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Capítulo 5 - Vias Descendentes e Reflexos Motores

O corpo afeta o mundo

Augusto Valadão Junqueira

Introdução

Quando estudamos a neurologia básica, precisamos ter em mente


exatamente do que estamos falando. Poderá ser, de uma forma geral, sobre
movimento, sobre sensibilidade ou sobre associação. Neste capítulo trataremos
de um tema ligado ao movimento.
As vias descendentes podem estar relacionadas também com modulação
sensorial ou motricidade visceral, mas as que estudaremos aqui estão ligadas
exclusivamente ao controle do movimento somático (musculatura estriada
esquelética), tanto a parte voluntária quanto a parte automática reflexa.
"Descendentes" porque obviamente se originam em estruturas superiores do
sistema nervoso central, seguindo um trajeto descendente.
Há basicamente duas divisões: o sistema lateral (ou via descendente
lateral), que terminará nos neurônios laterais do corno anterior da medula, e o
sistema medial (ou via descendente medial), que irá até os motoneurônios
mediais. O primeiro compreende o trato córtico-espinhal lateral e o rubro-
espinhal, enquanto o segundo inclui os tratos córtico-espinhal anterior, retículo-
espinhal, vestíbulo-espinhal e tecto-espinhal (ou teto-espinhal). Veremos cada
um em mais detalhes.

As vias córtico-espinhais

Como o próprio nome diz, são vias que se originam no córtex cerebral e
vão até a medula espinhal. Por isso vias córtico-espinhais. Quando é dito que
elas se originam no córtex, você precisa entender o que isso significa: os corpos
destes neurônios estão na substância cinzenta do córtex cerebral. Todo o resto
dessas vias (desde a sua saída do córtex cerebral até a medula) será
representado pelas fibras que são os axônios desses neurônios. Como vimos,
no SNC o agrupamento de fibras é chamado de trato, fascículo ou lemnisco. No
caso das vias descendentes teremos tratos. Daí trato córtico-espinhal.
Os corpos desses neurônios estão localizados em uma região bem
definida do cérebro, conhecida como córtex motor primário (ou M1). Existe
um sulco que corta a região superficial central do cérebro de um lado a outro,
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Capítulo 5 – Vias Descendentes e Reflexos Motores

formando uma "metade anterior" e uma "metade posterior". Esse sulco se


chama sulco central. A área imediatamente anterior a esse sulco é o giro pré-
central, por estar antes do sulco central. É no giro pré-central que se
encontram os neurônios que darão origem ao trato córtico-espinhal.
O trato córtico-espinhal sai do córtex cerebral integrando a coroa
radiada, passa entre os núcleos da base como parte da cápsula interna e ao
chegar no tronco encefálico passa a ser um agrupamento de fibras mais bem
definido. Você não precisa saber detalhes sobre essas estruturas, mas saiba
pelo menos o que elas são: a coroa radiada é o maior conjunto de fibras (isto
é, substância branca) que sai do córtex cerebral, passando a se chamar cápsula
interna ao passar por entre os núcleos da base, que são agrupamentos de
corpos de neurônios em meio à substância branca do encéfalo.
Ao chegar na metade inferior do bulbo, onde há uma estrutura bilateral
conhecida como pirâmide, grande parte (cerca de 80%) das fibras do trato
córtico-espinhal se cruza, atravessando a decussação das pirâmides para ir
ao lado oposto antes de continuar a descer. Decussar é o mesmo que cruzar;
decussação das pirâmides é a região do bulbo onde há o cruzamento dessas
fibras, assim chamado por ficar entre as pirâmides de cada lado. As fibras que
se cruzam vão descer pelo funículo lateral (lembra-se dos funículos da
medula?) do lado oposto, constituindo o trato córtico-espinhal lateral,
enquanto a pequena parte que não se cruza continua pelo funículo anterior
do mesmo lado, formando o trato córtico-espinhal anterior. Por isso o trato
córtico-espinhal lateral é também chamado de piramidal cruzado, enquanto o
anterior é o piramidal direto. Mas muito cuidado nessa hora: logo antes de
terminar seu trajeto na medula, o trato córtico-espinhal anterior também
se cruza, atravessando o plano mediano pela comissura branca para inervar
um motoneurônio medular do lado oposto ao que teve origem. Tem-se assim a
seguinte situação: como ambos os tratos córtico-espinhais acabam por ser
cruzados, o córtex de um hemisfério cerebral comanda os neurônios
motores do lado oposto da medula e, por conseguinte, a musculatura do
lado oposto do corpo. Nunca mais se esqueça disso.

Via descendente lateral

Vimos que a origem dos dois tratos córtico-espinhais (lateral e anterior)


é a mesma, mas seu destino é fundamentalmente diferente. O trato córtico-
espinhal lateral (TCEL) terminará no núcleo lateral do corno anterior da medula,
ou seja, os neurônios responsáveis pela inervação da musculatura apendicular.
O trato córtico-espinhal anterior (TCEA), por sua vez, terminará no núcleo
medial deste mesmo corno e portanto será visto na próxima seção.

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Além do TCEL, o trato rubro-espinhal termina também no núcleo


lateral de motoneurônios. Tem esse nome pois é um feixe de fibras que se
origina no núcleo rubro, um agrupamento de corpos neuronais do mesencéfalo.
Lembre-se que o mesencéfalo é o componente superior das três divisões do
tronco encefálico. As fibras do trato rubro-espinhal são cruzadas (diz-se
contralaterais ou heterolaterais), da mesma forma que as do TCEL. Elas
atravessam o plano mediano no tegmento mesencefálico (uma região do
mesencéfalo), logo na altura de sua origem, descendo a medula pelo funículo
lateral juntamente com o TCEL. Por tudo isso o trato córtico-espinhal lateral e o
rubro-espinhal são chamados em conjunto de via descendente lateral.
Enquanto o TCEL se liga a todos os neurônios do grupo lateral do corno
anterior da medula, o trato rubro-espinhal liga-se apenas a alguns deles. Como
já foi estudado, a parte mais medial desses neurônios controla a musculatura
proximal dos membros, enquanto a parte mais lateral é responsável pela
musculatura distal (incluindo mãos, dedos...). Há uma discordância entre os
autores sobre quais neurônios exatamente são inervados pelo trato rubro-
espinhal: alguns consideram que sejam os neurônios mais mediais (Machado,
2006), enquanto outros defendem que sejam na verdade os neurônios mais
laterais (Haines, 2006). O mais importante é saber que a função do trato rubro-
espinhal no ser humano é pequena, servindo apenas como um suporte ao
TCEL. Em caso de lesão do trato rubro-espinhal (o que é raro acontecer
isoladamente na prática) haveria uma certa perda de força nos membros do
lado afetado, mas os movimentos finos seriam mantidos intactos pela ação do
TCEL. Isso pode se manifestar, por exemplo, por tremores vistos principalmente
mediante esforço físico do membro afetado. Já uma lesão do trato córtico-
espinhal lateral (e quando falamos isso entenda bem que pode significar tanto
uma lesão no córtex motor, onde estão os corpos neuronais, quanto uma lesão
nas fibras que deles se originam, em qualquer parte de seu longo trajeto – da
mesma forma que no exemplo anterior a lesão poderia se dar tanto no núcleo
rubro quanto nas fibras que dele partem para formar o trato rubro-espinhal),
dada a maior importância funcional deste feixe, acarreta em uma perda
completa das funções motoras complexas dos membros. Essa é uma função
exclusiva do TCEL, não podendo ser compensada pela ação de outra via.

Via descendente medial

É uma via cujos tratos terminarão na porção medial do corno anterior da


medula, inervando os motoneurônios responsáveis pela musculatura axial (do
"tronco").
O primeiro componente da via descendente medial já foi visto: o trato
córtico-espinhal anterior. Ele é responsável pela movimentação voluntária
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Capítulo 5 – Vias Descendentes e Reflexos Motores

(guarde isso: praticamente tudo que tem origem no córtex cerebral será o
componente voluntário de alguma coisa) da musculatura axial do corpo. Vimos
também que ele desce a medula pelo funículo anterior — o mesmo acontecerá
com todos os tratos da via descendente medial, com a diferença que nem todos
são cruzados. Veremos cada um.
O trato retículo-espinhal tem esse nome por se originar na formação
reticular. A formação reticular é uma extensa e complexa estrutura do tronco
encefálico com diversas funções, ocupando cada uma de suas três divisões. As
porções ligadas à movimentação somática pertencem à formação reticular
pontina e bulbar (isto é, a formação reticular presente na ponte e no bulbo). É
ipsilateral (o mesmo que homolateral, o que quer dizer que não se cruza,
terminando do mesmo lado do corpo em que se origina). Está também ligada
aos movimentos axiais voluntários, além de ser o elemento-chave em alguns
movimentos estereotipados (como o ato de caminhar) e em ajustes posturais
antecipatórios, necessários para que o corpo entre em uma posição estável e
firme antes que possamos exercer os movimentos finos que a via descendente
lateral irá realizar (como firmar o braço antes de começar a escrever, ou o
goleiro que flexiona as pernas antes de saltar).
O trato vestíbulo-espinhal se origina nos núcleos vestibulares, um
conjunto de quatro núcleos (lateral, medial, superior e inferior, formando uma
espécie de cruz) de cada lado no tronco encefálico, responsáveis por manter o
equilíbrio da cabeça em relação ao corpo. Os núcleos de origem do trato
vestíbulo-espinhal são o núcleo vestibular lateral (que é ipsilateral, responsável
pelos ajustes posturais do corpo) e o núcleo vestibular medial (bilateral – ou
seja, é tanto cruzado quanto direto –, responsável pelos ajustes posturais da
cabeça). Embora com duas origens diferentes, o trato vestíbulo-espinhal é visto
como uma coisa só, cuja função é manter o equilíbrio e a postura básica de
forma automática, sem precisar ser voluntária. Mais sobre o sistema vestibular
será visto no estudo dos nervos cranianos e do cerebelo.
O trato tecto-espinhal, por fim, tem esse nome por se originar no
colículo superior, uma estrutura do tecto (ou teto) do mesencéfalo. O colículo
superior, como veremos mais adiante neste período, é uma região que abriga
uma variedade de núcleos ligados à regulação da visão e aos movimentos
oculares. O trato tecto-espinhal, assim, coordena a orientação sensório-motora
da cabeça e, se preciso, do corpo. Isso significa que ele age acertando o corpo,
de forma involuntária, de acordo com o que vemos. Se de repente vemos um
objeto sendo jogado em nossa direção, por exemplo, reflexamente mudamos a
postura de nosso corpo para uma posição defensiva, fechando os olhos e
podendo até erguer o braço para posicionar a mão à frente do rosto. Este trato
é contralateral, cruzando-se na mesma região que se cruza o trato rubro-
espinhal (no tegmento do mesencéfalo).

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Capítulo 5 – Vias Descendentes e Reflexos Motores

Visão geral

Vimos que as vias descendentes são compostas por vários tratos. É


importante ter uma visão geral do que significa tudo isso, pois é comum que
haja uma confusão quando falamos dos "neurônios" de cada via. Lembre-se
que um neurônio motor é unipolar, e por isso terá destacadamente um corpo e
um longo axônio. Cada trato é um conjunto de fibras nervosas, isto é, axônios.
Esses axônios precisam ter se originado em algum lugar; logo, cada trato tem
uma origem, um lugar onde estão os corpos dos neurônios que projetam essas
fibras descendentes que formarão cada trato.
O trato córtico-espinhal tem sua origem no giro pré-central do córtex
cerebral, a área motora primária. Lá, então, estão seus corpos neuronais (o
soma dos neurônios que originam suas fibras). Suas fibras (tanto as da divisão
lateral quanto da divisão anterior – uma separação que passa a existir a partir
da decussação das pirâmides, no bulbo) descem até a medula espinhal, o que
certamente é um longo trajeto. Em qualquer lugar desse trajeto elas podem ser
lesadas, gerando a síndrome do primeiro neurônio motor, que será vista abaixo.
Mas nem todos os corpos dos neurônios da via descendente estão no
córtex. Existem quatro outros pontos de origem, todos eles no tronco
encefálico: o núcleo rubro (no mesencéfalo, de onde sai o trato rubro-espinhal),
o colículo superior (também no mesencéfalo, de onde parte o trato tecto-
espinhal), a formação reticular (na ponte e no bulbo, de onde sai o trato
retículo-espinhal), e os núcleos vestibulares (na transição ponto-bulbar do IV
ventrículo, que será estudado mais adiante, de onde parte o trato vestíbulo-
espinhal).
O trato córtico-espinhal lateral e o trato rubro-espinhal percorrem a
medula pelo funículo lateral. Todos os outros (córtico-espinhal anterior,
retículo-espinhal, vestíbulo-espinhal e tecto-espinhal) percorrem o funículo
anterior. Os feixes que se originam do mesencéfalo para cima (córtico-espinhal
lateral e anterior, rubro-espinhal e tecto-espinhal) são contralaterais (cruzados),
sendo que o córtico-espinhal lateral se cruza no bulbo e o anterior na comissura
branca da medula, enquanto os outros dois o fazem no próprio mesencéfalo,
onde se originam. O restante dos tratos é ipsilateral (direto). Guarde bem essas
informações, pois serão fundamentais no entendimento dos casos clínicos de
lesões medulares.

Síndromes dos neurônios motores

Para entender isso, precisamos ter bem sedimentados os conhecimentos


do capítulo anterior e do que já foi visto neste. Entenda que existem dois

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Capítulo 5 – Vias Descendentes e Reflexos Motores

neurônios motores diferentes na via córtico-espino-muscular: aquele que se


encontra na área motora do córtex cerebral, chamado de primeiro neurônio
motor, e aquele cujo corpo fica no corno anterior da medula, conhecido
como segundo neurônio motor ou simplesmente motoneurônio. O primeiro
permanece no SNC em todo seu trajeto, formando o trato córtico-espinhal. O
segundo tem seu corpo no SNC (na medula), mas seu prolongamento logo
parte em direção horizontal para formar o SNP. Este é um bom raciocínio para
entender a posição de cada um: o primeiro neurônio motor é vertical, indo do
córtex até a medula; o segundo neurônio motor é horizontal, indo da medula
até os músculos do corpo (estriados esqueléticos, no caso). Formam, assim,
uma espécie de L.
A síndrome do primeiro neurônio motor ou síndrome do
neurônio motor superior, portanto, acontece quando se lesa o neurônio
motor cortical que estudamos neste capítulo. Pode ocorrer por um acidente
vascular encefálico (AVE) que afete seu corpo no córtex ou o começo de seu
prolongamento no encéfalo, ou ainda por um acidente da coluna, que o afete já
na altura da medula. A ação do trato córtico-espinhal anterior é a mesma da
formação reticular, como vimos, e por ela pode ser compensada em caso de
lesão. Quando falamos em síndrome do primeiro neurônio, assim, nos referimos
ou a uma lesão em sua origem no encéfalo ou a uma lesão no funículo lateral
da medula, por onde passa o trato córtico-espinhal lateral. Os sintomas
clássicos desta síndrome são: paresia (perda de força; em casos extremos que
se perca toda a via tem-se uma plegia, que é a perda total da movimentação),
hipertonia e hiperreflexia. Os dois últimos sintomas são fáceis de entender se
soubermos o seguinte: a acetilcolina, neurotransmissor usado na placa
motora (ou junção neuromuscular; é o ponto de ligação entre as fibras do SNP
e um músculo), é produzida no próprio motoneurônio, e continuará sendo
produzida mesmo com a lesão do primeiro neurônio motor. Sem a orientação
devida de seu "superior", entretanto, o motoneurônio fica "perdido" e começa a
liberar a acetilcolina na placa motora de forma constante, deixando o músculo
permanentemente contraído (hipertonia) e altamente sensível a qualquer
estímulo que venha de outros segmentos medulares (hiperreflexia), porque é
como se estivesse o tempo todo "pré-ativado".
Um sinal característico desta síndrome é o sinal de Babinski, um
achado clínico que consiste na flexão dorsal reflexa do hálux quando a planta
do pé é estimulada. O normal é que o hálux se dobre para baixo quando a pele
da região plantar é tocada. Durante a síndrome do primeiro neurônio, portanto,
este reflexo tem manifestação "invertida".
Os sintomas da síndrome do primeiro neurônio estarão presentes na
mesma metade do corpo ou na metade oposta ao lado da lesão, dependendo
da altura em que ela ocorreu. Como o trato córtico-espinhal se cruza na
decussação das pirâmides, lesões acima do bulbo terão sintomatologia

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Capítulo 5 – Vias Descendentes e Reflexos Motores

contralateral (porque o trato ainda não tinha se cruzado onde foi lesado),
enquanto lesões abaixo dele serão expressas de forma ipsilateral.
A síndrome do segundo neurônio motor ou síndrome do
neurônio motor inferior ou ainda síndrome do motoneurônio é a lesão
do neurônio que se encontra no corno anterior da medula, seja em seu corpo
na medula ou em qualquer parte do trajeto do nervo que forma antes de
chegar no músculo que inerva. Será sempre homolateral, já que não há
cruzamento nenhum dos neurônios do corno anterior da medula – cada um sai
pela raiz ventral de seu lado para integrar um nervo espinhal e ir até seu
músculo. O quadro clínico desta síndrome difere da anterior por diversos
aspectos. Primeiro, o trato córtico-espinhal inerva toda a medula, então sua
lesão irá afetar todo o corpo abaixo do ponto da lesão (as estruturas superiores
à lesão não são afetadas, já que sua inervação não é comprometida). Já o
motoneurônio, mais humilde, inerva apenas um miótomo, que caracteriza-se
por ser um grupo muscular, um único músculo ou apenas uma parte específica
de um músculo. A síndrome do segundo neurônio motor, portanto, afetará
apenas uma parte restrita da musculatura, que é a parte inervada por aquele
segmento medular afetado. Haverá sempre paralisia do miótomo em questão, e
o restante da sintomatologia é basicamente o oposto: hipotonia e hiporreflexia.
Não há mais segundo neurônio, não há mais acetilcolina na placa motora, não
há mais contração, não há mais reflexos musculares. Simples assim.
Vale observar que a síndrome do segundo neurônio motor, no começo
(isto é, na fase aguda), apresenta também hipertonia e hiperreflexia, tal como
a primeira síndrome. Isso acontece porque quando o motoneurônio é lesado
existe ainda um certo estoque de acetilcolina que já havia sido produzida, e
essa acetilcolina vai sendo liberada na placa motora até que acabe (a
acetilcolina, como veremos no capítulo de sinapses, é degradada pela enzima
acetilcolinesterase depois de ser usada em uma sinapse), levando então à
hipotonia e à hiporreflexia. A síndrome do primeiro neurônio motor, por outro
lado, causa hipotonia e hiporreflexia no princípio do quadro. Isso acontece
porque há uma espécie de choque: diante do trauma sofrido (a lesão do
primeiro neurônio), o segundo neurônio se ―congela‖ por um tempo, cessando
temporariamente a liberação de acetilcolina. Neste caso, após um tempo, a
hiperreflexia tende a surgir antes da hipertonia.

Movimentos reflexos

Nem sempre é preciso que haja uma interferência superior do SNC para
que um motoneurônio possa agir. É o caso dos reflexos musculares, arcos
reflexos que envolvem uma aferência pela raiz dorsal da medula e uma
eferência imediata por sua raiz ventral.
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Capítulo 5 – Vias Descendentes e Reflexos Motores

Nesta seção não estaremos falando apenas de motricidade. O primeiro


passo para um reflexo envolve, logicamente, uma sensibilidade. Todo raciocínio
de sensibilidade deve começar com uma pergunta: de onde começa? E essa
pergunta gera outra: qual o receptor? Aqui o impulso sensitivo terá origem no
interior do próprio músculo ou de uma cápsula articular. O receptor no primeiro
caso (no músculo) se chama fuso muscular (ou fuso neuromuscular), e no
segundo (cápsula articular) se chama órgão tendinoso de Golgi (ou órgão
neurotendíneo).
O fuso muscular informa sobre o comprimento do músculo, isto é, sua
contração isotônica. Isotônico significa "tensão constante", pois para o fuso o
estado da força de contração do músculo não será importante, e sim seu
estado de estiramento.
O órgão neurotendíneo, presente nos tendões, indicará a tensão dos
músculos, chamada de contração isovolumétrica, pois o estiramento não será
importante, e sim a força de contração.
Essas duas informações geradas irão percorrer os nervos em direção à
medula, entrando pela raiz dorsal para gerar uma resposta imediata na própria
medula. Existem dois reflexos que funcionam assim: o reflexo miotático simples
e o reflexo miotático inverso.
O reflexo miotático simples é unissegmentar, isto é, envolve apenas
um segmento da medula: o mesmo segmento que recebe a informação
aferente é o que cumpre a ação eferente. O neurônio sensitivo do gânglio
espinhal se liga diretamente ao neurônio motor do corno anterior (e por isso
este reflexo é classificado como monossináptico). Serve para regular o
comprimento muscular, sendo de grande importância para a resposta postural
antigravitária dos músculos extensores. Constantemente o corpo sofre uma
pressão da gravidade que deveria fazer com que nossa musculatura flexora se
dobrasse; isso é impedido pelo reflexo miotático simples da musculatura axial
extensora, que se contrai reflexamente o tempo todo e impede que nosso
corpo colabe. Este mecanismo é visto também no reflexo patelar (de grande
importância clínica) e no reflexo mandibular, importante para a mastigação.
Uma informação importante aqui é o princípio da inervação recíproca: a
mesma informação aferente que é utilizada para ativar os motoneurônios da
musculatura agonista (os músculos axiais extensores, por exemplo) é também
usada para inibir a musculatura antagonista (os músculos axiais flexores, no
caso do exemplo), para que não haja resistência desnecessária no processo.
Isso é feito através de um interneurônio inibitório do H medular.

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Capítulo 5 – Vias Descendentes e Reflexos Motores

Como o reflexo miotático simples não


atrapalha a execução de movimentos
voluntários?
Isso ocorre porque, além de haverem
as fibras motoras alfa, que são
aquelas que efetivamente
compõem as placas motoras, há
também as fibras motoras gama, que
se ligam aos fusos
musculares e regulam os mesmos,
impedindo que reajam aos
movimentos que
são voluntários e garantindo a
manutenção de tônus para a postura
básica.
A ação desses neurônios gama é
controlada pelo SNC, em especial
pelos tratos vestibuloespinhal,
reticuloespinhal e corticoespinhal.

Figura 5.1 – Reflexo patelar, um exemplo de reflexo miotático simples. (Ilustrações: William de
Andrade)

O reflexo miotático inverso serve para regular a força muscular,


relaxando um músculo submetido a uma força contrátil muito forte. É por causa
desse reflexo que, se tentarmos levantar um piano, a força de nossa
musculatura uma hora irá ceder. É um circuito dissináptico: o neurônio do
gânglio espinhal irá se ligar a interneurônios inibitórios, que por sua vez se
ligarão com os neurônios motores do corno anterior. Outros ramos irão emergir
da fibra aferente para se ligar a: a) interneurônios inibitórios de motoneurônios
da musculatura agonista auxiliar (gerando um "relaxamento solidário" com o
músculo agonista em questão); b) interneurônios excitatórios de motoneurônios
da musculatura antagonista (uma espécie de princípio da inervação recíproca
ao contrário, contribuindo para o efeito de relaxamento do músculo agonista).

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Capítulo 5 – Vias Descendentes e Reflexos Motores

Figura 5.2 – Reflexo miotático inverso.

O reflexo flexor de retirada, por fim, é o consagrado reflexo de tirar o


pé quando pisamos em um prego. Ocorre sempre que um estímulo nocivo
atinge uma das extremidades corporais. Preste atenção: extremidades
corporais. Ao contrário dos outros dois reflexos (e isso é de grande
importância), o reflexo flexor de retirada não usa os fusos neuromusculares e
os órgãos neurotendíneos como receptores, e sim os nociceptores (receptores
de dor) situados na pele. Sua origem não é, portanto, no próprio elemento
efetuador (o músculo), mas sim uma origem cutânea. É um reflexo
multissegmentar que utiliza um circuito multissináptico: as fibras que chegam
pela raiz dorsal emitem ramos distintos, que se estendem por vários segmentos
medulares, estabelecendo sinapses com: a) neurônios de segunda ordem de
estímulos dolorosos do sistema protopático (estudaremos isso no capítulo de
vias ascendentes), que levarão a informação dolorosa ao tálamo; b)

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Capítulo 5 – Vias Descendentes e Reflexos Motores

interneurônios excitatórios em sequência, que acabarão por atingir os


motoneurônios da musculatura flexora de vários segmentos medulares; c)
interneurônios inibitórios dos motoneurônios da musculatura antagonista
(extensora, em geral), seguindo o princípio da inervação recíproca para garantir
que a flexão dos membros seja eficiente ao tirá-los de perto do estímulo. Em
alguns casos, quando o estímulo é muito intenso, o fenômeno se estende ao
lado oposto do corpo, de modo a compensar a alteração postural que advém do
movimento brusco do reflexo. Isso se faz por um circuito de inervação cruzada
com interneurônios que irão afetar o corno anterior do lado oposto da medula,
realizando o que se chama de reflexo de extensão cruzada. Há uma extensão
da musculatura antagonista no lado oposto do corpo para compensar a flexão
brusca do lado afetado, impedindo que a pessoa caia no chão.

O trato córtico-nuclear

Nem todos os neurônios de M1 vão até a medula. Parte deles terminam


no tronco encefálico, nos núcleos motores dos nervos cranianos. Esse assunto
será abordado no capítulo referente aos nervos cranianos.

"O amigo de todo mundo só é amigo de si mesmo."


— Claude Aveline, escritor francês do século XX.

Referências
1. Bear MF, Connors BW, Paradiso MA. Neurociências: Desvendando o Sistema
Nervoso. 3rd ed. Porto Alegre: Artmed; 2008.

2. Haines DE. Neurociência Fundamental. 3rd ed. São Paulo: Elsevier; 2006.

3. Kandel ER, Schwartz JH, Jessel TM. Princípios da Neurociência. 4th ed.
Barueri: Manole; 2003.

4. Lent R. Cem Bilhões de Neurônios. 1st ed. São Paulo: Atheneu; 2005.

5. Machado ABM. Neuroanatomia Funcional. 2nd ed. São Paulo: Atheneu; 2006.

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6. Rubin M, Safdieh JE. Netter Neuroanatomia Essencial. 1st ed. Rio de Janeiro:
Elsevier; 2008.

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