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Introdução
(1) o signo é determinado pelo objeto, isto é, o objeto causa o signo, mas
(2) o signo representa o objeto, por isso mesmo é signo;
(3) o signo representa algo, mas é determinado por aquilo que ele
representa;
(4) o signo só pode representar o objeto parcialmente e
(5) pode, até mesmo, representá-lo falsamente;
(6) representar o objeto significa que o signo está apto a afetar uma mente,
isto é, nela produzir algum tipo de efeito;
(7) esse efeito produzido é chamado de interpretante do signo;
(8) o interpretante é imediatamente determinado pelo signo e mediatamente
determinado pelo objeto, isto é,
(9) o objeto também causa o interpretante, mas através da mediação do
signo;
(10) o signo é uma mediação entre o objeto (aquilo que ele representa) e o
interpretante (o efeito que ele produz), assim como
(11) o interpretante é uma mediação entre o signo e um outro signo futuro (p.
43).
Esse modo de descrição do fenômeno já seria suficiente para reinstaurar a
polêmica que ronda a concepção de signo no que tange à natureza imanente ou
transcendente do objeto representado. O modalizador “falsamente” do ponto (5) acima
convoca o seu contrário “verdadeiramente” e nos faz perguntar pelos critérios
definidores das representações falsa e verdadeira. Onde buscá-los? Na adequação do
signo ao objeto que o determinou? Nesse caso, isto é, no caso de ser o signo
determinado pelo objeto, poderia o signo “representá-lo falsamente”? Responder a essas
indagações é resolver uma questão aberta desde os pré-socráticos, tarefa que não temos
a pretensão de realizar.
Parece-nos, todavia, lícito dizer que, observados os onze pontos acima, o objeto
vem à existência mediante o exercício de criação sígnica, e o « real », isto é, a totalidade
do mundo do qual somos parte, anterior ao revestimento sígnico, escapa
inexoravelmente às tentativas de sua apreensão, apesar de ser o que motiva e determina
o signo. O « real », a coisa em si kantiana, é algo da ordem do inapreensível, por
heterogêneo, multifacetado e dinâmico. É por admitir esse a priori constitutivo do
signo, recolhecer-lhe a fluidez e atribuir-lhe a função motivadora da semiose que Peirce
estabelece a diferença entre o objeto dinâmico, o a priori motivador, heterogêneo,
multifacetado e dinâmico, que provoca o signo, mas é inapreensível em sua
complexidade, e o objeto imediato, objeto parcial, fundado na relação com o signo,
objeto que mediatiza o vínculo do signo com o objeto dinâmico. Nesses termos, pode-se
dizer que, com o signo, realiza-se um ato referêncial que tem como foco o objeto
dinâmico, mas isso só é possível pela mediação do objeto imediato. Peirce, no entanto,
não para nessa constatação, até certo ponto banal.
Além desses dois elementos, signo e objeto (não importa se dinâmico ou imediato,
neste momento), que se pressupõem reciprocamente, Peirce postula outra mediação,
dessa vez entre o signo e o seu objeto imediato, mediação de mediação, portanto, que se
efetivaria pelo concurso do que ele chama interpretante. O interpretante seria, assim,
nada mais nada menos que outro signo que « traduzisse » a relação do primeiro signo
com seu objeto imediato.
De fato, essa série de relações remissivas faz da semiose uma cadeia ininterrupta
de interpretantes (de signos, portanto), já que a relação entre um signo e seu objeto
imediato é mediada pelo interpretante, que, tendo também natureza síginica, é nova
relação entre signo e objeto imediato, que, por sua vez, pede a intervenção de outro
interpretante, e assim sucessivamente, num processo gerador de signos que inflaciona
sem cessar o que Lótman chama de Semiosfera. Ora, é precisamente isso que Santaella
(1995) assevera na passagem abaixo:
Com efeito, o objeto dinâmico em Peirce funciona como origo, instância a quo,
resíduo ou fantasma, que nos impõem a semiose como condição de possibilidade de
todo ser e fazer. A realidade, humana ou não, é, assim, de ordem sígnica, e todos
lidamos com objetos imediatos, isto é, com construções de linguagem, só acessíveis
mediante o concurso de outras construções de linguagem.
Umberto Eco, por exemplo, refletindo sobre esse horizonte ontológico do sentido
que nos exorta à ação, em Kant e o ornintorringo, propõe substituir a palavra « ser »
pelo pronome indefinido de função substantiva « algo », em virtude da pesada carga
semântica que o termo « ser » foi adiquirindo ao longo dos dois séculos e meio de
problematização filosófica e da natureza mais vaga e imprecisa que o pronome confere
ao ato referencial, no sentido de « ir para », que, em última instância, está contido no
conceito de intencionalidade. Segundo Eco (1997), esse algo, resíduo fantasmático e
fugidio, corresponde a um « duro sustentáculo do ser » cuja ação é, a um só tempo,
exortar-nos à semose e resisistir à nossa ação sobre ele. Em outras palavras, o algo (ou o
ser) equivale ao que se dá a nós, sem se dar completamente, ao que se põe e se
contrapõe à nossa atividade linguageira, ao que dá azo à semiose e estabelece seus
limites, algo cuja positividade única se apresenta por negação, como recusa à nossa
atividade semiósica, como pura resistência à nossa ação discursivizante. Por isso, não
estaria no poder da linguagem fazer desse algo o que lhe aprouvesse, pois ele, na
condição de um já dado, impõe as suas « linhas de resistência », ou, se quisermos
evocar Espinosa, impõe, como limite último ao nosso poder discursivizante, as
« nervuras do real ». É certo que esse algo não é, enfim, mero efeito de linguagem, uma
vez que o nosso exercício linguageiro sempre presta contas a ele. Mas é igualmente
certo que não há como garantir que a forma que esse algo toma pode escapar às
coerções das linguagens pelas quais ele se dá a nós, pois, como diz Eco (1997):
Afirmar que existem linhas de resistência quer dizer apenas que, mesmo que
apareça como efeito de linguagem, o ser [o algo] não o é no sentido em que a
linguagem livremente o contrói. Mesmo quem afirmasse que o ser [o algo] é
puro Caos, e portanto suceptível de qualquer dicurso, deveria ao menos
escluir que este seja Ordem firme. A linguagem não constrói o ser ex novo:
interroga-o, encontrando sempre e de algum modo algo já dado (mesmo que
já ser dado não signifique já estar acabado e completo). Ainda que o ser [o
algo] existisse carcomido, existiria sempre um tecido cuja trama e urdidura,
confundidas pelos infinitos buracos que corroeram, subsistem de algum
modo obstinado. (p. 52)
Pode-se dizer em suma que, para Peirce, em linhas gerais, o processo sígnico ou
semiose se constitui com base em três elementos: (1) o representâmen, ou signo stricto
sensu, conforme a tradição anglo-saxônica, elemento in praesentia, o primeiro de uma
relação triádica, que remete a um segundo elemento, seu objeto imediato, do qual ele é
signo; (2) o objeto imediato do signo stricto sensu; e (3) o interpretante, outro signo que
vai mediar a relação entre o representâmen e seu objeto.
Saliente-se que, segundo esse modo de ver, o objeto dinâmico constitui não só a
fonte que gera e determina o signo, mas também o ponto fugidio e fantasmático para o
qual todo signo aponta referencialmente. Ora, se esse apontar nunca é direto por passar
pela mediação do objeto imediato e do interpretante, então estamos diante de uma
complexa cadeia de signos cujo efeito é descontinuizar liguageiramente o contínuo
amorfo para que se possa lidar referencialmente com ele. Trata-se de um paradoxo da
linguagem, segundo o qual, para conquistar o contínuo, é preciso antes de tudo perdê-lo
pela mediação da linguagem descontinuizadora. Pensando desse modo, é evidente que o
objeto dinâmico perde sua relevância descritiva e figura apenas como construto teórico,
na qualidade de um terminus a quo ou de um terminus ad quem, do qual uma teoria
semiótica que não pretendesse pensar o processo de geração do signo desde o ser não
precisaria tratar.
Santaella (1995) julga poder escapar a essa crítica quando assinala, em tom
conclusivo:
Todavia, pensamos que, salvo engano, esse jogo de remissões que envolve a
tríade objeto-signo-interpretante não só acaba por lançar, como já admitimos, o objeto
dinâmico nos confins do possível, como também deixa confuso o estatuto do objeto
imediato. Este depende, segundo lição de Peirce, do que está no fundamento de sua
relação com o objeto dinâmico via signo, o que parece fazer do signo a única evidência
fenomênica, principalmente se nos detivermos na afirmação de que, « numa semiose
genuína, esses três elementos [objeto-signo-interpretante] têm natureza sígnica ». Em
última análise, da tríade perciana apenas o signo e o interpretante parecem ter estatuto
bem definido, e o referente, entendido como objeto do signo, seja na qualidade de
terminus a quo, seja na de terminus ad quem, poderia ser colocado entre parênteses
numa visada que priorizasse não mais o processo de constituição do signo desde as
nascentes, mas a estrutura e o funcionamento de sistemas que estão na base da atividade
comunicativa.
No Curso de linguística geral, não se encontra uma definição de signo lato sensu,
como a de Peirce. O que se tem, de fato, é uma reflexão acerca da constituição do signo
linguístico na imanência de sistemas que constituem o fundamento da comunicação
humana. Nele, assume-se a posição teórica segundo a qual o foco da descrição deve
voltar-se para os sistemas de comunicação, dos quais as línguas naturais são, de longe,
os mais complexos.
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Cumpre lembrar aqui a questão da onomatopeia, cujo caráter arbitrário, dependente do sistema
fonológico das línguas particulares, o Curso de linguística geral intenta provar. A semiótica
peirceana, por sua vez, classifica a onomatopeia como um caso de ícone, em que o signo, ou
significante, guarda relação de “semelhança” com o objeto representado.
Se compararmos essa definição com a de Peirce, perceberemos que signo, para o
filósofo estadunidense, corresponde apenas ao significante saussureano, o primeiro da
relação triádica peirceana. Ora, se assim for, então, cumpre perguntar: essas duas
concepções de signo podem ser aproximadas ? Em caso afirmativo: qual(is)
elemento(s) da concepção de signo de Peirce poderia(m) ser colocado(s) em
correspondência com o significado saussureano: o objeto dinâmico, o objeto imediato
ou o interpretante ?
Problema intrincado esse, de difícil tratamento, que lança essas duas vertentes da
semiótica numa disputa fratricida, sobretudo quando os raciocínios desenvolvidos em
suas trincheiras esforçam-se em autorizar um dos teóricos promovendo o sacrifício do
outro.
Para Greimas e Courtés (2008), o problema gerador do dissenso entre elas reside
na intromissão do referente, que:
Para evitar essa deriva é que Greimas e Courtés (2008), assumindo claramente o
ponto de vista saussureano, assinalam que, “consagrando-se ao estudo da forma, e não
ao da substância, a semiótica não poderia permitir-se juízos ontológicos sobre a
natureza dos objetos que analisa.” (p. 194). Para esses dois autores, a semiótica deveria
pronunciar-se sobre a existência semiótica e poderia “contentar-se com uma definição
operatória”, segundo a qual “a existência semiótica de uma grandeza qualquer é
determinada pela relação transitiva que, tomando-a como objeto de saber, a liga a um
sujeito cognitivo” (p. 195). Ou seja, tudo parte da constatação de que “há sentido”, da
qual decorre “a possibilidade de dizer alguma coisa a seu respeito”, mediante sempre a
operação de tansposição desse sentido, isto é, sua tradução. Assim, para Greimas e
Courtés (2008), “‘falar do sentido’ é ao mesmo tempo traduzir e produzir significação”
(p. 508), transpor a substância do sentido em significação, ou seja, em sentido articulado
numa forma. O ato de transposição do sentido e as formas linguageiras empregadas para
esse fim é o que, de fato, interessam à semiótica de linha sausureana.
Pontos de contato
Vamos a um exemplo bastante tosco que ilustra bem o que queremos dizer.
Suponhamos que um silvícola da Amazônia brasileira não conheça a fruta “maçã”, e um
antropólogo alemão, num primeiro contato com a tribo dele, queira fazê-lo realizar o ato
referencial que aponte imprecisamente “no mundo”, em termos peirceanos, o objeto
dinâmico referido via objeto imediato. Primeiro, o antropólogo diz “Apfel”, e o índio
não compreende. Depois, diz “apple", e novamente o ato de comunicação se frustra. Em
seguida, por estar num país luso-falante, tenta “maçã”, e o índio continua sem entender.
O antropólogo resolve, então, traçar algumas linhas na areia, mas não obtém êxito. Por
fim, lembrando que trazia consigo um exemplar da fruta, saca-o da bolsa e mostra ao
índio, crendo que finalmente o ato de comunicação se consumaria. Porém, o índio
continua com o mesmo ar de interrogação. O que se passa entre o antropólogo e o
índio?
Podemos dizer, em suma, que uma concepção de signo não dispensa a outra. Pelo
contrário, vislumbramos a dimensão sistêmica de Saussure no conceito peirceano de
legi-signo, em virtude do caráter simbólico deste, e, como procuramos mostrar,
entendemos a operação realizada pelo interpretante de Peirce como similiar à operação
de transposição do sentido, cara à semiótica de inspiração saussureana.
Referências