS
ABREU (de ALMEIDA), M. Evolução Urbana do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: IPLAN-
RIO, 1996.
AZEVEDO, L., FAULHABER, L. SMH 2016: remoção no RJ olímpico, Rio de Janeiro:
Mórula Editorial, 2015.
BOBBIO, Noberto. A era dos Direitos. 9. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.
CAVA, Bruno. Metrópole como usina biopolítica. 2015. Disponível em: http://www.ihuon-
line.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=5909&secao=464.
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APÊNDICE A
Fonte: O autor
Fonte: O autor
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Fonte: O autor
Fonte: O autor
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Fonte: O autor
Fonte: O autor
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Que campo de batalha?! Onde você acha que está? Ainda na guerra?
Don Julio, toda essa violência, é contagiosa”. – Toque de Queda
Meu ponto de partida nesse ensaio…é que a cidade não está morta.
(Levenson, 2011, 25).
Introdução
Em “Living Guatemala City, 1930 – 2000”, Deborah Levenson (2011,
25) observa que “é fácil encarar a Cidade da Guatemala como um de-
sastre completo, outra favela em rápida decadência no ‘planeta das fa-
velas’” - aqui referindo-se ao livro homônimo de Mike Davis, Planet
of Slums (Davis, 2006). Levenson prossegue argumentando: “[meu]
ponto de partida..., no entanto, é que a cidade não está morta” (ibid).
A vivacidade da cidade evocada por Levenson através das narrativas
oferecidas por seus habitantes é um tanto complicada no filme Toque
de Queda (Curfew, 2011), onde um bairro da cidade - uma colonia - é
considerada como estando sob um cerco zumbi. O ponto de partida
em Toque de Queda é que o assentamento é cercado por hordas de
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1. Agradecimentos: Agradeço a Secil Oswaldo de León por me dar sua cópia de Toque de Queda
e por sua contribuição especializada sobre a nova cinematografia da Guatemala. Uma versão
deste texto foi apresentada no painel “Resisting Erasure: Historical Memory and Cultural Pro-
duction in Postwar Central America” na Conferência Anual da Latin American Studies Associa-
tion (LASA), na cidade de Nova York, em 2016. Sou grata à Rita Palacios, Alicia Ivonne Estrada,
Sophie Lavoie e Norma Stolz Chinchilla, pelo seu generoso engajamento. Sou grata também
aos organizadores da conferência “Necropolitics, Biopower and the Crisis of Globalisation” rea-
lizada na Birkbeck, Universidade de Londres, em 2018 – especialmente a Giuseppe Cocco e
Raluca Soreanu - e Stephen Frosh, que gentilmente revisou um rascunho subsequente.
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3. Em “Unlimited intimacy: reflections on barebacking culture” Tim Dean se debruça sobre a práti-
ca intencional e consensual de sexo sem proteção entre homens. Ao abordar essa subcultura e
prática sexual, o autor propõe uma análise acerca de questões como intimidade, desejo, limites
e conexões. Nesse sentido, a prática de barebacking refere-se a uma socialidade que conduz a
uma intimidade ilimitada que vai além da sexualidade.
— 159 —
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Referências
Caña Jiménez, Maria del Carmen. 2014. “El asco: reflexiones estéticas sobre la violen-
cia neoliberal en Centroamérica.” Symposium: A Quarterly Journal in Modern Literatures
68(4):218-230.
Comisión de Esclarecimiento Histórico (CEH)/United Nation Commission for His-
torical Clarification (1999) Guatemala: Memory of Silence, Tz’inil Na’tab’al, Guatemala
City: United Nations.
Davis, Mike. 2006. Planet of Slums. London: Verso.
Dean. Tim.2009. Unlimited Intimacy: Reflections on the Subculture of Barebacking. Chica-
go: Chicago University Press.
García, Engler. 2011. “Toque de Queda”. Plaza Pública, 12/06/2011, https://www.
plazapublica.com.gt/content/toque-de-queda
Edwards, Justin D. and Vasconcelos Guardini, Sandra.2016. Tropical Gothic in Literature
and Culture: The Americas. London: Routledge.
Haritaworn, Jin, Kuntsman, Adi and Posocco, Silvia. 2014. Queer Necropolitics. Lon-
don: Routledge.
Harney, Stefano and Moten, Fred. 2013.The undercommons: Fugitive planning and black
study. New York: Minor Compositions.
Kokotovic, Misha. 2006. “Neoliberal Noir: Contemporary Central American Crime
Fiction as Social Criticism.” Clues 24(3): 15–29.
— 161 —
Filmes
1.Toque de Queda [Curfew] (2011)
Directors: Ray Figueroa, Elías Jiménez Trachtenberg
Writer: Ray Figueroa
http://www.imdb.com/title/tt1909357/?ref_=nm_flmg_wr_5
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1. INTRODUÇÃO
Este artigo integra um conjunto de reflexões compartilhadas no âm-
bito do I Seminário Internacional de Direito e Literatura: estudos con-
temporâneos entre Direito, Política e Literatura, realizado, em 2019,
na Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ). O principal objetivo do encontro foi debater a atualidade da
relação entre estudos jurídicos e literários, levando em consideração
novas propostas metodológicas coerentes com os problemas político-
-teóricos trazidos no contexto de uma globalização em crise.
Neste sentido, o cenário brasileiro não poderia levantar questões
mais desafiadoras. Nos últimos anos, o país testemunhou o maior ciclo
de protestos de sua história (2013-2015) e, também, todas as perigosas
armadilhas que acompanham a frustação de um impulso de transfor-
mação não realizado. Em livro recente, seguindo a filosofia de Deleuze
e Guattari, argumentei que a ascensão da extrema direita e o colapso do
progressismo político no Brasil, não apenas colocam em questão o fun-
cionamento das instituições democráticas, mas trazem um problema
ligado à percepção (MENDES, 2018).
Segundo essa linha de análise, os protestos de Junho de 2013 podem
ser caracterizados como um acontecimento, não somente político-so-
cial, mas da ordem do sensível, afetando e recriando a lógica do sentido
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4. Esses debates metodológicos estão sendo realizados, mesmo que de maneira descontínua,
no âmbito da Linha de Teorias e Filosofia do Direito do Programa de Pós-Graduação da Facul-
dade de Direito da UERJ (PPGD). Até que ponto a lógica da disputa de narrativas e das polêmi-
cas afeta a pesquisa jurídica interdisciplinar, fazendo o pesquisador se desconectar do próprio
material levantado?
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From this hour I ordain myself loosed of limits and imaginary lines!
Walt Whitman, “Poem of the Open Road,” Leaves of Grass, 18551
1. [N.T.] “Daqui em diante ordeno a mim mesmo o fim de limites e linhas imaginárias!” - Walt
Whitman, Canção da estrada aberta, Folhas de Relva, 2011, p. 135. A tradução dos poemas
de Walt Whitman referentes à obra Leaves of Grass são citações da edição brasileira da obra
publicada pela editora Hedra em 2011, sob organização e tradução de Bruno Gambarotto.
Optou-se também por deixar no corpo do texto a versão original em inglês, assim como o
fez a autora. Procedeu-se, assim, com todos os outros textos que já tinham tradução para
o português.
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2. [N.T.] Optamos em colocar em itálico todas as palavras provenientes do latim que mantém a
forma antiga, mesmo que assim não tenha sido procedido pela autora.
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3. [N.T] Utilizamos a edição brasileira: Roland Barthes, O Neutro: anotações e aulas ministradas
no Collège de France (1977-78), tradução Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes,
2003 - (Coleção Roland Barthes) p. 17.
4. [N.T] Parênteses do tradutor.
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5. [N.T] Utilizamos a edição brasileira: Jacques Rancière, Política da Literatura, Revista A!, tra-
dução de Renato Pardal Capistrano, Rio de Janeiro, v. 5, n. 5, 2016/01, p. 1-2
6. [N.A.] Ver Jacques Rancière, La Mésentente: politique et philosophie, Paris : Galilée, 1995. [N.T.]
A expressão “sem-parcela” tem como base a tradução da obra para o português realizada por
Ângela Leite Lopes para a 1a edição publicada pela editora 34 em 1996. Cf. O desentendimento.
Política e Filosofia. São Paulo: Ed. 34, 1996.
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7. Stefano Harney & Fred Moten, The Undercommons: Fugitive Planning & Black Study, Wive-
nhoe: Minor Compositions, 2013; Rita Felski, The Limits of Critique, Chicago: Chicago UP, 2015.
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8. A tradução da obra de Harneu e Moten para o francês esta em curso. A publicação é prevista
pela Brooks, em 2021, sob o título « Les sous-communs : plans fugitifs et étude noire ».
9. [N.T] Utilizamos a edição brasileira Deleuze, G.; Guattari, F. Mil platôs: capitalismo e esqui-
zofrenia 2, vol 5, 2ª ed., tradução de Peter Pál Pelbart e Janice Caiafa. São Paulo: Editora 34,
2012. p. 226
10. [N.T] Para se referir a esse caráter da linha, a autora utiliza o neologismo fugitivité em fran-
cês. Como se trata de um conceito, manteremos a mesma construção em português.
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11. [N.A] « If you want to know what the undercommons wants, what Moten and Harney
want, what black people, indigenous peoples, queers and poor people want, what we (the “we”
who cohabit in the space of the undercommons) want, it is this – […] we want to take apart,
dismantle, tear down the structure that, right now, limits our ability to find each other, to see
beyond it and to access the places that we know lie outside its walls. » ( Jack Halberstam, « The
Wild Beyond: With and For the Undercommons ». Stefano Harney & Fred Moten, The Under-
commons: Fugitive Planning & Black Study, Wivenhoe : Minor Compositions, 2013, p. 6.). [N.T]
Se você quer saber o que os undercommons querem, o que Moten e Harney querem, o que os negros, povos
indígenas, queers e pobres querem, o que nós (o “nós” que convivemos no espaço dos undercommons)
queremos, é isso – (...) queremos desmontar, desmantelar, demolir a estrutura que, neste momento, limita
a nossa capacidade de nos encontrarmos, de vermos para além e de termos acesso aos lugares que sabemos
que estão fora das suas paredes.
— 188 —
The call is always a call to dis-order and this disorder or wildness shows up
in many places: in jazz, in improvisation, in noise.
[…]
We refuse order as the distinction between noise and music, chatter and
knowledge, pain and truth. (Harney and Moten, 2013, p.7; 9)13.
12. [N.T] Palavra que origina do vocábulo víveres. Trata-se de um conjunto de provisões para
comer, de gêneros alimentícios. No sentido católico, viático significa a eucaristia dada aos
enfermos.
13. [N.T.]. “O apelo é sempre um apelo à des-ordem e essa desordem ou selvageria aparece em muitos
lugares: no jazz, na improvisação, no barulho [...] Recusamos a ordem como distinção entre barulho e
música, tagarelice e conhecimento, dor e verdade.” Livre tradução. Conforme a autora manteve no
corpo do texto a citação na língua original das obras que ainda não possuem tradução para o
francês, procedemos da mesma forma, mantendo o texto original no corpo e realizando a tra-
dução para o português nas notas de rodapé.
14. [N.A] “There is a wild beyond to the structures we inhabit and that inhabit us” (Halbers-
tam, 2013 p. 7) [N.T] Há um além selvagem das estruturas que habitamos e que nos habitam.
— 189 —
Thrown together touching each other we were denied all sentiment, denied
all the things that were supposed to produce sentiment, family, nation, lan-
guage, religion, place, home. Though forced to touch and be touched, to sen-
se and be sensed in that space of no space, though refused sentiment, history
and home, we feel (for) each other. (Harvey & Moten, 2013, p. 98)16.
— 190 —
18. [N.T.] “Sentir o outro é não-mediato, imediatamente social, entre nós, coisa nossa, [...] Hapticality
[tatilidade], o jeito próprio do undercommons [subcomuns], a interioridade do sentimento, a sensação de
que o que está por vir está aqui. Hapticality [tatilidade], a capacidade de sentir através dos outros, de os
outros sentirem através de você, de você senti-los sentindo você, essa sensação de partida não é regulada,
pelo menos não com sucesso, por um estado, uma religião, um povo, um império , um pedaço de terra,
um totem (...)Essa é a sensação de que nenhum indivíduo pode remanescer em si e nenhum estado pode
permanecer. Essa é a sensação que podemos chamar de hapticality [tatilidade]”. Livre Tradução.
— 191 —
19. [N.T] “O que significaria parar esse mecanismo crítico por um momento? (...) Forjar uma lingua-
gem da associação tão robusta e refinada quanto nossa retórica de distanciamento? No mínimo, exigiria
que tratássemos os textos não como objetos a serem investigados, mas como co-fatores que fazem as coisas
acontecerem, não apenas como questões de fato, mas também como questões de interesse.O que é necessá-
rio em suma é uma política de relação em vez de negação, de mediação em vez de cooptação, de aliança e
assembleia em vez de crítica alienada”. Livre tradução.
20. Richard Kearney, “What is Carnal Hermeneutics?” New Literary History, vol. 45, 2015, p.
99-124.
— 192 —
21. A respeito da fugitividade compreendida como característica primeira da democracia, ver a obra
seminal Sheldon S. Wolin, « Fugitive Democracy », Constellations, vol. 1, no. 1, 1994, p. 11-25.
22. Estas são as famosas palavras de Victor Hugo, retomando o período 1830-1843, em Les Con-
templations. Et sur l’Académie, aïeule et douairière,/ Cachant sous ses jupons les tropes effarés,/
Et sur les bataillons d’alexandrins carrés,/ Je fis souffler un vent révolutionnaire./ Je mis un bon-
net rouge au vieux dictionnaire./ Plus de mot sénateur ! plus de mot roturier !/ Je fis une tempête
au fond de l’encrier,/ Et je mêlai, parmi les ombres débordées,/ Au peuple noir des mots l’essaim
blanc des idées » Victor Hugo, « Réponse à un acte d’accusation », Les Contemplations, Livre pre-
mier (« Autrefois, 1830-1843), VII, 1856. [N.T] E na Academia, avó e viúva,/ Escondendo os tropos
arlamantes sob suas anáguas,/ E nos batalhões de Alexandrinos quadrados,/ Eu soprei um vento revolucio-
nário./ Coloquei um boné vermelho no dicionário antigo./ Sem mais palavra senador! Nenhuma palavra
mais homens do povo!/ Eu fiz uma tempestade no fundo do tinteiro,/ E eu me misturei, entre as sombras
oprimidas,/ Para os negros de palavras, o enxame branco de ideias. Livre tradução.
23. Sociólogos, juristas e historiadores da história dos Estados Unidos e da França trabalharam
desde a virada do século para desafiar o pressuposto empírico e normativo de que a democracia
— 193 —
— 194 —
ocorrência. [N.T] Na edição brasileira: “Daqui em diante ordeno a mim mesmo o fim de limites e
linhas imaginárias,/ Indo para onde me apraz, sou meu próprio senhor, total e absoluto,/ Escutando os
outros, pensando bem no que dizem,/ Parando, procurando, recebendo, contemplando,/ Gentilmente,
mas com desejo inegável, despindo-me de tudo que pudesse me parar”. Whitman, Canção da Estrada
Aberta, Folhas de Relva, 2011, p. 135.
25. [N.T.] Referência à obra de Horacio Ars Poetica ou A Arte Poética que trata da arte de escre-
ver poesia.
26. As ligações de Whitman com o racialismo de sua época e a luta abolicionista são comple-
xos; os praticantes da “crítica”, no sentido de Felski, mostraram como o texto é atravessado de
falhas em sua lógica de emancipação. Em seu panfleto de 1856, nunca publicado durante sua
vida, Whitman, como os outros Free Soilers, se opôs ao Fugitive Slave Act de 1850, mas o fez
em benefício dos brancos (“on account of the whites”) , devendo a escravidão ser “abolida de
seus interesses”, a fim de lhes preservar os empregos devidamente remunerados (Complete
Poetry and Collected Prose, 1982, p. 1321). Além disso, a posição de Whitman sobre a questão
do direito de voto dos afro-americanos é igualmente muito confusa: se ele apela para que os
votos tenham “a mais ampla abertura” do sufrágio (“the widest opening of the doors,” - Com-
plete Prose Works, 1892, p. 205), porém, ele suprime essa passagem de seu texto Democratic Vis-
tas. Em particular, conferir: George Hutchinson & David Drews, “Racial Attitudes” (https://
whitmanarchive.org/criticism/current/encyclopedia/entry_44.html) et Ivy G. Wilson, ed.,
Whitman Noir : Black America and the Good Gray Poet, Iowa City: University of Iowa Press, 2014.
— 195 —
27. [N.T.] Na edição brasileira: Allons! A estrada está diante de nós!/ Ela é segura – já passei por ela
– meus pés já passaram por ela – não demore!/Deixe o papel sobre a mesa sem recado e o livro na estante
sem abri-lo!/ Deixe as ferramentas na caixa de ferramentas! Deixe o dinheiro na carteira!/ Deixa a
escola sem frequentá-la! Não ligue para os gritos do professor!/ Deixe o pastor pregando em seu púlpito!
Deixe o advogado apelando na corte e o juiz expondo a lei (Canção da Estrada Aberta, Folhas de Relva,
2011, p. 140).
28. A primeira edição do Leaves of Grass, de 1855, foi publicada por conta do autor, sem a auto-
rização de uma editora para a sua impressão. Sendo o poeta, aprendiz de tipógrafo na juventu-
de, ele se permitiu alinhar, ou melhor, desalinhar as palavras e os modelos de página.
— 196 —
29. [N.T] Na edição brasileira: Amantes das calmarias dos mares e das tempestades dos mares,/ Ma-
rinheiros de muitos navios, andarilhos de muitas milhas, / Habitués de muitos países distantes, habitués
das casas mais distantes,/ Que confiam em homens e mulheres, observam cidades, trabalham solitários,/
Que param e contemplam ramo, botões, conchas marinhas,/ Que dançam nas/ festas de casamento,
beijam as noivas, ajudam com delicadeza as crianças, carregam as crianças,/ Que são soldados nas
revoltas, ficam de pé nas covas abertas, depositam o caixão,/ Que viajam consecutivas estações, anos
afora, os anos curiosos que emergem uns depois dos outros,/ Que vão acompanhados de suas próprias e
diversas fases,/ Que andam à frente de seus latentes e irrealizados dias de criança (Whitman, Canção
da estrada aberta, Folhas de relva, 2011, p. 138).
— 197 —
30. [N.T] Na edição brasileira: “Uma criança diz o que é grama? trazendo-as para mim com as mãos
cheias;/ Como posso responder para a criança? Eu não sei mais do que ela” (Whitman, Canção de
mim mesmo, Folhas de relva, 2011, p. 48).
31. [N.T] Na edição brasileira: “Acho que pode ser a bandeira da minha disposição, tremulando de seu
verde-esperança./ Ou acho que é um lenço de Deus, [...]/ Ou acho que a própria grama é uma criança,
o bebê produzido da vegetação,/ Ou acho que é um hieróglifo uniforme” (Whitman, Canção de mim
mesmo, Folhas de relva, 2011, p. 48)
— 198 —
32. “I too am not a bit tamed…. I too am untranslatable, / I sound my barbaric yawp over the
roofs of the world (Leaves of Grass 1855, p. 55). [Sou também nem um pouco domável, sou também
intraduzível,/É meu berro cheio de fúria o que lanço pelos telhados do mundo (Canção de mim mes-
mo, Folhas de Relva, 2011, p. 89)].
33. Álvaro de Campos, Ode maritime et autres poèmes, trad. D. Touati et Michel Chandeigne,
Paris, Orphée La Différence, 1990, p. 126-127.
34. [N.T.] Grifos do tradutor.
— 199 —
From this hour I ordain myself loosed of limits and imaginary lines,
Going where I list, my own master total and absolute,
Listening to others, considering well what they say, (Leaves of Grass 1856, p. 226,
grifo meu)
— 200 —
37. Ver Peter Coviello: “Intimate Nationality : Anonymity and Attachment in Whitman” Ame-
rican Literature 73. 1 (March 2001): 85-119. “What if the language of racial intimacy is, in fact,
complicated, entangled, and perhaps finally overruled by a rival model of intimacy and attach-
ment?” [N.T] E se a linguagem da intimidade racial for, de fato, complicada, emaranhada e talvez final-
mente dominada por um modelo rival de intimidade e apego?”, pergunta Coviello (2001, p. 99). Tra-
dução livre. “[I]t is difficult not to read sexuality as a counternarrative to the racial nationalism
Whitman sometimes endorses, since sexuality seems most intensely meaningful to him when
it expresses a nearly boundless human capacity for relation to others, for affiliation”. [N.T] É
difícil não ler a sexualidade como uma contra-narrativa ao nacionalismo racial que Whitman às vezes
endossa, uma vez que a sexualidade parece mais intensamente significativa para ele quando expressa
uma capacidade humana quase ilimitada de relação com os outros, de afiliação (p.100)”.
38. Erica Fretwell, « Haptic Feelings », ed. Matt Cohen, The New Walt Whitman Studies, Cam-
bridge: Cambridge UP, 2020, p. 144-160.
39. A expressão retorna incessantemente em Leaves of Grass, desde a primeria edição.
— 201 —
40. [N.T] “O amor de Whitman pela América [...] apenas supera seu desprezo mordaz pelo estado, por
suas instituições e por seus agentes [...]. Ser propriamente americano é, assim, como Whitman o concebe,
sentir-se relacionado, de uma forma bastante íntima, a um mundo de pessoas não próximas ou mesmo
conhecidas por si mesmas. [...] e dessa crença brota sua visão utópica de uma América tornada coerente
não pelo Estado, mas pelos laços apaixonados que unem seus distantes cidadãos”. Livre tradução.
41. “Whitman cannot too often repeat that the nation is an entity not of institutions and abs-
tract structures but of relation: to talk of ‘America’ is to talk of the bonds of ‘beautiful and sane
affection of man for man’ that ‘effectually weld’ a dispersed and mutually anonymous citizenry.
The ‘real America’ is thus not to be found in the government, because governments deal only in
proclamations and strictures, to which one’s expected relation is that of allegiance or, more poin-
tedly, obedience” (Coviello, 2001, p. 87). [N.T] “Whitman não pode repetir muitas vezes que a
nação é uma entidade, não de instituições e restrições abstratas, mas de relação: falar da ‘América’
é falar dos laços de ‘bela e sã afeição do homem pelo homem’ que ‘efetivamente unem’ cidadãos
dispersos e mutuamente anônimos. A ‘verdadeira América’, portanto, não pode ser encontrada
no governo, porque os governos lidam apenas com proclamações e restrições, às quais a relação
esperada é de fidelidade ou, mais claramente, obediência” Livre tradução.
42. Citado em Wendy Brown, States of Injury: Power and Freedom in Late Modernity, Princeton:
Princeton UP, 1995, p. 166.
— 202 —
43. Michel Foucault, « Leçon du 31 janvier 1979 », Naissance de la biopolitique. Cours au Collège
de France (1978-1970). Edição feita sob a direção de François Ewald e Alessandro Fontana, por
Michel Senellart. Paris : Gallimard/Seuil, 2004, p. 79.
— 203 —
44. [N.T] Na edição brasileira: “Ouvi aquilo que fui acusado, de querer destruir as instituições,/ Mas,
na realidade, não sou nem a favor nem contra as instituições,/ (O que eu teria em comum com elas? E o
que ganharia com sua destruição?)/ Apenas fundarei na Mannahatta e em todas as cidades desses Esta-
dos, do interior e do litoral,/ E em todos os campos e bosques e sobre todo barco pequeno ou grande que
singrar as águas,/ Sem edifícios, regras, fiadores ou qualquer discussão,/ A instituição do querido amor
dos camaradas” (Whitman, Cálamo, Folhas de Relva, 2011, p. 118).
— 204 —
45. Em 1857, depois de ter publicado duas edições de Leaves of Grass, Whitman retoma, por
exemplo, sua função de editor em período integral no Brooklyn Daily Times, depois de um inter-
valo de nove anos. A respeito do Whitman jornalista, ver, por exemplo: Douglas A. Noverr, et
Jason Stacy, eds. Walt Whitman’s Selected Journalism. Iowa City: University of Iowa Press, 2015.
Sobre Whitman reformador e ativista ver: Malcolm Andrews, “Walt Whitman and the Ameri-
can City,” The American City: Literary and Cultural Perspectives. Ed. Graham Clarke. New York:
St. Martin’s, 1988, p. 179–197; Thomas Brasher, Whitman as Editor of the Brooklyn Daily Eagle.
Detroit: Wayne State UP, 1970; Mark Bauerlein, “Whitman and the City,” J. R. LeMaster and
Donald D. Kummings, eds., Walt Whitman: An Encyclopedia, New York: Garland, 1998, p. 121-
124 ; Dennis K. Renner, “Brooklyn Daily Times,” J. R. LeMaster and Donald D. Kummings,
eds., Walt Whitman: An Encyclopedia, New York: Garland, 1998, p. 81-82; M. Wynn Thomas, “La-
bor and Laborers” Donald D. Cummings, A Companion to Walt Whitman, Wiley, 2008, p. 60-75.
— 205 —
Frente:
Citizens took by mutual agreement from the Jamaica turnpike Co the
charge and keeping of the Fulton st from the ferry up to sands street, and
made side-walks and pavement]46.
Verso:
From the tips of his fingers
from the breaths of his lungs
from the sparkle of his eyes,
from the odor of his body
[cut away]47
46. Whitman Archive ID: loc.05704. [N.T] “Frente: Os cidadãos assumiram, de comum acordo com
a Jamaica Turnpike Co., a carga e a manutenção do Fulton st desde a balsa até a Sands Street, e fizeram
calçadas e ruas”. Livre tradução.
47. Whitman Archive ID: loc.05705. [N.T] “Verso: Pelas pontas dos dedos/ da respiração de seus
pulmões/ do brilho de seus olhos,/ do odor de seu corpo [cortar]” Tradução livre.
— 206 —
48. Trata-se da seção « In Whitman’s Hand » do site Walt Whitman Archive. (https://whitma-
narchive.org/manuscripts/transcriptions/index.html)
49. [N.T.] Grifo do tradutor.
— 207 —
50. [N.T] Na edição brasileira: Selvagem amigável e leve, quem é ele? [...]/ Para onde quer que ele
vá, homens e mulheres o aceitam e desejam,/ Desejam que ele goste deles, que os toque, que fale com eles,
que fique com eles,./ Comportamento tão sem lei quanto o dos flocos de neve, palavras simples como a/
grama, cabeça despenteada, sorridente e ingênuo,/ Passos lentos, feiões comuns, modos comuns e ema-
nações,/ Em novas formas eles descem da ponta de seus dedos,/ Flutuam com o odor de seu corpo ou seu
hálito e voam de um único olhar de seus olhos (Canção de mim mesmo, Folhas de relva, 2011, p. 77).
— 208 —
51. [N.T] Meus amantes me sufocam,/ Tumultuando meus lábios, densos nos poros da minha
pele, / Me empurrando pelos salões e pelas ruas, nus chegando à noite, (Canção de mim mesmo,
Folhas de Relva, p. 84,)
— 209 —
Frente53:
I am that foolish half grown ^angry boy, fallen asleep,
The tears of foolish passion yet undried
upon my cheeks.
Years with all their events pass for me,
Some are spent in travel—some in the hun
52. Em um editorial do Brooklyn Daily Eagle datado de 16 de Agosto de 1847, Whitman se or-
gulha, por exemplo, dos méritos de “Myrtle Avenue”: “This wide and extended thoroughfare
seems likely to become one of the most business places in the city of Brooklyn […] It is re-
gulated, paved, lighted and pumped, to the “head of the pavement” … (ênfase do original) Cf.
https://bklyn.newspapers.com/image/50252008/>). [N.T]. “Esta ampla e extensa via parece
vir a ser um dos locais mais comerciais da cidade do Brooklyn […] É regulada, pavimentada,
iluminada e equipadas com bombas d’água, até ao ‘começo do passeio’”. Tradução livre.
53. [N.A]. Whitman Archive ID: duk.00027. [N.T.]. Frente: Eu sou aquele tolo meio crescido menino
zangado, adormecido,/ As lágrimas da paixão tola ainda não secadas minhas bochechas./ Anos com to-
dos os seus eventos passam para mim,/ Alguns são gastos em viagens, alguns em títulos/ usual caça para
posterior fortuna./ Eu passo por viagens e fortunas? de quarenta e trinta/ anos, e envelhecer,/ Cada qual
em sua devida ordem vem e vai,/ E então uma mensagem aparece para mim]. Livre tradução.
— 210 —
54. [N.A] Whitman Archive ID: duk.00885. [N.T.] Imagem extraída do site Walt Whitman Archi-
ve. [Legislação municipal, convida exemplos de em um lugar alto, é sempre inclinada a ser intrometida, e
a sempre multiplica ordenanças, restrin[indo] e o melhor governo . Eu recomento a inteira abolição do sis-
tema todo inteiro de licenças ou permissões especiais para qualquer negócio, qualquer não importa qual
seja. Qualquer (O controle do governo municipal tem sobre as operações comprando operações comerciais
dos cidadãos deve ser feito por leis gerais, destinadas igualmente a todos, e não leis especiais, dando a um
homem ou a um conjunto de homens o privilégio de participar em qualquer trabalho, o qual está proibido
para o resto deles) –(Cada homem e mulher tem o direito legal, livre de qualquer tributo ou licença espe-
ciais para se envolver em algum passatempo ou negócio qualquer, sem gratuidade ou licença especial; e
responsável mais tarde as autoridade por qualquer negligência dele ou dela – o carroceiro ou o motorista,
por exemplo, quando ele obstrui a via pública – uma física para [qualquer?] grave injúria ao paciente – o
dono da taverna pelos hábito de manter incômodos habituais ou violação das regras de urbanidade do
bairro]. Livre tradução.
55. “A distinctive and powerful governmental tradition devoted in theory and practice to the
vision of a well-regulated society dominated US social and economic policymaking from 1787
to 1877. […] that tradition matured into a full-fledged science of government by midcentury.
At the heart of the well-regulated society was a plethora of bylaws, ordinances, statutes, and
— 211 —
common law restrictions regulating nearly every aspect of early American economy and so-
ciety, from Sunday observance to the carting of offal. These laws—the work of mayors, com-
mon councils, state legislators, town and country officers, and powerful state and local jud-
ges—comprise a remarkable and previously neglected record of governmental aspiration and
practice.” (William J. Novak, The People’s Welfare: Law and Regulation in Nineteenth-Century Ame-
rica, Chapel Hill: University of North Carolina Press, 1996, p. 1)
— 212 —
— 213 —
We believe the ulterior object of political and all other government, (ha-
ving, of course, provided for the police, the safety of life, property, and for the
basic statute and common law, and their administration, always first in order,)
to be among the rest, not merely to rule, to repress disorder, &c., but to
develop, to open up to cultivation, to encourage the possibilities of all
beneficent and manly outcroppage, and of that aspiration for indepen-
dence, and the pride and self-respect latent in all characters. (Democratic
Vistas, p. 218; grifo nosso)
56. [N.A] Walt Whitman, « Democratic Vistas » [1871] Complete Prose Works, Philadelphia: Da-
vid McKay, 1892, p. 221. [N.T] “Alguém digno de ser chamado de estadista no Velho Mundo, devo di-
zer, entre os estudantes avançados, especialistas ou homens com algum cérebro, não está debatendo, hoje,
se seria o caso de conservar, voltar atrás e monarquizar, ou simplesmente olhar para frente e democratizar
- mas como, e em que grau e parte, democratizar com mais prudência”. Livre tradução.
— 214 —
— 215 —
Referências:
ANDREWS, M. Walt Whitman and the American City. In: CLARKE, G (ed). The Ameri-
can City: Literary and Cultural Perspectives. New York: St. Martin’s, 1988, p. 179–197.
BARTHES, R. O Neutro: anotações e aulas ministradas no Collège de France (1977-78), tradu-
ção Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2003 - (Coleção Roland Barthes)
____________. Roland Barthes, Le Neutre : Cours au Collège de France (1977-78), Th.
Clerc (éd.), Paris, Seuil/Imec, 2002.
BAUERLEIN, M. Whitman and the City. In: LEMASTER, J. R.; KUMMINGS, D. D.
(eds.). Walt Whitman: An Encyclopedia. New York: Garland, 1998, p. 121-124.
BRASHER, T. Whitman as Editor of the Brooklyn Daily Eagle. Detroit: Wayne State
UP, 1970;
BROWN, W. States of Injury: Power and Freedom in Late Modernity. Princeton: Prince-
ton UP, 1995.
CAMPOS, Á. Ode maritime et autres poèmes. Trad. D. Touati et Michel Chandeigne.
Paris, Orphée La Différence, 1990.
57. Donna J. Haraway, Staying with the Trouble: Making Kin in the Chthulucene, Durham: Duke
UP, 2016.
— 216 —
— 217 —
— 218 —
Introdução
O que queremos alcançar com os estudos críticos do direito? O que a
critica torna possível? Pode parecer uma pergunta ingênua, mas vale
a pena refletir sobre ela. O ato de criticar é realizado, mas o propósi-
to é realmente considerado? Quem são nossos inimigos? Esta é certa-
mente também uma questão fundamental para qualquer crítica, pois
a crítica nasce de um encontro com um inimigo que vale a pena ser
combatido, ou seja, de um encontro com um verdadeiro problema1.
Contudo, existem tantas teorias críticas sobre o direito que emergiram
no mundo acadêmico nos últimos anos2, que perdemos de vista essas
indagações óbvias.
Nessas breves reflexões, não temos como objetivo fazer um juízo
de valor sobre as teorias críticas que permeiam os estudos jurídicos,
mas o que esses diferentes aportes teóricos tem em comum é pensar
a lei e suas operações dentro de uma complexa relação com as ques-
tões políticas, sociais e econômicas que nos rodeia. Assim, a lei é apre-
sentada tanto como uma extensão do jogo do poder político quanto
1. Referência ao conceito de falso problema desenvolvido por Gilles Deleuze. Em termos ge-
rais, falso problema é aquele que só se afirma negando.
2. Seria um erro dizer que existe um movimento homogêneo do que se entende por estudos
críticos do direito, que corresponde a tradução da expressão em inglês critical legal thinking,
mas me refiro sobretudo ao movimento defende uma interpretação politicamente engajada do
direito, em oposição ao positivismo jurídico.
— 219 —
3. Ver por exemplo: Fitzpatrick, Peter. Law as resistance: Modernism, legalism, imperialism.
Farnham: Ashgate, 2008; Golder, Ben, and Peter Fitzpatrick. Foucault’s law. London: Routled-
ge-Cavendish, 2009; Matthew Stone, , Illan rua Wall, and Costas Douzinas. New critical legal
thinking: Law and the Political. Taylor & Francis Group, 2012.
— 220 —
4. Deleuze, Gilles. 1992. Cinema 1: The movement-image (trans: Tomlinson, H. and B. Hab-
berjam).
London: The Athlone Press, p. 12.
5. Foucault, Michel. 2000. Essential works of Foucault 1954–1984: Power (trans: Hurley, R.
et al.).
London: Penguin Books; Deleuze, Gilles. 1995. Postscript on control societies. In Negotiations
(trans: Joughin, M.). New York: Columbia University Press.
6. ROUVROY, A. Data Without (Any)Body? Algorithmic governmentality as hyper-disadjoint-
ment and the role of Law as technical organ. General Organology Conference, University of
Kent, Canterbury, Reino Unido, nov. 2014; ROUVROY, A.; BERNS, T. Gouvernementalité algo-
rithmique et perspectives d’émancipation: Le disparate comme condition d’individuation par la
relation ? Réseaux, v. 1, n. 177, p. 163-196, 2013.
— 221 —
— 222 —
7. Foucault, M., Security, Territory and Population, lesson of 18 January 1978. Edited by Mi-
chel Senellart. General Editors: François Ewald and Alessandro Fontana. Translation Graham
Burchell. UK: Palgrave: macmillan, 2007 p. 51[tradução livre]
8. Foucault, M., Security, Territory and Population, lesson of 18 January 1978. Edited by Mi-
chel Senellart. General Editors: François Ewald and Alessandro Fontana. Translation Graham
Burchell. UK: Palgrave: macmillan, 2007 Na forma como Foucault entende o evento: ”Événe-
ment: il faut entendre par là non pas une décision, un traité, un règne, ou une bataille, mais un
rapport de forces qui s’inverse, un pouvoir confisqué, un vocabulaire repris et retourné contre
ses utilisateurs, une domination qui s’affaiblit, se détend, s’empoisonne elle-même, une autre
qui fait son entrée, masquée. Les forces qui sont en jeu dans l’histoire n’obéissent ni à une
destination ni à une mécanique, mais bien au hasard de la lutte”, Foucault, M., Dits et Écrits II,
1976-1988, Gallimard, Paris, 1996. p. 148.
— 223 —
9. Foucault, M., Security, Territory and Population, lesson of 18 January 1978. Edited by Mi-
chel Senellart. General Editors: François Ewald and Alessandro Fontana. Translation Graham
Burchell. UK: Palgrave: macmillan, 2007 p. 141
10. Deleuze, Gilles. 1992 .“Post-Scriptum. Sobre as sociedades de controle”. In:Conversações:
1972-1990. Rio de Janeiro: Ed. 34
— 224 —
11. Guattari, F., La révolution moléculaire, Recherches, Paris, 1977; Lazzarato, M., Le «pluralisme
sémiotique» et le nouveau gouvernement des signes. Hommage à Félix Guattari, EIPCP, 2006, http://
eipcp.net/transversal/0107/lazzarato/fr .
— 225 —
12. Moore, Nathan (2013) Diagramming control. In: Rawes, P. (ed.) Relational Architectural Eco-
logies: Architecture, Nature and Subjectivity. Abingdon, UK: Routledge, p. 63. [tradução livre].
— 226 —
13. Moore, Nathan. Proposta de manuscrito ainda não publicada. 2019 [tradução livre]
14. Moore, Nathan. Proposta de manuscrito ainda não publicada. 2019, [tradução livre].
15. Deleuze, Gilles. 1992 .“Post-Scriptum. Sobre as sociedades de controle”. In:Conversações:
1972-1990. Rio de Janeiro: Ed. 34, p. 219-226.
16. Moore, Nathan. Proposta de manuscrito ainda não publicada. 2019 [tradução livre]
17. Deleuze, Gilles. 1992. “Post-Scriptum. Sobre as sociedades de controle” (...), p. 220.
— 227 —
IMAGEM DO PENSAMENTO
A imagem do pensamento19 em que vivemos funciona como um meca-
nismo de frustrar o próprio pensamento. Tanto que acreditamos que a
18. A governança algorítmica, expressão cunhada pela filósofa do direito Antoinette Rouvroy,
representa a situação atual de intensificação e radicalização da biopolítica e das sociedades de
controle. Trata-se de uma nova forma de governar, orientada a antecipar, modular e selecio-
nar as oportunidades e ações futuras dos indivíduos, por meio do monitoramento de dados
e meta-dados de seus “perfis” intrapessoais e, de forma mais geral, por meio de dispositivos
digitais informatizados de captação e coleta desses dados que formam o material com o qual as
redes digitais se organizam. Rouvroy desenvolve uma compreensão mais profunda a respeito
do conceito de “dividual”, no sentido de uma reativação da crítica deleuziana das sociedades de
controle. É uma compreensão mais contemporânea das sociedades de controle de hoje que vai
além da análise de Deleuze, na qual estamos testemunhando uma digitalização do mundo e do
indivíduo, o que novamente modifica o espaço-tempo nos atos de poder. Como mencionado,
trata-se, em particular, da redução da espacialidade e temporalidade a meros dados e códigos,
provocando a intensificação dos dispositivos de segurança e da escravidão maquínica.
19. O termo “imagem” é usado da forma como Deleuze usa em Diferença e Repetição, onde ele
desenvolve o conceito de imagem do pensamento. A imagem do pensamento pode ser pensada
como um conceito preocupado com o surgimento de imagens especificas que surgem dentro de
determinadas circunstâncias. Ou seja, as imagens fazem parte de um processo de desenvolvimento,
transformação e complicação em torno da construção do modo como pensamos.
— 228 —
20. Como Mark Fisher escreveu parece mais fácil imaginar o fim do mundo, do que o fim
do capitalismo. Em: Fisher, Mark. 2009. Capitalist realism: Is there no alternative?. Winchester:
Zero Books.
21. Fisher, Mark. 2009. Capitalist realism: Is there no alternative?. Winchester: Zero Books, p. 16
— 229 —
22. Massumi, Brian. 2005. A shock to thought. Expression after Deleuze and Guattari. Routledge:
London. p. 103. [Tradução livre].
23. Da Costa Paes, L. Rethinking Critique: Becoming Clinician. Law Critique 30, 265–289
(2019), p.8
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ESGOTAMENTO DA CRÍTICA
Se insistirmos em enquadrar a crítica, ou a imagem do pensamento,
em referência a um princípio específico, acabamos perdendo de vista
os mecanismos de poder desestabilizadores que operam no mundo
24. Isabelle Stengers, Thinking with Whitehead: A Free and Wild Creation of Concepts 16–18
(Michael Chase trans., 2011), pp. 77-78
25. Isabelle Stengers, Thinking with Whitehead: A Free and Wild Creation of Concepts 16–18
(Michael Chase trans., 2011), pp. 77-78
— 231 —
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29. “Nietzsche reinvents a total critique which is at the same time a creation, a total positivity”,
Deleuze, Gilles. Capitalism and schizofrenia. In Desert islands and other texts (1953–1974) (trans:
Taormina, M.), ed. David Lapoujade. Cambridge: MIT Press, 2004. p. 139
— 233 —
30. Deleuze, Gilles. 2018. Diferença e Repetição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, p. 136.
31. Beradi, Franco Bifo. After the Future. Gary Genosko & Nichols Thoburn eds., Arianna
Bove et al. trans., 2011, p. 109. [Tradução livre].
32. De acordo com Berardi: “O semiocapitalismo é o modo de produção em que a acumulação
de capital se faz essencialmente por meio da produção e acumulação de signos: bens imateriais
— 234 —
que atuam na mente coletiva, na atenção, na imaginação e no psiquismo social. Graças à tec-
nologia eletrônica, a produção passa a ser elaboração e circulação de signos. Isso acarreta duas
consequências importantes: que as leis da economia acabem influenciando o equilíbrio afetivo
e psíquico da sociedade e, por outro lado, que o equilíbrio psíquico e afetivo que se espalha na
sociedade acabe atuando por sua vez sobre a economia.” [tradução livre] https://www.lavaca.
org/notas/quien-es-y-como-piensa-bifo/ Acesso em 15 de outubro de 2020.
33. Nesse sentido, ver: Sherwin, Richard k. Visualizing Law in the Age of the Digital Baroque:
Arabesques and Entanglements. Front Cover. Richard K.. Routledge, 2011
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1. Para uma introdução ao debate aceleranionista passando por autores como Nick Land,
Mark Fisher, Nick Srnicek e Alex Williams, etc, ver meu artigo Ciborgues sonham com britadei-
ras?, publicado na revista Lugar Comum, n. 50.
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“Ah”, disse o rato, “o mundo torna-se a cada dia mais estreito. A princípio
era tão vasto que me dava medo, eu continuava correndo e me sentia fe-
liz com o fato de que finalmente via à distância, à direita e à esquerda, as
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INTRODUÇÃO
A noção de democracia não é das mais conhecidas no pensamento de
Camus. Parece existir, nas recepções de sua obra, muito mais espaço para
noções como absurdo e revolta. Isso transparece, a título de exemplo, na
iniciativa relativamente comum de fazer referência à sua filosofia sob o
rótulo absurdismo. Porém, um olhar mais atento pode revelar um outro
quadro. Embora o tema da democracia não receba tratamento sistemá-
tico na obra do autor (característica esta, diga-se de passagem, frequente
em seus escritos), a leitura cuidadosa de seus textos revela que o tópico da
democracia é sim uma preocupação importante do filósofo. Desse modo,
servindo-nos de alguns de seus artigos jornalísticos, bem como do ensaio
O Homem revoltado, desejamos neste artigo esboçar uma noção de demo-
cracia a partir do pensamento do autor. Um dos principais objetivos des-
ta empreitada é apontar que – ao invés de conceber a democracia como
mero regime político formal (dentre outros), com previsões abstratas de
liberdade e igualdade, checks and balances, etc. – os escritos do filósofo per-
mitem ir além: possibilitam pensar a democracia como processo vibran-
te, inacabado, experimental e, principalmente, em constante abertura a
novas intervenções sociais antagônicas. Dito isso, nosso itinerário aqui
será o seguinte: primeiro, apresentaremos algumas ideias do autor sobre
a democracia publicadas em seus textos do pós-guerra; em seguida, ten-
taremos produzir uma articulação entre tais ideias e a noção de revolta; e,
por fim, apresentaremos uma conclusão ao artigo.
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1. Jornal do qual Camus intensamente participou entre 1944 e 1947, inclusive como editor-che-
fe. Combat funcionou na clandestinidade durante a Ocupação, servindo de importante veículo
da Resistência francesa.
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2. Em nosso artigo, exceto quando indicado de forma diversa, todas as traduções são nossas.
— 253 —
Sabemos hoje que não há mais ilhas e que as fronteiras são fúteis. Nós
sabemos que em um mundo em constante aceleração, onde se atravessa o
Atlântico em menos de um dia, onde Moscou fala a Washington em pou-
cas horas, somos forçados à solidariedade ou à cumplicidade, de acordo
com o caso (CAMUS, 1965d, p. 341).
— 254 —
3. Nesse sentido, ver o editorial de Camus de 19 de novembro de 1946 intitulado O século do
medo (CAMUS, 1965h, p. 331).
4. Na conferência A crise do homem, de 1946, Camus alude à necessidade de “descongestionar o
mundo do terror que nele reina e que impede que se pense bem” (CAMUS, 2006, p. 744).
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6. O homem revoltado (1951) é a obra em que Camus se debruça com fôlego sobre o tema. Para
uma articulação interna entre as dimensões da revolta, ver: Folley (2014).
7. “A liberdade mais extrema, a liberdade de matar, não é compatível com as razões da revolta.
A revolta não é, de forma alguma, uma reivindicação de liberdade total. Ao contrário, a revolta
ataca sistematicamente a liberdade total. [...] Longe de reivindicar uma independência geral, o
revoltado quer que se reconheça que a liberdade tem seus limites em qualquer lugar onde se
encontre um ser humano, já que o limite é precisamente o poder de revolta desse ser. [...] O
revoltado exige sem dúvida uma certa liberdade para si mesmo; mas em nenhum caso, se for
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consequente, reivindicará o direito de destruir a existência e a liberdade do outro. Ele não hu-
milha ninguém. A liberdade que reclama, ele a reivindica para todos; a que recusa, ele a proíbe
para todos” (CAMUS, 2005, p. 326-327).
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CONCLUSÃO
As ideias de Camus sobre a democracia (sobretudo, quando articu-
ladas com a noção de revolta) são capazes de inscrever o autor em
uma rica tradição de pensadores do tema. Tradição essa que, ao invés
de conceber a democracia como mero regime político formal (dentre
outros), com previsões abstratas de liberdade e igualdade, checks and
balances, etc., pensa a democracia como processo vibrante, inacaba-
do, experimental e, sobretudo, em permanente abertura a novas in-
tervenções sociais antagônicas (no caso de Camus, a revolta). Ainda
em relação a Camus, tal noção de democracia traz consigo, além do
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1. LECTORES AUSENTES
“Monterroso escribío que tarde o temprano un escritor latino-americano enfren-
ta tres posibles destinos: destierro, encierro o enterro.” (VILA-MATAS, 2018, p.63)
As sombras da caverna de Platão? Opa, isso eu não apostaria, mas até pelo tama-
nho do cogumelo atômico eu me inclinaria pelas sombras. Ou seja, eles estão
olhando para nós, e nós vemos as sombras deles refletidas no fundo da caverna.
Não, estão de costas para nós, olhando para a boca da caverna, porque no ho-
rizonte, bem distante, explodiu uma bomba atômica. (BOLAÑO, 2017, p.67)
Para isso me faltava... me faltavam conhecimentos, e faltavam em todos
os livros que eu havia lido na minha vida. Eu acabava de regressar de uma
viagem de trabalho, estava perplexo olhando as minhas estantes de livros
no escritório. Eu li...Se não tivesse lido...Uma coisa totalmente desconhe-
cida destruía o meu mundo anterior. Era algo que se introduzia, que pene-
trava em você. À margem da sua vontade. (ALEKSIÉVITCH, 2017, p.173)
1. Criado em 1998, na cidade de Rosário, Argentina, o Museu da Memória possibilita o acesso
ao conhecimento e a pesquisa sobre direitos humanos e memória social, destacando aspectos
relativos a última ditadura argentina (1976-1983).
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2. Estratégia narrativa que funciona com um espelho de História Universal da Infâmia e Vidas
Imaginárias, dos escritores Jorge Luiz Borges e Marcel Schwob. Nesse livro, Bolaño constrói
um inventário de autores e obras imaginárias agrupados pelo cânone provocativo da literatura
nazista na América.
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4. AS ABELHAS SABIAM
No impressionante livro de Svletana Aleksievitch (2017), Vozes de Tcher-
nóbil – Crônica do Futuro, a autora revela a impossibilidade de entender o
tempo do desastre: passado ou futuro?
Tchernóbil, foi muito mais além do que qualquer ficção e de todas
as outras tragédias do século XX. Representou um ponto final, o início
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5. À GUISA DE INCONCLUSÕES
Entre as tipificações proposta por Santaella, em um lugar indefinido,
mas sempre atual, o leitor selvagem é o paradigma do nosso tempo.
Filho das ditaduras, catástrofes ambientais, da derrocada da ciência, a
ubiquidade da sua presença ombreia com todas as zonas de exclusão
que compõem suas heranças malditas.
Nossa hipótese neste ensaio foi que os lectores ausentes de Rosário,
os detetives de Bolaño e as vozes de Svetlana são suas marcas fantas-
máticas. Da geração “perdida” à geração “desorientada”, passando pela
longa noite da América-Latina, vemos a mesma capitulação da Histó-
ria. Se o nosso tempo é uma usina gigantesca de distopias, atentemos
para suas epifanias negras e suas novas políticas de escrita. Como afir-
mou Enrique Vila-Matas em seu discurso de recepção do Prêmio Rulfo,
em Guadalajara:
Esa realidade que ya há sucedido, pero aún no se percebe del todo, pero
está aqui ya, entre todos nosotros, sussurra el coro trágico. Y ustedes ah-
ora me van a perdonar, pero lo que dicen las voces de Chernóbil, el gran
coro, es el futuro (VILA-MATAS, 2018, p. 23).
— 277 —
REFERÊNCIAS
ALEKSIEVITCH, Svetlana. Vozes de Tchernóbil. São Paulo: Ed. Cia das Letras, 2017.
BAKTHIN, Mikhail. Problemas da Poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro: Ed. Foren-
se, 2011.
BOLAÑO, Roberto. Os Detetives Selvagens. São Paulo: Ed. Cia das Letras, 2016.
______. O Espírito da Ficção Científica. São Paulo: Ed. Cia das Letras, 2017.
______. A Literatura Nazista na América. São Paulo: Ed. Cia das Letras, 2019.
______. Estrela Distante. São Paulo: Ed. Cia das Letras, 2009.
______. Noturno do Chile. São Paulo: Ed. Cia das Letras, 2009.
______. O Terceiro Reich. São Paulo: Ed. Cia das Letras, 2011.
BORGES, Jorge Luis. História Universal da Infâmia. São Paulo: Ed. Globo, 2001.
DELEUZE, Gilles. Crítica e Clínica. São Paulo: Ed. 34, 2004.
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— 281 —
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— 285 —
— 286 —
REFERÊNCIAS
BOLAÑO, Roberto. 2666. Barcelona: Anagrama, 2004.
HUYSSEN, Andreas. Present Past: Urban Palimpsests and the Politics of Memory.
Stanford University Press, 2003.
______. Culturas do passado-presente. Rio de Janeiro: Contraponto, 2014.
RODRÍGUEZ, Sergio González. Huesos en el desierto. Barcelona: Anagrama, 2006.
WEIZMAN, Eyal; KEENAN, Thomas. Mengele’s Skull: The Advent of a Forensic Aes-
thetics. Berlim: Sternberg Press, 2012.
— 287 —
1. INTRODUÇÃO
O filme Pantera Negra, parte do Marvel Cinematic Universe, ou seja, da re-
construção, no cinema, do universo criado nos comic books da Marvel Co-
mics, tem como premissa a existência de um Estado africano, Wakanda,
rico e tecnologicamente desenvolvido em razão da exploração do me-
tal fictício conhecido como vibranium, isolacionista, para proteger sua
riqueza de outras potências, e super-centralizado em torno da figura
do Pantera Negra, seu rei. No enredo do filme, o rei T’Challa, tem que
enfrentar seu primo, Erik Stevens, também conhecido como Killmonger,
pelo trono de Wakanda. Uma vez conquistado o trono, o objetivo de
Killmonger era distribuir armas feitas de vibranium para afro-descenden-
tes em diversas nações para que eles conseguissem se insurgir contra
seus opressores. T’Challa, depois de muitos percalços, que constituem
o enredo do filme, muda sua postura em relação à política internacio-
nal (e mantém o trono). Wakanda deixa de ser um país isolado e se
integra à comunidade internacional
O filme gerou grande repercussão na sociedade, com o Smithsonian’s
National Museum of African American History and Culture comprando diver-
sos itens usados em sua produção e a ele relacionados por crer que eles
integram de forma mais plena a história da cultura e da identidade negras
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2005 – devemos sempre nos lembrar que a ideia de um protagonismo tedesco na Europa fica
fortemente abalada, em especial após a Guerra dos Trinta Anos, sendo parcialmente recupera-
da só com a ascensão do Segundo Reich).
7. PERKINS, Carl. R. The Alt-Right Has a New Hero and it’s Black Panther. International
Policy Digest, [S.l.], 26 jun. 2017. Disponível em: https://intpolicydigest.org/2017/06/26/
the-alt-right-has-a-new-hero-and-it-s-black-panther/. Também neste sentido: HARWELL,
Drew et al. How white nationalists are trying to co-opt ‘Black Panther’. The Washington
Post, [S.l.], 14 mar. 2018. Disponível em: https://www.washingtonpost.com/news/the-s-
witch/wp/2018/03/14/how-white-nationalists-are-trying-to-co-opt-black-panther/; BER-
KOWITZ, Joe. Desperate Alt-Right Is Trying To Co-Opt Black Panther (Because They’re
Pathetic) . Fast Company, [S.l.], 15 mar. 2018. Disponível em: https://www.fastcompany.
com/40544896/desperate-alt-right-is-trying-to-co-opt-black-panther-because-theyre-pathe-
tic; e ATWELL, Ashleigh Lakieva. Why The Alt-Right Loves ‘Black Panther’. Blavity News,
[S.l.], 14 mar. 2018. Disponível em: https://blavity.com/why-the-alt-right-loves-black-pan-
ther?category1=news.
8. Não é o momento de fazer uma recuperação desta história, mas recomendamos, neste sen-
tido, Mittica (2015).
9. Não damos aqui qualquer sentido qualitativo à noção de povo. Não se trata, nos parece, de
pensar em uma cultura popular em relação a uma cultura erudita, mas simplesmente pensar
em uma imagem suficientemente difundida a ponto de ser conhecida por todos. Schmitt ainda
— 292 —
pontua, neste mesmo sentido, que não é a mera difusão, mas o caráter mítico desta imagem que
permite identifica-la como significativa para o direito e para a política, ou seja, sua capacidade
de mobilizar as massas por ser o pivô de uma narrativa (SCHMITT, 2000, p. 68).
— 293 —
10. É importante também entender as conexões diretas entre o movimento hippie e o roman-
tismo alemão, em especial o movimento neoromântico Wandervogel, tanto em suas vertentes
mais à esquerda do espectro político quanto em suas vertentes mais à direita, justo em razão da
importância do romantismo na trajetória que tracei. Neste sentido, o livro de Williams (2007).
11. “O conceito de subgênero, apesar de não estar bem definido na Academia, é amplamente
utilizado e visa designar um estilo de Heavy Metal que se origina a partir de uma divisão es-
tilística em relação ao próprio Heavy Metal original, como definido holisticamente (em seu
estilo musical, poético, comportamental etc.) pelas bandas fundadoras do estilo (que podem
variar desde a tríade Sabbath – Purple – Zeppelin até o reconhecimento do Sabbath como úni-
co fundador ou mesmo a adesão do Judas Priest ou de outras bandas cronologicamente mais
tardias), ou em relação a outro subgênero. Assim, por exemplo, o Death Metal é um subgênero
do Heavy Metal e o Death Metal Melódico é um subgênero tanto do Heavy Metal quanto do
Death Metal.” (KLAUSNER, 2019, p. 9, nota 1)
— 294 —
2. O HERÓI PRÉ-MODERNO
Em um primeiro momento, tive que definir com qual material traba-
lharia. Excluí, dos estilos literários da Antiguidade ocidental (vez que o
Heavy Metal é um estilo musical que se origina no Ocidente e, mesmo
quando passa para outros ambientes culturais, tende a manter um diá-
logo baseado em topoi essencialmente ocidentais – KLAUSNER, 2019,
p. 140, com base em WEINSTEIN, 2009, p. 282 – 290, e no documen-
tário Global Metal), os cômicos ou os que se desenvolveram a partir da
comicidade, bem como os voltados para a “crítica social”12. Restaram
12. Para fazer esta análise, usei a obra de Otto Maria Carpeaux, História da Literatura Ocidental.
— 295 —
13. Homero é a expressão máxima do que os gregos consideravam como tradição compor-
tamental, educacional e ética a ser transmitida (CARPEAUX, 1959, p. 52; JAEGER, 2010, p.
25, 61 e 66). A partir dos heróis homéricos, e muitas vezes em uma relação bem dúbia com
eles, se definirá tanto a romanitas, a partir da obra virgiliana (COCHRANE, 2012, p. 107-108),
quanto o conceito medieval de cavalaria (Eneias e Heitor são citados expressamente, junto com
Alexandre e César, como modelos da Antiguidade na “história santa da cavalaria” – verbete
Cavalaria por Jean Flori em LE GOFF; SCHMITT (Orgs.), 2017, p. 223 – 224), em relação com
a Cristandade e com o passado pré-greco-romano dos povos que eventualmente vieram a fazer
parte do Império Romano. Para uma leitura ampla das conexões entre estas obras fundadoras
da narrativa heroica no Ocidente, suas precursoras e sucessoras no mundo clássico, medieval
e moderno-contemporâneo, ver KLAUSNER, 2019, e, especialmente para compreender as cir-
cunstâncias socioeconômicas da apreensão destas obras nas sociedades que sucederam as socie-
dades nas quais elas se originaram, p. 52 – 56.
14. A frase em grego significa ser sempre o melhor e destacar-se entre os outros, e foi extraída da Ilía-
da, Canto VI, verso 208. Veio a ser considerada o lema sintetizador do ideal de cavalaria ( JAE-
GER, 2010, p. 28). Há uma conexão linguística que também não pode escapar a esta análise. As
próprias palavras heros e aristos, das quais as expressões acima mencionadas se originam, são de
origem grega, significando, respectivamente, “protetor, defensor” (HERO. In: Online Etymology
Dictionary. Disponível em: https://www.etymonline.com/word/hero#etymonline_v_9195.
Acesso em 24 fev. 2020) – a própria etimologia da palavra, vinculado ao proto-indo-europeu
–ser, que significa proteger, a relaciona a conservar, preservar, reservar etc (que chega ao portu-
guês através de expressões como servare, que em latim significa guardar); os gregos atribuíam
a sua origem sempre à sabedoria e à força de heróis-fundadores, dentre os quais Licurgo, em
Esparta, e Teseu, em Atenas (COCHRANE, 2012, p. 144) – e “excelente, supremo” (BENVE-
NISTE, 1969, p. 373) – o termo aristos, se significa melhor, mais nobre, mais virtuoso, mais co-
rajoso, deriva imediatamente do radical proto-indo-europeu ar-, que significa mais adequ(-ado)
(-ável) (*AR-. In: Online Etymology Dictionary. Disponível em: https://www.etymonline.com/
word/*ar-?ref=etymonline_crossreference. Acesso em 24 fev. 2020); Benveniste afirma que o
vocábulo deriva de ārya, termo com o qual os indo-iranianos designavam a si mesmos enquan-
to homens livres (BENVENISTE, 1969, p. 368), em contraposição aos anāryas, os escravos, os
estrangeiros, os inimigos (idem, p. 369). A relação entre as duas expressões não poderia ser mais
interessante. Nas hierarquizadas sociedades tradicionais, o heros, representante máximo do aris-
tos, é aquele que defende aquilo que governa/pretende governar em razão de sua excelência
(uma análise muito semelhante consta em KLAUSNER, 2019, p. 44).
Já aretè, que partilha do radical ar-, indica excelência, mas também virtude moral, conforme
tradição da tradução da obra aristotélica (ARISTÓTELES, 2014, p. 51, nota 35) que, neste con-
texto, é caracterizada como hexis, hábito, “que remete ao verbo ēchon, ter, no sentido de ter
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16. A aristocracia de sangue é o que conduz, enfim, aos ideais do nacional socialismo. Voegelin é
quem conta esta história, partindo de “estudos especificamente zoológicos, com o Homo euro-
paeus de Lineu, a ideia de Johann Blumenbach de caucasiano, a ideia de Klemm de que, entre as
raças ativas, uma era mais clara e a outra mais escura, o ‘gigante loiro, de cabeça longa e olhos
azuis’ de Gobineau, a raça indo-germânica de Schlegel, o ariano que se põe como inimigo do
semita na obra de Renan, o alemão enquanto tipo biológico de Chamberlain e Woltmann, a
recuperação, por Vacher de Lapouge, do Homo europaeus para associá-lo ao ariano e, por fim,
‘a criação do termo raça nórdica por Joseph Deniker’ (ibid., p. 101); queria-se, associando este
elemento biológico a elementos míticos, associar o alemão aos ‘antigos heróis teutônicos das
sagas islandesas, os Eddas, e o Nibelungenlied como representativos do melhor da humanidade’
(ibid.). Alfred Rosenberg, editor do Völkischer Beobachter, ideólogo da Volkskultur nórdica, teóri-
co racista, anti-semita e anti-católico, era o arauto nazista desta ‘tradição intelectual’” (KLAUS-
NER, 2019, p. 120 – as citações do trecho são de SANDOZ, 2010). Mas podemos seguir a análise
de Foucault, que apresenta o bárbaro como aquele que se opõe ao bom selvagem, e que surge
enquanto imagem da aristocracia francesa em relatos como o de Boulainvilliers (a quem Marc
Bloch associa um discurso germanista nobiliárquico, um “Gobineau antecipado”, e a criação
da ideia de regime feudal como peculiaridade própria do medievo – BLOCH, 1987, p. 11 – 12;
deve-se pensar que o bom selvagem surge como um modelo de novo homem que contesta as cer-
tezas civilizacionais europeias – HAZARD, 1964, p. 28 – 29). Segundo Foucault, o bárbaro é a
personagem da história, da tradição (enquanto o bom selvagem seria uma imagem do Terceiro
Estado e da “ausência de tradição” do poder econômico – FOUCAULT, 2005, p. 231 – 233). A
associação que Bloch faz entre Boulainvilliers e Gobineau e que, passando por Wagner (o gran-
de poeta da tradição do heroísmo teutônico – BOSI, 2013, p. 300), pode se estender até Hitler, não
parece tão absurda quando se segue a linha traçada por Voegelin da ideia nórdica, Se somarmos
a isto a filosofia nietzschiana e sua apreensão errada do código de comportamento aristocrático
(ver ELIAS, 1997, p. 167 e MACINTYRE, 2007, p. 129), que envolve uma complexa troca de
opiniões entre o filósofo e Wagner, conseguimos imaginar uma paisagem que Eco define como
Idade Média da Bárbarie, uma terra de sentimentos crus e fora da lei. Segundo ele, é nesta Idade
Média que vive a personagem Conan, o Bárbaro, do escritor abertamente fascista Robert E.
Howard (POOLE, 2018, p. 199 – 201), e a obra wagneriana (ECO, 1986, p. 129). Trato destes
temas em KLAUSNER, 2019, p. 68.
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17. Ou seja, a aristocracia de sangue também não se confunde com uma classe social, mas se
relaciona com o enrijecimento da classe social nobreza.
18. Esta literatura encontra um espelho teórico na obra de Boulainvilliers citada na nota 16 e
que também celebra a independência e a autonomia do cavaleiro aristocrata.
19. “Amadis representa a última fase de prosificação do ‘roman courtois’”. Mas “Amadis de Gau-
la não morreu; continua as suas aventuras com cavaleiros inimigos, feiticeiros e fadas, em cas-
telos encantados e viagens perigosas, e continua tudo isso no romance policial” (CARPEAUX,
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1961a, p. 398) – na verdade, continua esta tradição de forma muito mais contundente na li-
teratura fantástica atual, seja em O Senhor do Anéis, em Game of Thrones ou na literatura pulp
(KLAUSNER, 2019, p. 67). E sua tradição continuou viva no Barroco. É L’Astrée, ou par plusieurs
histories et sous personnes des bergers et d’autres sont déduits les divers effets de l’Honnête Amitié, de
Honoré D’Urfé a primeira grande obra do estilo. Misturando o Amadis de Gaula, a Diana de Jor-
ge de Montemayor e “diversas teorias pseudocientíficas”, ela prepara “o caminho do romance
heróico-galante do Barroco, nova forma da epopéia aristocrática.” (CARPEAUX, 1961b, p. 564
– 565 e SUMMERS, 2016, posição 493 e ss.; KLAUSNER, 2019, p. 74) Também no primeiro mo-
mento de recuperação de uma tradição folclórica popular (KLAUSNER, 2019, p. 75, com base
em CARPEAUX, 1960, p. 848 – 849). Ambos estes movimentos definirão o caráter do romance
gótico e o romantismo (KLAUSNER, 2019, p. 83 - 84), gerando impacto até hoje (que se pense
nas releituras da personagem Drácula, ou ainda, nas obras de Anne Rice). No entanto, não se
pode esquecer que muito do material lançado em cada uma dessas fases compõe apenas uma
grande lista de genéricos de umas poucas obras influentes que, sem desrespeitar a tradição, a
adaptam para que ela se comunique com novas realidades. Defendi, com base em Praz (1951),
que estes textos todos, para além de um conteúdo propriamente político comunicado através
da sua personagem principal, o herói aristocrático, compunham sempre circunstâncias através do
ajustamento de índices e máquinas abstratas que se organizavam em imagens (cenário, clima,
personagens coadjuvantes – o ambiente reconstruído com fins narrativos, a cosmologia da qual se
falou na introdução, e seu fundamento) que auxiliavam na transmissão deste conteúdo político
reacionário, fosse através da indução do medo, de sentimentos de grandeza e superioridade, da
demonstração da violência e da força bruta – uma estética própria, que perpassa gêneros literá-
rios, a estética do desequilíbrio (KLAUSNER, 2019).
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20. A forma como Schiller absorve o Amadis deriva desta tradição que se desenvolve no Barro-
co, tratada na nota acima.
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21. Baudelaire compara o dandismo (“que nada mais é que o exercício da poesia”) com a regra
monástica mais severa (AGAMBEN, 2012, p. 85). Para ele, para Balzac e para Barbey D’Aure-
villy, todos em maior ou menor grau defensores de propostas políticas reacionárias, o Dandy,
esta personagem poeta, era como um autômato que podia transformar sua própria vida em
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uma vida vivida segundo uma regra (uma forma-de-vida no sentido mais radical da palavra),
ou seja, transformá-la em uma obra de arte, em última instância. O Dandy era o autômato de
si mesmo, no sentido de que ele deveria buscar um meio de ter um absoluto controle sobre
si. Baudelaire crê que o oposto do dandismo é a decomposição para o entendimento científico
ou metafísico, como se pudesse haver uma essência por trás da superfície do ser (ibid., p. 96).
Tudo isso vinha acompanhado de uma profunda rejeição da vida burguesa. Esta poesia “des-
mascara a ideologia humanitária, tornando rigorosamente sua a boutade que Balzac põe nos
lábios de George Brummell: ‘rien ne ressemble à 1’homme moins que l’homme’ [‘nada se pa-
rece menos com um homem do que um homem’). Apollinaire formulou de modo perfeito tal
propósito, escrevendo, em Les peintres cubistes, que ‘avant tout les artistes sont des hommes qui
veulent devenir inhumains’ [‘antes de mais nada, os artistas são homens que querem tornar-se
inumanos’]. O anti-humanismo de Baudelaire, o ‘se faire 1’áme monstrueuse’ [‘tornar a alma
monstruosa’] de Rimbaud, a marionete de Kleist, o ‘c’est un homme ou une pierre ou un arbre’
[‘é um homem ou uma pedra ou uma árvore’] de Lautréamont, o ‘je suis véritablement décom-
posé’ [‘eu estou realmente decomposto’] de Mallarmé, o arabesco de Matisse, que confunde
figura humana e tapeçaria, o ‘meu ardor é sobretudo da ordem dos mortos e dos não-nascidos’
(Klee), ‘nada a ver com o humano’ de Benn, até ao ‘traço madreperolado de um caracol’ de
Montale, e a ‘cabeça de medusa e o Automa’ de Celan, expressam todos a mesma exigência:
‘ainda há figuras para além do humano’!” (ibid., p. 86)
É nesta mesma época que adquire novo folêgo os contos sobre seres inanimados que adquirem
vida, que tem como antecessor imediato E.T.A. Hoffmann, que se inclui na tradição da fantasia
e do gótico citada na nota 19. Freud parte deles para trabalhar o seu conceito de Unheimliche,
ou seja, aquilo que tem o familiar (Heimliche) removido, o estranho. É só aquilo que de alguma
forma remete ao homem que pode ser, de certa forma, horrível ao homem; só aquilo que é
possível de ser percebido enquanto representação – uma representação de familiaridade que,
desprovido de um de seus índices (no caso do autômato, figura principal do desenvolvimento
do conceito), se torna, então, absolutamente estranho ao homem (ibid., p. 88-89). Este é, em
última instância, o objetivo do dandismo, e por isso é exigida a autocracia. O ímpeto de um es-
tado governado pelas massas é sempre a equalização, seja através da compulsão econômica, da
repressão legal ou da violência civil.
Baudelaire foi profundamente reacionário durante toda a sua vida, chegando a afirmar que só
havia três espécies de seres respeitáveis: o padre, o guerreiro e o poeta. O resto todo do mundo
era composto de servos ou escravos, criados para ter profissões, e qualquer democracia era, em
si, fraca e absurda (BAUDELAIRE, 1919, p. 230 – 231 – devemos aqui lembrar da ideia das so-
ciedades tripartites indo-europeias, estruturadas em torno das funções sacerdotais e guerreiras,
sendo as demais funções relegadas a um terceiro estado, dos comuns – neste sentido, KLAUS-
NER, 2019, p. 28, com base em DUMÉZIL, 1988). Sem muita surpresa, vê-se que ele reconhece
Joseph de Maistre (que defende a desconstrução de uma ideia de humanidade universal, não
pensando, no entanto, para um inumano, mas para as nacionalidades) e Edgar Allan Poe como
seus professores (ibid., p. 245). Neste mesmo sentido, Klausner (2019, p. 98).
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22. Poder-se-ia falar dos aspectos psicológicos dessa personagem aristocrática, que são, impres-
sionantemente, os mesmos através do tempo, em especial quanto mais se verifica à soma da
ânsia pela glória, a melancolia, a ideia da superioridade do carisma e o pathos trágico. Fiz uma
análise mais focada na personagem Drácula (KLAUSNER, 2019, p. 85 – 88, com base em PUN-
TER, 1996, p. 22), entendendo-a como sucessora absoluta desta tradição, que, antes de con-
vergir neste anti-herói aristocrático por excelência, culmina no quase vilanesco tirano barroco
(KLAUSNER, 2019, p. 71 – 75, com base em BENJAMIN, 2016). Quando Agamben afirma que
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“[T]oda a poesia de Baudelaire pode ser entendida [...] como uma luta mortal contra a acídia e,
ao mesmo tempo, como uma tentativa de invertê-la em algo positivo”, não se deve descuidar
de lembrar que, como expresso por Benjamin, “[O] príncipe é o paradigma do melancólico”
(ibid., 2016, p. 147) – está enfim concluída a transição da aristocracia de sangue para a aristocracia
de espírito, já contida, de qualquer forma, na máxima rex illiteratus quase asinus coronatus, de João
de Salisbury (LE GOFF, 2010, p. 224 – 225). O positivo da acídia, da melancolia, é a soberania, e,
aqui em concordância com as reflexões do Barroco, ela não é prazerosa.
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REFERÊNCIAS
AGAMBEN, Giorgio. Estâncias: A Palavra e o Fantasma na Cultura Ocidental. Belo
Horizonte: UFMG, 2012.
______. Opus Dei: Arqueologia do Ofício. São Paulo: Boitempo, 2013 (mencionado,
no texto original, como b).
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BAUDELAIRE, Charles. Baudelaire: His Prose and Poetry. Nova Iorque: The Modern
Library, 1919.
BENJAMIN, Walter. Origem do Drama Trágico Alemão. Belo Horizonte: Autêntica, 2016.
BENVENISTE, Émile. Le Vocabulaire des Institutions Indo-Européennes: Économie, Pa-
renté, Société. Paris: Les Éditions de Minuit, 1969.
BLOCH, Marc. A Sociedade Feudal. Lisboa: Edições 70, 1987.
BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 2013.
CARPEAUX, Otto Maria. História da Literatura Ocidental. Rio de Janeiro: O Cruzeiro,
1959. vol. 1.
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Introdução
Se o trabalho, em seu sentido ontológico primeiro, pode ser concebido
como toda atividade vital consciente (MARX, 2008), o samba é tam-
bém, fundamentalmente, trabalho. E se o trabalho funda o ser social
(LUKÁCS, 1980), a cultura popular, por sua vez, está diretamente im-
bricada a essa sociabilidade: a formação e o desenvolvimento do samba
urbano carioca se entrelaçam com processos históricos de resistência da
classe trabalhadora às investidas de perseguição, disciplinamento, apa-
gamento da memória coletiva e tomada de controle do samba e das
relações de trabalho.
Partindo dessas provocações iniciais, vale assentar que este artigo
tem como objetivo central, na interface entre a sociologia do trabalho
e a música, debruçar-se sobre a seguinte questão: em que medida a
cultura popular, com foco para a produção musical de Bezerra da Sil-
va e de Candeia, encarna a potencialidade de contestação do discur-
so que prega uma suposta descentralização da categoria sociológica
trabalho na sociedade contemporânea? Em outras palavras, em que
medida o samba reafirma a centralidade que o trabalho ocupa nas
relações sociais?
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1. Focaremos, aqui, apenas nas teorias de Habermas e Offe, pela delimitação metodológica do
artigo – muito embora não sejam os únicos, tampouco unívocos.
2. Cf. PRIEB, 2012. O autor aponta estudo da OIT que indica uma duplicação no número de
trabalhadores na América do Sul entre 1976 e 1999, tendo o Brasil 38 milhões de trabalhadores
em 1976 e 85 milhões em 2004. No Japão, o número passou de 52,7 milhões de trabalhadores
em 1976 para 63,5 milhões em 2005; e, nos EUA, os dados dão conta de 88,7 milhões em 1976 e
141,7 milhões em 2005 (PRIEB, 2012).
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3. ROMILDO; ALBERTO, Nei. O poeta operário. In: SILVA, Bezerra da. Eu não sou santo.
Rio de Janeiro: BMG-Ariola, 1990. Faixa 12.
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4. MOSCA, Sérgio; PORTELA, Noca da. Eu sou favela. In: SILVA, Bezerra da. Presidente
Caô-Caô, Rio de Janeiro: BMG Ariola, 1992. Faixa 2.
5. BUTINA, Pedro; MENINÃO, Walter. Sonho de operário. In: SILVA, Bezerra da. Se não fos-
se o samba. Rio de Janeiro: BMG-Ariola, 1989. Faixa 3.
6. Idem.
7. CAVACO, Ari do; MANGUEIRA, Otacílio. É ladrão que não acaba mais. In: SILVA, Bezerra
da. Eu tô de Pé. Rio de Janeiro: Universal, 1998. Faixa 3.
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8. Idem.
9. VIOLA, Cosme da; PANDEIRO, Darci do. Asa à cobra. In: SILVA, Bezerra da. Samba parti-
do e outras comidas. Rio de Janeiro: RCA Vik, 1981. Faixa 1.
— 322 —
10. ROMILDO; ALBERTO, Nei; SHOW, Édson. Vida de operário. In: SILVA, Bezerra da. Vio-
lência gera violência. Rio de Janeiro: RCA Victor, 1988. Faixa 3.
11. CANDEIA; MARINHO, Altair. Seis Datas Magnas. In: PORTELA, Velha Guarda da. Can-
deia. Rio de Janeiro: Funarte, 1988. Faixa 9.
— 323 —
12. CANDEIA. Dia de graça. In: CANDEIA. Candeia. Rio de Janeiro: Equipe, 1970. Faixa 1.
13. Disponível em: CUNHA, 2009, p. 112.
14. CANDEIA. Nova escola. In: CANDEIA. Luz da inspiração. Rio de Janeiro: WEA, 1977.
Faixa 5.
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Mora na filosofia
Morou, Maria!
[...]
15. Entrevista de Candeia e Paulinho da Viola em: RABELLO, 1978, disponível em VARGUES,
2013, p. 213.
16. CANDEIA. A hora e a vez do samba. In: CANDEIA. Raiz. Rio de Janeiro: Equipe, 1971.
Faixa 5.
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17. CANDEIA. Filosofia do Samba. In: VIOLA, Paulinho da. Paulinho da Viola. Rio de Janei-
ro: Odeon, 1971. Faixa 5.
18. CANDEIA; POENER, Arthur. Morro do Sossego. In: BUARQUE, Cristina. Candeia. Rio
de Janeiro: Funarte, 1988. Faixa 2.
19. Disponível em: <http://www.arquivonacional.gov.br/br/na-midia/400-acervo-de-docu-
mentos-da-ditadura-militar-2.html>. Acesso em: 07 nov. 2018.
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Considerações finais
Compreender a arte enquanto processo e práxis doadora de sentido à
realidade material, e compreender o trabalho enquanto atividade de
caráter intersubjetivo e cultural, permite expandir nossos horizontes
de análise sobre os movimentos populares de resistência social. Uma
resistência que se perfaz em sentido múltiplo, em cada roda de samba
e em cada ecoar de um tamborim e de um pandeiro. Que não se pre-
tende unívoca, mas que incorpora múltiplas formas de manifestação:
seja pela ironia, pela ode ao trabalho livre, ou mesmo pela negação do
trabalho alienado.
A recepção das teorias que propugnam a pretensa crise (ou desapa-
recimento) da sociedade do trabalho encontra, nestas terras, o discur-
so contra-hegemônico do samba, apto a escancarar suas contradições
e a reforçar a centralidade que o trabalho ocupa nas relações sociais.
Encontra o discurso da cultura popular, que, partindo das assimetrias
materiais concretas, permite desvelar o deslocamento entre a essência
desigual e a aparência de igualdade do discurso hegemônico.
20. VILA, Luiz Carlos da. O sonho não acabou. In: CARVALHO, Beth. Sentimento brasileiro.
Rio de Janeiro: RCA Victor, 1980. Faixa 10.
21. CANDEIA. Viver. In: CANDEIA. Candeia. Rio de Janeiro: Equipe, 1970. Faixa 7.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS22
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trabalho. 2ª ed. São Paulo: Boitempo, 2009.
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COELHO, B. O samba carioca e a centralidade do trabalho vivo: poetas operários.
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a questão social e a questão cultural no Brasil. São Paulo: Expressão Popular, 2013.
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ro: FGV – CPDOC – Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Gra-
duação em História, Política e Bens Culturais, 2009.
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LUKÁCS, G. The Ontology of Social Being: labour. Tradução: de D. Fernbach. Lon-
dres: Merlin Press, 1980.
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