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Direito, democracia e a política como


torção do simbólico

Diogo Mariano Carvalho de Oliveira1

Prolegômenos metodológicos

Pretendemos aqui abordar uma perspectiva diferente no enfrentamento


do fenômeno jurídico. Entendemos que há uma leitura que pode ser feita do
Direito que se dá por meio de uma dialética materialista. A dialética materialista
é antes de tudo um método, e por meio dela pretendemos que a análise feita do
objeto em questão considere tanto os aspectos objetivos e materiais quanto os
elementos subjetivos e espirituais, observando principalmente a força
determinante do objeto.

A dialética não tem autonomia quanto ao objeto porque não


impõe ao objeto as determinações do sujeito, mas, pelo contrário,
propõe curvar o sujeito às determinações do objeto. O método
dialético não é, assim, um mero “instrumento do intelecto”, algo
de que se mune o sujeito cognoscente e ao qual necessariamente
o objeto deverá “encaixar-se”. Não é o sujeito que “dobra” o
objeto por meio do método, mas o objeto que determina o
próprio método pelo qual é conhecido, portanto também o
sujeito que busca conhecê-lo.2

O que se promove com a dialética é uma descentralização do sujeito


enquanto sujeito cognoscente, enquanto sujeito centralizado como significador
da cadeia de movimentos. Não é mais o homem que engendra seu método e
captura o objeto através do conhecer. Ao contrário, o objeto exige seu próprio
método para que possa ser capturado nas teias do conhecimento; é o objeto que
determina qual a teoria adequada para a obtenção do conhecimento sobre ele.

1 Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Ciências Jurídicas da Universidade


Estadual do Norte do Paraná (UENP). Militante do Círculo de Estudos da Ideia e da
Ideologia – CEII. Para sugestões, dúvidas e críticas: diogo.carvalho92@hotmail.com.
2 KASHIURA JR., Celso Naoto. Crítica da igualdade jurídica – contribuição ao

pensamento jurídico marxista. São Paulo: Quartier Latin, 2009, p. 33.


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Althusser é quem chama atenção para essa mudança do paradigma filosófico a


partir da obra marxiana:

Ao rejeitar a essência do homem como fundamento teórico, Marx


(...) expulsa as categorias filosóficas sujeito, empirismo, essência
ideal etc. de todos os domínios em que elas reinavam. Não só da
economia política (rejeição do mito do homo economicus, ou
seja, do indivíduo com faculdades e necessidades definidas, na
condição de sujeito da economia clássica); não só da história
(rejeição do atomismo social e do idealismo político-ético); não
só da moral (rejeição da ideia moral kantiana); mas também da
própria filosofia: visto que o materialismo de Marx exclui o
empirismo do sujeito (e seu inverso: o sujeito transcendental) e
o idealismo do conceito (e seu inverso: o empirismo do
conceito).3

Mas é somente por possuir condições de negar esses conceitos que a


revolução teórica da obra de Marx é possível. O que Marx faz efetivamente é
fundar um novo conjunto de problemas, novos modos sistemáticos de questionar
o mundo, novas bases e um novo método. Essa novidade encontra-se no
materialismo histórico-dialético, através do qual Marx propõe não apenas uma
nova abordagem da história das sociedades, mas também deixa implícita uma
“filosofia” nova, com infinitas implicações; uma “filosofia da práxis”. Ao
substituir o antigo par essência-humana/indivíduos por conceitos novos como
relação de produção e forças produtivas, Marx propõe uma nova concepção da
“filosofia”. Os postulados do materialismo anterior a Marx, do empirismo
idealista do sujeito e do empirismo idealista da essência são substituídos por um
materialismo histórico-dialético da práxis; uma teoria que abarca os diversos e
peculiares níveis da prática humana – científica, econômica, ideológica, política,
etc. – e suas articulações desencadeadas em meio às específicas inter-relações da
sociedade humana.4
A metodologia dialética persiste, portanto, numa análise material da
vida. E essa materialidade pressupõe a compreensão do conhecimento como a
captura do conceito do objeto de conhecimento enquanto engendrado em um

3 ALTHUSSER, Louis. Por Marx. Trad. Maria Leonor F. R. Loureiro. Rev. Márcio
Bilharinho Naves, Celso Naoto Kashiura Jr. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2015,
p. 189.
4 Ibidem, p. 190.
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dado momento das contradições e determinações da totalidade. Portanto, o que


pretendemos pelo método dialético marxista é:

(...) analisar o objeto sem um plano metodológico já pronto, mas,


ao inverso, encontrar o plano metodológico no próprio objeto.
Trata-se de buscar desvendar a estrutura interna do objeto e, a
partir disto, fazer coincidir com ela a estrutura da teoria. Isto, por
si só, já não é simples – menos simples ainda ao levar-se em
consideração um necessário fato complexificador: se o objeto
dado ao conhecimento é social, tem-se como sujeito e como
objeto da relação de conhecimento, simultaneamente, a
sociedade. O sujeito do conhecimento nunca é, afinal, o indivíduo
isolado, mas sempre a sociedade. A produção do conhecimento
não é uma atividade individual, atividade de uma razão que se
encontraria plena em cada indivíduo, mas uma atividade social –
o conhecimento é todo produzido por homens em sociedade.
Sujeito e objeto não são reciprocamente exteriores, portanto o
objeto não se submete inocentemente ao sujeito – a sociedade,
que é sujeito e objeto ao mesmo tempo, não se apresenta clara e
docilmente, não se deixa penetrar pelo conhecimento de
imediato. Muito pelo contrário, a sociedade se apresenta como o
que não é e exige, para ser conhecida autenticamente, uma série
de mediações.5

Mas como o objeto está inserido numa totalidade concreta, uma realidade
complexa que determina a maneira pelo qual o objeto é pensado, ele sofre as
determinações da estrutura que lhe sustém e do momento onde existe. Uma
existência concreta, mas que apenas é percebida pelo sujeito por meio do
pensamento: um concreto pensado. Mas esse concreto pensado apenas pode
surgir no pensamento por meio da abstração do concreto; ele é o resultado dessa
operação dialética. Essa abstração parte inicialmente da captura da aparência
(Scheinen) do objeto, já que ele não emerge, como destacamos com Kashiura Jr.,
como conceito (Begriff) efetivo, mas apenas como um “brilho” do que é, por uma
certeza sensível daquilo que pensamos ser.

Apreender o abstrato para chegar ao concreto, apreender a


aparência para chegar à essência: os desvios da dialética, o
caminho tortuoso do pensamento que apreende a realidade
contraditória, pode, é certo, parecer “ilógico”. Não se trata, de
qualquer maneira, de uma simples questão de lógica. O caminho
do pensamento linear que se inicia pela totalidade abstrata pode
ser até mais “lógico” – a “lógica”, no entanto, existe apenas no
intelecto do sujeito, não no objeto. Já o pensamento que ascende
do abstrato ao concreto, da parte ao todo, é apto a reconstruir no

5 KASHIURA JR., op. cit., 2009, p. 34, 35.


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pensamento a estrutura do objeto. É o caminho ditado pelo


próprio objeto. A sucessão em que os elementos são
apresentados, na série de mediações que conduz à totalidade, não
é, portanto, acidental ou arbitrária, não é aleatória ou meramente
conveniente. É uma ordem necessária, posto que determinada
pela estrutura interna do objeto.6

Para compreender o concreto e, por conseguinte, a totalidade concreta, é


preciso que nos coloquemos diante da tarefa inicial de abstrairmos o objeto. E
para fazermos isso conforme ao método dialético devemos partir da apreensão da
parte sem perder a percepção do todo, já que o objeto é engendrado por um todo
complexo estruturado. Ele está sobredeterminado por uma série de
determinações e contradições que o fazem o que ele é. E para entender o objeto e
o caminho de sua estrutura interna impõe-se partir de suas determinações mais
simples.

Estado constitucional e democracia

Dessarte, entendemos que a democracia deve ser compreendida como


um regime político submetido e engendrado pela configuração social presente. A
democracia nos aparece, atualmente, como um princípio fundante do Estado e da
sociedade moderna, consagrando-se como base da sedimentação político-social.
Não apenas isso, a democracia é um amálgama positivado juridicamente de uma
série de direitos e garantias fundamentais dos quais é condição de possibilidade
de exercício e fundamento legitimante, e sobre a qual está assentada a
autodeterminação de um povo:

A democracia como autogoverno do povo: um regime onde cada


cidadão pode, cada um por sua vez, comandar e ser comandado,
como recita a famosa definição aristotélica; a democracia como
uma forma de governo em que o cidadão intervém diretamente
no processo de decisão política (um tipo de democracia que os
“modernos” chamarão “direta”; a democracia como triunfo dos
cidadãos e de sua liberdade de palavra e ação política.7

6Ibidem, p. 39, 40.


7 COSTA, Pietro. Soberania, representação, democracia: ensaios de história do
pensamento jurídico. Curitiba: Juruá, 2010, p. 212.
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Nesse sentido, o Estado como se apresenta para nós hoje é um Estado


estruturado jurídico e politicamente como um Estado Constitucional
Democrático de Direito. Ao menos formalmente, o Estado constitui-se como
órgão responsável pela garantia e defesa do regime democrático, conciliando de
um lado o poder soberano exercido pelas instituições do Estado e de outro as
garantias, direitos e mecanismos individuais que têm como finalidade assegurar
a realização da liberdade e da igualdade de cada um dos cidadãos que compõem
o corpo político do povo. Em suma, o Estado se configura como uma democracia
constitucional:

A democracia constitucional é aquela que representa essa “alma


única” existente entre soberania popular e direitos
fundamentais, entre liberdades positivas e liberdades negativas,
entre igualdade formal e igualdade material, enfim, entre
liberdade e igualdade. Mais precisamente, a democracia
constitucional registra-se como sendo o regime político
essencialmente comprometido com a dignidade da pessoa
humana, encarando esta enquanto marco cultural comum e
integralizador da comunidade jurídico-política que caracteriza o
Estado Democrático de Direito.8

O Estado de Direito Constitucional, conforme a concepção kelseniana, ao


conciliar numa síntese a democracia – e sua lógica majoritária – com a proteção
dos direitos fundamentais previstos na Constituição, parece permitir a superação,
ao menos à primeira vista, dos impasses da democracia tradicional em relação à
tutela eficaz dos direitos e garantias individuais, já que não apenas a atividade
administrativa estatal, mas também a própria atividade legislativa
desempenhada pelos órgãos do Estado passa a estar sujeita ao controle dos
órgãos do judiciário.9

Tendo em vista que a proteção da liberdade por meio dos direitos


fundamentais é, na verdade, proteção juridicamente mediada,
isto é por meio do Direito, pode-se afirmar com segurança, na
esteira do que leciona a melhor doutrina, que a Constituição (e,
neste sentido, o Estado Constitucional), na medida em que
pressupõe uma atuação juridicamente programada e controlada
dos órgãos estatais, constitui condição de existência das
liberdades fundamentais, de tal sorte que os direitos

8 BIELSCHOWSKY, Raoni Macedo. Democracia constitucional. São Paulo: Saraiva,


2013, p. 93, 94.
9 COSTA, Pietro, op. cit., 2010, p. 253.
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fundamentais somente poderão aspirar à eficácia no âmbito de


um autêntico Estado constitucional.10

Essa aspiração à eficácia é fundamental não apenas em um Estado


Constitucional, mas principalmente em um Estado Constitucional Democrático,
através do qual a guarida dos direitos de liberdade e igualdade se constituem não
apenas como direito dos cidadãos de uma comunidade democrática, mas também
como dever indesviável do Estado, já que é apenas por meio da democracia que
se torna possível exigir do cidadão uma participação consciente na partilha das
funções estatais; em contrapartida, cabe ao Estado assegurar todas as condições
necessárias para que essa participação democrática no funcionamento e na
manutenção do órgão estatal se desenvolva de forma livre, igualitária e justa. Por
conseguinte, a democracia, como fundamento do Estado moderno, é situada não
apenas como base do edifício jurídico-político social, e tampouco somente como
regime político através do qual o Estado se relaciona com seus súditos, mas
efetivamente como uma pilastra que sustenta a possibilidade e a potência
eficacial das garantias e direitos fundamentais, sendo estes últimos, por sua vez,
o fundamento primeiro do regime democrático.

Com efeito, verifica-se que os direitos fundamentais podem ser


considerados simultaneamente pressuposto, garantia e
instrumento do princípio democrático da autodeterminação do
povo por intermédio de cada indivíduo, mediante o
reconhecimento do direito de igualdade (perante a lei e de
oportunidades), de um espaço de liberdade real, bem como por
meio da outorga do direito à participação (com liberdade e
igualdade), na conformação da comunidade e do processo
político, de tal sorte que a positivação e a garantia do efetivo
exercício de direitos políticos (no sentido de direitos de
participação e conformação do status político) podem ser
considerados o fundamento funcional da ordem democrática e,
neste sentido, parâmetro de sua legitimidade.11

A democracia, em sua forma, se apresenta assim como elemento


essencial e imanente para a efetiva realização dos direitos e garantias
fundamentais. Trata-se, sob o aspecto subjetivo, de um instrumento jurídico-

10 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos
direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 11. ed. rev. atual. Porto Alegre:
Livraria do Advogado Editora: 2012, p. 59.
11 Ibidem, p. 61.
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político imprescindível para a garantia desses direitos e garantias e, sob o aspecto


objetivo, de um regime político estabelecido legalmente e mantido pelo Estado,
através do qual se apresenta supostamente possível a justa relação entre os
cidadãos e o Estado. Entendemos, nesse sentido, em razão da importância da
democracia, e da qual depende a efetiva existência dos direitos à liberdade e à
igualdade, que ele pode ser considerado, a despeito de posicionamentos
contrários e de ausência de previsão legal, um direito da personalidade, ou seja,
um poder jurídico inerente à realização da pessoa humana considerada
juridicamente.

Liberdade, igualdade, forma jurídica e forma política

Contudo, precisamos compreender em que sentido pode-se pensar a


democracia sob a dialética. Para tanto, temos de retomar a dialética marxiana,
buscando capturar o todo conceitual a partir do seu objeto nuclear, o elemento
mais simples do problema. É por essa razão que Marx não parte da sociedade
capitalista para entender os seus processos e fluxos constitutivos. Pelo contrário,
Marx parte da categoria mais simples e fundamental do modo de produção
capitalista para entender sua totalidade: a mercadoria. E ao tratar do Direito,
Evgeny Pasukanis faz o mesmo, partindo da categoria mais simples e
fundamental do Direito: o sujeito de direito. Segundo ele: “toda relação jurídica é
uma relação entre sujeitos. O sujeito é o átomo da teoria jurídica, seu elemento
mais simples, indecomponível”.12
O sujeito de direito é o elemento nuclear da teoria jurídica, e é por meio
da apreensão de seu conceito (Begriff) que se torna possível compreender o que
ele efetivamente é. Tal conceituação é apenas possível se o objeto é capturado
dialeticamente. É justamente o que Pasukanis percebe:

A análise da forma sujeito, em Marx, decorre imediatamente da


análise da forma mercadoria. A sociedade capitalista é antes de
tudo uma sociedade de proprietários de mercadorias. Isto
significa que as relações sociais dos homens no processo de
produção possuem uma forma coisificada nos produtos do
trabalho que se apresentam, uns em relação aos outros como
valores. A mercadoria é um objeto no qual a diversidade concreta

12 PASUKANIS, Evgeny Bronislanovich. A teoria geral do direito e o marxismo. Trad.


Paulo Bessa. Rio de Janeiro: Renovar, 1989, p. 81.
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das propriedades torna-se, simplesmente, o invólucro coisificado


da propriedade abstrata do valor, que se exprime como
capacidade de ser trocada em uma proporção determinada em
relação a outras mercadorias. Esta propriedade se exprime com
uma qualidade inerente às próprias coisas, em virtude de um tipo
de lei natural que age independente dos homens, de maneira
indiferente às suas vontades.13

É possível antever porque o Direito atribui ao sujeito jurídico dois


direitos básicos inerentes: 1) liberdade, pois deve trocar suas mercadorias
voluntariamente – incluindo aqui sua própria força de trabalho, ou seja, aliena
seu tempo de vida; 2) igualdade, pois se relaciona com outros sujeitos numa
relação de equivalência, assim como as mercadorias relacionam-se entre si, isto
é, apenas enquanto possuidores de mercadorias que trocam equivalente por
equivalente. Pontos que passaremos a demonstrar mais demoradamente a seguir.
Esta digressão, de fins propedêuticos, nos conduz à proposição de que o
Direito deve ser entendido como uma forma específica da sociedade capitalista.
Isso quer dizer que apenas é possível falar de Direito na modernidade. Trata-se
de um elemento engendrado e engendrador da totalidade capitalista, tanto efeito
quanto causa de sua reprodução. Se o conceito, entendemos, apenas é possível
pela captura de um momento finito do devir, o Direito apenas é apreensível
enquanto ser-aí; ser determinado em certa espacialidade e temporalidade. Ele
deve ser captado como resultado de diferentes determinações que interagem e
acumulam-se dentro de uma forma de organização social específica.

(...) cada formação social possui um conjunto de estruturas que


possuem diferentes níveis (ou instâncias), com pesos e
temporalidades desiguais. As formações sociais expressam esse
todo-complexo no qual a sua unidade se dá por uma estrutura
dominante, e tem como princípio uma determinação em última
instância da estrutura econômica. Assim sendo, há uma
multiversidade de determinações (embora o econômico seja o
determinante em última instância) com uma estrutura
dominante, já que expressa internamente nos seus níveis a
contradição dominante, havendo alterações de dominação
quando há deslocamento dessa contradição dominante para
outra estrutura. Portanto, as contradições atuam de forma
sobredeterminante, ou sobredeterminada.14

13 Ibidem , p. 84.
14 MOTTA, Luiz Eduardo. A favor de Althusser: revolução e ruptura na teoria marxista.
1. ed. Rio de Janeiro: GRAMA; FAPERJ, 2014, p. 52, 53.
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Nesse sentido, o Direito como aquilo que é existe apenas como resultado
de contradições de um dado complexo de determinações onde há uma
sobredeterminação do econômico. E a modernidade é esse todo complexo que
marca suas notas distintivas; um bloco histórico que é inaugurado a partir da
acumulação primitiva do capital – a subsunção do trabalho ao capital.

Marx identifica, na gênese do modo de produção capitalista, uma


fase inicial que ele denomina de “acumulação primitiva” ou
“acumulação originária”, e que vem a ser, fundamentalmente, o
processo de separação do trabalhador direto dos meios de
produção. É essa separação que constitui as relações de produção
capitalistas que, como Marx explica, não são relações
intersubjetivas, nem são apenas relações entre classes, mas são
relações entre os agentes da produção e os meios de produção,
portanto, são relações entre classes mediadas pelos meios de
produção.15

Ora, no vol. I d’O Capital, Marx já havia mostrado como esse processo de
acumulação primitiva do capital insere a liberdade na sociabilidade humana,
entendida sob uma perspectiva dúplice: por um lado, há uma espoliação do
trabalho e das condições de vida do homem campestre e, por outro, a inserção do
homem enquanto mercadoria implicada na possibilidade de disposição de si
mesmo enquanto força de trabalho.16
A compreensão do fenômeno jurídico, assim entendemos, depende de sua
análise através do materialismo histórico e dialético. Portanto, como já
destacado, o Direito somente pode ser apreendido se também engendrarmos seu
entorno, capturando a totalidade através da dialética e compreendendo o limite
negativo que delimita as determinações e contradições colidentes dentro de um
intervalo espacial finito, isto é, captando a “realidade como um todo estruturado,
dialético, no qual ou do qual um fato qualquer (classe de fatos, conjuntos de fatos)
pode vir a ser racionalmente compreendido”17.Nesse sentido, a totalidade
moderna se mostra uma totalidade eminentemente capitalista,
sobredeterminada pela lógica do Capital, que define, configura e reproduz suas

15 NAVES, Márcio Bilharinho. A questão do Direito em Marx. São Paulo: Outras


Expressões; Dobra Universitário, 2014, p. 44.
16 Ibidem, p. 46.
17 KOSIK, Karel. Dialética do concreto. 7. ed. Tradução de Célia Neves e Alderico Toríbio.

São Paulo: Editora Paz e Terra, 1995, p.35.


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estruturas, dentre as quais, encontra-se o Direito. Desse modo, o que


pretendemos postular é que:

Há uma relação necessária entre direito e capitalismo. O direito


não é um conjunto de técnicas neutras, nem tampouco é a
manifestação de ideais elevados ou pretensas dignidades
humanas. A questão jurídica não paira, sobranceira ou
imaculada, por sobre a exploração do capital. Naquilo que tem de
fundamental e estrutural, o direito se apresenta como forma
social reflexa e derivada de relações sociais específicas. Só é
possível compreender o direito dentro do quadro da sociedade
capitalista. Assim sendo, o direito é histórico. E tal historicidade
do fenômeno jurídico é dupla: tanto seus institutos (seu conteúdo
ou sua quantidade) são variáveis em razão de dinâmicas sociais
múltiplas, como, em especial, sua forma é social e insignemente
histórica, guardando com o capitalismo particular e inexorável
conexão.18

Mas isso quer dizer que a liberdade e igualdade dos sujeitos de direito –
que aparecem na sociedade capitalista enquanto trocadores de mercadorias –
“garantidas” pelo Direito são apenas imaginárias? São apenas atribuições
institucionais resultantes da forma social? Liberdade e igualdade não existem
realmente, e na verdade nossa existência é tão oca quanto o Vazio de Boötes 19?
Sim, e não. O fato de a liberdade e a igualdade, na sociabilidade capitalista, não
existirem de modo efetivo (Wirklich), mas enquanto atribuição imaginária, não
retira a sua possibilidade de reverberar efeitos sobre o real. Na verdade, o
imaginário pode ser tanto ou até mais real que o concreto. Ora, a modernidade
não é um mundo colonizado por relações imaginárias? Uma caótica inversão
entre real e imaginário que cria uma zona de indeterminação entre o que é um e
o que é outro, o que é imanente e o que é ilusório; não é isso o fetichismo do
fenômeno econômico e jurídico?

18 MASCARO, Alysson Leandro. Direito, capitalismo e estado: da leitura marxista do


direito in: KASHIURA JR. Celso Naoto; AKAMINE JR., Oswaldo; MELLO, Tarso de
(orgs.). Para a crítica do direito: reflexões sobre teorias e práticas jurídicas. 1. ed. São
Paulo: Outras Expressões; Editorial Dobra, 2015, p. 45, 46.
19 O Vazio de Boötes é uma região do espaço bastante curiosa descoberta em 1981 que

está localizada nas contiguidades da galáxia de Boötes. Os vazios do universo – do qual


este é apenas um deles – são lugares que possuem poucas ou quase nenhuma galáxia
em suas circunscrições. Por não haver muitos corpos celestes, a maior parte desse vazio
não reflete qualquer luz. Grande parte do que podemos ver nesses espaços são,
portanto, apenas infinita escuridão. Ou seja, na verdade não vemos coisa alguma. O
imaginário não é também um vazio que existe pela sua própria inexistência? (Ver mais
em: http://asd.gsfc.nasa.gov/blueshift/index.php/2013/07/30/jasons-blog-next-
stop-voids)
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O fetichismo da norma e da pessoa, unidos doravante sob o


vocábulo único de direito, faz esquecer que a circulação, a troca
e as relações entre pessoas são na realidade relações entre
coisas, entre objetos, que são exatamente os mesmos da
produção e da circulação capitalistas. E, de facto, no mundo do
direito tudo parece passar-se entre pessoas: as que mandam e as
que obedecem, as que possuem, as que trocam, as que dão, etc.
Tudo parece ser objeto de decisão, de vontade, numa palavra, de
Razão. Jamais aparece a densidade de relações que não são
queridas, de coisas às quais os homens estariam ligados, de
estruturas constrangedoras mas invisíveis. (...) O sistema
jurídico da sociedade capitalista caracteriza-se por uma
generalização da forma abstracta da norma e da pessoa
jurídicas. Essa generalização permite representar a unidade
social de maneira ao mesmo tempo real e imaginária.20

As relações sociais e econômicas do capitalismo existem, realmente, de


acordo com o tipo de organização que está implicada pelo capital. Mas também
existem as relações jurídicas que expressam e reproduzem essas relações. Por
esse motivo, as relações jurídicas não são produto exclusivo do imaginário; elas
de fato existem, contém uma manifesta materialidade, tão real como a polícia, a
justiça, a administração, ou seja, os aparelhos de Estado ao qual estão ligadas.
Contudo, elas encontram-se simultaneamente encobertas por todo um
imaginário jurídico. Estamos convencidos de que a fonte do direito é o homem e
de que podemos nos submeter ou resignar a um sistema normativo do qual ele
mesmo é o autor; estamos convictos de que este imaginário do qual emana o
sujeito de direito e a norma como regra imperativa é efetivamente real. Esses
aspectos nos parecem necessários e lógicos para que as relações sejam
organizadas; mas isso nos impede de ver que elas já estão organizadas “noutro
lado”. Quando o Direito se realiza, ele não postula um dever ser, mas somente
confirma aquilo que já é. Mas isso se torna imperceptível para nós, pois
acreditamos que a norma é um imperativo categórico primeiro, fonte de valor por
si mesma, assim como se dá com a mercadoria. Atribuímos uma qualidade à
norma jurídica que lhe parece imanente, a imperatividade. Contudo, e aí é que
reside o problema, essa atribuição não emana da norma, mas do tipo de relação
social real da qual essa norma é expressão. É aqui que surge o processo de
fetichização. A norma jurídica não cria a obrigação, mas a realiza no momento da

20MIALLE, Michel. Introdução crítica ao Direito. Trad. Ana Prata. 3. ed. Lisboa:
Editorial Estampa, 2005, p. 94, 95.
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efetivação da relação jurídica, assim como a mercadoria não cria valor, mas
apenas o realiza no momento da troca.21

[...] a “gênese” (genezis) da forma do direito se encontra na


relação de troca; a forma jurídica é o “reflexo inevitável”
(neizbejnymotprajeniem) da relação dos proprietários de
mercadorias entre si; o princípio da subjetividade jurídica
“decorre com absoluta inevitabilidade” (vytekaiut s
absoliutnoineizbejnost’iu) das condições da economia mercantil-
monetária; esta economia mercantil é a “condição prévia
fundamental” (osnovnoipredposylkoi), o “momento
fundamental e determinante”
(osnovnymopredeliaschimmomentom) do direito; a forma
jurídica é “gerada” (porojdaet) pela forma mercantil; a relação
econômica de troca “deve existir” (doljnobyt’) para que “surja”
(vozniklo) a relação jurídica; a relação econômica é a “fonte”
(istotchnikom) da relação jurídica. Todas essas expressões
denotam evidente afirmação do caráter derivado do direito, e de
sua específica determinação pelo processo de trocas mercantis.
É, portanto, a esfera da circulação das mercadorias que “produz”
as diversas figuras do direito, como uma decorrência necessária
de seu próprio movimento22.

Nessa esteira, vale destacar célebre parágrafo presente no vol. I d’O


Capital, por meio do qual Marx demonstra ter percebido, já naquela época, a
relação inerente das relações de troca com as relações jurídicas:

A esfera de circulação ou da troca de mercadorias, em cujos


limites se move a compra e a venda da força de trabalho, é, de
fato, um verdadeiro Éden dos direitos inatos do homem. Ela é o
reino exclusivo da liberdade, da igualdade, da propriedade e de
Bentham. Liberdade, pois os compradores e vendedores de uma
mercadoria, por exemplo, da força de trabalho, são movidos
apenas por seu livre arbítrio. Eles contratam como pessoas livres,
dotadas dos mesmos direitos. O contrato é o resultado, em que
suas vontades recebem uma expressão legal comum a ambas as
partes. Igualdade, pois eles se relacionam um com o outro apenas
como possuidores de mercadorias e trocam equivalente por
equivalente. Propriedade, pois cada um dispõe apenas do que é
seu. Bentham, pois cada um olha somente para si mesmo23.

21 MIALLE, Michel, op. cit., 2005, p. 95.


22 NAVES, Márcio Bilharinho. Marxismo e Direito: um estudo sobre Pachukanis. São
Paulo: Boitempo: 2008, p. 53, 54.
23 MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I: o processo de produção

do capital. Tradução de Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 250, 251.
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O Direito, portanto, deriva diretamente da configuração das relações


sociais. E essas relações sociais estão conformadas pela própria organização da
sociabilidade capitalista; as relações sociais, que são também e principalmente
relações jurídicas, são, em última instância, relações de troca. Essas relações
existem justamente para que o circuito de troca de mercadorias possa ser
operado. Existem justamente porque a forma de sociabilidade da totalidade
capitalista é a troca de mercadorias. Essa é a forma social do Capital, uma forma
que depende e apenas existe através da troca de mercadorias. Mercadorias que
não possuem vontade própria, que não podem ser deslocadas por força própria
no circuito de trocas. Por essa razão é que elas não prescindem do elemento
humano. As trocas mercantis somente se realizam por meio da mediação pelo
elemento humano, através da vontade do sujeito:

As mercadorias não podem ir por si mesmas ao mercado e trocar-


se umas pelas outras. Temos, portanto, de nos voltar para os seus
guardiões, os possuidores de mercadorias. Elas são coisas e, por
isso, não podem impor resistência ao homem. Se não se mostram
solícitas, ele pode recorrer à violência; em outras palavras, pode
tomá-las à força. Para relacionar essas coisas umas com as outras
como mercadorias, seus guardiões têm de estabelecer relações
uns com os outros como pessoas cuja vontade reside nessas
coisas e agir de modo tal que um só pode se apropriar da
mercadoria e alienar a sua própria mercadoria em concordância
com a vontade do outro, portanto, por meio de um ato de vontade
comum a ambos. Eles têm, portanto, de se reconhecer
mutuamente como proprietários privados. Essa relação jurídica,
cuja forma é o contrato, seja ela legalmente desenvolvida ou não,
é uma relação volitiva, na qual se reflete a relação econômica. [...]
Aqui, as pessoas existem umas para as outras apenas como
representantes da mercadoria, e, por conseguinte, como
possuidoras de mercadorias24.

A forma jurídica e a forma social do Capital são duas faces de uma mesma
moeda que existe em razão de uma lógica simbólica específica e que engendra
uma forma de organização social. Uma sociabilidade que depende do Direito para
que possa ser reproduzida e que então encontra sua realização nuclear em duas
categorias fundamentais: a mercadoria e o sujeito de direito; elementos

24 Ibidem, p. 159, 160.


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fundantes, respectivamente, da relação social e da relação jurídica. Nas palavras


de Kashiura Jr:

O sujeito de direito não é, portanto, senão o “outro lado” da


mercadoria – “outro lado” que é, sem dúvida, determinado pela
equivalência mercantil, mas sem o qual o processo de troca
mesmo não pode completar-se. Essa vinculação da forma sujeito
de direito à forma da relação de troca mercantil permite ainda
deduzir os seus atributos fundamentais. (...) Se o sujeito de
direito é, na relação de troca, o “outro lado” da mercadoria, a
igualdade jurídica se apresenta como o “outro lado” da lei do
valor. É a relação de equivalência entre as mercadorias, na
medida do valor que carregam, que exige a igualdade entre os
sujeitos portadores de mercadorias. Quero dizer, é a exigência de
que na troca seja mantida a relação de igualdade entre as
quantidades de valor que as mercadorias que se confrontam
carregam que conduz à equivalência qualitativa, expressa
juridicamente, entre os portadores de mercadoria. Ao
reconhecerem-se como juridicamente iguais, os agentes da troca
são compelidos a manter a relação de equivalência valorativa
entre suas mercadorias: um não toma a mercadoria do outro, não
a obtém por violência direta, mas apenas ao ceder a sua própria
mercadoria, ou seja, apenas ao reconhecer no outro um portador
de certa quantidade de valor equivalente de valor
consubstanciada na própria mercadoria. São ambos compelidos
a reconhecer ao outro o exato mesmo “direito que têm
reconhecido entre si: o “direito” à mercadoria alheia em troca da
mercadoria própria.25

Nas relações de troca, cada um dos sujeitos envolvidos cede a sua própria
mercadoria e adquire a mercadoria do outro por meio de um consentimento
recíproco. Cada um dos sujeitos de direito que se contrapõem nesse circuito de
relações mercantis manifesta sua vontade de forma livre – conditio sine qua non
da troca – de adquirir ou alienar as mercadorias que estão circulando no circuito
de trocas. Não há e nem pode haver entre eles qualquer tipo de domínio,
dependência ou hierarquia. Eles se apresentam iguais na forma e, portanto,
devem também apresentar-se como igualmente livres na relação que estabelecem
entre si26.

25 KASHIURA JR., Celso Naoto. Sujeito de direito e capitalismo. 1. ed. São Paulo: Outras
Expressões; Dobra Universitário, 2014, p. 166-168, 169.
26Ibidem, p. 169.
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Essa é a forma jurídica do capitalismo. Os sujeitos devem se pressupor


livres e iguais para que possam reproduzir o circuito de trocas. A circulação de
mercadorias somente se torna realizável sob essas condições. O sujeito de direito
não é livre e igual aos seus pares pela existência de uma suposta origem natural
ou fundamentação ontológica. As condições de liberdade e igualdade são
atribuídas ao sujeito enquanto premissas da reprodução da sociabilidade
capitalista. Essas condições nascem dela e estão voltadas para ela para cumprir o
único fim do “sujeito autômato”, o Capital: produzir valor.

Muito diversamente do que supõe a teoria jurídica desenvolvida


no interior da ideologia burguesa, a personalidade jurídica não
encontra os atributos da igualdade e da liberdade no interior da
“natureza” do homem. O sujeito de direito não é igual e livre por
conta de uma verdade transcendente ou por uma dádiva do
“espírito”. A igualdade e a liberdade são determinadas por um
processo social e histórico: os agentes da troca se apresentam
como iguais e livres, em termos jurídicos, cujo movimento que
constitui a esfera da circulação mercantil, assim determina.27

Somente numa sociedade onde impera o princípio da divisão do trabalho,


ou seja, numa sociedade onde o trabalho individual se torna trabalho social
abstrato através da mediação de uma equivalência geral, é que se torna factível o
nascimento da forma jurídica. A introdução da operação jurídica – que converte
a relação social num acordo de vontades equivalentes – é o que viabiliza a
circulação da troca de mercadorias. Pasukanis nos mostra, ao estabelecer o liame
entre a forma mercadoria e a forma jurídica, que a segunda é uma forma que
irradia essa equivalência na relação social, a “primeira ideia puramente jurídica”.
A mercadoria só realiza o seu caráter social por meio da troca; é a forma social
que reveste o produto resultante de trabalhos individuais independentes um do
outro e permite sua troca e circulação. Para que o circuito de trocas mercantis se
efetive é necessário que o processo do valor de troca detenha um equivalente
geral, uma medida-padrão que enseje a verificação do quanto de trabalho
abstrato está comprimido na mercadoria. Por isso o Direito está intrinsecamente
conectado à existência de uma sociabilidade que pressupõe a interposição de um

27 Ibidem, p. 170.
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equivalente geral que permite transformar em trabalho social múltiplos trabalhos


privados independentes.28
Entretanto, vale ressaltar que o Direito é uma superestrutura articulada
pelo Estado, organizada tecnicamente por meio do poder estatal. Isso significa
então que há não apenas uma relação intrínseca entre a forma jurídica e a forma
social, mas também entre a forma jurídica e a forma política. São elementos que
se comunicam, que se autodeterminam, relacionam-se entre si um confluindo no
outro:

Há um nexo íntimo entre forma política e forma jurídica, mas não


porque ambas sejam iguais ou equivalentes, e sim porque remanescem
da mesma fonte. Além disso, apoiam-se mutuamente, conformando-se.
Pelo mesmo processo de derivação, a partir das formas sociais
mercantis capitalistas, originam-se a forma jurídica e a forma política
estatal. Ambas remontam a uma mesa e própria lógica de reprodução
econômica, capitalista. Ao mesmo tempo, são pilares estruturais desse
todo social que atuam em mútua implicação. As formas políticas e
jurídica não são dois monumentos que agem separadamente. Eles se
implicam. Na especificidade de cada qual, constituem, ao mesmo
tempo, termos conjuntos. O núcleo da forma jurídica reside no
complexo que envolve o sujeito de direito, com seus correlatos do
direito subjetivo, do dever e da obrigação – atrelados, necessariamente,
à vontade autônoma e à igualdade formal no contrato como seus
corolários. Por sua vez, o núcleo da forma política capitalista reside num
poder separado dos agentes econômicos direitos, que se faz presente
por meio da reprodução social a partir de um aparato específico, o
Estado, que é o elemento necessário de constituição e garantia da
própria dinâmica da mercadoria e da relação entre capital e trabalho. 29

Há, portanto, uma relação inexorável entre essas três formas. Uma forma
social – a própria sociabilidade capitalista fundada por e fundante da troca de
mercadorias – a forma jurídica – que tem por objeto o sujeito de direito enquanto
livre e igual (equivalente) – e a forma política – o Estado moderno. Essas três
formas básicas são responsáveis por manter a dinâmica do Capital em
movimento, permitindo sua manutenção, reprodução e desenvolvimento, mesmo
diante de certas fissuras ou descontinuidades. As formas podem sofrer fraturas,
dobraduras, distorções, serem realocadas, transformadas, adaptadas. Podem
sofrer qualquer tipo de alteração. Elas continuarão reproduzindo a lógica da
estrutura simbólica do Capital. É essa lógica que dá a configuração das formas no
devir de seus deslocamentos; é apenas por meio da ruptura com essa lógica que

28NAVES, Márcio Bilharinho, op. cit., 2008, p. 57, 58.


29MASCARO, Alysson Leandro. Estado e forma política. São Paulo: Boitempo, 2013, p.
39.
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se viabilizará uma ruptura com as formas. As formas permitem penetração e


reconfiguração, mas não diretamente sua destruição. Sua dissolução depende
somente da obliteração de seu próprio fundamento: a sociabilidade capitalista.
Por isso essas três formas são essenciais: elas garantem a reprodução e a
manutenção dessa sociabilidade e a configuram ao mesmo tempo em que são por
ela reconfiguradas, implicando uma relação de tensão entre as forças ativas do
Capital e forças reativas que resistem a ele, mas que, em última instância – pelo
menos até o presente momento – não resultam numa reação ao cerne constitutivo
dessa estrutura, mas apenas produz cisões e suturas que mantém a
reprodutibilidade do simbólico capitalista.
Por conseguinte, o Direito parece incapaz de romper com a reprodução
da circulação mercantil. Pelo contrário, ele mostra-se, em alguma medida,
responsável justamente pela sua continuidade, e, portanto, parte do que assegura
o modo de organização da forma política. Trata-se de formas dessemelhantes,
mas que operam de modo congênere, funcionando ambas – a forma jurídica e a
forma política – analogamente através da técnica jurídica:

A imbricação recíproca entre forma política estatal e forma jurídica faz


com que no nível de sua operacionalização e de seu funcionamento,
ambas sejam agrupadas. É a técnica jurídica que cimenta tal
aproximação. No campo das técnicas – não das formas -, o direito e o
Estado estabelecem as maiores pontes entre si. A forma jurídica, que
resulta estruturalmente de relação social específica da circulação
mercantil, passa a ser talhada, nos seus contornos, mediante técnicas
normativas estatais. Ao mesmo tempo, o Estado, sendo forma política
apartada da miríade dos indivíduos em antagonismo social e tendo aí
sua existência estrutural, se reconhecerá, imediatamente, a partir do
talhe das estipulações jurídicas. Nesse sentido, embora as formas
políticas estatal e jurídica sejam forjadas estruturalmente a partir das
relações capitalistas, o imediato de seus corpos opera a partir de uma
técnica aproximada, num processo contínuo de perfazimento. Se no que
tange à forma, política e direito são duas estruturas insignes, na
operacionalização técnica se agrupam.30

Direito e Estado são duas estruturas que se sobrepõem por meio de um


tecnicismo operacional, mas que na verdade são resultantes de uma forma social
específica complexa e estruturada pelas determinações de seu modo de
organização. Isto é, a forma jurídica – o Direito – e a forma política – o Estado –
são estruturas “estruturadas-estruturantes”, engendradas por uma forma de
sociabilidade caracterizada pela troca de mercadorias e pela valorização do valor.

30 Ibidem, p. 43.
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Isso quer dizer que ambas as formas possuem uma configuração direcionada à
manutenção, em maior ou menor grau, dessa sociabilidade, pela qual estão
sobredeterminadas.
Ora, se ambos estão sobredeterminados pelo regime corrente de
sociabilidade, isto é, por um modo de produção capitalista que se sedimenta como
determinação oposta ao Direito e ao Estado, engendrando-os numa única
totalidade, então é forçoso dizer que a própria democracia, enquanto fundamento
e princípio político legitimador do Estado, está submetida à lógica do valor
imprimida pela estrutura simbólica reproduzida pelo capitalismo. Dessarte,
como podemos entender a democracia então?

A DEMOCRACIA E OS SEM-PARCELA

A democracia aparece pela primeira vez nas Cidades-estados da Grécia


Antiga, encontrando seu ápice de formação na cidade de Atenas. Aqui, a
democracia é o governo dos cidadãos, que exercem a participação política na
assembleia diretamente, sem qualquer tipo de representante ou mediação. Trata-
se, pois, de um regime político no qual o papel do soberano está encarnado na
figura do corpo coletivo de cidadãos. São os próprios cidadãos, que usufruem da
Pólis, os responsáveis pela administração e organização da Cidade. Nas Pólis, esse
corpo político é formado pelo povo:

Segundo suas raízes gregas, a palavra democracia designa o


poder do povo (demos, kratos). Corresponde a uma noção
surgida precisamente na Grécia antiga, a partir do século VI
antes da nossa era, em Mileto, Megara, Samos e Atenas. Mas as
coisas não são tão evidentes como parecem, pois as palavras – e,
muito particularmente no domínio jurídico-político, as palavras
“povo” e “poder” – estão envoltas em penumbra. Por isso, o olhar
lançado sobre as instituições é mais eloquente que o inventário
das idéias e das palavras.31

Há uma obscuridade sobre as palavras “povo” e “poder”, pois é bastante


difícil encontrar na Grécia antiga uma noção e um fundamento precisos do que
vem a ser ambos. O povo não possuía a mesma delimitação com a qual se entende

31 GOYARD-FABRE, Simone. O que é democracia?: a genealogia filosófica de uma


grande aventura humana. Tradução de Claudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes,
2003, p. 9.
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hoje o termo, assim como a legitimidade do poder, diluída entre os cidadãos, era
de difícil apreensão, já que o próprio exercício do poder ocorria de maneira
difusa, muitas vezes escapando de um controle preciso de seus desdobramentos.
Não à toa a democracia ateniense guarda em si o germe de sua própria
degradação em razão de suas limitações práticas.
A disposição da repartição dos poderes dos cidadãos, aos poucos, vai se
revelando problemática, na medida em que a liberdade e a igualdade distribuídas
aos cidadãos revela as dimensões de homens dominados pelas paixões e pelos
interesses individuais onde a realização da vontade do corpo coletivo torna-se
cada vez mais difícil. Platão, antecipando – como veremos mais a frente – as
críticas modernas à democracia, revela-nos o cerne do problema do ideal
democrático:

[...] a democracia só pode ser pensada dentro de uma hierarquia


normativa e sob os signos evidentes da corrupção e do
relativismo por meio dos quais o tempo e a experiência
adulteram e destroem a perfeição das idéias de Constituição e
Política. Em suma, a democracia é uma constituição ruim,
associada a esse tipo ruim de homem que, de mísera virtude e
parca inteligência, está sedento por aquilo que crê ser sua
liberdade e a igualdade de todos. A democracia adota realmente
a figura do que Políbio chamará mais tarde de “oclocracia”
(ochlokratia): é o governo de um povo que, antes de ser demos,
é ao mesmo tempo multidão (plethos) e turba (ochlos). Enquanto
tal, arrastada pelo turbilhão da multiplicidade, está voltada à
instabilidade: a Cidade-Estado democrática não pode ser a bela
unidade de uma Constituição estável. Com a liberdade
degenerando em ilegalidade, ela sucumbe à tirania sempre
ameaçada pela desrazão.32

Mas, para entender como a democracia moderna surge, uma retomada


acrítica do passado não é adequada. É preciso percebê-la como resultado de um
duplo móbil. A crítica ao terror stalinista (campanha de perseguições políticas,
perseguições e execuções ocorridas entre 1936 e 1939, após a morte de Lênin)
como dedução do terror revolucionário francês (momento em que o governo
revolucionário da facção da Montanha que integra o partido jacobino promoveu
a suspensão das garantias civis, perseguindo e assassinando oposicionistas) foi
utilizada como argumento da denúncia da democracia liberal; a democracia do
terror, radical e igualitária, sacrifica os direitos individuais em favor da fúria cega

32 Ibidem, p. 30.
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das multidões e da religião da comunidade. Essa proposição parece justamente


conduzir-nos a uma reinauguração da democracia liberal e pragmática, livrando-
nos do terror da democracia terrorista e de seus fantasmas revolucionários.
Contudo, essa crítica, posta dessa forma simples, ignora o fundo duplo contido
na crítica ao Terror. Desde o início a crítica liberal apelante aos rigores totalitários
da igualdade radical subordina-se ao princípio de que o pecado da revolução não
era seu coletivismo, mas, inversamente, seu individualismo. Essa crítica,
inaugurada pelos teóricos da contrarrevolução surgida após a Revolução
Francesa, e retomada pelos socialistas utópicos no início do século XIX e pela
jovem ciência sociológica, enunciam essa leitura através do entendimento de que
a revolução foi uma consequência do Iluminismo e de seu princípio fundante, o
protestantismo, que contemplava o individualismo isolado, ao invés de elevar
crenças e estruturas coletivas. A revolução protestante atomizou os indivíduos,
dissolvendo o laço social. O Terror surge justamente como consequência da
vontade de eliminar essa dissolução e recriar o laço social; um esforço de dar
corpo imaginário a uma sociedade destruída33:

O duplo móbil da revolução [- o século das Luzes e o


protestantismo -] permite compreender a formação do
antidemocratismo contemporâneo. Permite compreender a
inversão do discurso sobre a democracia consecutiva ao
desmoronamento do império soviético. De um lado, a queda
desse império foi saudada, por um período bastante breve, como
a vitória da democracia sobre o totalitarismo, a vitória das
liberdades individuais sobre a opressão do Estado, simbolizada
por aqueles direitos humanos reivindicados pelos dissidentes
soviéticos ou pelos operários poloneses. Esses direitos “formais”
foram o primeiro alvo da crítica marxista, e o desmoronamento
dos regimes construídos sobre a pretensão de promover uma
“democracia real” parecia ser a revanche. Mas, por trás da
saudação obrigatória aos vitoriosos direitos humanos e à
democracia recuperada, o que acontecia era o inverso. Uma vez
que o conceito de totalitarismo não tinha mais uso, a oposição de
uma boa democracia dos direitos humanos e das liberdades
individuais à má democracia igualitária e coletivista também se
tornou obsoleta. A crítica dos direito humanos recuperou
imediatamente todos os seus direitos. Podia-se enunciar à
maneira de Hannah Arendt: os direitos humanos são uma ilusão,
porque são os direitos do homem nu, desprovido de direitos. São
os direito ilusórios dos homens que foram expulsos de suas casas,
de sua terra e de qualquer cidadania por regimes tirânicos.

33RANCIÈRE, Jacques. O ódio à democracia. Tradução de Mariana Echalar. 1. ed. São


Paulo: Boitempo, 2014, p. 24, 25.
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Conhecemos a simpatia que essa análise tem angariado em


tempos recentes. De um lado, dá um apoio oportuno às
campanhas humanitárias e libertadores de Estados que, em
nome da democracia militante e militar, defendem os direitos
desses sem-direitos. De outro, inspirou a análise de Giorgio
Agamben, que transforma o “estado de exceção” no conteúdo real
de nossa democracia. Mas essa crítica também pode se enunciar
à maneira daquele marxismo que a queda do império soviético e
o enfraquecimento dos movimentos de emancipação no ocidente
disponibilizavam de novo para qualquer uso: os direitos do
homem são os direitos dos indivíduos egoístas da sociedade
burguesa.34

Retornamos, então, ao campo da crítica marxista do Direito. Todavia,


agora em outros termos. O homem egoísta que ressurge no seio da sociedade
burguesa após a derrocada dos movimentos de emancipação social do século XX
– principalmente depois da queda do Muro de Berlim, do enfraquecimento do
Partidos Comunistas, do fim do regime soviético e da vitória da
Weltaunschauung liberal – revela-se nos tempos modernos sob a face de Janus.
Se, por um lado, o sujeito de direito é o homem livre, igual, ao qual deve ser
resguardada a dignidade humana e o direito à participação, ainda que mediante
representação, nas decisões do Estado, por outro, ele se apresenta como o
consumidor narcísico, tomado pelas impulsos de sua clivagem narcísica que
sempre o conduzem ao reconhecimento de suas demandas individuais em
detrimento de qualquer demanda coletiva; o homem cujas demandas de gozo pela
satisfação do desejo encontram sua realização no consumo.

A questão é saber quem são esses indivíduos egoístas. Marx


entendia que eram os detentores dos meios de produção, ou seja,
a classe dominante, da qual o Estado dos direitos humanos era o
instrumento. A sabedoria contemporânea vê as coisas de outro
modo. E, de fato, basta uma série de ínfimos deslocamentos para
dar aos indivíduos egoístas uma feição completamente diferente.
Em primeiro lugar, substituamos “indivíduos egoístas” por
“consumidores ávidos”, o que não deverá causar estranheza.
Identifiquemos esses consumidores ávidos a uma espécie social
história, o “homem democrático”. Lembremos por fim que a
democracia é o regime da igualdade e podemos concluir: os
indivíduos egoístas são os homens democráticos. E a
generalização das relações mercantis, cujo emblema são os
direitos do homem, não é nada mais que a realização da exigência
febril de igualdade que atormenta os indivíduos democráticos e
arruína a busca do bem comum encarnada no Estado.35

34 Ibidem, p. 27-29.
35 Ibidem, p. 28.
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Isto nos conduz à conclusão de que um Direito e uma política orientados


à reprodução de uma lógica de consumo, ou seja, de uma lógica essencialmente
atrelada à manutenção da ordem simbólica do capital, jamais serão capazes de
promover uma liberdade e uma igualdade efetiva (Wirklich), já que a própria
efetivação dessa liberdade e dessa igualdade desaguam fatalmente na busca pela
realização isolada de cada sujeito atomizado que participa do “pacto social”. A
única forma de alcançar a realização dessas potencialidades humanas é a ruptura
com essas formas, isto é, interromper a atual ordem simbólica imposta pelo
grande outro – o Capital – e enclaustrar o fetichismo do capitalismo nos
recônditos do passado da história.
Mas como fazê-lo? Rancière nos deixa entrever uma possibilidade na
política. A política moderna, sob a ótica desse filósofo, implica em pensar uma
redistribuição do espaço e dos modos de ver e de utilizar os espaços. Trata-se,
mais propriamente, de alterar completamente as coordenadas de qualquer tipo
de reivindicação social. Uma reivindicação que não depende e nem pretende se
subjugar às determinações e limitações das regras do Leviatã-juiz.
Tais reivindicações, que se submetem à avaliação e aprovação do julgo da
lei, não integram, como entende Rancière, o campo da política, mas o campo da
“polícia”.

A distribuição dos lugares e funções que define uma ordem


policial depende tanto da suposta espontaneidade das relações
sociais quanto da rigidez das funções de Estado. A polícia é, na
sua essência, a lei, geralmente implícita, que define a parcela ou
a ausência de parcela das partes. Mas, para definir isso, é preciso
antes definir a configuração do sensível na qual se inscrevem
umas e outras. A polícia é assim, antes de mais nada, uma ordem
dos corpos que define as divisões entre os modos do fazer, os
modos de ser e os modos do dizer, que faz que tais corpos sejam
designados por seu nome para tal lugar e tal tarefa; é uma ordem
do visível e do dizível que faz com que essa atividade seja visível
e outra não o seja, que essa palavra seja entendida como discurso
e outra como ruído.36

A ordem policial é propriamente a configuração de um estado de coisas


onde os lugares, os modos de uso, de fazer, os corpos, os discursos e os regimes

36RANCIÈRE, J. O desentendimento – política e filosofia. Tradução de Ângela Leite


Lopes. São Paulo: Editora 34, 1996, p. 42.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 9, n°12, vol. 2, 2018 154

de visibilidade declaram e fixam a inexistência da parcela dos sem parcelas.


Podemos entender, brevemente, os sem-parcela como os indivíduos destituídos
de si mesmos, isto é, que não encontram na ordem policial o acesso às condições
para a realização de si, não detêm acesso à sua parcela, nem mesmo por meio de
representação, dentro desses regimes de visibilidades, de usos, de fazeres e de
distribuição de lugares. O apelo dos sem-parcela não é discurso, é ruído. É
somente através da política – signo que ganha, aqui, um sentido conceitual
próprio – que Rancière encontra espaço para a transformação desses regimes
através da redistribuição e configuração de justas parcelas. Assim ele nos
apresenta uma noção diversa de concepções mais usuais de política, geralmente
compreendida sinteticamente como o processo de organização de poderes, de
composição de fundamentos de legitimação das instituições estatais e
distribuição de funções – o que ele chama propriamente, como descrito
anteriormente, de polícia:

Proponho agora reservar o nome de política a uma atividade bem


determinada e antagônica à primeira [a polícia]: a que rompe a
configuração sensível na qual se definem as parcelas e as partes
ou sua ausência a partir de um pressuposto que por definição não
tem cabimento ali: a de uma parcela dos sem-parcela. Essa
ruptura se manifesta por uma série de atos que reconfiguram o
espaço onde as partes, as parcelas e as ausências de parcela se
definiam. A atividade política é a que desloca um corpo do lugar
que lhe era designado ou muda a destinação de um lugar; ela faz
ver o que não cabia ser visto, faz ouvir um discurso ali onde só
tinha lugar o barulho, faz ouvir como discurso o que só era ouvido
como barulho. (...) Espetacular ou não, a atividade política é
sempre um modo de manifestação que desfaz as divisões
sensíveis da ordem policial ao atualizar uma pressuposição que
lhe é heterogênea por princípio, a de uma parcela dos sem-
parcela que manifesta ela mesma, em última instancia, a pura
contingência da ordem, a igualdade de qualquer ser falante com
qualquer outro ser falante. Existe política quando existe um lugar
e formas para o encontro entre esses dois processos
heterogêneos. O primeiro é o processo policial no sentido que o
tentamos definir. O segundo é o processo da igualdade.
Entendamos provisoriamente sob esse termo o conjunto aberto
das práticas guiadas pela suposição da igualdade de qualquer ser
falante com qualquer outro ser falante e pela preocupação de
averiguar essa igualdade.37

37 Ibidem, p. 42.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 9, n°12, vol. 2, 2018 155

O que Rancière propõe não é a institucionalização jurídica ou legal de


uma igualdade, mas sim uma suposição, dependente de constante verificação e
afirmação, da igualdade de todo ser falante, isto é, de todos aqueles que compõem
a parcela do campo político-social, inclusive e principalmente os sem-parcela. A
política, mais precisamente, implica num ato de torção do simbólico e de
disrrupção da ordem social, cindindo, retalhando e reconstruindo os regimes de
visibilidade e de contagem das parcelas das múltiplas singularidades, sob outros
signos e sob outros sentidos, de modo a garantir efetivamente a justa distribuição
das parcelas e a composição de uma unidade arquetípica como princípio de
realização humana.

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Lopes. São Paulo: Editora 34, 1996.
__________. O ódio à democracia. Tradução de Mariana Echalar. 1. ed. São
Paulo: Boitempo, 2014.

SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral
dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 11. ed. rev. atual. Porto
Alegre: Livraria do Advogado Editora: 2012.

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