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Capítulo 9 – O Cerebelo

Nem tudo que treme é Parkinson

Augusto Valadão Junqueira

Visão geral

O cerebelo está ligado aos movimentos somáticos (da musculatura


estriada esquelética). Veremos que possui alguma ligação com funções
cognitivas, mas o fundamental aqui são os movimentos. A palavra-chave para o
cerebelo é coordenação. Quando pensamos em cerebelo, devemos pensar em
coordenação dos movimentos.
Já parou para pensar a complexidade que é conseguir acertar um alvo
em cima da mesa de primeira com as mãos? Parece banal, mas não é. Ao
tentar pegar uma caneta diante de nós, precisamos não só esticar o braço e
abrir a mão, como também corrigir a cada momento os possíveis erros para
que o movimento seja perfeito. O cerebelo é o responsável por isso. "Mas eu
não preciso fazer nenhuma dessas correções de movimento", dirá você, "eu
simplesmente estico meu braço e acerto o que quero com a mão sem nem
pensar". Sim, é verdade. E por isso mesmo entenderemos que as funções que o
cerebelo exerce são inconscientes.
A coisa mais fundamental para entender o funcionamento do cerebelo é
ter em mente o seguinte dado: o cerebelo possui zonas de aferência e zonas de
eferência distintas. Isto é, as informações que chegam seguem uma lógica
organizacional diferente das informações que saem. Imagine um grande
estacionamento; as entradas serão diferentes das saídas, e o carro terá que
percorrer um percurso diferente ao entrar e ao sair. O cerebelo é mais ou
menos assim, se pensarmos nos carros como sendo impulsos elétricos, nos
dendritos e axônios como os caminhos e nos corpos dos neurônios como as
vagas. A informação chega e sai o tempo todo, mas os caminhos por onde
pode circular são sempre os mesmos. Algumas informações tornam-se
permanentes, como veremos, pois o cerebelo armazena também as memórias
motoras. Imagine que algumas das vagas do grande estacionamento foram
compradas por clientes permanentes e não terá problema em continuar
seguindo nossa metáfora.
Capítulo 9 – O Cerebelo

Anatomia e histologia do cerebelo

A formação geral do cerebelo se parece muito com a do cérebro


("cerebelo" quer de fato dizer "pequeno cérebro", em latim). Acompanhe
imagens do cerebelo enquanto lê este capítulo, pois entender suas formas será
importante para entender a distribuição de suas funções.
O cerebelo ocupa a maior parte da fossa craniana posterior (por isso
chamada fossa cerebelar do osso occipital), encaixando-se atrás do tronco
encefálico (da ponte, principalmente) para formar o tecto do IV ventrículo. Ele
possui uma fina camada externa de substância cinzenta (ou seja, com corpos
de neurônios), o córtex cerebelar. Em seu interior é preenchido basicamente
por substância branca (prolongamentos de neurônios), sendo esta parte
chamada de corpo medular do cerebelo. Em seu interior, entretanto, há
também algumas massas bem organizadas (núcleos) de substância cinzenta, os
chamados núcleos profundos (ou centrais) do cerebelo.
Paremos um pouco no envoltório exterior, o córtex. Histologicamente, o
córtex cerebelar possui três camadas de células: a camada molecular, mais
externa; a camada de células de Purkinje, que comentaremos logo adiante;
e a camada granular, mais interna.
A camada granular é a mais interna do córtex cerebelar. Possui células
granulares (as únicas excitatórias do córtex do cerebelo) e células de Golgi
(inibitórias); ambas se unem com os terminais das fibras musgosas (explicadas
adiante) para formar os chamados glomérulos cerebelares, estruturas de onde
partem as fibras que se tornam horizontais na camada molecular (fibras
paralelas), onde farão sinapses com os dendritos das células de Purkinje.
A camada molecular é a mais externa do córtex cerebelar. Possui dois
tipos de células (células estreladas e células em cesto), ambas inibitórias, que
participam dos mecanismos intrínsecos do cerebelo. É nesta camada que as
fibras musgosas acabam por interferir indiretamente nas células de Purkinje —
embora elas terminem de fato na camada granular, isto é, uma camada abaixo
de onde ficam as células de Purkinje, as fibras paralelas que com elas se
conectam cumprirão a função de modular as células da camada central,
ligando-se a elas na camada superficial (um pouco confuso, de fato).
O mais importante saber aqui é o seguinte: é da camada de células de Purkinje
que partem os neurônios que chegarão aos núcleos profundos do cerebelo,
fazendo a conexão entre eles e o córtex cerebelar. As células de Purkinje são
inibitórias, guarde este dado e logo entenderá sua importância.
Anatomicamente há duas divisões no córtex, uma vertical e outra horizontal,
ambas de grande importância funcional (uma será importante na aferência e
outra na eferência). Na divisão vertical — a mais visível — temos três áreas no
córtex: o verme, o paraverme (ou zona intermédia) e os hemisférios laterais.
Nas peças conseguiremos distinguir apenas o verme e os hemisférios, uma vez
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Capítulo 9 – O Cerebelo

que o paraverme é uma estrutura com funcionalidade distinta mas destituída de


um contorno anatômico claro. Apenas saiba que ele está lá, entre o verme e os
hemisférios. A divisão horizontal não é tão facilmente identificada em um
primeiro momento, mas não se preocupe com isso: logo se acostumará a
identificá-la. Consiste em uma divisão de três áreas, chamadas lobos: lobo
anterior, lobo posterior e lobo flóculo-nodular. As duas fissuras que demarcam
a divisão entre esses lobos são as duas que você precisa guardar: a fissura
prima, que divide os lobos anterior e posterior (chamados em conjunto de
"corpo" do cerebelo); e a fissura póstero-lateral, que divide o lobo flóculo-
nodular do corpo cerebelar. Uma estrutura anatômica importante vista nos
hemisférios laterais são as tonsilas cerebelares (uma de cada lado), relevantes
em casos de hipertensão craniana: podem vir a comprimir o bulbo do tronco
encefálico, o que gera sérias complicações clínicas.
É importante que você entenda essas divisões do cerebelo e as
peculiaridades de seu córtex antes de prosseguir. Analisaremos agora a
aferência e a eferência cerebelares separadamente, para então entender como
o processo todo ocorre.

Aferência cerebelar

Fibras musgosas e fibras trepadeiras são os nomes dados aos dois


tipos de fibra que trazem informações ao cerebelo, vindas de outras regiões do
sistema nervoso. Se você entendeu isso, já está de bom tamanho. Nos livros
poderá encontrar mais detalhes sobre esses dois tipos de fibra, resumidos aqui:
ambas são excitatórias (empregam o glutamato como neurotransmissor),
embora as musgosas terminem na camada granular (emitindo ramos para os
núcleos profundos antes do fim de seu trajeto) e as trepadeiras continuem até
a camada de células de Purkinje, excitando-as diretamente; as fibras musgosas
excitam também as células de Purkinje, de forma indireta, pelo seguinte
processo: ao chegar na camada granular, fazem sinapses com as células
granulares, que emitem axônios "para cima" que atravessarão a camada de
Purkinje e chegarão à camada molecular, mudando então sua direção e por isso
passando a se chamar "fibras paralelas", que enfim se ligarão com os dendritos
das células de Purkinje, que encontram-se também na camada molecular. Moral
da história: as fibras musgosas, conquanto sejam muito mais numerosas que as
trepadeiras, fazem um longo caminho até conseguir influenciar as células de
Purkinje, que serão o centro de nosso interesse no córtex quando formos
estudar a eferência cerebelar. As musgosas são também importantes por
emitirem ramos aos núcleos profundos, modulando suas atividades juntamente
com as células de Purkinje (entenderemos o funcionamento dos núcleos
também na parte eferente).
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Capítulo 9 – O Cerebelo

Vimos quais as fibras que chegam ao cerebelo, mas uma pergunta


fundamental permanece: por onde elas chegam? Lembremos então de
estruturas vistas no estudo do tronco encefálico: os pedúnculos cerebelares
(superior, médio e inferior). É por eles que passarão todas as fibras que ligam o
cerebelo com o resto do sistema nervoso, tanto as aferentes quanto as
eferentes. Um dado importante: "40 vezes mais axônios projetam-se para
dentro do cerebelo que para fora dele" (Kandel et al., 2000). A importância
disso não é guardar o valor numérico, mas sim o que ele representa: a
aferência do cerebelo é muito maior que sua eferência, o que condiz com o fato
de que a maior parte dos pedúnculos serve para a chegada de fibras (o
pedúnculo cerebelar médio inteiro, boa parte do inferior e um pouco do
superior), enquanto uma pequena fração serve para a saída (uma pequena
parte do inferior e o resto do superior). Faz sentido também ao relembrarmos a
principal função deste órgão, que é a coordenação. Uma estrutura que
coordena algo precisa receber muitas informações para projetar de si algumas
poucas correções e orientações.
Pois bem, sabemos agora por onde chega a informação (fibras musgosas
e trepadeiras) e como ela penetra o cerebelo (pelos pedúnculos cerebelares).
Chegamos então na parte mais importante desta seção: os lobos. As fibras que
chegam ao cerebelo irão ao seu córtex, de onde novas fibras sairão para atingir
os núcleos profundos. A questão é: quais fibras irão a quais partes do córtex?
O lobo flóculo-nodular (arquicerebelo), o pequeno lobo formado pelo
nódulo e os dois flóculos, recebe fibras dos núcleos vestibulares (o sistema
vestibular do tronco encefálico, formado pelos núcleos que recebem a
informação vestibular do VIII nervo craniano, o nervo vestibulococlear). O
sistema vestibular veicula as informações proprioceptivas da cabeça, o que na
prática quer dizer: equilíbrio. Essa é a palavra-chave para o lobo flóculo-
nodular.
O lobo anterior (paleocerebelo) está também ligado ao equilíbrio, mas
por razões diferentes. Recebe informações pelos tratos espinocerebelares,
vistas brevemente no capítulo das vias ascendentes da medula espinhal. São
dois: o trato espinocerebelar posterior e o trato espinocerebelar anterior. O
primeiro transmite sinais sensoriais de receptores proprioceptivos de todo o
corpo, permitindo ao cerebelo avaliar o grau de contração dos músculos e a
tensão nas cápsulas articulares e tendões. O segundo – anterior –, pouco
proeminente no ser humano, leva sinais motores que chegam à medula pelo
trato córtico-espinhal, deixando o cerebelo ciente do que se passa nas vias
motoras descendentes voluntárias. Com esses dados já podemos entender o
porquê da participação do lobo anterior no equilíbrio: para mantermos o corpo
estável, é preciso que haja uma distribuição correta da contração de nossos
músculos axiais (do tronco) e apendiculares (dos membros) proximais. Essa
distribuição é feita automaticamente pelo cerebelo, e só é possível à medida

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Capítulo 9 – O Cerebelo

que o lobo anterior é informado sobre o atual estado de posicionamento


(propriocepção) e força exercida (contração) por cada parte do corpo.
O lobo posterior (neocerebelo) é o responsável pela recepção das
informações vindas diretamente do córtex cerebral (observe a diferença entre
córtex cerebral e córtex cerebelar e entenda que o lobo posterior é o córtex do
cerebelo recebendo informações do córtex do cérebro). Elas vêm das mais
variadas áreas do cérebro, fazendo uma passagem por núcleos da ponte antes
de penetrar o cerebelo em direção ao seu lobo posterior (por isso a via é
chamada de córtico-ponto-cerebelar). Através deste circuito, o cérebro
consciente informa ao cerebelo sobre as intenções voluntárias de movimentos a
serem realizados. O cerebelo irá então criar os planejamentos motores para que
isso possa acontecer, garantindo a sua viabilidade espacial (pois tem também
uma função cognitiva de noção espacial) e funcional (armazena as memórias
motoras do indivíduo, e portanto saberá avaliar as possibilidades de o corpo ser
ou não capaz de realizar a ação). Tudo isso em um micro milésimo de segundo.
Em suma: o lobo flóculo-nodular recebe dos núcleos vestibulares, o
anterior da medula espinhal e o posterior do córtex cerebral. Entendido isso,
avancemos para a eferência.

Eferência cerebelar

No raciocínio da aferência cerebelar paramos em três áreas do córtex.


Lembra-se das células de Purkinje? Pois é por elas que a informação das três
áreas continuará seu caminho, indo agora para os núcleos profundos do
cerebelo. As células de Purkinje, como foi dito, são inibitórias. Eis o seguinte
funcionamento: as informações que chegam ao cerebelo (pelas fibras musgosas
e trepadeiras) são excitatórias e irão assim estimular as células de Purkinje de
seu córtex; as células de Purkinje, por sua vez, irão inibir (frear, modular) os
núcleos profundos do próprio cerebelo (isto é, trata-se de uma etapa interna do
circuito cerebelar, em que a informação aferente está sendo modulada e
preparada para sair como uma nova informação de coordenação para os
demais sistemas); os núcleos profundos, finalmente, irão projetar-se para
diferentes partes do sistema nervoso de modo excitatório, completando assim o
circuito cerebelar. Em última análise, portanto, os impulsos que o cerebelo
emite são excitatórios. Não confunda isso com os impulsos inibitórios das
células de Purkinje, que participam apenas da parte interna do circuito
cerebelar. O importante agora é distinguir como se dá a eferência nos três
lobos.
O vestíbulo-cerebelo (arquicerebelo) é assim chamado por se conectar
com os núcleos vestibulares. Trata-se do lobo flóculo-nodular, que irá se
conectar diretamente com os núcleos vestibulares em sua eferência (da mesma
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Capítulo 9 – O Cerebelo

forma que o fez na aferência). Neste caso os núcleos vestibulares são,


portanto, como núcleos profundos do cerebelo, muito embora estejam
localizados fora deste órgão. E sendo eles próprios uma parte do sistema
medial de comando motor (como estudamos acerca das vias descendentes), é
fácil entender como o vestíbulo-cerebelo coordena o ajuste postural do corpo,
usando as informações recebidas pelo lobo flóculo-nodular para ajustar a
musculatura corporal através dos feixes vestíbulo-espinhais.
O espinocerebelo (paleocerebelo), representado em sua aferência pelo
lobo anterior e em sua eferência pela região do verme, irá se conectar com os
núcleos fastigiais, que por sua vez se ligam aos núcleos reticulares, núcleos
vestibulares e colículo superior do tronco encefálico, todos responsáveis pela
coordenação dos movimentos axiais do corpo ligados à postura (lembre-se das
vias do sistema descendente medial). Para entender o caminho feito aqui é
importante manter em mente a informação fundamental dada no começo deste
capítulo: as informações aferentes seguem um caminho diferente das
eferentes. Sendo assim, os impulsos do espinocerebelo chegarão pelo lobo
anterior, concentrando-se na região central da divisão vertical do córtex (o
verme) para então se lançar em direção aos núcleos profundos. As projeções
para os núcleos fastigiais e destes para os núcleos do tronco encefálico irão
garantir a regulação do tônus muscular de todo o corpo, para que possamos
manter o equilíbrio e nos ajustar às diferentes posturas que assumimos ao
longo do dia. "Um minuto", pensa você neste ponto, "mas então a função
prática do vestíbulo-cerebelo e do espinocerebelo é igual — manter o
equilíbrio?" Sim, basicamente. Mas há entre os dois uma diferença
fundamental. Tente concluir qual é pelo que já leu até aqui. A resposta será
dada na seção de síndromes cerebelares.
A eferência do espinocerebelo irá também seguir um segundo caminho.
Através da região do paraverme, as informações veiculadas pelo lobo anterior
atingirão os núcleos interpostos (globoso e emboliforme), que por sua
vez se conectam com o núcleo rubro do mesencéfalo — a estrutura que faltava
dentre as vias descendentes do sistema nervoso segmentar (isto é, do tronco
encefálico para baixo), sendo esta do sistema descendente lateral, responsável
por auxiliar o trato córtico-espinhal lateral na execução dos movimentos
apendiculares. O espinocerebelo, assim, exerce também a função de conferir
suavidade e harmonia aos movimentos dos membros, já que a contração bem
distribuída da musculatura apendicular é primordial para a boa realização dos
movimentos finos. Os núcleos interpostos ligam-se também com o córtex (por
uma via interpósito-tálamo-cortical), assumindo as correções de um movimento
já iniciado. Veja mais sobre isso na seção das funções do cerebelo.
O cérebro-cerebelo (neocerebelo), que em sua aferência é
representado pelo lobo posterior, irá agora aglomerar sua informação nos
hemisférios laterais para se ligar aos núcleos denteados, dos quais irão partir

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Capítulo 9 – O Cerebelo

fibras que se projetam para o tálamo e dele para o córtex cerebral. Os núcleos
talâmicos que fazem esta intermediação são principalmente os núcleos
ventrolaterais (VL) do tálamo; esta informação será importante quando formos
diferenciar o cerebelo dos núcleos da base. Um leitor observador terá
observado o seguinte fato: o lobo posterior recebe do córtex cerebral e, através
dos hemisférios laterais e dos núcleos denteados, para ele devolve suas fibras.
Sim, trata-se de um circuito fechado. Mas não, o cerebelo não devolve as
informações de volta para a mesma área de onde recebeu, pois a eferência se
dará para o córtex motor (M1 e regiões adjacentes), enquanto a aferência vem
de diversas regiões cognitivas do cérebro. Esta é uma das formas que o cérebro
cognitivo tem de se conectar com o cérebro motor. Ele não simplesmente
resolve fazer um movimento e lança impulsos para o seu vizinho cortical efetuá-
los; as informações passam primeiro por moduladores/corretores (o cerebelo e
os núcleos da base) antes de chegar às áreas cerebrais responsáveis pela
motricidade somática, retornando ao cérebro já com correções acerca dos
detalhes de sua efetuação.
Vamos resumir esquematicamente o que vimos:

1) Vestíbulo-cerebelo: dados sobre a posição da cabeça — equilíbrio


Circuito: núcleos vestibulares => lobo flóculo-nodular => núcleos
vestibulares

2) Espinocerebelo: informações proprioceptivas e sobre a contração do


corpo — equilíbrio, postura e suavidade de movimentos
Circuito: medula => tratos espinocerebelares anterior e posterior => lobo
anterior => A) ou B)
A) verme => núcleos fastigiais => núcleos do tronco encefálico
(reticulares, vestibulares e tectais)
B) paraverme => núcleos interpostos => α) ou β)
α) núcleo rubro
β) tálamo => região motora do córtex cerebral

3) Cérebro-cerebelo: modulação da movimentação somática voluntária


Circuito: diversas regiões do córtex cerebral => ponte => lobo posterior
=> hemisférios laterais => núcleos denteados => núcleos ventrolaterais
(VL) do tálamo => região motora do córtex cerebral

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Capítulo 9 – O Cerebelo

Funções do cerebelo

Já vimos muitas das funções deste órgão dos movimentos, mas


tentaremos agora compactar de forma resumida todas as suas funções.
Graças ao vestíbulo-cerebelo, o cerebelo é capaz de coordenar o
equilíbrio corporal de acordo com as informações que recebe sobre a posição
da cabeça. O controle do equilíbrio se dá também pelo espinocerebelo, que
integra as informações proprioceptivas do resto do corpo com os dados sobre a
contração muscular de cada região, programando então a necessidade de
distribuição do tônus para que o equilíbrio e a postura correta se mantenham.
Quando um movimento complexo precisa ser feito, o cérebro-cerebelo
planeja sua execução, programando as minúcias de um movimento fino ou as
sequências de execução de um movimento que envolva muitas articulações.
Depois que já se iniciou, o movimento passa a ser controlado e "corrigido em
tempo real" pelo espinocerebelo (como ele recebe as informações de
propriocepção do corpo a cada momento, é o ideal para tal função), com uma
eferência que parte do paraverme para o córtex cerebral, onde os ajustes
necessários serão feitos para que o movimento transcorra da maneira mais
suave e precisa possível.
O cérebro-cerebelo serve também como um local de armazenamento das
memórias motoras (entenderemos mais sobre isso no estudo dos mecanismos
da memória), relacionando-se assim com o aprendizado motor. Está ligado
ainda a algumas funções cognitivas, como a noção espacial e outras mais
complexas.
Como podemos ver, o cerebelo é um órgão coordenador dos
movimentos. Seja no planejamento de movimentos finos complexos ou na
organização da distribuição de movimentos posturais básicos, suas funções
estão sempre ligadas à coordenação (integração, planejamento, correção) dos
movimentos somáticos.

Síndromes cerebelares: considerações clínicas

Com todas as informações que já temos, analisar as síndromes


cerebelares será apenas uma questão de raciocinar.
Comecemos pela mais simples: a síndrome causada pela lesão do lobo
flóculo-nodular. A síndrome do vestíbulo-cerebelo se dá quando o lobo
flóculo-nodular é lesado, o que é comum entre crianças com meduloblastoma
— um tumor no teto do IV ventrículo, que consequentemente irá comprimir
esta região do cerebelo. Como a função do vestíbulo-cerebelo está ligada ao
equilíbrio, a complicação de sua lesão não poderia ser mais evidente: perda do

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Capítulo 9 – O Cerebelo

equilíbrio. As consequências práticas são as seguintes: ataxia (incoordenação)


troncular e postura sobre base alargada. Ambas podem também ser vistas na
lesão do espinocerebelo. Vamos então esclarecer as diferenças.
A síndrome do espinocerebelo acontece quando o lobo anterior ou o
verme são lesados, o que pode acontecer em casos de alcoolismo crônico (o
álcool tem uma afinidade específica pelas células de Purkinje, que com o tempo
podem acabar se degenerando). A sintomatologia depende da gravidade em
questão. Os primeiros sinais são gerados pela perda de equilíbrio por ataxia
dos membros inferiores: marcha instável ("marcha de bêbado") e postura sobre
base alargada. Chegamos enfim a uma questão fundamental: como diferenciar
a perda de equilíbrio do vestíbulo-cerebelo e a do espinocerebelo. O primeiro
dado para esta resolução é a forma como cada um trabalha. O espinocerebelo
controla o equilíbrio e a postura através da distribuição da tonicidade dos
músculos. Isto é, sem sua regulação, haverá perda de tônus. A síndrome do
espinocerebelo é, pois, acompanhada geralmente de hipotonia. Mas podemos
também dispor de outros recursos para diferenciá-los, caso seja possível: 1) o
paraverme se projeta também para o tálamo e dele para o córtex, ao cumprir
sua tarefa de regular um movimento já iniciado; a perda desta função pode
levar a ataxias também parecidas com as da síndrome do cérebro-cerebelo,
com uma diferença causal: ao invés de ser uma ataxia por falha de
planejamento motor, é uma ataxia causada pela falta da "correção em tempo
real" de um movimento já iniciado; 2) para entender esta diferença, é preciso
entender a diferença entre a propriocepção somestésica e a propriocepção
vestibular: as informações vestibulares — informações sobre a posição da
cabeça — são geradas por otólitos, pequenas pedras no ouvido interno que
detectam a movimentação da cabeça, que será então interpretada pelo sistema
vestibular e convertida em um dado sobre sua atual posição; isto é: a
informação vestibular depende da movimentação da cabeça, enquanto a
propriocepção somestésica é permanentemente transmitida pelos fusos
musculares e órgãos neurotendíneos; tem-se assim a seguinte constatação: um
paciente com síndrome vestíbulo-cerebelar não terá vertigem a não ser que
mova sua cabeça, enquanto um com síndrome espinocerebelar permanecerá
com a sensação de tonteira mesmo que fique parado (por isso esta é a
chamada "síndrome do bêbado", e não a outra); 3) outra consequência da
diferença entre a propriocepção somestésica e a vestibular: o problema
fundamental do indivíduo com síndrome espinocerebelar é não saber o estado
de estiramento e contração de seus músculos, ou seja, ele de fato não sabe
onde nem como seu corpo está. Este fato pode ser compensado pela visão: o
cérebro consciente irá assumir a função de gerar os dados sobre a posição das
partes do corpo, para que os ajustes posturais e de equilíbrio possam então ser
realizados. Conclusão: um paciente com síndrome espinocerebelar terá sua
vertigem muito piorada se fechar os olhos, enquanto um paciente com

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Capítulo 9 – O Cerebelo

síndrome vestíbulo-cerebelar será menos influenciado por estar de olhos


fechados ou abertos — os otólitos irão gerar as informações sobre a posição da
cabeça e elas serão defeituosamente interpretadas da mesma forma, coisa que
não pode ser compensada com outro sentido (mesmo assim há uma certa piora
ao fechar os olhos na síndrome vestíbulo-cerebelar, contudo). Essas diferenças,
entretanto, estarão presentes apenas em casos mais avançados e graves. O
fundamental para diferenciar as duas síndromes é a presença ou não de
hipotonia juntamente com a perda de equilíbrio. Outra coisa que também deve
ser considerada, na prática, é a possibilidade de haver lesão em mais de uma
região cerebelar simultaneamente.
A síndrome do cérebro-cerebelo é a mais evidente e rica em
sintomas. Causada por uma lesão no lobo posterior ou hemisférios laterais, irá
causar um vasto conjunto de ataxias que recebem nomes próprios, conquanto
sejam todas ligadas a uma mesma causa: perda da coordenação geral dos
movimentos mais complexos. A palavra-chave aqui é, portanto, ataxia. O mais
importante será entender o porquê de onde a ataxia ocorre. Guarde o seguinte:
não importa o que lhe digam, o cerebelo é sempre homolateral. Algumas de
suas vias são mesmo homolaterais, enquanto outras sofrem um duplo
cruzamento (como a aferência do trato espinocerebelar anterior e a eferência
cerebelo-tálamo-córtico-espinhal). No fim das contas um lado do cerebelo irá
sempre influenciar o mesmo lado do corpo. Uma ataxia característica desta
síndrome no lado esquerdo do corpo significará uma lesão no hemisfério
esquerdo do cerebelo (ou na porção esquerda do lobo posterior). Os sintomas
geralmente são: tremor de intenção (ou "tremor de movimento"; ausente no
repouso, visto apenas quando o indivíduo tenta se mover — principalmente nos
momentos finais do movimento, em que a precisão é fundamental), dismestria
(incapacidade de acertar com precisão um alvo específico, como colocar o dedo
indicador na ponta do próprio nariz.), disdiadococinesia (dificuldade de realizar
movimentos rápidos alternantes, como supinar e pronar a mão repetitivamente
ou tocar o polegar com os dedos indicador e médio alternadamente), sinal do
rechaço (perda do reflexo antagonista muscular, em que um músculo deveria
compensar automaticamente a ação de seu opositor para garantir a
estabilidade de movimentos bruscos) e decomposição de movimentos
complexos (pela perda da capacidade de organizar automaticamente a
sequência de ações que um movimento avançado deve ter). Casos muito
graves podem causar complicações na fala e problemas cognitivos. A fala é
afetada apenas em casos mais graves pois tem também uma área de
coordenação motora própria no córtex cerebral, a área de Broca, que será
estudada mais adiante.

Para entender o cerebelo basta entender que ele possui três áreas
distintas praticamente individuais, todas relacionadas em última análise com a

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Capítulo 9 – O Cerebelo

coordenação dos movimentos somáticos e todas muito semelhantes quanto à


aparência anatômica e a organização histológica. Estude as conexões e funções
de cada uma separadamente, para então relacionar tudo e visualizar o
funcionamento geral do cerebelo. As diferenças e semelhanças entre o cerebelo
e os núcleos da base serão vistas no próximo capítulo.

"Se o conhecimento pode criar problemas,


não é através da ignorância que podemos solucioná-los."
— Isaac Asimov, escritor russo do século XX.

Referências
1. Bear MF, Connors BW, Paradiso MA. Neurociências: Desvendando o Sistema
Nervoso. 3rd ed. Porto Alegre: Artmed; 2008.

2. Haines DE. Neurociência Fundamental. 3rd ed. São Paulo: Elsevier; 2006.

3. Kandel ER, Schwartz JH, Jessel TM. Princípios da Neurociência. 4th ed.
Barueri: Manole; 2003.

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6. Rubin M, Safdieh JE. Netter Neuroanatomia Essencial. 1st ed. Rio de Janeiro:
Elsevier; 2008.

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