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Capítulo 4 – Medula Espinhal

Pilares de uma estrutura viva

Augusto Valadão Junqueira

O centro do centro

O dicionário define medula como "centro, âmago, parte essencial".


Temos, assim, a medula espinhal, a medula óssea, a medula da adrenal, o
centro medular do cerebelo e qualquer outra coisa que se refira à parte central
de algo. É importante diferenciarmos, portanto, cada uma dessas estruturas em
que a palavra "medula" é empregada. A medula espinhal está no centro da
espinha dorsal, isto é, da coluna vertebral. A medula óssea está obviamente
dentro dos ossos, bem como a medula da adrenal é a parte central desta
glândula. O centro medular do cerebelo, como veremos no capítulo específico
do cerebelo, é — surpresa! — a região central do cerebelo. No estudo da
neurologia, para fins práticos, sempre que dissermos apenas "medula" será
uma referência à medula espinhal.
A medula é parte do sistema nervoso, e portanto terá tudo que foi dito
no capítulo introdutório: neurônios e células gliais, divididos em substância
cinzenta e substância branca, com neurotransmissores sendo liberados em
sinapses que conectam os diversos neurônios. É também, mais
especificamente, parte do sistema nervoso central. Se lembrarmos do que isso
significa, entenderemos que ela deve estar envolta por uma estrutura óssea. E
está: é circundada pelas vértebras, que em seu conjunto formam a coluna
vertebral. Uma característica especial do sistema nervoso central é a presença
do envoltório meníngeo, como já foi comentado. Veremos a importância de
cada um desses pontos.

Vista longitudinal da medula

Limitando-se cranialmente com o bulbo (a parte mais inferior do tronco


encefálico), a medula vai até a altura do forame magno do crânio, onde há uma
rápida alteração tecidual entre a região medular e a região bulbar.
Caudalmente, a medula termina ao nível da vértebra L2 (ela de fato não
acompanha a coluna vertebral até o final, como muitos poderiam pensar). Esse
dado será importante, guarde-o. Guarde também o motivo de ser assim: o

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crescimento neural medular é mais lento que o crescimento ósseo ao longo do


processo embriológico, e por isso a coluna vertebral (óssea) acaba por ficar
maior que a medula espinhal (neural). Fenômeno oposto ocorre no córtex
cerebral e cerebelar: como o crescimento neural dessas regiões é mais
acelerado que o ósseo, elas acabam se dobrando de modo a formar giros e
sulcos (ou folhas e fissuras), como ainda será visto. A medula termina afilando-
se, formando em sua extremidade inferior uma ponta aguda conhecida como
cone medular.
Segmentos medulares. Eis aqui um tópico que merece ser estudado
com atenção. Lembra-se da divisão das vértebras? Cervicais (7), torácicas (12),
lombares (5), sacrais (5) e coccígeas (4). A medula também terá todas essas
divisões, e a nomenclatura também será igual era feito para as vértebras (C2,
T1, L4, etc.). Mas muita calma nessa hora: as divisões das vértebras não são as
mesmas da medula. A vértebra T10, por exemplo, não está necessariamente
relacionada com o segmento T10 da medula. Isso é o que gera mais confusão
nesta parte da matéria, porque muitas vezes há uma ambiguidade sobre uma
sigla como L2 se referir a um nível vertebral ou a um segmento medular. Preste
sempre atenção se a sigla referida é uma vértebra ou um segmento da medula.
Seria plausível esperar que os segmentos medulares fossem correspondentes
aos níveis vertebrais, mas isso nem sempre acontece. O que corresponde entre
os dois é apenas a projeção dos segmentos medulares, que de fato é
equivalente a cada vértebra: as raízes (mais sobre elas abaixo) que emergem
da vértebra T7, por exemplo, são mesmo as correspondentes ao segmento T7
da medula. Veja a imagem abaixo para entender a fundamental diferença entre
a projeção de um segmento medular e o segmento medular propriamente dito
(as projeções saem completamente da altura de seu segmento de origem –
cursando para baixo – antes de atravessar uma vértebra). Isso acontece
também por um motivo embriológico: muito embora a parte óssea cresça mais
que a parte neural, no começo as duas são niveladas e por isso as vértebras
"puxam" as raízes consigo ao crescer para baixo no desenvolvimento do
embrião.
A projeção do primeiro segmento medular passa por cima da primeira
vértebra, e por isso o C1 do segmento medular vem antes do C1 da primeira
vértebra cervical. Sendo assim, com uma observação geométrica simples,
entenderemos que os segmentos cervicais são em um a mais que as vértebras
cervicais. Abaixo da vértebra C7 emerge a projeção do segmento C8 da
medula, e a partir daí todas as projeções emergentes são as mesmas da
vértebra em questão. Logo abaixo da vértebra T1 emergem as raízes do
segmento T1, abaixo da vértebra T4 emergem as do segmento T4 e assim por
diante, até chegar na primeira vértebra coccígea, abaixo da qual emerge o
ramo Co1 (existe apenas um segmento coccígeo medular, uma exceção —

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todos os outros além dos cervicais e do coccígeo correspondem ao número de


vértebras, isto é: 12 torácicos, 5 lombares e 5 sacrais; a parte cervical possui 8
segmentos e a coccígea apenas um, o que difere das 7 vértebras cervicais e
das 4 coccígeas).

Figura 4.1 – Vista longitudinal da medula, evidenciando os segmentos medulares e suas raízes. Na
região da cauda equina não há medula, apenas raízes. Entenda que nesta vista “de lado”
teoricamente não deveríamos ver as projeções das raízes (que saem de cada lado da medula) desta
forma (além de elas não serem tão compridas), as projeções da imagem são apenas didáticas.
(Ilustrações: William de Andrade)

Cada segmento medular projeta dois ramos de cada lado (uma raiz
ventral e uma raiz dorsal), que atravessam os forames intervertebrais para
sair do sistema nervoso central, passando a constituir o sistema nervoso
periférico. Após um curto trajeto, essas duas raízes se unem, formando a partir
daí um nervo espinhal. Se observar bem alguma imagem que ilustre as raízes

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medulares, verá que a raiz dorsal possui uma dilatação antes de sua fusão com
a raiz ventral para formar um nervo: é o gânglio espinhal. Como foi dito no
capítulo de introdução, um gânglio é um aglomerado de corpos de neurônios no
sistema nervoso periférico (enquanto um aglomerado de corpos de neurônios
no sistema nervoso central se chama núcleo). Os gânglios espinhais (existe um
correspondente a cada segmento medular) são onde ficam os corpos dos
neurônios sensitivos (pseudo-unipolares) da medula; com isso fica fácil
entender que a raiz dorsal, onde ficam os gânglios espinhais (que são
sensitivos), é a parte sensitiva da medula. A raiz ventral, por sua vez, é a
parte motora. Isso é algo tão importante e será tão exaustivamente repetido
que você dificilmente não irá eventualmente guardar, mas não custa avisar:
não se esqueça das informações deste parágrafo, pois elas são fundamentais.
Os componentes eferentes motores da medula (veiculados pela raiz ventral
antes de desembocar no nervo comum) e os componentes aferentes sensitivos
(trazidos à medula pela raiz dorsal) serão vistos em detalhes nos próximos
capítulos.
O agrupamento das raízes nervosas dos últimos segmentos medulares
recebe o nome de cauda equina. Como as raízes de cada segmento se projetam
para baixo, é evidente que após o fim da medula poderão ser vistas ainda
algumas raízes onde não mais há segmentos. Isto é a cauda equina.

Vista transversal da medula

Lembremo-nos de algo que foi dito no primeiro capítulo. Na medula, da


mesma forma que no tronco encefálico, a substância cinzenta (corpos de
neurônios) é interna e a substância branca (fibras nervosas) é externa. A parte
central vista no corte transversal da medula trata-se, portanto, da substância
cinzenta, que no caso da medula assume um formato parecido com o da letra
H, e por isso mesmo é chamada de H medular. Observe bem a imagem do
corte transversal da medula apresentada a seguir e procure pelas colunas,
pelos funículos e pelos sulcos.
As colunas (ou cornos) são as partes do H medular, divididas em
anterior, posterior e lateral (ou intermédia). A parte lateral está presente
apenas entre os segmentos T1 e L2 e entre os segmentos S2 e S4 da medula,
que é onde se encontram respectivamente os corpos dos neurônios pré-
ganglionares da divisão simpática e parassimpática sacral do sistema nervoso
autônomo. Isso você não precisa saber agora em detalhes, guarde apenas que
a coluna lateral existe somente de T1 a L2 e de S2 a S4 (segmentos medulares,
não vértebras, lembre-se!) e que nela ficam os corpos celulares de neurônios
do sistema nervoso autônomo (que é a parte eferente do sistema nervoso

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visceral, como vimos). As outras duas colunas serão mais importantes aqui. Na
coluna anterior ficam os corpos dos neurônios motores da medula,
chamados também de motoneurônios. Lembra-se que é pela raiz ventral que
saem as fibras motoras do SNP? Pois é desses neurônios que elas partem,
atravessando o sulco lateral anterior antes de formar a raiz ventral de algum
segmento medular. Na coluna posterior ficam os neurônios ligados à
sensibilidade, cujos impulsos aferentes chegam pela raiz dorsal de cada
segmento medular para penetrar no H medular pelo sulco lateral posterior.
Importante notar que os neurônios da coluna anterior são eferentes e por isso
estão enviando informações (motoras), enquanto os da coluna posterior são
aferentes e estão assim recebendo informações (de sensibilidade). O primeiro
neurônio da via motora está no córtex cerebral, enquanto o primeiro da via de
sensibilidade está no gânglio espinhal, já mencionado. Os detalhes e as
exceções disso serão estudados nos próximos capítulos.
Os neurônios dessas colunas se organizam em núcleos (aglomerados de
corpos de neurônios no SNC, não se esqueça) até certo ponto bem delimitados.
Os da coluna anterior dividem-se em um grupo medial (que está presente em
toda a extensão da medula e inerva a musculatura axial, ou seja, o "tronco" do
corpo) e um grupo lateral (responsável por inervar a musculatura apendicular
— os membros —, presente por isso apenas nas intumescências cervical e
lombar, que dão origem respectivamente aos plexos braquial e lombossacral
para inervar os membros superiores e inferiores). No núcleo lateral, os
neurônios mais mediais inervam a musculatura proximal dos membros,
enquanto os mais laterais inervam a musculatura distal. A coluna posterior é
mais confusa e rica em núcleos, mas possui dois deles bem destacados: o
núcleo torácico ou dorsal (presente apenas de T1 a L2, possui neurônios que se
comunicarão com o cerebelo, responsáveis pela propriocepção inconsciente) e a
substância gelatinosa (responsável pelo "portão da dor", um mecanismo que
regula a entrada de impulsos dolorosos no sistema nervoso).
Pelos funículos passam as fibras ascendentes e descendentes que
percorrem o interior da medula, ou seja, o interior da "parte baixa" do sistema
nervoso central. Como vimos, conjuntos de fibras no SNP são chamados de
nervos; no SNC são tratos, fascículos ou lemniscos, dependendo de sua
espessura. Esses tratos, fascículos e lemniscos estarão percorrendo os funículos
da medula. Serão estudados em mais detalhes nos próximos capítulos. Os
neurônios que percorrem os funículos são chamados de cordonais, enquanto
aqueles eferentes que partem das colunas anteriores e laterais são chamados
de radiculares (divididos entre viscerais e somáticos). Essa divisão não é muito
importante, mas saiba que ela existe. Os neurônios cordonais são divididos em
neurônios de projeção e neurônios de associação, e essa é a parte importante.
As fibras dos neurônios de projeção são sempre longas e ascendentes, saindo

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da medula para terminar em alguma estrutura superior (tálamo, cerebelo, etc.).


As fibras dos neurônios de associação integram diferentes segmentos
medulares, podendo ser ascendentes ou descendentes. Percorrem o fascículo
próprio, uma região que envolve o H medular, participando ativamente dos
processos de reflexos intersegmentares que serão estudados no próximo
capítulo. Tanto os neurônios cordonais quanto os radiculares são neurônios de
axônio longo, evidentemente. Existem também neurônios de axônio curto,
cujos prolongamentos permanecem sempre dentro da própria substância
cinzenta (o H medular, no caso da medula), funcionando como interneurônios
(nome que será amplamente explorado até o fim do período) que modulam
alguma cadeia sináptica dos neurônios de axônio longo. Dentre eles cabe
destacar as células de Renshaw, neurônios de axônio curto da porção medial da
coluna anterior que atuam inibindo os neurônios motores da medula. No
próximo capítulo falaremos em "interneurônios inibitórios dos motoneurônios".
Quando isso acontecer, lembre-se dessas células de Renshaw.
Na região anterior ao canal central da medula encontra-se a chamada
comissura branca, por onde passam as fibras que se cruzam na medula,
como será comentado nos capítulos das vias descendentes e ascendentes.
Não se preocupe se ainda não entendeu bem como funciona tudo isso —
o corte transversal da medula será muito melhor entendido depois dos estudos
que serão feitos nos capítulos de vias descendentes e ascendentes. O mais
importante neste capítulo é que você entenda o que são os segmentos
medulares. Se não os entendeu bem, releia a seção que trata sobre eles e, se
preciso, procure um monitor ou professor. É muito importante que entenda o
que é um segmento medular para poder entender grande parte dos casos
clínicos que serão estudados.

Figura 4.2 – Raízes medulares. Observe que nesta imagem estão representados dois segmentos
medulares (projetando um par de raízes ventrais e dorsais cada).

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Figura 4.3 – Vista transversal da medula. As colunas do H medular podem ser chamadas também de
cornos. Alguns autores usam o termo “coluna” para se referir aos funículos, por isso tenha cuidado
para não confundir. As duas nomenclaturas estão corretas.

Meninges medulares

Como tudo no SNC, a medula é envolta por três membranas fibrosas


chamadas meninges. A mais externa é a dura-máter, formando em volta de
toda a medula o chamado saco dural, que termina caudalmente em um
fundo-de-saco ao nível da vértebra S2 (lembra-se que a medula propriamente

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dita vai só até L2? A porção final do saco dural é, então, uma região desprovida
de medula). A do meio é a aracnóide, e a mais interna chama-se pia-máter. A
pia-máter, tal como a dura-máter, também não acaba junto com a medula: ela
continua até o hiato sacral, perfurando o fundo do saco dural (que terminou na
vértebra S2, claramente antes do hiato sacral) e formando o filamento terminal.
Imagine um saco dentro de outro saco; o saco interno é mais fino mas mais
longo, perfurando a parte inferior do externo antes de terminar. Essa parte final
perfurante do saco interno (a pia-máter) é o que se chama de filamento
terminal.
Uma vez que as meninges formam três camadas, obviamente há um
espaço entre cada uma delas. São os espaços meníngeos. O espaço entre a
dura-máter e a camada óssea externa às meninges (o periósteo do canal
vertebral) chama-se espaço epidural (ou extradural) e contém tecido adiposo e
um plexo venoso (o plexo venoso vertebral interno). O espaço subdural (entre
a dura-máter e a aracnóide) é virtual, isto é, na prática não existe muito
claramente, já que as duas são intimamente relacionadas. O espaço
subaracnóideo está sendo escrito em negrito, e por isso o astuto leitor já
percebeu que é de todos o mais importante: localizado entre a aracnóide e a
pia-máter, é onde fica o líquor (ou líquido cerebroespinhal ou ainda líquido
encefalorraquidiano) que circula pela medula. O líquor é fundamental para o
sistema nervoso central, pois serve como um lubrificante que impede o
desgaste pelo atrito e amortece qualquer impacto sofrido pelo corpo, ajudando
a proteger o SNC.

"As únicas pessoas normais são aquelas que você não conhece bem."
— Alfred Adler, psiquiatra austríaco do século XX.

Referências
1. Bear MF, Connors BW, Paradiso MA. Neurociências: Desvendando o Sistema
Nervoso. 3rd ed. Porto Alegre: Artmed; 2008.

2. Guyton AC, Hall JE. Tratado de Fisiologia Médica. 11th ed. Rio de Janeiro:
Elsevier; 2006.

3. Haines DE. Neurociência Fundamental. 3rd ed. São Paulo: Elsevier; 2006.

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4. Kandel ER, Schwartz JH, Jessel TM. Princípios da Neurociência. 4th ed.
Barueri: Manole; 2003.

5. Lent R. Cem Bilhões de Neurônios. 1st ed. São Paulo: Atheneu; 2005.

6. Machado ABM. Neuroanatomia Funcional. 2nd ed. São Paulo: Atheneu; 2006.

7. Rubin M, Safdieh JE. Netter Neuroanatomia Essencial. 1st ed. Rio de Janeiro:
Elsevier; 2008.

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