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Data: ___/___/___ TEXTO 1 – 1º BIMESTRE

Professor: Anderson 9º ANO Turma: ____


Aluno: ________________________________________
Trabalho e consumo
A sociedade urbana atual, em função da sua configuração político-econômica e da cultura que se estabelece em torno
das estruturas dessa configuração, tem duas atividades como o centro da organização social. Essas atividades
perpassam a vida material e simbólica das pessoas: o trabalho e o consumo. Isso significa que a realidade das
condições materiais – e até mesmo de algumas condições ideais e valorativas – da vida humana nas cidades nos impõe
um determinado modelo de trabalho e um certo padrão de consumo, intimamente relacionados e assentados num
modelo de sociedade que em geral assumimos em nosso meio, uns com convicção, outros por apatia. Assim, cada vez
mais nossa sociedade se empenha, como quem navega a favor da correnteza de um rio caudaloso, na formação das
pessoas como mão-de-obra e como mercado consumidor. Frequentemente, os famigerados “mercado de trabalho” e
“mercado consumidor” são os mais importantes polos de resultados a orientarem a formação cognitivo-cultural das
pessoas, a organização das cidades, a escolha de políticas públicas, enfim, a realização da pessoa humana que coabita
urbanamente este mundo.
É notório que hoje em dia, desde criança, cada indivíduo da atual sociedade urbana é direcionado, motivado e
influenciado em seu desenvolvimento tendo em vista, de alguma forma, as características do mercado de trabalho e as
estruturas do consumo próprias da nossa sociedade. Por exemplo, a escolha da formação escolar, as opções de
aquisição de conhecimentos, a valorização e a carga simbólica emprestada a determinadas atividades, instituições,
profissões e marcas de produtos e serviços, tudo isso está inserido numa enorme engrenagem que mantém em
funcionamento o sistema político-econômico capitalista neoliberal globalizado que nos envolve. Além disso, esses
direcionamentos aparentemente inofensivos apresentam, em algum grau, um incentivo mais ou menos explícito à
manutenção do jogo da concorrência empresarial, da competitividade dos espaços de trabalho, da elevação dos padrões
e da quantidade de consumo, entre outras coisas. Trabalho e consumo, na nossa sociedade, possuem características
interdependentes.
Nessa esteira, quando se fala aqui do trabalho e do consumo envolvidos no funcionamento da organização social
pautada no atual modelo político-econômico, não se trata de qualquer trabalho e de qualquer consumo. Há um modelo
de trabalho e um padrão de consumo bem delimitados, com características próprias e de contornos relativamente
precisos, segundo a nossa sociedade se organiza, se desenvolve e se compreende. O trabalho e o consumo a que me
refiro aqui são diferente, por exemplo, do trabalho praticado entre comunidades rurais mais tradicionais em que
prevalece a base de troca de mercadorias e de serviços, em que a agricultura de subsistência ou com mínima produção
de excedente ainda é forte e em que o mercado é exercido de modo marcadamente local, com predomínio de produtos
de origem regional, baixo nível de processamento e industrialização, constância de padrões de consumo, etc.
Para nós aqui, traços importantes para se pensar o modelo de trabalho e de consumo cuja crítica é proposta são, por
exemplo, a economicidade, a competitividade e a idolatria de certo desenvolvimento, temas que dominam os discursos
típicos empresariais e do interesse dos grandes capitais em geral. Esses temas têm hoje uma força tal que chega a ser
dotada de evidência, baseada em pressupostos assumidos indefinidamente pela sociedade e reafirmados dia a dia,
muitas vezes sem qualquer reflexão acerca de alternativas, pela mídia, pelos governos e pelo senso comum. Tais
discursos, ainda que irrefletidos, vêm se impondo e se sobrepondo ao discurso e ao espaço de muitos outros sistemas
sociais e atividades humanas, tais como o domínio artístico, ambiental, religioso, do lazer, da saúde, da diversidade
cultural, etc. Todos esses outros discursos são com frequência eclipsados pela força do discurso do desenvolvimento, da
concorrência, da novidade tecnológica. A necessidade e o valor emprestado à criação de postos de trabalho com a
instalação de uma grande empresa, por exemplo, em muitos casos, atropela institutos legais como a legislação
orçamentária municipal, passa por cima de interesses de outros grupos, tal como comunidades indígenas ou quilombolas
que vivem em áreas de interesse econômico, justifica agressões ao meio-ambiente tais como o corte de vegetação de
valor significativo e a degradação de nascentes e do habitat de animais silvestres, justifica a transferência de valores
públicos para o capital privado através de subsídios, incentivos fiscais, “maracutaias”, trocas de favores na velha e
conhecida politicagem, entre outras coisas.
E vale notar que o trabalho realizado no nosso modelo de sociedade, assim como a família, a escola e outros espaços
de convívio, é também um lugar de descoberta, do aprendizado e do exercício de relações interpessoais de diversas
espécies, e lugar de encontro e superação de desafios intelectuais e emocionais, cuja carga simbólica se emaranha na
própria formação da personalidade do trabalhador e se reflete na sociedade  como um todo, ao modo de disposições
afetivas, padrões de comportamento, opinião pública, etc. O trabalho é, assim, plataforma sobre a qual se exercita a
coexistência e se experimenta a praticidade da vida em planos psicológicos e sociais em parte significativa do tempo. O
poder do trabalho com a incisão de suas características sobre os indivíduos e sobre a sociedade, ainda que sutil, é
poderoso o suficiente para nos preocupar com a direção que ele vem tomando.
Consideremos que há 168 horas totais em uma semana. Teoricamente, durante 56 estamos dormindo. São, portanto,
112 horas em vigília. Se trabalharmos 44 horas semanais, subscritas como normais pela Constituição Federal de 1988,
no seu artigo 7º, inciso XIII, temos 40% do nosso tempo ativo diretamente dentro do trabalho, sem contar nesse
percentual o tempo gasto no deslocamento residência-trabalho, nos estudos de formação ou atualização, etc. Com isso,
é possível notar que o tempo vivido no trabalho há de ser cuidado, tendo em vista a própria realização humana, que a
necessidade e as características do trabalho devem ser pensadas no contexto da vida como um todo, nos planos
psicológicos e sociais. Com relação ao salário, um dos principais objetivos do trabalho e base do consumo, notemos que
não é apenas fonte de subsistência: ele também é o veículo da realização de sonhos e de aspirações pessoais, é peso
de medida de grande parte da satisfação com a vida prática em suas condições materiais. O salário tem influência direta
sobre a  taxa de natalidade, sobre o nível de consumo de bens materiais e imateriais, sobre a organização das cidades,
sobre o nível de felicidade desta sociedade que precisa se realizar nas estruturas e ideologias que estão aí. O valor
recebido como contraprestação pelo serviço contribui para a subsistência, segurança, realização de aspirações,
satisfação pessoal quanto ao valor de sua força de trabalho...
O trabalho e o consumo têm também, uma função na identidade dos indivíduos e dos grupos: pertencimento,
conhecimentos/atividades comuns, consumo dos mesmos bens, status, associação da imagem e da dignidade da
pessoa à sua profissão, ao seu local de trabalho, aos lugares que frequenta para consumir e ao que ele consome. Por
isso, os moldes sob os quais se dão o trabalho e o consumo afetam toda a coletividade, em seus patamares subjetivo e
social, psicológico e cultural, individual e coletivo.
A obviedade e a necessidade do trabalho e do consumo nos moldes em que são praticados hoje em dia, são criadas e
forjadas num certo modelo neoliberal, desenvolvimentista, globalizante e uniformizador, cujo centro valorativo é o capital
monetário, expresso na produção e circulação de bens e serviços, e cujo objetivo é, em última análise, a acumulação
financeira. Além dos problemas sociais, esse modelo de desenvolvimento acarreta problemas ambientais (exploração
agressiva, degradação, lixo), culturais (modismos alienantes, etnocentrismos) políticos (subsídios exagerados ao
privado, baixa remuneração ao trabalhador, atropelamento da legislação). Problemas de segurança dos produtos e
serviços (origem dos produtos, perícia na execução ou fabricação em massa, riscos ao consumo e ao uso). Assim,
podemos falar em função social dos agentes econômicos num sentido muito amplo, na medida em que extrapola os
limites do poder diretor das empresas e dos governos, indo para camadas muito mais sutis do que o poder de controle
jurídico e político: estruturas culturais e ideológicas, criadas e reproduzidas numa espécie de torpor pela maioria que
movimenta verdadeiramente o jogo do trabalhar para consumir. 
Sendo assim, sou mais a acreditar e apostar que é preciso repensar as relações homem-trabalho e homem-consumo.
Afinal, qual desenvolvimento buscamos? Esse desenvolvimento está apontado para onde? Ele se desenvolve rumo a
quê? E será que precisamos mesmo de um padrão de consumo tão alto e crescente e de um modelo de trabalho tão
competitivo e exigente como estamos praticando atualmente? 
Creio que as pessoas, antes de serem mão-de-obra e consumidores, são gente, com histórias, desejos, problemas e
possibilidades abertas face ao mundo de modo a priori; que toda relação de trabalho afeta uma vida humana que oferece
sua força de trabalho para se realizar materialmente nesse mundo; que os padrões de consumo e o desejo de consumo
generalizado da forma como vem se dando, vêm de fora e tem raízes culturais e políticas nem sempre óbvias,
necessárias e livres de interesses mesquinhos e alienantes. Ao que parece, os moldes atuais predominantes do trabalho
e do consumo não atentam para inúmeras características sutis da realização humana, mantendo-nos entorpecidos e
sem reflexão acerca da função do trabalho e das causas e consequências do consumo, privando-nos de ter à vista,
como igualmente possível, a enorme gama de objetivos de vida que estão à nossa disposição. Ficamos eclipsados pela
tendência que  nos é imposta de acumular dinheiro e bens para poder consumir mais bens e serviços, ainda que para
isso tenhamos que trabalhar nos moldes que o mercado prescreve, estudar os conhecimentos e práticas que o mercado
demanda, consumir o que o mercado promove, ser como o mercado e o capital querem.
Pergunto, por que não temos uma visão mais humana das relações de trabalho, que propicie mais realização, mais
justiça, melhor distribuição de renda, e, nesse esteio, menos exploração, menos constrangimento social em prol de
padrões de consumo, de utilização  exploratória de recursos minerais e de visões de mundo pautadas em verdadeiros
institutos da cultura do capital da economia atual, tais como a acumulação, a competitividade, as leis do mercado? Será
que não temos a necessidade de ver o discurso da humanidade se sobrepor ao discurso do lucro, da competitividade,
dos economismos e das modas?
O discurso assentado unicamente nos pilares do mercado, do lucro, do dinheiro, é um discurso desumano para quem
necessita trabalhar para sua subsistência, para quem não possui reserva financeira alguma ou bastante escassa, para
quem se enquadra em classes mais pobres, muitas vezes desprovido de escolaridade, de experiência profissional, de
reconhecimento social e de capital simbólico. Por isso, é preciso elevar o nível de consciência política e social. Pôr a
claro mais traços ideológicos que a política e a economia criam e estruturam como modos hegemônicos de exercício de
trabalho, de padrões de consumo, de expectativas de realização de vida, enfim, como cultura hegemônica, forjada
segundo determinados interesses não democráticos, não explícitos e socialmente desproporcionais.
Tratar bem os funcionários não é algo a que se emprenhar apenas para aumentar a produtividade e a lucratividade da
empresa através da satisfação dos funcionários, tal como preservar o meio-ambiente não deve ser ação que se realiza
apenas para expor certificações ISO no seu marketing e melhorar a imagem da empresa. Os fins éticos e os ideais da
razoabilidade, essenciais das noções de tratamento humano, amplamente digno e de preservação ambiental, estão
sendo instrumentalizados e postos a serviço das regras do mercado, utilizados como ferramentas momentâneas para o
marketing, para a ludibriação mercadológica, para a fantasmagoria das marcas e dos produtos, enfim, estão se tornando
meros meios para os fins absolutistas do atual sistema econômico: o lucro, a acumulação e a competitividade.
Podemos dizer que vivemos num modelo de sociedade que gira com enorme força centrípeta em direção ao capital e,
tendo isso em mente, perguntarmo-nos, afinal, para que esse padrão de consumo e esse modelo de competitividade?
Por que assim? Quem escolheu isso? Isso é bom para quem?  Como anda a saúde da nossa sociedade e qual saúde
queremos para ela? As escolhas e assunções realizadas nessas questões implicam em delinear estruturas fundamentais
da vida – materiais e simbólicas – e escolher a direção que pretendemos seguir e construir daqui adiante. Ainda que haja
melhorias visíveis em várias condições materiais de vida das pessoas, inclusive das camadas mais pobres da
população, os problemas (visíveis e invisíveis) de diversas ordens continuam enormes demais para nos felicitarmos por
algum sucesso dos nossos padrões de trabalho e consumo.

http://setelagoas.com.br/sete-lagoas/colunistas/felipe/12755-coluna-filosofia-trabalho-e-consumo

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