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INTRODUÇÃO
Os Sonhos e o Continente: O que é a Ásia Oriental?

O Século Asiático
Já se completavam quase duas décadas no início do novo século e as expectativas
de crescimento econômico eram promissoras no mundo globalizado. A grande China
atraía todas as atenções, mobilizando nações europeias em ousadas transações mercantis.
Zonas do sul oriental chinês fervilhavam em cosmopolitismo e comércio, oferecendo
produtos manufaturados em indústrias de altíssima tecnologia sem concorrência mundial.
O mosaico indiano também transbordava riquezas, atraindo investidores e negociantes
que manejavam recursos de magnatas do Oriente Médio e de burgueses da Europa. As
inúmeras entidades políticas do Sudeste Asiático se encontravam intimamente
amalgamadas nestas redes, oferecendo seus serviços especializados e economias de
apoio. Nas quatro partes do mundo circulavam ideias com agilidade, muitas delas
práticas, científicas e empíricas, outras embebidas de misticismos e ações devocionais
sinceras. Este quadro otimista se revelou trágico quando um agente microscópio
convulsionou a História: o vírus. Este diminuto participante, provavelmente tendo uma
origem zoonótica no leste da Eurásia, alterou o desenvolvimento histórico do planeta.
Particularmente, as populações indígenas das Américas sofreram muito com estas
doenças e com as violências engendradas em disputadas territoriais provocadas por
invasores incentivados por estados modernos.
A síntese apresentada dá conta do que vivemos no começo do século XXI,
especialmente desde 2019. A incontestável emergência asiática, capitaneada pela China,
reconfigurou a geopolítica e as economias globais. Índia, Japão, Coréia e as nações do
Sudeste Asiático também se estabeleceram como participantes de um novo mundo para
além do controle exclusivo do Ocidente. Tal integração apresentou-se ainda mais
acentuada com a pandemia de covid-19, que rapidamente se espalhou da Ásia para todos
os continentes e evidenciou a dependência mundial de zonas industriais chinesas e
indianas no fornecimento de insumos fármacos e equipamentos hospitalares. No entanto,
o parágrafo inicial apresenta um resumo de acontecimentos que ocorreram 500 anos antes,
em 1519!
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Na primeira metade do século XVI a Ásia Oriental era a região mais dinâmica,
cosmopolita, habitada e rica do mundo. Sem paralelos, nos mercados chineses eram
encontrados finos produtos de todas as regiões, como pérolas do Sri Lanka, frascos
ricamente esculpidos do Báltico e todas as espécies possíveis de aromáticos do Sul da
Ásia e Oriente Médio. Em contrapartida, a China da dinastia Ming (1368-1644) exportava
toneladas de rolos de seda e cerâmicas adaptadas aos gostos de variados grupos sociais.
A produção era tanta e tão diversa que podemos afirmar que verdadeiras zonas industriais
pulsavam, com fornos de elevadas temperaturas que confeccionavam porcelanas
padronizadas em números estrondosos. Assim, por mais que a corte Ming adotasse um
crescente gosto autocentrado, as transações comerciais privadas cresciam vigorosamente.
Já em 1509, por exemplo, a região de Guangzhou (Cantão), não muito distante da atual
Hong Kong, se abriu como um posto de comércio legal entre mercadores chineses e
comerciantes oriundos de países tributários reconhecidos pela chancelaria imperial.
No Subcontinente Indiano o cenário era incrivelmente vivo e dinâmico, com todo
o território marcado por reinos capitaneados por marajás hindus e sultões islâmicos. Entre
os séculos VIII e XII dinastias iluminadas pelo Islã sonhavam em conquistar toda al-
Hind, o coração de uma rede comercial marítima milenar que atrelava regiões do Oriente
Médio, da África Oriental, do Mediterrâneo e do Leste Asiático. Pela longa Costa de
Malabar, por exemplo, pulsavam portos coloridos, abarrotados de riquezas e ideias que
exportavam tecidos de algodão e musselina, arroz, óleos vegetais e produtos estimados,
como a seda chinesa e aromáticos da Indonésia.
O antigo Sultanato de Déli, estabelecido em 1175 por Muhammad de Ghuri,
encontrava-se fragilizado politicamente. Seus gloriosos anos passados eram uma
memória doída, com sua antiga área de governança fragmentada em zonas praticamente
autônomas de potentados islâmicos e hindus. Foi em uma destas áreas que em 20 de Maio
de 1498 o navegador português Vasco da Gama aportou. Calicute era uma joia
transbordando a universalidade da ancestral rota marítima que ligava o Golfo Pérsico com
o Mar do Sul da China, estrada líquida nevrálgica de um sistema mundial indo-sino-
islâmico. Assim, a empreitada das três modestas caravelas comandadas por da Gama
conectaram Portugal com um mundo assombroso. Depois de vencido o Cabo da Boa
Esperança a frota lusa encontrou um périplo muito conhecido por marinheiros africanos,
chineses, árabes e indianos. Quando aportavam em paragens da África do Índico logo
eram recepcionados por negociantes acostumados com os intercâmbios. Os portugueses
estavam boquiabertos com o que encontravam nestas rotas mercantes vívidas. Por vezes
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produziam escaramuças com sultões litorâneos, orgulhosos de suas riquezas. Em outras


ocasiões, os encontros eram amistosos, com trocas que iam além das sonhadas
especiarias. Em Melinde, no atual Quênia, Vasco conseguiu incorporar um piloto
experimentado, um muçulmano chamado Malemo Caná (ou Canana) que portava cartas
marítimas preciosas. Certamente foi com o auxílio de Caná que Calicute se abriu.
Cerca de um século antes a costa do litoral oriental africano estava congestionada
por outros tipos de embarcações. Enorme juncos chineses, talvez mais de uma centena
deles, efetuaram duas colossais viagens para a região (1417-1419 e 1421-1422), com
visitações ao litoral da Somália, Mogadíscio e Melinde. O almirante Zheng He (1371-
1433), um eunuco imperial muçulmano, comandou uma esquadra que chegou a ter 317
navios com até 61 metros de comprimento, cerca de duas ou três vezes maiores que as
caravelas ibéricas. Empreendeu sete viagens entre 1405 e 1433, levando a glória imperial
dos Ming até porções da Indochina, Indonésia, Índia, Pérsia, Península Arábica e África
do Índico. Suas viagens, essencialmente políticas e diplomáticas, não tinham como
objetivo promover o comércio (já conhecido), mas reafirmar a supremacia Ming.
Frente às centenas de juncos chineses de Zheng He, com uma tripulação
especializada de 20 a 30 mil pessoas, as três embarcações e os 160 homens de Vasco da
Gama eram miseráveis. Modestos também eram os conhecimentos destes europeus acerca
da Ásia, que imaginavam encontrar cristãos e igrejas com imagens de santos quando, na
verdade, deparavam-se com crentes hinduístas e templos ornamentados com estátuas de
seus deuses. Um pouco depois, em 1511, o tempo da respeitosa cautela se encerrou, com
os portugueses invadindo a cidade de Melaka, polo aglutinador do comércio do Sudeste
Asiático que passava pelo Estreito de Malaca. Logo esta vergonhosa violência seria
reconhecida pela chancelaria chinesa, que repudiou os esforços de Tomé Pires, o
embaixador português que tentava desde 1517 ser recebido pelo imperador Zhengde
(1491-1521) em Beijing.
No Sul da Ásia Oriental fervilhava uma infinidade de pequenos principados
hindus e sultanatos islâmicos que produziram um carrefour javanais muito maior do que
o encontrado no Mediterrâneo. Inspirados pela realpolitik dos textos políticos e jurídicos
clássicos indianos, conhecidos pelo gênero Arthaśāstra, estas entidades políticas eram
profundamente instáveis e concorrentes, com monarcas guerreiros que buscavam
controlar principados vassalos, áreas agriculturáveis e redes comerciais com mão-de-
ferro. O brâmane Kauṭilya, chanceler do brilhante imperador Chandragupta, fundador do
império Máuria em 322 a.C., era a fonte desta política de mandalas, onde o poder
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repousava no centro, identificado com a grande capital, e irradiava sua influência para
periferias com variados graus de controle e cooptação em círculos concêntricos. Outras
áreas centrais, com suas mandalas de influências, congestionavam estas periferias,
provocando impasses e disputas ferrenhas. Kauṭilya aconselhava que os monarcas
deveriam atuar com um misto de astúcia, cautela e pragmatismo, antecipando em séculos
a máxima maquiavélica de que “os fins justificam os meios”.
Assim sendo, nas primeiras décadas do século XVI todo o Sudeste Asiático
testemunhava uma dinâmica vida econômica, cultural e política. Na bacia do rio Irrauádi,
que corta Mianmar, reinos Mons, Pyus e Birmaneses competiam entre si, interagindo
também com os territórios do antigo império hindu de Majapahit, baseado na parte
oriental de Java. Seu lento declínio, entre 1293 até 1527, foi acompanhado pela
islamização da região, com a afirmação de Malaca (Melaka) e Bornéu como sultanatos
autônomos. Seguindo o curso baixo do rio Chao Phraya, na atual Tailândia, a cidade de
Ayutthaya controlava um vistoso império que resplandecia com seus templos ricamente
decorados. Majoritariamente budista, no reino de Ayutthaya floresceu a escola
Theravāda, uma espécie de reforma teológica que pretendia purificar o Budismo de
superstições e crenças percebidas como distantes das práticas ditadas pelo dharma
ensinado por Siddhārtha Gautama, o Buda.
No Norte da Índia, a ancestral pátria de Gautama também assistia a ebulição de
ideias filosóficas e religiosas poderosas. A pulverização do Sultanato de Déli impulsionou
uma série de reinos regionais, famintos por tributos, glórias e legitimações divinas. Neste
contexto eruditos islâmicos (ulama) pregavam um Islã fertilizado com as experiências
árabes, africanas, turcas e, sobretudo, persas. Especialmente populares eram os crentes
sufis shaikhs, partidários de uma leitura mais mística da religião que buscava a união da
alma do devoto com a compaixão do criador através de exageradas demonstrações de
emoção contemplativa. Esta ênfase na devoção individual (bhakti) dirigida ao deus
personalizado, dotado de qualidades singulares (saguṇa), também embalou o Hinduísmo,
com o crescimento vertiginoso de cultos ao deus Vishnu e de seus avatares, como Rāma
e Krishna. Estas novas sensibilidades religiosas foram tão importantes na época que
impressionaram fortemente um jovem nascido perto de Lahore, no Punjab. Por volta de
1504 ele teria escutado a própria voz do Criador, afirmando que “não existe hindu, não
existe muçulmano”. Guru Nanak (1469-1538) ajudaria a fundar o Siquismo, uma bela
crença em uma divindade suprema abstrata e inefável que dialogava com o misticismo do
Sufismo e a orientação devocional Vishnuísta.
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Quatro anos após a experiência mística fundante de Nanak, Wang Yangming


(1472-1529) vivenciou também uma repentina iluminação. Influenciado por uma ética
budista, este grande filósofo neoconfucionista chinês observou que todos os princípios
são inerentes à própria mente de todos os indivíduos. Insistia que o conhecimento deveria
ser atingido através de operações práticas, apontando para um pragmatismo e empirismo
na ação que contrastava com a erudição teórica e ritualística da tradição confucionista.
Assim, o universo cultural da China Ming, costumeiramente vista como enviesada em si
mesma e isolacionista, era vigoroso e estimulante, revelando uma sociedade ricamente
complicada.
Tanto é verdade que suas relações políticas, comerciais e culturais com a Ásia
Oriental eram grandiosas. Por exemplo, durante toda a dinastia Ming cerca de 300 guerras
externas foram travadas, a maioria contra os mongóis do Norte. No litoral, maiores eram
as preocupações com a crescente pirataria nipônica (wakō), que entre 1540 e 1550
infestou o mar entre a China, Coréia e Japão. Para além das atividades criminosas, estas
ações são evidências concretas de um robusto comércio extraoficial operado por
traficantes e contrabandistas que alimentavam um mercado consumidor chinês faminto
por laca japonesa e iguarias marítimas, como lesmas-do-mar da Oceania.
Aqui a Coréia tecia com a China uma ancestral relação temperada de admiração e
busca pela liberdade. Desde o final do século XIV (c. 1392) a monarquia coreana
experimentava um impulso centralizador impressionante, buscando construir uma
governança autônoma da chinesa. A nova dinastia, que perdurou por mais de 500 anos,
até 1910, desejou recuperar memórias pretéritas lendárias, assumindo o nome mítico de
Chosŏn (Joeson). Seu esforço na promoção de uma identidade regional foi notável,
criando um verdadeiro alfabeto, o han’gŭl, para se dissociar da complicada escrita
chinesa. No entanto, a herança sinizante era profunda e íntima, atuante nas hierarquias
familiares, na burocracia estatal e na tradição literária confucionista compartilhada que
não era mais essencialmente chinesa, mas universal nesta porção da Ásia Oriental.
Dialogando com esta tradição a Coréia fomentou uma espécie de indústria editorial, com
casas de imprensa tipográfica que vendiam livros para leitores chineses, vietnamitas e
japoneses. Embora a imprensa de tipos metálicos móveis fosse dominada pelos coreanos
desde o século XIII, décadas antes de Gutenberg, sua base eram pranchas de madeira com
os textos em caracteres chineses esculpidos para serem impressos em folhas de papel. E
nesta península radicalmente atada à geopolítica do Extremo Oriente governava um rei
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coreano que não ambicionava utilizar o título de imperador, exclusivo para as cortes
chinesas (Huangdi).
Em 1519 a crescente monarquia coreana contrastava com a japonesa, que apesar
de possuir um imperador (Tennō), estava mergulhada em um período de convulsões
políticas violentas (1467-1573). Neste momento grandes senhores de terras e arrozais
(daimyô) disputavam entre si o controle político, construindo alianças tênues e esvaziando
o poder imperial e do xogunato Muromachi (1333-1568). Todavia, as tensões políticas e
peripécias militares não sufocaram a vida criativa, que era diversa e pulsante. A expansão
do Budismo Chan chinês, que recebeu a adaptação fonética de Zen, promoveu um quadro
cultural vívido expresso nas técnicas meditativas, na poesia, no teatro Nō, nos arranjos
florais Ikebana e na sensível cerimônia do chá (chanoyu).
É desta Ásia Oriental, incrível e abastada, que o Ocidente europeu esperava se
apossar. Motivados pela empreitada lusitana protagonizada por Vasco da Gama, a
monarquia espanhola encontrou em um ressentido fidalgo português um aliado perfeito.
Fernão de Magalhães já tinha navegado pelo Atlântico, chegando ao Novo Mundo, e nos
mares do Sul da Ásia sob a bandeira de Portugal. Não encontrando o reconhecimento que
esperava, vendeu uma ousada proposta aos mecenas castelhanos. E assim, no dia 10 de
Agosto de 1519 ele partiu de Sevilha à frente de cinco embarcações com cerca de 260
tripulantes. La Armada de Molucas desejava contornar a Terra pelo Sul da América,
cruzando o estreito que hoje leva o nome de Magalhães para encontrar as riquezas
orientais. Apenas em Setembro de 1522 um navio com 19 sobreviventes retornou desta
primeira viagem de circum-navegação do mundo, tendo Juan Sebastián Elcano como
capitão. Fernão foi morto em um tolo combate contra o soberano Lapu-Lapu, uma
liderança da ilha de Mactán, nas Filipinas. Seu corpo retalhado permaneceu na praia
asiática como um troféu macabro e uma memória até hoje disputada.
Além do início da aventura de Magalhães-Elcano, 1519 também testemunhou o
começo da marcha de Hernán Cortés pela costa mexicana, inaugurando um período
sombrio para as populações governadas pelos astecas. Começava uma era de forte
globalização dos seres vivos, com homens, animais e vegetais sendo conduzidos por todas
as direções juntamente com seus excrementos e secreções que levavam vírus e bactérias
em velocidades inéditas. A varíola (vírus Poxvirus variolae) estava neste combo sinistro.
Estima-se que entre 1518 e 1519 cerca de metade da população dos aruaques da ilha de
Hispaniola tenha perecido com esta doença. Seu patógeno foi transmitido aos humanos
em algum lugar do imenso corredor afroeuroasiático, impulsionado pelas rotas comerciais
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que almejavam se conectar com a Ásia Oriental desde a Antiguidade. Deve ter feito o
mesmo caminho de outros vírus, transmitidos de animais para humanos e que causavam
enfermidades como o sarampo (Measles morbillivirus), a influenza (Myxovirus
influenzae) e, recentemente, a covid-19 (SARS-Cov-2). Deste modo, 1519 e 2019
apresentam as consequências incontroláveis das conexões humanas planetárias que
possuíam e possuem na Ásia seu epicentro simbólico e material.
Curiosamente pouco do vívido quadro descrito acima fertiliza nossas memórias
históricas, com as diversas sociedades asiáticas presas em quadros interpretativos
monolíticos. Sabemos e aprendemos pouco sobre a Ásia Oriental. Nas escolas,
universidades e órgãos de imprensa ainda observamos narrativas históricas que
estabelecem lugares marginalizados para as diversas civilizações asiáticas. Em comum
elas são condicionadas em explicações que apontam o autoritarismo político, a
irracionalidade religiosa, o conservadorismo cultural e o atraso econômico como fulcros
de um passado compartilhado que ainda seduz a perspectiva ocidental. Exemplos desta
leitura são encontrados em profusão em criações artísticas como obras literárias e filmes
populares produzidos no Ocidente.
Por exemplo, em 1984 o cineasta estadunidense Steven Spielberg estreou o filme
“Indiana Jones e o Templo da Perdição”, um movimentado blockbuster arrasa-quarteirão
que apresentava as aventuras do arqueólogo-explorador Jones por partes da China e Índia.
No enredo o herói libertou uma maltrapilha população aldeã do domínio de um satânico
marajá crente na horrenda seita dos thuggees, desonrados assassinos adoradores de Kālī,
a deusa da morte. Em suas peripécias, além de desmontar o festim diabólico do soberano
despótico, ele também lutou contra mafiosos chineses em Xangai e participou de um
grotesco banquete indiano onde foram servidos repastos com cobras, insetos e cérebros
de macacos.
Indiana Jones e o Templo da Perdição foi um grande sucesso de bilheteria,
conquistando o prêmio de efeitos visuais no Oscar de 1985 e elogios da crítica
especializada nos jornais ocidentais. Todavia, esta reação efusiva não foi compartilhada
pelo Governo Indiano, que protestou contra o roteiro exagerado e exigiu mudanças em
sua produção para a liberação de locações no país. A solução encontrada pelo estúdio foi
transferir as filmagens para o Sri Lanka, pouco importando se a história contada no Norte
do Subcontinente Indiano seria ambientada no extremo Sul. A Índia imaginada, da dieta
bizarra e das religiões opressoras, era mais real do que as paisagens himalaias e os
resmungos da diplomacia indiana.
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Indiana Jones com seu banquete escatológico e sua luta contra a sanguinolenta
seita de Kālī ensinou um tipo de História bem distante das movimentadas sociedades
indianas de 1519 e 2019. Para muitos espectadores aquela foi – e ainda é – a sua “primeira
Índia”, uma terra mística de gente humilde explorada por governantes tirânicos. Suas
religiões politeístas, povoadas por multidões de divindades estranhas, são ao mesmo
tempo exóticas e irracionais. Seus hábitos mais corriqueiros, como as indumentárias e
dietas, tampouco escapam do crivo analítico: a seda púrpura e o manto açafrão convivem
com petiscos de insetos e água contaminada. A picância de seus temperos é proporcional
aos contornos lascivos de seus corpos, desmesurados na excitação dos sentidos e instintos.
Por fim, nesta chave a Índia é uma terra de antiguidade profunda, mas estacionada na
História, atrasada, confusa e caótica.
O grande historiador alemão Jörn Rüsen nos ensinou que a capacidade de refletir
acerca do passado, presente e futuro é um atributo essencial compartilhado por todas as
sociedades humanas. Em suas enormes variações culturais, os seres humanos manifestam
o que ele chama de consciência histórica, ou seja, um atributo inerente que se caracteriza
pela reflexão com e sobre o tempo. Homens e mulheres em todas as civilizações
produziram formas singulares de problematizar o tempo, declinando uma espécie de
gramática das temporalidades para ponderar sobre problemas presentes tendo como base
experiências pretéritas e expectativas de futuro.
Esta compreensão do tempo é importante, pois evidencia que nós alimentamos
nossas referências temporais de diversas formas. As aulas de História e os livros
endossados por pesquisas de historiadores jogam um papel importante neste campo, mas
não são a única e nem a mais importante fonte de fertilização. Para o bem e para o mal o
passado e a memória social não são monopólios dos historiadores. Deste modo, as
relações que empreendemos em nossas vidas cotidianas significam muito na constituição
de nossas culturas históricas. As conversas em botequins, os sermões religiosos, os jogos
eletrônicos, os romances literários e o cinema oferecem imagens, símbolos, conceitos e
ideias poderosas que nos ajudam a interpretar e a nos relacionar com o complexo mundo
e com o tempo.
A Índia retratada no filme de Spielberg é um bom exemplo. As peripécias de
Indiana Jones primordialmente ocorrem em espacialidades distantes dos centros do
capitalismo ocidental, passeando pela América Latina, África e Ásia. Funcionando como
um protótipo do aventureiro colonial, Jones mistura Tintin, Rudyard Kipling e Allan
Quatermain como o peão perfeito da missão civilizadora em paragens distantes e exóticas.
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Assim, o cinema de Hollywood contribuiu na formatação de uma maneira quase


hegemônica de pensarmos outros povos e culturas. Indianos são tolos em quase todos os
sentidos quando comparados com o espelho ocidental. Cultuam deuses estranhos,
ingerem alimentos de aparências duvidosas e são governados por Estados interpretados
dentro do modelo do despotismo oriental.
A questão fica ainda mais complicada quando deixamos a tela do cinema e nos
voltamos para as investigações históricas. De fato existe uma divindade chamada Kālī,
soberanos com títulos de marajás e camponeses humildes que lutam para sobreviver. O
próprio movimentos dos thuggees está bem documentado em jornais ingleses da primeira
metade do século XIX. Entretanto, os contornos históricos destes acontecimentos são
profundos e infinitamente mais complexos. Por exemplo, a deusa Kālī é retratada em
tradições textuais muito longevas e intrincadas. Em alguns antiguíssimos hinos do Ṛg
Veda ela surge como uma deidade impetuosa que deveria ser evitada. Nos Brāhmaṇas,
comentários aos Veda, ela foi descrita como uma entidade soturna próxima da morte, e
no grande épico Mahābhārata ela aparece como a poderosa consorte de Śiva. Em algumas
partes da Índia, como na Caxemira, seus cultos se tornaram muito populares. Sua
vinculação à morte não reproduz uma religiosidade mórbida, mas uma reflexão acerca da
finitude natural de todas as existências. Seus devotos meditam sobre o absoluto e pedem
uma morte sem aflição ou dor. Reduzir toda a complexidade histórica da deusa ao campo
irracional da encarnação maligna sedenta por sangue é uma opção falseadora.
O movimento dos Thuggees é um outro exemplo interessante. O tema é bastante
controverso entre os estudiosos do imperialismo britânico no Subcontinente Indiano.
Sabemos que na primeira metade do século XIX documentos administrativos coloniais e
matérias de jornais ingleses denunciavam as ações dos thuggees ou thagis, uma espécie
de bandoleiros inescrupulosos que assassinavam por estrangulamento viajantes que
cruzavam o interior da Índia. Espalhados por todo o país e sem um traço étnico ou
religioso específico que os definissem, eles representaram uma fonte ativa de temores de
levantes anti-imperialistas. O frenesi foi tamanho que entre 1830 e 1838 as autoridades
coloniais britânicas empreenderam uma verdadeira guerra contra os thuggees, prendendo
e executando seus membros sem a observação dos direitos penais mínimos.
Entretanto, a situação era muito mais confusa. As primeiras décadas do século
XIX marcam um momento de virada no imperialismo britânico na Ásia e na Índia em
particular. A Companhia das Índias Orientais lentamente sedia espaço para o Estado
Inglês, tornando as estruturas de dominação mais densas e cotidianas. A proximidade
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entre britânicos e indianos alimentou assombros morais profundos, com mal-entendidos


constantes. Em 1818 um enorme levantamento trigonométrico foi empreendido em
praticamente todas as regiões do Subcontinente, legitimando um domínio cartográfico
entendido como racional e científico. Terras férteis foram mapeadas e zonas de uso
coletivo para pastagens ou predação foram gradativamente convertidas em áreas agrícolas
de produção “mais objetiva e inteligente”. A pressão crescente pelo cultivo de índigo,
algodão e papoula (necessária para a fabricação do ópio vendido na China) modificou
substancialmente algumas regiões da Índia, gerando levas de miseráveis, desocupados e
nômades. O banditismo rural cresceu, assim como inúmeras outras tensões no campo.
Para os britânicos estas instabilidades eram intoleráveis e só poderiam ser fruto de crenças
ignorantes e absurdas típicas dos indianos. As populações errantes foram percebidas
como uma ameaça gritante, e toda a diversidade cultural destes grupos encerrou-se dentro
do termo thuggee. Assim, muçulmanos, hinduístas e siques nômades eram vistos
enquanto membros de uma seita assassina e odiosa que legitimou a mão pesada da
opressão britânica. Como resultado, porções rurais da Índia foram encerradas em uma paz
de cemitério, a língua inglesa ganhou a palavra thug (bandido) e décadas depois o herói
cinematográfico Jones contribuiu para a extirpação desta barbárie.

O espelho distorcido
Retratos como o evidenciado acima existem aos montes no cinema, na literatura,
nas histórias em quadrinhos e em vários campos de nossa cultura popular, situação
amplificada pelo aumento da importância da Ásia no começo do século XXI. Como já
tratamos, a pandemia provocada pelo coronavírus causador da covid19 colocou alguns
países da região em destaque nos noticiários com preocupações acerca da origem da
enfermidade, dos modelos de gestão no enfrentamento da crise sanitária e das negociações
em torno da importação de insumos fármacos. Em alguns casos estas informações foram
acompanhadas de observações generalizantes e precipitadas que até mesmo expressavam
preconceitos vergonhosos. O vertiginoso crescimento econômico da Ásia nas últimas
quatro décadas tornou esta ambígua relação ainda mais explícita: se somos cada vez mais
informados acerca dos países orientais, com destaque para a China que se tornou o nosso
maior parceiro comercial, também somos compelidos a lidar com nosso gigantesco
desconhecimento sobre as Histórias Asiáticas. Assim, neste início de século é imperativo
reconhecer a importância do continente e trabalhar para ampliar nossa compreensão sobre
a região.
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A Ásia não é um dado objetivo, por mais que as fronteiras geográficas que
caracterizam o continente assim o apresentem, mas uma lenta construção histórica, como
ocorreu com outras regiões. Esta construção opera tanto em temporalidades profundas e
de longuíssimas durações, como os tempos das montanhas, da formação dos leitos dos
rios e dos ritmos da natureza, quanto nas periodizações dinâmicas das tensões políticas e
das transformações técnicas. Mais do que isto, a ideia de Ásia foi imaginada tanto por
gerações de pensadores ocidentais quanto por modernos intelectuais japoneses, coreanos,
chineses e indianos que a retrabalharam em contextos variados. Assim, ela pode ter
florescido em outras paragens, principalmente enquanto imagem de alteridade na Europa,
mas rapidamente mobilizou preocupações locais e específicas. Neste sentindo, é
importante considerarmos os processos históricos de construções sociais da ideia de Ásia
em seus enquadramentos múltiplos. Do reflexo invertido do Ocidente ao motor
contemporâneo do capitalismo global, o reconhecimento do caminho formativo desta
ideia é o primeiro percurso a ser vencido.
A palavra Ásia inexiste nos vocabulários das antigas línguas orientais,
prevalecendo uma enorme variedade de nomes e compreensões de seus entornos
geográficos. Ela encontra sua origem no léxico grego, mais precisamente entre os séculos
VIII e V a.C. Foram durante estes anos de amadurecimento da antiga cidade-estado grega,
a pólis, que marinheiros helenos riscaram o Mar Egeu ultrapassando o Bósforo com
familiaridade, se lançando para outras regiões além do Mediterrâneo. Nos limites da
Península da Anatólia, atual Turquia, encontrava-se a Ásia Menor, uma região ao mesmo
tempo íntima e incógnita. Dentro do pensamento grego as diversas nações asiáticas eram
reconhecidas como terras de ilustres sábios que em muito contribuíram para a construção
de saberes importantes, como a escrita. Homero reconhecia que gregos e asiáticos
troianos compartilhavam valores comuns e histórias mitológicas transmitiram peripécias
como a do deus Dionísio, que passeou pelas profundezas das terras do Leste.
Ainda não operava a fratura profunda entre a Ásia e a Europa, ou melhor, entre o
Oriente e o Ocidente. Egípcios, gregos e fenícios acreditavam que a Terra era uma imensa
ilha cercada pelas águas do rio do Oceano. Geograficamente ligados, os continentes eram
vistos como uma massa única coabitada por variados povos com seus costumes distintos.
Séculos antes, durante o segundo milênio a.C., os assírios identificavam porções desta
terra contínua como Asu (a região do Sol nascente) e Ereb/Irib (a terra do Sol poente).
Esta não era uma distinção radical e tampouco especial, mas apenas um apontamento de
localização geográfica possível dentro do seu colossal império.
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Foi durante o século V a.C., com a expansão das conquistas dos Persas
Aquemênidas, que a consciência de uma separação profunda entre os povos e as
geografias começou a ser desenhada, tendo a obra do historiador Heródoto de
Halicarnasso como um marco importante. Em seu livro Histórias encontramos uma
sincera curiosidade em descrever outros lugares e povos, tendo o Egito, a Índia, a Etiópia,
a Cítia e a Pérsia recebido atenção. Para além das distinções entre seus costumes, todas
estas civilizações guardavam características similares que as diferenciavam dos helenos.
Inegavelmente eram terras riquíssimas, com cidades famosas pelo luxo e opulência, e
territórios de acontecimentos maravilhosos, com sábios veneráveis e animais
exuberantes. Mas, principalmente, eram regiões habitadas por populações acovardadas e
servis governadas por abjetos déspotas semidivinos.
Em grande medida animada pela experiência das guerras empreendidas entre
gregos e persas, as narrativas de Heródoto ajudaram a consolidar uma ideia fecunda,
alimentada por jogos de similaridades e diferenças, que apresentou a confrontação entre
liberdade e a opressão como combustível desta polarização. Nela um vago sentimento de
identidade grega progressivamente foi se constituindo concomitantemente ao de bárbaro.
Incialmente a palavra denotava o sujeito incapaz de se expressar em língua grega e que
balbuciava frases incompreensíveis. Com a luta contra os persas este jogo ganhou
contornos morais, com a coletividade dos gregos emergindo como os campeões da
liberdade e a dos iranianos flutuando entres as massas de escravos frouxos ou os pelotões
soldados sanguinários e desonrados. O fato de numerosos gregos terem lutado nas fileiras
dos exércitos persas foi esquecido e a dicotomia entre as duas identidades saiu vitoriosa.
Com os macedônicos e os romanos este equilíbrio de contrastes se ampliou. O
mundo revelou-se maior e mais complexo, com prolongamentos bem conhecidos até as
fronteiras do rio Indo que empurraram a Ásia para muito além dos limites da Anatólia.
Ainda assim o efeito do reflexo distorcido permaneceu com força. Entre os romanos
circulavam tanto compreensões meramente administrativas (como a divisão entre porções
ocidentais e orientais do império), quanto percepções morais e culturais dos povos
asiáticos. Cícero (De Prov. Cons., 5.10) apontou que os sírios e os judeus eram nações
nascidas para a escravidão e Petrônio (Satyricon, 119.19) brincou que os latinos
conquistadores do mundo teriam que conviver com indolentes e lascivos persas, perversos
em seus costumes sexuais e em suas artes luxuosas. A Ásia poderia ser assustadoramente
rica e poderosa, mas não conseguia se libertar da tirania e da vaidade inerente aos seus
hábitos. Inclusive para muitos romanos, como Catão, um certo relaxamentos nos duros
13

costumes latinos foi consequência do íntimo convívio com os deliciosos prazeres


orientais.
Em grande medida esta oposição discursiva foi transmitida pelos cristãos
medievais. Encerrados em suas realidades mediterrânicas e cada vez mais orientados para
o Norte europeu, as longínquas terras asiáticas permaneceram envoltas em brumas que de
tempos em tempos eram desveladas pelas ações de viajantes, aventureiros e missionários.
O Oceano Índico lentamente se converteu em um mar de maravilhas e de ignorância,
fechado para grandes empreitadas políticas mas escancarado para os sonhos imaginativos.
Ainda existiam as autoridades dos antigos, alinhavadas por textos incríveis como as
Geografias de Estrabão e de Cláudio Ptolomeu, mas os pensadores do Medievo também
souberam construir uma nova cartografia mental da Ásia enquanto terra do exotismo, de
crenças e do “ouvi dizer” com espaços morenos que vertiam ouro, leite e porções de
pecadilhos.
O grande Alexandre da Macedônia apresentava o protótipo do herói conquistador,
que “foi, viu e venceu” os territórios repletos de desafios e monstruosidades indizíveis.
Como o deus pagão Dionísio, Alexandre esteve na Índia. Sua longa permanência na
memória do Mediterrâneo foi a entrada para uma Mirabilia Indiae majestosa, fonte fértil
para narrativas que começavam como Isidoro de Sevilha (636) e seguiam até Pierre
d’Ailly (1410). Este Oriente fabuloso revelava riqueza material e inquietudes espirituais,
apresentando bestiários teratológicos incríveis. Homens gigantescos conviviam com
pigmeus e cinoféfalos (humanos com cabeça de cachorro) em reinos de humanidade
vulgar, anti-natural e anti-cristã. Aquela também era a terra das raças malditas em que
alegorias míticas transitavam até as alegorias morais desafiadoras da imaginação do
Criador.
Empanturrados de lendas, os homens do Medievo imaginaram uma Ásia oriental
maravilhosa dentro de uma geografia sobrenatural que satisfazia suas curiosidades,
desejos e recalcamentos. A Índia era a Ásia, dilatada e longínqua, esparramada do Chifre
Africano até a China. Da Etiópia e da Costa Suaíli vertiam doces esperanças na
localização de uma nação cristã vitoriosa e dourada, herdeira da Rainha de Sabá, das
minas do Rei Salomão e presente na crença no Reino de Prestes João e no encontro com
cristãos nestonianos. No Leste também estava o jardim das delícias do Éden, com seus
quatro rios caudalosos, abundâncias e extravagâncias que não se incomodavam em
confundir os continentes.
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Antes de tudo a Ásia do imaginário medieval era uma terra de riquezas. Marco
Polo louvou suas milhares de ilhas da magia, afortunadas em possuir toneladas de
especiarias, metais e tecidos que excitavam todos os suspiros e ambições. Era um
território de altíssima tecnologia e de grandes expectativas econômicas, reais ou oníricas,
séculos antes das movimentadas operações de e-commerce. Era também a região da
indecência, por vezes até inocente, mas que pervertia a fé cristã com costumes sexuais
que não encontravam medida explícitos na poligamia do harém, nos incestos cortesãos e
no nudismo de corpos bronzeados. Por todos estes desejos a Ásia se converteu em um
campo aberto para a pregação do Cristianismo. Tomé, o apóstolo incrédulo nas chagas de
Cristo, teria sido o primeiro a realizar uma mítica ação proselitista na Costa de Malabar,
terminando com seu martírio nas mãos dos indianos. Esta lenda alimentou os anseios de
franciscanos, dominicanos e jesuítas que no alvorecer do Mundo Moderno partiram para
estas localidades.
Os caminhos seguidos por eles eram múltiplos. As antigas rotas marítimas se
converteram em zonas perigosas e de litígios com árabes e persas. Percursos terrestres,
que atravessavam o coração da Ásia Central, tampouco se revelavam seguros por
cruzarem os domínios de mongóis e turcomanos chamados de tártaros, esboçados como
primitivos e infernais. Estes itinerários desolados apareceram no relato imaginativo do
veneziano Marco Polo, Il Milione. Sua aventura extraordinária consolidou a compreensão
da Ásia como uma terra fabulosa (le grandissime maraviglie), hiperbólica, insólita e
extraordinária. Coisas estranhíssimas eram comuns entre as terras de Cathay (China) e
Zipangu (Japão), como a existência de um espesso líquido inflamável (o petróleo), o
rinoceronte, aves enormes e a salamandra. Igualmente exóticos eram seus governantes,
os reis dos khanatos mongóis que lideravam exércitos de cavaleiros hábeis e
conquistadores, subjugando um território que se alargava da Rússia até o Extremo Oriente
na Pax Mongolica.
Estas raças malditas, talvez descendentes dos bíblicos Gog e Magog, atraíram
perseverantes missionários, especialmente os da ordem dos Franciscanos. Muitos destes
“pobres de Deus” sulcaram os territórios asiáticos nos legando relatos muito mais precisos
do que os das maravilhas de Polo. Na primeira metade do século XIII Giovanni di Pian
del Càrpine, um obeso franciscano, foi enviado por Roma para convencer a cristandade
russa a aceitar uma posição de vassalagem frente aos católicos, chegando até os limites
da cidade mongol de Caracorum e registrando suas impressões na Historia Mongolorum.
Frei Guglielmo di Rubruck esteve na mesma cidade em 1254, descrita em detalhes com
15

seus mercados cosmopolitas e seus animais exóticos, como o culam, uma espécie de burro
onagro. Giovanni del Montecorvino (1247-1328) foi além, chegando até Beijing, e
Odorico de Pordenone, outro franciscano, passou por extensas regiões da Ásia Oriental,
entre a Índia e a China. Estas narrativas eram mais precisas, registrando costumes e
dimensões de assentamentos, mas ainda estavam recheadas do imaginário medieval.
Odorico, por exemplo, contou a história de uma exuberante árvore em que florescia uma
espécie de melão; quando madura a fruta explodia e revelava em seu interior uma criatura
peluda como um cordeirinho. Estudiosos avaliaram que possivelmente o franciscano
retratou uma espécie de samambaia tropical, Cibotium barometz, cujos bulbos possuem
uma coloração sanguínea e uma cobertura de penugem espessa e branca.
Esta Ásia maravilhosa e sedutora, chamada de Índia e aberta aos impulsos de
conversões, tinha um limite bastante assustador para os sonhos do Medievo provocado
pela experiência frente ao Islã. Aqui encontramos um histórico de relações mais
concretas, mas igualmente povoada por fantasias. Desde 711 a Ásia transbordou para a
África e a Europa, agregando a Península Ibérica no animado mosaico muçulmano por
quase oitocentos anos. Formou-se uma região limítrofe que como toda fronteira separa e
une uma humanidade vizinha com pulsões de curiosidade e desgosto. O profundo mundo
árabe se esparramava no corredor afroeuroasiático que partia do médio Tejo até a região
do Sind paquistanês. Em contraste, a Europa cristã era acanhada e empobrecida, com a
exceção da espanhola Andaluzia como uma terra luminosa e criativa.
Os conquistadores muçulmanos permaneciam em um horizonte de expectativas
angustiante como promotores de razias demoníacas. Infiéis profanadores, estavam
sempre açodando pontas da Itália, ilhas do Mediterrâneo e porções dos domínios
bizantinos. Ainda assim, esta também era uma fronteira que permitia diálogos e trocas,
como revelam as moedas abássidas circulando e papiro egípcio abastecendo a chancelaria
romana. Trata-se de uma relação tensa, repleta de desconhecimentos mútuos,
ressentimentos vívidos e desejos intercambiáveis. A Espanha e sua al-Andalus encontrou
um celeiro de tradutores em Toledo, sabendo extrair riquezas antigas e novas que fizeram
a fortuna na intelectualidade renascentista. Aristóteles, Ptolomeu, Flávio Josefo e outros
pensadores da Antiguidade retornaram como inegáveis autoridades ao lado de Avicena
(Ibn Sina), Averróis (Ibn Rushd), Maimônides e do próprio Corão. Estas obras foram
traduzidas para línguas românicas à partir de cópias árabes, a língua franca desta parte do
mundo, tendo sábios judeus como artífices muitas vezes esquecidos nestas oficinas.
Nestes espaços de intercâmbios islamitas não apenas textos fertilizaram a margem
16

ocidental do Mediterrâneo, mas também o papel chinês, a bússola, o astrolábio, a pólvora,


inovações na Medicina e os números indianos, tomados como “algarismos arábicos”, com
o seu revolucionário conceito de “zero”.
Organicamente ao lado destas originais trocas estabeleceu-se também as
carnificinas políticas e militares das guerras da Reconquista ibérica e das Cruzadas. Em
1095 o papa Urbano II lançou em Clermont-Ferrand o apelo para a marcha dos cruzados,
provendo as armas cristãs do sonho de conquistar as cidades santas da Palestina. Uma
“guerra santificada” exportou a violência de milites franceses, alemães, italianos e
britânicos que atolou em sangue povoados da própria Europa, ceifando populações
judaicas, e do Levante. Com a normalização dos conflitos e a instalação efêmera dos
Reinos Latinos na região os contatos se aprofundaram, muitas vezes engendrando uma
diplomacia sofisticada e respeitosa. Todavia, as crueldades perpetradas nas guerras
feriram profundamente, marcando a dicotomia ainda ativa entre Oriente e Ocidente.
Estas representações mentais antagônicas cantadas séculos depois pelo poeta
inglês Rudyard Kipling (1865-1936) como realidades que “nunca se encontrarão” (The
Ballad of East and West, 1889), foram bem-sucedidas em consolidar o jogo de espelhos
de contrastes. Plástica, esta dicotomia nasceu imprecisa em seus limites geográficos e
culturais. Progressivamente o Ocidente mudou, incorporando a Alemanha, a Grã-
Bretanha e a Escandinávia, regiões que durante a antiguidade romana eram percebidas
como a pátria da selvageria. Desta perspectiva ocidental, igualmente variável era o
Oriente, inicialmente confundido com as regiões alcançadas pelo Islã. A Ásia ainda não
era claramente tomada como uma unidade conhecida, dividida entre as maravilhas da
Índia e os infiéis muçulmanos, e tampouco formulava um outro essencialmente
subalterno, mas antes ameaçador e desejado. Assim, além de trazer o damasco para a
Europa e de criar a ordem dos cavaleiros Templários, a violência das Cruzadas reatualizou
em um formato vitorioso o par conceitual Oriente-Ocidente. A experiência ibérica,
novamente sangrenta, também ajudou a temperar esta relação, com o próprio São Tiago
Maior, o apóstolo bíblico, aparecendo miraculosamente na região da Galícia para
entusiasmar os guerreiros (século IX), ganhando a alcunha de Santiago Matamoros (mata
mouros). Sua devoção acabou por atravessar o Atlântico no encalço de novos inimigos
da fé, auxiliando os espanhóis no massacre de indígenas americanos, o Santiago
Mataindios.

Os Sonhos de Colombo
17

Santiago não foi o único recruta nesta aventura diante do desconhecido e nem
mesmo o seu mais notório artífice. Entre os séculos XV e XVI portugueses, italianos e
espanhóis (auxiliados por saberes árabes, judeus, africanos e persas) iniciaram tímidas
navegações costeiras que foram se arriscando cada vez mais no Atlântico. No alvorecer
do XVI os navegadores lusitanos forneceram contornos mais precisos e preciosos para
novíssimos mapas, cartografados conforme o extenso litoral africano foi sendo vencido.
Assim, da navegação portuguesa na rota do Cabo emergiu uma original Ásia flutuando
no Índico e em extensões sem fim. As dramáticas experiências de contato e confronto
americanas, africanas e asiáticas produziram nos espíritos europeus necessárias reflexões
acerca das identidades e das alteridades. Em grande medida um corpo mitológico foi
enterrado, pois não havia o Índico de Ptolomeu como um mare clausum no rio circular
Oceano, e nem a Ásia essencialmente onírica das formigas gigantes que arrancavam
pelotas de ouro da terra ou dos homens estranhos que expeliam esperma negro. A precisão
cartográfica revelava um mundo que reclamava técnicas marítimas, cálculos, intérpretes
e financistas, mas que ainda não estava pronto para abandonar todas as suas antigas
quimeras.
Talvez nenhum outro personagem do Renascimento tenha expressado melhor
tamanhas ambiguidades do que o navegador genovês Cristóvão Colombo (1451-1506).
Antes do dia 12 de Outubro de 1492 já existia uma América em seus sonhos, imaginada
enquanto um prolongamento da Ásia. Em seus devaneios o Caribe era a franja ocidental
dos domínios do Grande Khan, o imperador da China, um monarca sedento pelos
conselhos cristãos e um potencial aliado na luta contra os infames muçulmanos. Como
um hermeneuta renascentista, Colombo escarafunchou os escritos de Cláudio Ptolomeu,
Agostinho de Hipona, Marco Polo, Pierre d’Ailly e da Bíblia. Suas anotações foram feitas
com esmero na confirmação da crença em um novo mundo nunca descoberto, mas
reencontrado. Sua Ásia foi, então, a agitação das ilhas caribenhas e suas gentes chamadas
de índios, os habitantes da Índia.
Rapidamente a confusão foi revelada e progressivamente a América e a Ásia
foram reatualizadas diante dos ganhos e decepções dos contatos. Tratava-se, de fato, de
um novo mundo gigantesco em todas as suas dimensões e dividido pela chancelaria papal
em dois hemisférios, o ocidental e o oriental. É impressionante acompanhar o impacto
imensurável destes choques nas sensibilidades dos pensadores europeus. Nicolau
Maquiavel utilizou em seu clássico O Príncipe (1513) diversos exemplos comparativos,
enxergando no estado Otomano um modelo de forte governança centralizada na figura de
18

um único senhor com uma nobreza de título dependente em contraste com o enfraquecido
monarca francês, que teria seu poder limitado pela presença de uma nobreza fundiária e
hereditária. Jean Bodin (1530-1596) também compreendeu as monarquias europeias
enquanto estados fundamentados em leis e as orientais como domínios simplesmente
senhoriais. Destas comparações e de interpretações de Aristóteles emergiu a ideia de
Despotismo Oriental, ou seja, um conceito que reunia características sociais, políticas e
econômicas típicas dos povos e nações asiáticas. Neste modelo não existia propriamente
política, mas antes um esquema de supressão de liberdades e de individualidades perante
um grande rei despótico, senhor de todas as terras e autoridades, com seus súditos
amedrontados e escravizados. Em grande medida esta característica inerente aos povos
orientais seria fundamentada em uma moral servil e pouco altiva.
Michel de Montaigne (1533-1592), em seus Ensaios, e Montesquieu (O Espírito
das Leis, de 1748) também partiram das experiências do encontro e do choque para
através de comparações dos costumes dos povos refletirem sobre uma única natureza
humana. O “bom selvagem” operado por europeus possibilitou um mergulho em uma
psique pretendida como universal. Voltaire (1694-1778) e Jean-Jacques Rousseau (1712-
1778) encontraram na China um excelente espelho para meditar sobre a Europa: onde o
primeiro enxergou uma antiga civilização regida pelo cultivo da sabedoria e da tolerância,
o segundo viu um Estado despótico dominado pelo medo. Ambos, porém, vislumbraram
na China um contraponto por meio do qual sua própria sociedade tinha muito a aprender,
seja positivamente (seguindo um modelo de convívio pacífico entre várias religiões e de
incentivo às artes e ciências), seja negativamente (evitando os excessos de um governo
autoritário e violento).
Estas ideias comparativas com a Ásia refletiam as ambições, frustrações e
movimentações dos europeus em direção ao Leste, ações estas que passavam por vigorosa
expansão entre os séculos XVIII e XIX. A matriz do contraste Oriente-Ocidente cresceu
com impressionante força durante o período, especialmente fertilizada com princípios
científicos fornecidos pelas nascentes ciências modernas. Tendo como modelo as
Ciências da Natureza, com o botânico que em sua mesa de laboratório dissecava,
organizava e catalogava as espécies vegetais em tipologias variadas, as Ciências Humanas
produziram verdadeiros inventários da humanidade. Religiões, línguas, estruturas
mitológicas, relações de parentesco, indumentárias, costumes e tecnologias foram
sistematicamente recolhidos, analisados e refletidos por gerações de intelectuais como o
etnógrafo Edward Tylor (1832-1917) e o sociólogo Max Weber (1864-1920). A
19

percepção dos povos asiáticos como portadores de características inerentes e distintas das
ocidentais foi formatada por estas novas ciências, alimentando convicções presentes em
um orientalismo acadêmico bastante produtivo e influente.
O vertiginoso crescimento político e econômico de nações ocidentais como a
França, Grã-Bretanha, Alemanha e Estados Unidos, com o movimento de expansão
capitalista e a abertura de novas zonas coloniais na Ásia e na África, também
instrumentalizou estas balizas discursivas opositoras. A ideia do Ocidente excepcional,
infalível e inexoravelmente vencedor se entrelaçou com reflexões baseadas em racismo
biológico, evolucionismo social, determinismo geográfico e uma hierarquia dos grupos
étnicos no concerto global das nações que encontrou sólida guarida em universidades e
discussões científicas. Estas relações estabelecidas entre os movimentos imperialistas e
as ponderações intelectuais sempre foram complexas e contraditórias, pois ao mesmo
tempo em que lançavam as bases para legitimações ideológicas do domínio do Ocidente,
avançavam em instituições acadêmicas importantes.
O filólogo alemão e professor de Sânscrito em Oxford Max Müller fornece um
bom exemplo. Profundo conhecedor das línguas indianas, Müller foi o grande idealizador
e primeiro editor da exitosa coleção Sacred Books of the East (1879-1910), a pioneira
empreitada acadêmica de edições e traduções críticas de textos fundamentais para os
estudos das variadas religiões e filosofias indianas. Müller também inaugurou uma
Ciência da Religião que investia em um método comparativo de estudos das mitologias,
crenças e línguas, fornecendo ao observador unidades culturais mais ou menos estáveis.
Inúmeras línguas e estruturas religiosas da Ásia Central e Oriental foram identificadas
como pertencentes ao grupo Turânico, caracterizado por possuir uma vida religiosa
monótona e ao mesmo tempo cacofônica em seus cultos às multidões de deuses naturais,
sem ordem e sem nenhum princípio superior como o identificado nos grupos Semítico e
Ariano. Posteriormente esta família turânica revelou-se um equívoco generalizante
grosseiro. Assim, em sua carreira Max Müller produziu investigações inestimáveis,
traduzindo e organizando coletâneas importantes para estudos universitários, mas
também repercutiu a imagem da Ásia Oriental etérea e letárgica.
A História, a Geografia, a Antropologia, a Sociologia e a Arqueologia foram
ciências que nasceram neste movimento, reproduzindo este caráter imperialista e
contraditório. Por exemplo, a Egiptologia, a Assiriologia, a Indologia e a Sinologia se
estruturaram enquanto novas especialidades que articulavam tradições eruditas europeias
no percurso da expansão imperialista. Este contexto acabou por fornecer não apenas as
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bases materiais para o custeio destas novas áreas, com a formação de departamentos
universitários e o mantimento de missões de pesquisas, como também ofertou formas e
quadros ideológicos fundamentais para a organização de uma grande narrativa histórica.
Uma sucessão evolutiva e progressiva foi estabelecida como motor da atividade humana,
encontrando no Estado-Nação e nas transformações morais e econômicas ocidentais as
molduras perfeitas para esta linha serial. A própria macro periodização da História
estabeleceu-se neste movimento, enxergando no esquema quadripartite (Antiguidade,
Medievo, Modernidade e Contemporâneo) uma fórmula universal para todas as histórias.
Aqui as particularidades asiáticas acabaram por serem suprimidas ou incorporadas à
reboque da trajetória ocidental.
O filósofo alemão Georg W. Friedrich Hegel (1770-1831) em seu livro Lições
sobre a Filosofia da História Universal dotou esta perspectiva de um enquadramento
influente. A longa marcha do espírito humano iniciou-se na Ásia, uma terra rica e farta.
Ali imperava uma apatia profunda, com povos dominados, déspotas viciosos e uma
moralidade sem consciências histórica e de liberdade desenvolvidas. A política
sofisticada era inexiste ou, quando muito, reduzida às tramoias cortesãs de eunucos
ambiciosos. Esta idade infantil da História foi superada pelo Ocidente, com a progressiva
edificação de sociedades baseadas nas leis, na razão e na autoconsciência. Assim,
caminhando do Leste para o Oeste, as considerações hegelianas sobre a História Universal
confirmaram a estagnação asiática e a Legenda Aurea do Ocidente excepcional.
Com Karl Marx (1818-1883) esta dicotomia estruturante permaneceu, mas
recebeu um outro influxo. Na década de 1850 Marx trabalhou como correspondente do
jornal New York Daily Tribune, o que lhe permitiu acompanhar com afinco discussões no
Parlamento inglês acerca das ações na Índia e na China. Esta posição de observador
privilegiado admitiu que ele iluminasse questões relativas ao seu grande objeto de estudo:
o desenvolvimento histórico do capitalismo. Em investigações conduzidas entre 1857 e
1859 ele percebeu que ao lado de uma dinâmica transformação nas relações de produção
das sociedades ocidentais (presente nas transmutações evolutivas do escravismo, do
feudalismo e do capitalismo) persistia no Oriente uma “variante asiática” modorrenta.
Todavia, ao contrário de Hegel, que enxergava no imobilismo das sociedades asiáticas
uma característica moral, Marx procurou encontrar ali uma explicação material.
A pretensa inexistência da propriedade privada da terra, a autossuficiência das
aldeias na conciliação orgânica entre agricultura e manufatura artesanal e a hipertrofia do
Estado, com um rei divinizado que tudo controlava, seriam o reflexo das condições
21

climáticas destas regiões. Com a existência de desertos áridos e de grandes bacias


hidrográficas volumosas, a agricultura proveitosa só seria viável com a domesticação dos
rios e fertilização das terras através da construção coletiva de canais de irrigação, diques
de contenção e açudes de armazenagem de água. Estas obras públicas, primordiais para a
edificação de grandes civilizações, seriam possíveis sob a supervisão de Estados
centralizados e burocráticos capazes destas empreitadas hercúleas. Assim, a Ásia estaria
condenada a viver em uma espécie de “prisão dourada” ditada por suas condições
climáticas e ambientais que produziriam riquezas e imobilismo histórico. Para Marx, esta
armadilha somente seria verdadeiramente rompida com o violento impacto do capitalismo
introduzido pelas conquistas imperialistas, que desorganizariam por completo as
multisseculares solidariedades aldeãs e desestabilizariam as autoridades despóticas. Em
grande medida esta interpretação marxista foi retrabalhada pelo sinólogo alemão Karl
August Wittfogel em Despotismo Oriental (1957). Wittfogel, um ex-comunista que se
converteu em um árduo conservador de direita, defendeu a hipótese “causal hidráulica”
como um instrumento útil para a análise de sociedades asiáticas variadas. A existência de
Estados fortes que suprimiam liberdades individuais, como a China comunista e a União
das Repúblicas Socialistas Soviéticas, seriam também compreendidas como respostas aos
desafios ecológicos específicos destas regiões.
É importante reconhecermos a complexidade e ambiguidade de todos estes
movimentos. Da Renascença, passando pela Ilustração até o entreatos das duas Grandes
Guerras no começo do século XX, o pensamento europeu talhou a Ásia dentro de
categorias filosóficas e morais abstratas opositoras ao “gênio ocidental”, nunca
totalmente abandonadas mesmo pelo raciocínio científico. A impressão provocada pela
experiência de domínio imperial, tão bem capturada por Rudyard Kipling em seu poema
The White Man’s Burden (1898), acelerou a construção de imagens da Ásia que apenas
comunicavam os valores que os ocidentais pretendiam. Este era o “fardo do homem
branco”, cantou Kipling, que “enviava os seus melhores filhos” para retirar da barbárie
ou do atraso vicioso outros povos e civilizações. Os contornos missionários e utópicos
destes preceitos foram costumeiramente evocados para justificar tanto os abusos coloniais
quanto operações científicas. Tal qual ocorria com a cobaia na mesa de dissecação do
biólogo, a Ásia estava aberta para os estudos e classificações nem sempre inocentes. Estes
especialistas ocidentais nas culturas e línguas das imensidões asiáticas ficariam
conhecidos como orientalistas.
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Antes, no século XVIII, orientaliste era o nome empregado na França para os


estudiosos em culturas levantinas, versados em hebraico, árabe, copta e persa. A
importante École Spéciale de Langues Orientales Vivantes, fundada em 1795, é um bom
exemplo, tendo como um dos seus professores o eminente arabista Antoine-Isaac
Silvestre de Sacy (1759-1838). No século XIX o termo se expandiu e todos investigadores
das culturas asiáticas receberam a denominação. O College of Fort William, por exemplo,
foi fundado pelo governador-geral da Índia inglesa em Calcutá em 1800 como um dos
espaços dedicados à formação de um orientalista. Em suas três décadas de atuação operou
como um importante celeiro na instrução de administradores, juristas e militares
britânicos, oferecendo cursos de sânscrito, grego, árabe, latim, persa, urdu, híndi, marata,
chinês e bengali. Inúmeras traduções para a língua inglesa foram feitas, alguns livros nos
vernáculos indianos foram publicados e uma importante biblioteca que reunia títulos
sobre a Ásia Oriental foi organizada. Lorde Wesllesley, o patrono do College, foi enviado
como autoridade máxima britânica na região, em 1798, trabalhando ativamente para
conquistar pelas armas e pela diplomacia as diversas outras realidades estatais locais que
compunham o mosaico indiano, ação que funcionou como uma resposta ao avanço
napoleônico no Egito e como momento legitimador da existência do Raj Britânico.
Conhecimentos preciosos foram produzidos nestas empreitadas orientalistas,
como a edição de documentos, a realização de escavações arqueológicas e a decifração
de línguas e escritas antigas, como o hieroglífico e o cuneiforme. Todavia, a vinculação
destes campos acadêmicos com os esforços na construção da ideia do excepcionalismo
ocidental não pode ser menosprezada, já que muitas destas atividades intelectuais
operavam como treinamento de funcionários coloniais (como ocorria em Fort William),
como estratégia de apropriação de conhecimentos nativos e como lastro ideológico que
legitimava violências. Neste fluxo, uma epistemologia excludente se fez vitoriosa,
calcada em pressupostos morais tidos como universais e na crença do progresso operando
na História. O Ocidente estaria em uma escala evolutiva superior, escancarada pela
dominação colonial, e por isso teria uma missão civilizadora moral e científica perante os
outros. Toda a complexidade da Ásia foi formatada em uma meta-narrativa construída à
partir do Ocidente excepcional, reimprimindo com novas cores os velhos fantasmas do
despotismo oriental, da cacofonia religiosa, da irracionalidade mística e da posição a-
histórica.
Nas mais prestigiadas universidades europeias e estadunidenses foram
organizados departamentos e colleges dedicados aos assuntos asiáticos, estabelecendo o
23

campo conhecido como Oriental Studies. Atrelados aos estudos de idiomas e culturas,
este campo se organizou como um imenso guarda-chuva que comportava cátedras de
persa, sânscrito, chinês, hebraico, coreano, armênio, japonês e árabe. Em grande medida
a estrutura era bastante similar à empregada nos institutos de Classics (grego e latim) e
de Modern Languages (inglês, italiano, alemão e russo). A diferença sutil não respondia
apenas pela divisão espacial entre gabinetes e disciplinas, mas concretizava em currículos
e carreiras a contraposição entre uma Antiguidade Clássica e suas imediatas herdeiras
modernas de um lado, e as outras línguas asiáticas, irmãs menores e mais confusas nas
temporalidades recuadas, de outro. As culturas asiáticas tenderam a permanecer restritas
em seus respeitáveis círculos dos Oriental Studies, pouco avançando para departamentos
de História ou de Filosofia. Assim, se nas vésperas da Primeira Guerra Mundial os países
europeus controlavam de variadas formas a maior parte da superfície terrestre, em suas
instituições acadêmicas os povos asiáticos, latino-americanos e africanos permaneciam
enquanto objetos de estudos intrigantes, mas observados em esquemas distantes que
negavam a contemporaneidade do outro. O inglês, o alemão e o francês se consolidaram
como as línguas soberanas destas especialidades, reduzindo o árabe, o híndi e o mandarim
à condição de instrumentos metodológicos e nunca de parceiros recíprocos. Até então o
Ocidente possuía, de direito e de fato, a hegemonia dos estudos sobre as sociedades da
Ásia.

A Ásia e o seu labirinto


Em meados do século XX esta situação encontrou-se profundamente perturbada.
A carnificina produzida pelas duas guerras mundiais, o impacto das Revoluções Russa
(1917) e Chinesa (1949), os processos de lutas de independência na África e na Ásia e a
reorganização dos poderes internacionais tornou evidente o esgotamento das relações
políticas anteriores e os limites na constituição de saberes científicos exclusivamente
ocidentais. Figuras emblemáticas como Mahatma Gandhi (1869-1948), Mao Zedong
(1893-1976) e Martin Luther King Jr (1929-1968) evidenciaram com força velhos
problemas, como as desigualdades étnicas e econômicas, reivindicando protagonismos
inéditos em suas formulações e deliberações. Neste contexto novas agendas se impuseram
em reflexões sobre o racismo, a tortura, a inferiorização cultural e as relações de gênero
dentro da crítica às ocupações coloniais.
Na verdade, antes mesmo das emancipações, importantes debates mobilizavam
as atenções de políticos e intelectuais asiáticos. Qual era o lugar da Ásia na História
24

Geral? Era possível falar em valores culturais comuns em meio à diversidade linguística,
religiosa e política? Seria imaginável pensar em uma identidade pan-asiática?
Formulações como estas foram propostas com ineditismos por pensadores de Istambul
até Malina, com alcances distintos e contraditórios. Em comum subsistia uma
compreensão de que o reflexo invertido do Ocidente não bastava para operar uma chave
de entendimento. Ainda assim, os desafios eram imensos, pois ao contrário da meta-
narrativa da história europeia, que imaginou momentos de unidade política (Império
Romano, Carolíngios e Sacro Império Romano-Germânico) e cultural (dualidade bíblica
e greco-latina), a pluralidade asiática desencorajava simplificações investidas em uma
única história. As diásporas coloniais, atuantes nas metrópoles, responderam a estes
questionamentos com amargura, ressaltando com estupor as violações imperialistas e as
capitulações de elites nativas como uma possível ação amealhadora política e cultural.
Aqui a identidade asiática foi, antes de tudo, o pulsar das lutas anti-coloniais.
Na passagem entre os séculos XIX e XX muitos intelectuais japoneses
enfrentaram estas meditações orientados pelos esforços de modernização empreendidos
na Era Meiji (1868). O samurai e professor Fukuzawa Yukichi (1836-1901) foi taxativo
ao exortar que seus compatriotas não deveriam poupar esforços para “deixar a Ásia”
(Datsu-A-ron, 1885), identificada com uma decrépita cultura confucionista vagarosa e
inapropriada aos desafios vindouros. Para ele ou o Japão se desprendia deste passado
pesado, se ocidentalizando, ou figuraria como mais uma zona a ser retalhada por
europeus. Nas décadas seguintes suas ideias serviram de alimento para a expansão
nipônica na região, violenta e destruidora. Em Calcutá, um contemporâneo seu de fala
bengali respondeu a estas questões com um enfoque mais humanista. Rabindranath
Tagore (1861-1941), poeta, músico e educador indiano, militou favoravelmente à
emancipação das nações asiáticas exaltando a compaixão e a fraternidade como
princípios. Em suas conferências ministradas na China e no Japão Tagore apontou nas
pegadas dos peregrinos budistas um vultoso modelo histórico de integração regional.
Estes exemplos testemunham um quadro polifônico muito atuante internamente já na
primeira metade do século XX.
Todavia, foi com a crítica elaborada por Edward W. Said em seu livro
Orientalismo (1978) que este debate alcançou notável repercussão global. Professor de
língua inglesa em Columbia, Said (1935-2003) partiu de sua experiência diaspórica e de
seu incômodo diante do conflito entre Palestina e Israel para refletir acerca da construção
desta dominação epistemológica em torno do “outro oriental” operada pelas Artes e
25

Ciências Humanas. Em síntese, para o autor a ideia de Oriente foi uma criação de
ocidentais que só atingiria pleno sentido dentro da lógica imposta por seus mentores. Este
complexo processo, que precisa ser avaliado em suas dimensões históricas, expressou em
reflexões intelectuais, administrativas, estéticas e identitárias o motor de uma alteridade
ontológica essencial para o Ocidente se realizar como discurso e prática. Novamente a
Ásia seria o território do misticismo, da luxúria, do autoritarismo e da riqueza,
estereótipos que contrastariam com características desenhadas enquanto inerentes ao
europeu, como o racionalismo e o autocontrole.
Orientalismo consolidou-se como uma obra muito influente. Seus críticos mais
profundos aprontaram inúmeros erros factuais, generalizações grosseiras e acentuada
politização como deficiências mortais do livro. Ainda assim, a estrutura central da
argumentação de Said permaneceu sólida oferecendo uma contribuição essencial para um
campo dilatado conhecido como Estudos Pós-coloniais. Inicialmente restrito aos
acadêmicos de língua inglesa, muitos deles com origens nas antigas colônias, e
concentrado na Crítica Literária, os estudos pós-coloniais se expandiram revelando uma
miríade impressionante de pensadores africanos, asiáticos, europeus e americanos. Suas
proposições plurais, que fomentaram uma “ecologia” de ecletismos teóricos,
conquistaram destaques nos fóruns de discussões, repercutindo novas relações
emergentes de poder. Em linhas gerais a crítica pós-colonial pretendeu aprofundar o
processo de libertação da síndrome colonial mobilizando duas preocupações articuladas:
tratava-se tanto do reconhecimento da especificidade do tempo histórico demarcado após
a superação institucional do colonialismo, como também a contribuição intelectual
teórica e empírica produzida no exercício da crítica ao imperialismo.
A primeira preocupação e alvo destes pensadores atingiu o modelo candente da
História única instituída pelos europeus, apontando os limites, exclusões e generalizações
daquilo que Stuart Hall identificou como polaridade West/Rest (Ocidente e o resto).
Conceitos e estruturas argumentativas baseadas em binarismos essencialistas
(civilizado/bárbaro, Ocidente/Oriente, desenvolvido/subdesenvolvido) foram criticados e
estudos regionais levantaram novas questões metodológicas, empíricas e teóricas
expressas nas investigações sobre identidades, fronteiras, memórias, aculturações,
sincretismos e mundializações. Modos alternativos de abordar experiências históricas das
sociedades não-ocidentais foram propostos, oferecendo interpretações concorrentes e
corrosivas ao unilinearismo evolutivo de matriz hegeliana. Periodizações e formas
tradicionais, como “Medievo” e “Feudalismo”, passaram por reavaliações que
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fertilizaram historiografias e análises pensadas em instituições universitárias estruturadas


em países emergentes. Mitos organizadores da grande narrativa eurocêntrica foram
abandonados ou relativizados, como a centralidade do Estado-nação como moldura
básica ou a compreensão da Filosofia enquanto atributo exclusivamente ocidental. Como
ensinou Dipesh Chakrabarty, era preciso “provincializar a Europa” em suas ideias e
conceitos.
A experiência da Modernidade, por exemplo, foi reinterpretada não como um
fenômeno excepcionalmente europeu (na transição do Feudalismo ao Capitalismo), mas
como uma articulação global que deveria ser lida na sua pluralidade, considerando
dialeticamente as agências tidas com periféricas. Neste processo intelectuais latino-
americanos, africanos e asiáticos contribuíram decididamente na atenção às múltiplas
periodizações históricas e organizações sociais, econômicas e culturais que escapavam da
peneira eurocêntrica. Igualmente importante foi a compreensão de que a “diferença
colonial” permaneceu nas relações internacionais, nas articulações de economias e nas
lógicas epistemológicas que moldaram as ciências contemporâneas. O grupo indiano dos
Subaltern Studies (Estudos Subalternos), formado por nomes como Ranajit Guha, Partha
Chatterjee, Dipesh Chakrabarty e Gayatri Chakravorty Spivak, é um bom exemplo desta
reflexão. Desde o começo dos anos 1980 eles protagonizaram uma empreitada notável
que redefiniu os debates sobre a História colonial da Índia, polarizando com
interpretações elitistas ou radicalmente economicistas. Incorporando contribuições de
Antonio Gramsci o grupo construiu interpretações centradas nas relações sociais
marcadas por questões de gênero, religião, casta e classe que costumeiramente eram
idealizadas ou minimizadas. Assim, as variadas histórias asiáticas foram reinvestidas de
novas pulsões que valorizavam suas perspectivas locais e plurais revelando um novo e
gigantesco universo de estudos.
Nas últimas décadas o colossal crescimento econômico da região inspirou
economistas, políticos e jornalistas a revisitarem estas questões, imprimindo uma
compreensão mais simpática ao capitalismo globalizado. Os velhos Confúcio e Sun Tzu
foram repaginados, inspirando estratégias executivas e administrativas exaltadas em
programas de MBA. A ênfase nos estudos, a concentração meditativa, a dedicação filial e
o coletivismo configurariam valores asiáticos exclusivos e positivos na constituição de
uma força de trabalho qualificada, disciplinada e cooperativa. Clássicos confucionistas e
tradições budistas, como a estabelecida pelo monge japonês Suzuki Shôsan (1579-1655),
foram interpretadas como fontes de valorização do lucro e da carreira profissional em
27

contraposição à clássica tese de Max Weber, que enxergou apenas na ética protestante o
terreno fértil para o desenvolvimento do espírito capitalista. Estes “valores asiáticos”
estariam mais adequados aos desafios futuros, distantes da “decadência ocidental” viciada
em hedonismos, individualismos e materialismos. O político Lee Kuan Yew (1923-2015)
e o diplomata Kishore Mahbubani (1948), ambos de Cingapura, foram grandes
entusiastas destas características, considerando, por outro lado, a democracia e as
liberdades individuais como ambições universalistas ocidentais. Esta pretensa
inadequação de uma identidade pan-asiática no desenvolvimento de instituições
democráticas foi contestada com força pelo sul-coreano Kim Dae Jung (1924-2009),
político e prêmio Nobel da paz em 2000, assim como a compreensão da região enquanto
o novo Eldorado do capitalismo foi problematizada por Armatya Sem, acadêmico indiano
e prêmio Nobel de Economia em 1998 que refletiu sobre os problemas da fome e da
desigualdade. Portanto, podemos ver que é muito difícil efetuar uma leitura simples
quando pensamos no continente asiático e em seu caleidoscópio de povos e culturas.
De fato, quando pensamos na Ásia precisamos considerar os superlativos
empregados na descrição de sua grande diversidade. Não se trata apenas do maior
conglomerado terrestre, mas também da mais densa zona demográfica do planeta. No
começo do século XXI seis em cada dez pessoas no mundo são do continente, três das
cinco maiores economias estão na região e mais da metade das reservas em moedas
estrangeiras encontram guarida em bancos asiáticos. As grandes religiões do hinduísmo,
judaísmo, budismo, cristianismo e islamismo nasceram na Ásia, assim como também
encontramos lá as primeiras experiências na escrita e na edificação de centros urbanos
complexos. Rica, esta também é uma região de contrastes profundos, com enormes
desigualdades sociais e bolsões de miséria abjeta. Previsões alarmantes apontam que o
aquecimento global desencadeará em alguns lugares do continente variações climáticas
severas e violentas, com inundações e longas estiagens ameaçadoras de arquipélagos,
bacias hídricas e adensamentos populacionais.
Em termos geográficos, a delimitação do continente asiático sempre foi
problemática. Se com a África a articulação controlada pelo Canal de Suez e pelo Mar
Vermelho fornece uma estreita fronteira, com a Oceania e a Europa os limites são bem
mais confusos. As milhares de ilhas mergulhadas entre a Indonésia, a Austrália, o Japão
e a Micronésia configuram uma “região do Pacífico” estruturada como uma espécie de
grande Mediterrâneo. Estas praias estavam integradas às movimentações asiáticas desde
o Paleolítico, como comprovam os inúmeros achados pré-históricos em cavernas em Java.
28

O limes europeu é ainda mais fluído, se transformando com o tempo. O Estreito de


Bósforo articula uma ilusão, dissociando a Grécia da Turquia momentaneamente, já que
ao Norte, subindo pelos mares Negro e Cáspio, os Montes Urais se apresentam como
perímetro natural diluído e duvidoso. Assim, suas balizas geográficas são frágeis e
artificiais, pois quem observa um simples mapa-múndi escolar constata que a Europa é
mais uma das penínsulas encravadas na gigantesca espacialidade da Ásia.
Mapa da Ásia e de suas macrorregiões OU Mapa Físico da Ásia

Em termos gerais o continente asiático costuma ser dividido em macrorregiões


definidas por suas características políticas e culturais. Heranças das visões eurocentradas
permanecem, muitas vezes servindo como referência para estas formulações que
precisam ser contextualizadas historicamente. Por exemplo, no auge do imperialismo
inglês, no século XIX, foi corriqueira a divisão entre Oriente Próximo, Médio e Extremo.
O eixo apontador deste percurso se encontrava em Londres, sendo as regiões asiáticas
mensuradas em sua maior proximidade ou extremidade em relação ao centro britânico.
Concomitantemente a porção “Próxima”, conhecida há tempos por Levante, destacou-se
e ganhou atenção especial. Este era o território do Império Otomano, antigo parceiro e
rival da Europa, como também a pátria das narrativas bíblicas e corânicas. Esta
consciência por parte dos europeus de que a região possuía uma identidade religiosa e
política coerente formatou o que hoje conhecemos como Oriente Médio, agrupando os
países de maioria muçulmana (Irã, Iraque, Arábia Saudita, Turquia, Afeganistão, Iêmen,
Kuwait, Omã, Emirados Árabes Unidos, Bahrein, Catar, Jordânia, Síria, Líbano e
Autoridade Palestina). Áreas do Norte da África (Egito, Líbia, Tunísia, Argélia e
Marrocos) também foram incluídas e Israel apresenta-se como uma zona de tensão
identitária na região, o que demonstra o caráter plástico e interessado da geopolítica.
A Ásia Central se localiza no centro-norte do continente, ao leste do Mar Cáspio
e em uma região marcada por planícies de estepes e dissociada do sudeste do continente
por cadeiras de montanhas e desertos. Geopoliticamente importante, este espaço
desenhou-se na mistura das culturas mongóis, persas, chinesas, islâmicas e eslavas,
conectando-se ao Irã, China e Rússia. Cazaquistão, Quirquistão, Tajiquistão,
Turcomenistão e Uzbequistão são os países que compõem este território. Estas histórias
eslavas e turcomanas, espalhadas pela grande Rússia oriental e Eurásia Central, ficarão
de fora deste livro. O Oriente Médio, com suas forças árabes, turcas, judaicas e iranianas,
também não será aqui tratado, nos escapando as pulsantes regiões presentes do istmo de
29

Suez até as paisagens áridas do Afeganistão. Para tais recortes já existem sínteses
satisfatórias disponíveis em língua portuguesa, algumas delas excelentes e originais.

O que é a Ásia Oriental?


Em comparação com o Oriente Médio e a Ásia Central, as porções ao sul e leste
do continente são regiões muito diferentes, tanto física quanto culturalmente. É desta área
– a Ásia Oriental – que a narrativa aqui apresentada tratará, propondo uma síntese sobre
o mosaico multifacetado de históricas complexas e desafiadoras. Diante desta imensa
variedade, uma ideia central do livro é a sua interpretação como uma divisão dotada de
coerência interna cultural, ambiental e historicamente definida. Ela não será determinada
em torno de identidades étnicas, posto que esta região é incrivelmente variada em suas
culturas. Tampouco será assentada como o oposto do Ocidente, principalmente frente aos
desafios coloniais impostos por europeus e estadunidenses nos séculos XIX e XX. O
cimento da localidade possui raízes mais profundas, plantadas nas antiguidades e ditadas
pelos ventos das monções.
Ambientalmente a Ásia Oriental pode ser compreendida como a Ásia das
Monções. Este reconhecimento não significa uma espécie de prisão geodeterminista, mas
antes o entendimento das relações intercambiantes estabelecidas entre Cultura e
Ambiente, assim como o pertencimento do humano à natureza. Como veremos, o advento
da agricultura mostrou que seres humanos afetam e são afetados por outros organismos,
e os recentes debates em torno do aquecimento global apontam para mudanças severas
em regiões do Japão, Bangladesh e Indonésia. Isto posto, a região é caracterizada por
grande variação geográfica e de ecossistemas, com cadeias de montanhas, desertos,
florestas úmidas, arquipélagos, planícies, penínsulas e vales de rios importantes como o
Indo e o Yangtzé. É o sistema de ventos e chuvas das Monções que oferece um quadro
orgânico e integrado, com precipitações e temperaturas relacionadas à influência de
correntes marítimas quentes. “Monção” deriva de uma palavra árabe (mawsim) que
significa “estação dos ventos”. Assim, a Ásia das Monções articula-se em um regime
climático fortemente ditado pela força dos ventos marítimos e terrestres que regem
chuvas, secas e enchentes. No verão uma massa de ar quente sopra da Ásia Central, que
rapidamente se aquece, se chocando com as temperaturas baixas do Himalaia e com a
elevada umidade dos oceanos que cercam a região. Conforme esta massa quente sobe na
atmosfera, os ares mais frios entram, sugando com eles as umidades marítimas que
produzem chuvaradas fortes e ventanias constantes.
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No inverno o fluxo se inverte, com as estepes euroasiáticas impulsionando ventos


frios e secos limitados pelas montanhas e pela umidade marítima que, com a exceção das
fronteiras do Norte, produzem invernos relativamente amenos e agradáveis. Separada do
resto da Ásia por suas altas cordilheiras ao longo da maioria de suas fronteiras terrestres
e pela influência climática do mar e de seus ventos, a Ásia Oriental é claramente definida
por suas relações com as Monções que, mesmo em regiões do Norte da China e do Japão,
são determinantes. Todavia, é importante registrar que este quadro revela uma
simplificação, pois na prática variações regionais e anuais ocorrem. Os invernos da
Manchúria são mais extensos, já que se conectam com a gélida Sibéria, e os do Japão e
do Sudeste Asiático tendem a serem mais chuvosos e equilibrados.

Monções: Gráfico da precipitação na Ásia Oriental.

Dentro deste enorme território impactado pelo sistema das Monções, quase o
dobro do tamanho de todo o continente europeu, encontram-se bolsões demográficos
densos, formatando as áreas mais populosas do planeta concentradas em planícies ao
longo de suas extensas costas e bacias fluviais. Tamanha densidade demográfica responde
por uma incrível variação cultural presente em centenas de línguas e etnias. As três
macrorregiões da Ásia Oriental – o Subcontinente Indiano (Paquistão, Índia, Sri Lanka,
Bangladesh, Nepal e Butão), o Sudeste Asiático (Mianmar, Laos, Tailândia, Camboja,
Vietnã, Cingapura, Malásia, Brunei, Filipinas, Timor Leste e Indonésia) e o Extremo
Oriente (China, Mongólia, Coréia do Norte, Coréia do Sul, Taiwan e Japão) – reúnem
dezenas de países modernos com complexidades regionais impressionantes. Ainda assim,
é possível encontrar características culturais comuns e minimamente compartilhadas, mas
com enfoques e reformulações locais em ideias, valores e costumes.
Foram em temporalidades pré-modernas que a Ásia Oriental começou a ser
desenhada em seu circuito de conexão entre a China e a Índia. As escritas e as línguas
indianas impactaram fortemente sociedades do Subcontinente Indiano, assim como a
escrita chinesa teve um papel determinante no Extremo Oriente, influenciando
diretamente as grafias coreana e japonesa. Os caracteres em chinês ou as letras indianas
comunicaram por toda a região as ideias preciosas do Confucionismo, do Taoísmo, do
Hinduísmo e do Budismo, a primeira religião pan-asiática. Tais ideias filosóficas, éticas
e religiosas impressionaram vividamente os espíritos da região, constituindo um campo
cultural compartilhado, embora com diferenças notáveis. Coube ao Sudeste Asiático a
31

produção original de sínteses destas duas matrizes. Assim, é preciso considerar que para
além da unidade provocada pelo sistema das Monções, a história cultural da Ásia Oriental
possui uma estrutura mista em suas porções chinesas e indianas que forneceram os
terrenos férteis para a imensa diversidade encontrada do Paquistão ao Japão que pode ser
observada em seu conjunto.
Além desta dupla herança sino-indiana, assumida e transformada por suas
civilizações em formulações variáveis, a Ásia Oriental comportou as regiões mais ricas e
sofisticadas na maior parte da História, com uma importante lacuna entre os séculos XIX
e XX. Durante este período de dominação ocidental a área foi retalhada em zonas de
influências, governos tutelados e colônias de exploração, com a importante exceção
japonesa, que trilhou um caminho de radical modernização. Para além e aquém deste
curto período a Ásia Oriental representou a abastança encarnada capaz de mobilizar as
fantasias de Alexandre Magno, Cristóvão Colombo e da rainha Vitória. Estimativas
apontam que em 1800 a China sozinha concentrava cerca de 33% da riqueza mundial,
enquanto a Europa toda somava 29%. Invenções essenciais para a humanidade surgiram
na região (como o papel, o conceito de zero, a pólvora e a imprensa), como também ideias
sofisticadas de política, de padrões artísticos e de organizações econômicas. Desta forma,
antes da hegemonia europeia ancorada no Capitalismo do XIX, as articulações das malhas
econômicas mundiais eram, em grande medida, periféricas a este centro oriental. Ali
pulsava o coração do mundo.
Como ocorre com a Europa e a América Latina, a divisão defendida neste livro
não é radicalmente homogênea, comportando dentro de si divisões significativas entre
países, eles próprios com suas idiossincrasias internas. Trata-se de uma escolha arbitrária
e consciente. A Ásia Oriental não é absolutamente coerente em suas geografias e culturas,
como também nunca esteve isolada ou fechada do restante do mundo. Suas fronteiras
estiveram abertas e permeáveis, comportando fluxos e refluxos de encerramentos
momentâneos e pontuais. O Islã, a conquista da América e o imperialismo europeu
reconheceram a centralidade asiática muito antes da globalização contemporânea.
No alvorecer do século XXI a retomada da dianteira econômica por países
asiáticos permanece como assunto polêmico e muitas vezes indesejado. China, Japão e
Índia rivalizam com Estados Unidos e Alemanha, e Cingapura, Coréia do Sul e Hong
Kong concentram riquezas superiores à muitos países da Europa ocidental. Mesmo em
nações periféricas economicamente, como o Paquistão e a Coréia do Norte, o domínio de
tecnologias militares e nucleares altamente sofisticadas confere alto protagonismo
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geopolítico. Para alguns analistas estas ações representam um risco inédito à supremacia
do Ocidente que merecem atenção e combate. Para outros este processo significa a
retomada do protagonismo de uma porção do globo acostumada em ser o centro nervoso
da História. Estes são exemplos significativos que apontam para uma ascensão
inquestionável da Ásia Oriental em questões variadas.
Ignorar a longa história asiática é um erro grave e que cobrará um preço alto no
desenrolar dos tempos atuais. Diante das rápidas transformações em curso e de nosso
desconhecimento da região, necessitamos de reflexões históricas sobre as culturas e
países asiáticos orientais que proporcionem uma interpretação de conjunto beneficiada
pelas análises comparativas que suas várias porções oferecem. Deste modo, este livro
deseja trabalhar tanto uma introdução aos temas históricos fundamentais de cada uma de
suas macrorregiões e países importantes como também uma leitura atenta aos seus
mecanismos de conexões, interações e conflitos internos e externos.
Trata-se de um livro dirigido aos professores, estudantes e interessados na região
que procurou responder três questões importantes. Em primeiro lugar, reconhecemos que
apesar dos significativos esforços acumulados por muitos colegas e especialistas, ainda
são poucos os títulos dedicados à região publicados no Brasil. Desta forma vamos nos
somar a estas empreitadas voltadas à expansão dos estudos asiáticos brasileiros. A
segunda observação diz respeito aos limites próprios de um texto de síntese, repletos de
generalizações e opções amplas que podem esconder inúmeras sutilezas e
especificidades. Este é um risco que assumimos com consciência e responsabilidade. Por
fim, esperamos oferecer em nossa visão conectada da Ásia Oriental um convite aos
leitores e demais estudiosos. Que as virtudes e deficiências desta obra sirvam de estímulos
aos brasileiros!
A obra está organizada em oito capítulos, tratando desde as transformações
neolíticas operadas em profundas antiguidades até o começo do século XXI. Além desta
introdução, mais teórica e que foi pensada como uma apresentação aos complexos meios
que fertilizaram e fertilizam a ideia de Ásia, vamos seguir um percurso cronológico
procurando sempre apontar processos e interpretações gerais. Como ocorre com os outros
títulos desta coleção, eliminamos notas de rodapé e citações acadêmicas, indicando no
final de cada capítulo e do livro uma seleção de leituras importantes comentadas. Sobre
as diversas línguas asiáticas, quando possível buscamos adotar as grafias já consagradas
na Língua Portuguesa. Na impossibilidade, nos apoiamos nas transliterações presentes
em Inglês.
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Para terminar, verdadeiramente acreditamos que podemos e devemos dizer coisas


sobre outras histórias e temporalidades para além dos nossos contornos nacionais. O
Brasil, localizado em um Extremo Ocidente do Sul Global, pode imprimir perspectivas
novas e mais arejadas ao mundo. Racismos, desigualdades, mestiçagens, criatividades
culturais e tensões sociais marcam nossa história que também precisa desejar interpretar
seus percursos e os de outros povos diante destas características. Já em 1955 o diplomata
brasileiro Adolpho Justo Bezerra de Menezes nos alertou contra uma mesquinhez que
grassava nossa política externa, apontando as instigações asiáticas e africanas como
desafios incontornáveis ao futuro. Nunca nos encontramos sozinhos neste labirinto, pois
como muito bem nos lembrou o escritor mexicano Octávio Paz, “a história universal já é
tarefa comum. E o nosso labirinto, o de todos os homens” (O Labirinto da Solidão).

SUGESTÕES DE LEITURA
ACHARYA, Amitav. The Idea of Asia. Asia Policy. Number 9, January 2010, pp. 32-39.
DEGAN, Alex. A Grande Ásia e o Ensino de História. In: PINSKY, Jaime; PINSKY, Carla B. (orgs.).
Novos Combates pela História. São Paulo: Contexto, 2021.
GOODY, Jack. O roubo da História: Como os europeus se apropriaram das ideias e invenções do Oriente.
São Paulo: Contexto, 2015.
HOBSON, John M. Los Orígenes Orientales de la Civilización de Occidente. Barcelona: Crítica, 2006.
HUI, Wang. The Idea of Asia and Its Ambiguities. The Journal of Asia Studies. Vol. 69, No. 4, November
2010, pp. 985-989.
MACFIE, Alexander L. Orientalism: a Reader. New York: New York University Press, 2001.
RÜSEN, Jörn. História Viva: Teoria da História III: Formas e funções do conhecimento histórico. Brasília:
Editora da UnB, 2010.
SAID, Edward. Orientalismo: O Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras,
1990.
WOLF, Eric R. A Europa e os povos sem História. São Paulo: EDUSP, 2005.
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