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U N I D A D E

1
Introdução à Química
Farmacêutica
Objetivos de aprendizagem
Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados:

„„ Conceituar Química Farmacêutica e compreender a sua importância.


„„ Descrever a origem e a descoberta dos fármacos.
„„ Identificar os princípios básicos de planejamento e desenvolvimento
de novos fármacos, da modelagem molecular, da latenciação, do
reposicionamento de fármacos e da relação estrutura-atividade.

Introdução
A Química Farmacêutica é uma ciência voltada para o planejamento e o
desenvolvimento dos fármacos.
Trata-se de uma área interdisciplinar que combina os conhecimentos
de Química avançada com diversas outras disciplinas, a fim de aperfeiçoar
o processo de desenvolvimento de fármacos.
Inicialmente, os fármacos se originaram a partir de produtos de origem
natural, como as plantas medicinais, no entanto, com o avanço da ciência,
inclusive da Química Orgânica, a origem dos fármacos passou a ser, em
sua maior totalidade, atribuída à síntese química.
Atualmente, a Química Farmacêutica dispõe de várias estratégias de
planejamento e desenvolvimento de fármacos, como a síntese química,
a latenciação e a modelagem molecular, além de estratégias como o
reposicionamento de fármacos e outras.
Neste capítulo, você vai aprender os princípios e as etapas básicas da
Química Farmacêutica e as estratégias utilizadas no planejamento e no
desenvolvimento de fármacos. Tais conhecimentos servirão como base
16 Introdução à Química Farmacêutica

para o entendimento e a compreensão sobre a Química Farmacêutica e


a produção de fármacos na atualidade.

Conceitos e etapas principais


A Química Farmacêutica é uma ciência que tem como base teórica a Química
aplicada à Medicina. Essa área de conhecimento se preocupa em planejar,
sintetizar, identificar e desenvolver um agente terapêutico que tenha o efeito
biológico desejado quando este for exposto a um organismo vivo. Além disso,
a Química Farmacêutica também se detém nos estudos de relação estrutura-
-atividade biológica (REA) desses agentes.
Para atingir tais objetivos, a Química Farmacêutica faz uso do conhecimento
advindo de várias outras ciências, como Química, Farmacologia, Fisiologia,
Imunologia, Biologia Molecular, Bioquímica, Toxicologia, Microbiologia,
entre outras que, quando combinadas, auxiliam a construção do conheci-
mento, formando a disciplina e o alicerce inicial da Química Farmacêutica.
De maneira mais simples, podemos dizer que a Química Farmacêutica é uma
ciência interdisciplinar.
Mas para que você possa entender de forma clara e objetiva a Química
Farmacêutica, é de fundamental importância fixar alguns conceitos que serão
abordados ao longe deste capítulo. Tais conceitos permitirão uma melhor
compreensão sobre o assunto abordado e servem como base para estruturar e
formar o conhecimento acerca do assunto. São eles (AGÊNCIA NACIONAL
DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA, 2018):

„„ droga: qualquer substância que, quando administrada a um organismo,


produz algum efeito;
„„ fármaco: substância conhecida com características ativas e efeito
terapêutico;
„„ medicamento: quando são adicionados componentes ao fármaco para
que este seja administrado terapeuticamente;
„„ remédio: substância mineral, animal ou sintética, banho, terapia,
ginástica;
„„ forma farmacêutica: forma final de um medicamento, como comprido,
capsula ou injetável;
„„ farmacocinética: estudo dos mecanismos de absorção, distribuição,
metabolização e excreção de fármacos;
Introdução à Química Farmacêutica 17

„„ farmacodinâmica: estudo das intenções entre o fármaco e seus alvos


terapêuticos;
„„ droga ideal: droga ou fármaco livre de efeitos tóxicos e altamente
seletivo para um determinado alvo terapêutico.

Agora que você já conhece tais conceitos, podemos dar continuidade


ao nosso estudo sobre a Química Farmacêutica. De forma geral, a Química
Farmacêutica está dividida em etapas fundamentais: descoberta, otimização
e desenvolvimento de fármacos.

Descoberta
A primeira etapa, ou a descoberta de fármacos, consiste basicamente em
pesquisar novos candidatos a fármacos, sendo os dois principais processos: a
síntese química e a semissíntese, ou a partir de produtos naturais de origem
vegetal, animal ou mineral.
Embora a descoberta de fármacos tenha iniciado com os resultados obtidos
por intermédio da medicina popular, hoje com a evolução e o desenvolvimento
de disciplinas, como a Biologia Molecular, a Farmacologia e até mesmo a
Química, também é possível desenvolver fármacos direcionados a um alvo
terapêutico específico. Tal processo também é conhecido como modelagem
molecular.
A etapa de descoberta engloba ainda ensaios biológicos pré-clínicos de
triagem in vitro e in vivo de um possível candidato a fármaco. A triagem de
um novo candidato pode ser entendida como um processo no qual o composto
protótipo descoberto é avaliado frente a uma determinada atividade farma-
cológica, podendo ser uma atividade antiviral, antitumoral, antibacteriana,
antifúngicas, entre diversas outras. A triagem se caracteriza por ensaios
iniciais que fornecem informações farmacológicas a respeito do composto.
Muitos protótipos de fármacos têm sua pesquisa e seu desenvolvimento
interrompidos nessa etapa, caso apresentem baixa ou nenhuma atividade
terapêutica e/ou pronunciada toxicidade.
A etapa da descoberta de um novo agente terapêutico é de fundamen-
tal importância, haja vista que é o alicerce inicial para a produção de um
medicamento.
A Figura 1 mostra alguns exemplos de fármacos descobertos a partir da
síntese química e de fármacos provenientes de produtos naturais de origem
vegetal.
18 Introdução à Química Farmacêutica

Morfina
Fonte vegetal: Papaver somniferum
Uso terapêutico: analgésico

Cisplatina
Fonte sintética: derivado da platin
Uso terapêutico: antitumoral

Figura 1. Estruturas químicas de fármacos origi-


nários de fontes naturais ou sintéticas.
Fonte: Adaptada de molekuul_be/Shutterstock.com.

Otimização
Depois de descoberto o novo agente terapêutico, inicia-se a fase da otimização,
cujo principal objetivo consiste em melhorar, potencializar a ação terapêutica
ou ainda reduzir os potenciais efeitos colaterais.
Nessa etapa, é possível inserir ou retirar grupamentos químicos existentes
na molécula inicial, o que irá fornecer a síntese de um composto que atenda,
o mais próximo possível, às expectativas esperadas de uma droga ideal. Di-
Introdução à Química Farmacêutica 19

versas estratégias podem ser utilizadas para otimizar o desenvolvimento


de fármacos, tais como a simplificação molecular, o bioisosterismo e a
hibridização molecular.
O bioisosterismo se baseia em estratégias de substituição de grupos fun-
cionais instáveis ou tóxicos por grupamentos químicos com propriedades
químicas semelhantes, mas sem tais inconvenientes. Esses grupamentos quí-
micos utilizados como substituintes são chamados de grupamentos isósteros,
ou seja, eles têm as mesmas propriedades químicas (número de elétrons) e
biológicas que os grupamentos iniciais do fármaco.
Por meio da otimização de fármacos por bioisosterismo, é possível desen-
volver um protótipo com efeitos terapêuticos melhorados (farmacodinâmica) e
estabilidade físico-química (farmacocinética). A epotilona (Figura 2), fármaco
anticâncer otimizado a partir da ixabepilona, é um exemplo de otimização
por bioisosterismo, no qual a substituição de um grupamento amina por um
oxigênio diminuiu a instabilidade metabólica existente na ixabepilona.

O
N H
S OH
(E)
HN

a) O OH O

O
S

H2N N OH
O

b) O OH O

Figura 2. Estruturas químicas dos fármacos ixabepilona (a) e epotilona (b).


20 Introdução à Química Farmacêutica

A hibridização molecular é outra estratégia clássica de sucesso utilizada


pela Química Medicinal na otimização de fármacos. A hibridação molecular
pode ser entendida como uma conjugação de estruturas de compostos bio-
ativos distintos em uma única molécula, sendo uma alternativa eficaz para
arquitetar racionalmente estruturas moleculares de novos compostos protótipos
(ARAÚJO et al., 2015).
Um exemplo clássico de hibridização molecular é o obtido para a síntese
do fármaco acetaminossalol (Figura 3), um fármaco anti-inflamatório, anal-
gésico e antipirético obtido mediante reação entre o paracetamol (analgésico
e antipirético) e o ácido salicílico.

Paracetamol Ácido salicílico

O O
O

N OH
H

Acetaminossalol
Figura 3. Estrutura química do fármaco acetaminossalol.
Fonte: Adaptada de Araújo et al. (2015).

Além de melhoras farmacodinâmicas, é possível também melhorar os


aspectos farmacocinéticos, como a solubilidade, a estabilidade química, a
resistência à degradação por enzimas endógenas, o aumento do tempo de
meia vida, entre outros.
Introdução à Química Farmacêutica 21

Desenvolvimento
A última etapa da Química Farmacêutica se preocupa com o desenvolvimento
de um novo fármaco e consiste, basicamente, em estudar as fases clínicas I,
II, III e IV (ensaios com humanos), os quais envolvem estudos a acerca da
farmacodinâmica, da farmacocinética, da farmacotécnica e da farmacovigi-
lância do candidato a fármaco.
Nessa etapa, o agente terapêutico é conduzido a experimentos, a fim de
serem coletadas as informações sobre:

„„ farmacocinética: como ele é absorvido, distribuído, metabolizado e


excretado;
„„ farmacodinâmica: efeitos benéficos e mecanismo de ação;
„„ via de administração: oral ou injetável;
„„ toxicidade: efeitos colaterais e efeitos adversos;
„„ interação medicamentosa: como ele interage com outros fármacos
e tratamentos;
„„ eficácia: comparação com medicamentos similares.

Depois de coletadas essas informações, o candidato a fármaco pode ser ou


não aprovado como medicamento. A aprovação é feita pela Food and Drug
Administration (FDA), órgão do governo dos Estados Unidos, cuja função é
controlar os alimentos e medicamentos, por meio de diversos testes e pesquisas.
A etapa de desenvolvimento é de extrema importância, uma vez que define
parâmetros de eficácia e segurança do novo agente terapêutico.
Embora seja bastante promissor, é importante salientar que o processo de
desenvolvimento de um novo fármaco acarreta elevado custo, demanda tempo
e, na maioria das vezes, os estudos são interrompidos em uma ou mais fases
de produção. Segundo a FDA, a cada 10 mil compostos estudados, apenas um
medicamento é aprovado como fármaco, além disso, o custo em toda a cadeia de
produção é estimado em 1 bilhão de euros. Como já comentado anteriormente,
o processo de pesquisa pode ser interrompido em qualquer uma das fases da
pesquisa, caso o candidato a fármaco não atenda aos requisitos mínimos de
eficácia e segurança (KAUR; SHARMA; SHARMA, 2014).
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A FDA é um órgão dos EUA que é responsável pelo registro e controle de medica-
mentos e alimentos. Cada candidato a fármaco, depois de ser aprovado nas etapas
de descoberta, otimização e desenvolvimento, passa a receber um registro, com o
nome e o número de lote de produção.
A cada novo fármaco introduzido no mercado, a FDA lança uma nota em seu site
com todas as informações acerca do composto.

Origem e descoberta dos fármacos


Em algum momento você já deve ter ouvido alguém, ou até mesmo um parente,
indicar algum chá com propriedades medicinais para aliviar a dor, como, por
exemplo, um chá para a gripe. Embora essa prática ainda hoje seja utilizada
com frequência, esses conhecimentos populares acerca de plantas medicinais
não são novos e datam de séculos antes de Cristo.
Em meados de 129 a.C., Galeno, considerado hoje o pai da Farmácia, divul-
gou o uso de extratos vegetais para a cura de diversas doenças, emprestando
o nome às formulações farmacêuticas, denominadas fórmulas galênicas.
Por volta de 1550 a.C., os egípcios formularam um guia medicinal, que
mais tarde foi chamado de papiro de Ebers. Esse guia continha formulações
medicinais e procedimentos cirúrgicos e atualmente é considerado o primeiro
registro encontrado de medicamentos. Do período de 1.550 a.C. até meados
dos anos 1700 d.C., a origem dos fármacos permaneceu basicamente oriunda
de conhecimentos advindos de plantas medicinais associados à religião e a
bruxarias para o tratamento de enfermidades.
Em 1786 d.C., um grande avanço na medicina foi alcançado com a des-
coberta da vacina contra a varíola por Edward Jenner. A partir de então,
estabeleceram-se várias práticas preventivas por meio da vacinação para
prevenir diversas doenças.
O primeiro fármaco descoberto surgiu em meados de 1829 e teve como
ponto de partida o isolamento do composto salicina, presente nas cascas da
planta salgueiro, pelo farmacêutico H. Leroux. Mais tarde, descobriu-se que a
salicina, quando ingerida e absorvida pelo organismo humano, é convertida no
ácido salicílico. A partir de então, surgiu o primeiro fármaco sintético, o ácido
salicílico, o qual foi sintetizado pela primeira vez pelo alemão Kolbe, sendo
este utilizado no tratamento de diversas doenças por um bom período de tempo.
Introdução à Química Farmacêutica 23

Embora seja bastante eficaz, o ácido salicílico apresentava pronunciados


efeitos colaterais, que incluíam a elevada irritação estomacal. Esse inconve-
niente impulsionou a descoberta do ácido acetilsalicílico (AAS), por Felix
Hoffmann, um farmacêutico alemão que trabalhava na Bayer.
Hoffman tinha como objetivo tentar ajudar seu pai, que sofria de reumatismo
e reclamava de dores estomacais oriundas do uso constante do ácido salicílico.
O AAS é considerado um derivado semissintético do ácido salicílico e pode ser
obtido pela reação de acetilação entre o ácido salicílico e o anidrido acético,
como pode ser visto na Figura 4.
A introdução do AAS como fármaco por Hoffmann é considerado o marco
inicial do desenvolvimento de fármacos. A partir da modificação inserida na
estrutura do ácido salicílico, foi possível sintetizar um derivado com o mesmo
potencial terapêutico que o ácido salicílico, mas com mínimos efeitos colaterais.
Com o surgimento do AAS, a indústria farmacêutica passou a direcionar
suas pesquisas não apenas na busca por produtos naturais, como também na
síntese de fármacos.

O OH O OH
O O O
OH H2SO4 O O
+ H3C O CH3 CH3 + H3C
OH
Ácido salicílico Anidrido acético Ácido acetilsalicílico Ácido acético

Figura 4. Síntese do AAS.

A partir da descoberta do AAS, diversos outros pesquisadores começaram


a desenvolver suas pesquisas na tentativa de isolar, identificar e sintetizar
compostos a partir de produtos naturais. Embora a busca por tais compostos
tenha se mostrado promissora, ainda era preciso conhecer mais sobre como
esses compostos interagem com o organismo humano. Com isso, surgiram
perguntas do tipo:

„„ O quanto devo tomar de tal medicamento?


„„ Quais são os efeitos colaterais existentes?
„„ Lactantes e crianças também podem usar?
24 Introdução à Química Farmacêutica

Para tentar responder essas e outras perguntas e ainda registrar tais res-
postas, em 1906, foi promulgada, no EUA, a lei que cria a FDA, existente até
os dias de hoje. A FDA tem como princípio garantir a eficácia e a segurança
dos medicamentos oferecidos à população, de forma a minimizar os potenciais
riscos existentes. Com o surgimento da FDA, passou-se a estabelecer critérios
e usar a notificação de medicamentos, o que foi um grande avanço na área
farmacêutica.
Apoiadas pela FDA, as pesquisas e as buscas por novos compostos tera-
pêuticos continuaram em ritmo crescente. Essas pesquisas ganharam força
com o desenvolvimento de ciências, como a Biologia Molecular, a Fisiologia,
a Anatomia e a Química. O avanço no conhecimento acerca dessas disciplinas
permitiu planejar e executar estratégias mais promissoras no que se refere à
busca por agentes terapêuticos. Um bom exemplo de avanço é a introdução
do modelo chave-fechadura de ação dos fármacos, proposto por Emil Fischer
em 1902. O modelo de Fischer serviu como ponto inicial para o entendimento
de mecanismos de ação dos fármacos. A partir de então, diversos outros
medicamentos foram introduzidos no mercado farmacêutico, porém, esses
compostos passaram a ser regulamentados e registrados pela FDA.
Outra descoberta marcante que não devemos deixar de mencionar aqui foi
a da penicilina, por Alexander Fleming, em 1928. A descoberta da penicilina
ocorreu por acaso. Fleming desenvolvia pesquisas com bactérias causadoras
de infecção e o seu objetivo era identificar possíveis alvos terapêuticos no
combate desses microrganismos. Antes de sair de férias, Fleming aciden-
talmente esqueceu uma de suas placas de cultura de Staphylococcus aureus
aberta. Quando retornou de férias, percebeu que ela estava contaminada com
um certo tipo de mofo (fungo) e ainda notou que, nas regiões onde o fungo se
alojou, não havia mais colônias de Staphylococcus aureus. O cientista resolveu
então estudar o fungo para entender como esse microrganismo era capaz de
inibir as colônias de bactérias.
Mais tarde, Fleming descobriu que se tratava do fungo pertencente ao gênero
Penicillium e que este produzia uma substância com ação bacteriostática. Com
base no gênero do fungo, surgiu então o analgésico penicilina.
Os achados de Fleming contribuíram para a inserção de outras fontes na
busca por moléculas com potencial terapêutico, mas não apenas as advindas
de produtos vegetais e sintéticos.
Na sequência, diversos outros fármacos foram descobertos e introduzidos
no mercado, como a indometacina, o propranolol, o aciclovir, o captopril, o
imatinibe, entre outros.
Introdução à Química Farmacêutica 25

A Figura 5 mostra uma linha do tempo relativa à descoberta de vários


fármacos. Note que o surgimento dos fármacos está diretamente ligado à
evolução de outras ciências, como já mencionado anteriormente. Um bom
exemplo é a descoberta do imatinibe, um fármaco antitumoral (antileucêmico),
cujo desenvolvimento e planejamento foi feito com base no conhecimento
molecular da leucemia.
Ainda hoje, a ciência e o desenvolvimento de fármacos caminham juntos
na evolução e na busca por novos agentes terapêuticos.

Formulações
Galenas AAS Penicilina

129 a.C. 1550 a.C. 1889 1906 1926

Papiro de Ebers Criação da FDA

Propanolol Captopril

1962 1964 1981 1977 2000

Indometacina Aciclovir Imatinibe

Figura 5. Linha do tempo da origem dos fármacos.

A diversidade de fármacos na atualidade


Como já mencionado, a fonte inicial da origem dos fármacos foi a partir de
produtos naturais, principalmente de produtos de origem vegetal. Por décadas,
os produtos de origem vegetal (plantas medicinais) permaneceram como a
fonte de primeira escolha na busca de candidatos a fármacos.
Contudo, a partir do descobrimento e da síntese do AAS pela Bayer, em
meados de 1889, a síntese química de fármacos vem ganhando espaço na
indústria farmacêutica e hoje supera, em quantidades, o número de fármacos
circulantes no mercado farmacêutico. Isso se deve, em partes, aos avanços no
26 Introdução à Química Farmacêutica

conhecimento das ciências de Química Orgânica e Biologia Molecular, uma


vez que juntas elas permitiram a síntese de compostos em alvos moleculares.
Ao longo do tempo, os avanços em Química Orgânica permitiram a síntese
simplificada de diversos tipos de moléculas, que, em sua totalidade, são ins-
pirados em produtos naturais ou planejados para atingir um alvo específico.
O gráfico apresentado na Figura 6 ilustra o arsenal terapêutico da origem
de fármacos disponíveis na atualidade. Perceba que os fármacos de origem
sintética (S) lideram o ranking produtivo, representando aproximadamente
39%. Em segundo lugar, ocupando 27%, estão os fármacos naturais modifi-
cados (ND), também chamados de fármacos semissintéticos. Na sequência,
temos os sintéticos inspirados em produtos naturais e modificados (S/NM)
representando 12%, os puramente sintéticos com 5% (S*), os sintéticos não
inspirados em produtos naturais com 11% (S*/NM) e os puramente naturais
representando 6% (N) (CRAGG; NEWMAN, 2015).

S*
5%
S*/NM
11%

ND
27%

S
39%

N
6%

S/NM
12%

Figura 6. Percentual das fontes de origem de fármacos na atualidade.


Fonte: Adaptada de Cragg e Newman (2005).
Introdução à Química Farmacêutica 27

Princípios básicos de planejamento e


desenvolvimento de novos fármacos
O planejamento e o desenvolvimento de fármacos compreende uma das etapas
principais da Química Farmacêutica, ciência que tem como princípios básicos
a descoberta, a otimização e o desenvolvimento de novos agentes terapêuticos.
O planejamento de um novo agente terapêutico, também chamado de
protótipo de fármaco, engloba, em toda a sua extensão, os princípios básicos
da Química Farmacêutica. No planejamento, estão inseridas as etapas de
descoberta e otimização, que, dependendo de seu sucesso, poderão seguir
para a etapa de desenvolvimento de fármacos.
É importante ressaltar que o planejamento e o desenvolvimento de fárma-
cos, ou estratégia P&D de pesquisa, é um processo longo e oneroso e acarreta
elevados custos para a indústria farmacêutica. A Química Farmacêutica dispõe,
atualmente, de diversas estratégias para o planejamento de fármacos, das quais
podemos citar: síntese de análogos isômeros ativos de produtos naturais ou
biológicos, simplificação molecular, latenciação, modificação de sistemas
anelares e modelagem molecular (KOROLKOVAS; BURCKHALTER, 1988).
A seguir, você irá conhecer um pouco mais sobre cada estratégia utilizada
pela Química Farmacêutica no desenvolvimento e no planejamento de fármacos.

Síntese de análogos e isômeros


A síntese de análogos e isômeros se baseia em sintetizar (produzir) um com-
posto inspirado em um produto natural. A síntese de análogos também é co-
nhecida como semissíntese de produtos naturais, uma vez que busca conservar
o esqueleto molecular central do produto de partida e inserir neste pequenas
modificações estruturais em diversas porções da molécula. Dessa forma, é
possível produzir análogos ao composto original inserido nos grupamentos
ativos, chamados de farmacóforos, ou retirar grupamentos que promovem a
toxicidade do composto de partida.
A Figura 7 mostra a síntese do etoposídeo, um fármaco com atividade
anticâncer análogo estrutural da podofilotoxina.
A podofilotoxina é um composto natural tóxico encontrado na planta
Podophyllum peltatum L. Por intermédio da estratégia de síntese de análogos
estruturais, obteve-se o etoposídeo, um derivado livre dos efeitos tóxicos da
podofilotoxina. Note que as estruturas químicas das moléculas são bastante
semelhantes, contudo, a inserção de uma cadeia de glicose (circulado na
figura) foi a responsável pela eliminação dos efeitos tóxicos no etoposídeo.
28 Introdução à Química Farmacêutica

Podofilotoxina Etoposídeo
Figura 7. Estrutura química do etoposídeo, fármaco análogo a podofilotoxina.

A síntese de isômeros, diferentemente da síntese de análogos estruturais, busca


a síntese de um composto com estrutura exatamente igual ao produto de partida,
mas com isomeria diferente. Um exemplo bastante ilustrativo é a talidomida.
A talidomida, ilustrada na Figura 8, apresenta dois isômeros óticos: talido-
mida (R) e talidomida (S), sendo apenas a isômera talidomida (R) responsável
pelos efeitos terapêuticos analgésicos e sedativos da talidomida, enquanto o
isômero (S) é teratogênico, ou seja, provoca mutações fes em gestantes. A partir
desses conhecimentos, surgiu a síntese de isômeros ativos ou desprovidos de
toxicidade de diversos produtos naturais.

O O
O O
N N
H N H N
O O
O O

(S) — Talidomida (R) — Talidomida


Teratogênico Sedativo e hipnótico

Figura 8. Estrutura química dos isômeros R e S da talidomida.


Fonte: Adaptada de Barbosa (2018).
Introdução à Química Farmacêutica 29

Simplificação molecular
A simplificação molecular, como o próprio nome sugere, tem como objetivo
simplificar a estrutura molecular de um determinado protótipo de fármaco. Essa
estratégia visa ao desenvolvimento de uma estrutura química mais simples,
quando comparada com o protótipo de partida.
Semelhante a outras estratégias, a simplificação molecular tem como
propósito potencializar o efeito terapêutico e diminuir os efeitos tóxicos, bem
como melhorar os aspectos referentes à fase farmacêutica do protótipo. Para
que você entenda de forma mais clara a simplificação molecular, vamos tomar
como exemplo a síntese da mefloquina (Figura 9).

N
HO
HO N
H
Simplificação
MeO molecular

N CF3
N
CF3

7 8
Quinina Mefloquina

Figura 9. Simplificação molecular da síntese da mefloquina.


Fonte: Adaptada de Barreiro (2002).

A mefloquina é um fármaco antimalárico derivado da quinina por simpli-


ficação molecular. Ao observar a Figura 9, note que houve uma substituição
do anel rubânico da quinina pelo anel piperidínico além de inserções dos
substituintes trifluormetila nos carbonos 2 e 8. Essas modificações promoveram
uma maior atividade farmacológica e reduziram os parâmetros de toxicidade
existentes na estrutura química do quinina.
30 Introdução à Química Farmacêutica

Latenciação
A latenciação é uma estratégia de planejamento de fármacos que se baseia
na ideia de pró-fármaco.
O pró-fármaco é uma substância inativa que, ao ser metabolizada in
vivo, converte-se para um composto ativo por meio de reações enzimáticas.
A latenciação de fármacos é bastante útil quando há compostos que, depois
de absorvidos, são facilmente degradados (compostos instáveis). De maneira
mais didática, podemos dizer que a latenciação é um processo de proteção
do fármaco.
É importante que você compreenda que a latenciação pode ser obtida tanto
com reações químicas (p. ex., reações de proteção de grupos farmacofóricos)
como por processos farmacêuticos (encapsulação, nanopartículas e sistemas
de liberação controlada). Em resumo, a latenciação busca manter as atividades
terapêuticas de um determinado fármaco, alterando apenas os seus parâmetros
farmacocinéticos.

O processo de latenciação se baseia nas estratégias de


produção de pró-fármacos.
Pró-fármacos são os compostos inicialmente inativos,
que, depois de serem metabolizados no organismo
humano, transformam-se em metabolitos ativos, sendo
estes responsáveis pelo mecanismo de ação do fármaco.
O desenvolvimento de um fármaco com base na laten-
ciação é bastante útil do ponto de vista farmacocinético
e farmacodinâmico. Para saber mais sobre a latenciação,
não deixe de ler o artigo disponibilizado no link a seguir.

https://goo.gl/Z39mFo
Introdução à Química Farmacêutica 31

Modelagem molecular e a relação estrutura-atividade


A modelagem molecular representa, atualmente, a estratégia mais sofisticada
para o planejamento de fármacos. Tal estratégia surgiu com o desenvolvimento
de ciências, como a Biologia Molecular e Patologia. A partir dos conhecimen-
tos advindos dessas ciências, foi possível conhecer dados moleculares das
doenças em estudo. Esses dados facilitaram o conhecimento da REA entre
os fármaco-receptores. O conhecimento acerca da ligação do fármaco a um
alvo específico permite estabelecer níveis de afinidade entre os fármacos e o
seu local de ação ou seu receptor.
Com isso, surgiram os fármacos planejados por modelagem molecular, ou
seja, os fármacos planejados para se ligarem especificamente a um receptor.
O estudo de docking é considerado como a mais importante técnica da mo-
delagem molecular no desenvolvimento de fármacos e faz uso de programas
computacionais que, com diversos cálculos matemáticos, conseguem prever
possíveis afinidades e sítios de ligação entre o fármaco e o seu receptor.

Reposicionamento de fármacos
A estratégia de descoberta e otimização e o desenvolvimento de novos fár-
macos, além de ser um processo bastante trabalhoso e demorado, também é
bastante caro e pode demorar, em média, de 12 a 15 anos.
O reposicionamento de fármacos surgiu como uma estratégia de recolo-
cação, ou uso de um fármaco já registrado para outra ação terapêutica que
não usa a ação original. Trata-se de uma prática que visa a reduzir os custos
com a pesquisa e a descoberta e ganhar tempo, uma vez que o fármaco já está
registrado e aprovado pela FDA.
Um exemplo clássico de reposicionamento de fármacos é o obtido para o
fármaco citrato de sildenafila (Viagra®), o qual foi planejado, inicialmente,
para a atividade anti-hipertensiva, porém, com o passar do tempo, descobriu-
-se que esse medicamento poderia lançar uma nova luz sobre o tratamento de
disfunções eréteis. Assim, o citrato de sildenafila foi reposicionado e hoje é
amplamente utilizado no tratamento da disfunção erétil.
32 Introdução à Química Farmacêutica

1. A Química Farmacêutica é uma 3. Selecione a alternativa que descreve


ciência interdisciplinar que, as características de um pró-fármaco.
para atingir seus objetivos, a) Um pró-fármaco é uma
utiliza estratégias e etapas substância ativa que, depois
definidas na busca por novos de ser administrada no
agentes terapêuticos. As organismo, transforma-se
três etapas fundamentais da em uma substância inativa,
Química Farmacêutica são: eliminando os efeitos tóxicos.
a) descoberta, otimização e b) O pró-fármaco se refere a
desenvolvimento de fármacos. uma substância ativa que,
b) descoberta, inovação e depois de ser metabolizada,
desenvolvimentos de fármacos. é degradada, exercendo o
c) otimização, modelagem seu mecanismo de ação por
molecular e desenvolvimento meio de sua degradação.
de fármacos. c) O pró-fármaco é uma substância
d) otimização, latinização e inativa que, depois de ser
desenvolvimento de fármacos. administrada, é metabolizada
e) desenvolvimento, em um composto ativo, o qual
planejamento e otimização. é responsável por sua ação.
2. O etoposídeo, fármaco derivado d) Pró-fármaco é um termo
semissintético da podofilotoxina, é utilizado para descrever a
amplamente utilizado no tratamento recolocação de fármacos.
de diversos tipos de câncer. O e) Os pró-fármacos são protótipos
motivo principal da modificação de fármacos, os quais podem
molecular da podofilotoxina foi: ser otimizados para melhorar
a) aumentar a solubilidade a sua solubilidade.
e prever melhores perfis 4. Selecione a alternativa que se
de biodisponibilidade. descreve o reposicionamento
b) manter os efeitos terapêuticos farmacêutico.
e diminuir os efeitos tóxicos a) Insere no mercado farmacêutico
da podofilotoxina. fármacos com registro e patentes
c) melhorar o perfil já disponíveis pela FDA, mas
farmacodinâmico da voltados para um atividade
podofilotoxina, prevendo maior terapêutica diferente da que
afinidade por seu receptor. foi planejada inicialmente.
d) aperfeiçoar o perfil organoléptico b) Insere um novo medicamento
e de estabilidade in vivo. no mercado farmacêutico,
e) promover a latenciação visando a ampliar seus aspectos
para o desenvolvimento de solubilidade, bem como
de pró-fármacos. seus perfis farmacocinéticos
e farmacodinâmicos.
Introdução à Química Farmacêutica 33

c) A estratégia principal da planejamento de fármacos


Química Farmacêutica voltada pela latenciação.
ao desenvolvimento de b) planejamento de fármacos
medicamentos se preocupa usando técnicas de Química
em otimizar um composto Analítica e planejamento
candidato a fármaco. de fármacos a partir da
d) Refere-se a um termo simplificação molecular.
amplamente utilizado para c) desenvolvimento de fármacos
estudos de fase clínica usando unicamente a Biologia
e pré-clínica quando o Molecular e planejamento
candidato a fármaco não de fármacos a partir de
é aprovado pela FDA. Química Orgânica.
e) Insere um novo agente d) planejamento de fármacos
terapêutico para uma patologia a partir de dados de sua
com um tratamento já existente. REA por docking e a partir
5. São características da modelagem da semissíntese orgânica.
molecular e da síntese de e) planejamento de fármaco com
análogos, respectivamente: base no conceito de pró-fármaco
a) planejamento de fármacos e planejamento de fármaco a
baseado em sua REA e partir de estudos de docking.

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