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BrandTrends Journal - ABRIL/2021


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BrandTrends Journal - ABRIL/2021

B821

BrandTrends. -Vol. n0. 20 (2021)- . --Lajeado,RS:/


Observatório de Marcas, 2021 -.

Bi-anual
ISSN 2237-8529

1. Comunicação estratégica 2. Branding 3. Marca


4. Marke�ng I. Título

CDU: 659:658

Ficha catalográfica elaborada por Maristela Hilgemann Mendel CRB-10/1459


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Índice
EDITORIAL 04

O REINO UNIDO DIANTE DO BREXIT: UMA ANÁLISE DA PERCEPÇÃO DA MARCA PAÍS BRITÂNICA
PÓS-REFERENDO DE SAÍDA DA UNIÃO EUROPEIA
Autores: Dimitrios Meimaridis e Roberto Gondo Macedo 08

O PAPEL DO A&R NA ESTRUTURA EMOCIONAL DO BRANDING MUSICAL


Autor: Ticiano Paludo 31

PROPÓSITO ALÉM DO DISCURSO: UMA FERRAMENTA ESTRATÉGICA PARA GESTÃO E ENGA-


JAMENTO DE MARCA
Autora: Fernanda Ost 44

PROPÓSITO ALÉM DO DISCURSO: UMA FERRAMENTA ESTRATÉGICA PARA GESTÃO E ENGA-


JAMENTO DE MARCAL
Autor: Gabriel Meneses 61

O ENGAJAMENTO DE MARCAS NO PROGRAMA PELLA ONDA DO BEM


Autoras: Ana Paula Antunes Ferreira e Elizete de Azevedo Kreutz 81

BRANDING PARA UMA REDE DE MULHERES EMPREENDEDORAS DO INTERIOR DO BRASIL


- PROJETO CIDADELAS
Autora: Larissa Gabriele de Oliveira dos Reis 102

ABSTRAÇÃO E EMPATIA NAS MARCAS DE IDENTIDADE:ENTREVISTA COM O DESIGNER POR-


TUGUÊS FRANCISCO PROVIDÊNCIA
Autores: Lúcia Bergamaschi Costa Weymar e Jorge Dos Reis 123

THE PARADOX OF BANKSY’S ARTISTIC BRAND IN THE MARKET CULTURE


Autores: Cláudia Paixão e Richard Perassi 134

MARCAS DE VALOR: COMO O VALOR SIMBÓLICO DE UMA MARCA SE TRANSFORMA EM VALOR FI-
NANCEIRO PARA UMA EMPRESA. ESTUDOS COMPARATIVOS DOS CASOS DAS MARCAS APPLE E IBM
Autoras: Lígia Paconte Fritzen e Elizete de Azevedo Kreutz 148

DESIGN DA MARCA GA-HÁ, DA ALDEIA INDÍGENA KAINGANG DE CACIQUE DOBLE/RS/BRASIL


Autora: Suzana Funk 167

MULTIMODALIDADE DISCURSIVA NAS MARCAS: O TRADE DRESS DA MARCA ZARA


Autoras: Samanta Caye e Thaís Carnieletto Müller 184

ANÁLISE DE DISCURSO DA ABSOLUT VODKA PARA O PÚBLICO HOMOSSEXUAL


Autores: Thelma Lúcia Guerra Álvares e Karl Heinz Efken 205

COMUNICAÇÃO NA ERA DIGITAL: O ESTUDO DO CASO DA MARCA MCDONALD’S NA PLATA-


FORMA SPOTIFY
Autora: Gláucia Andressa Reitter 226

NORMAS DE PUBLICAÇÃO 244


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ARTIGO

ARTIGO

O papel do A&R na
estrutura emocional do
branding musical1

Ticiano Paludo2
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Resumo: Introdução
O presente artigo aborda o papel do A&R (artista A música é uma arte presente na vida de muitas
e repertório), função estratégica de planejamento pessoas. Embora não exista uma unanimidade de
e posicionamento de marcas dentro da indústria percepção, predileção ou interesse, a música tem
fonográfica, a partir da atuação de Brian Epstein – o poder de contribuir para a alteração dos estados
A&R responsável pela carreira dos Beatles – como de espírito humanos, seja acalmando as mentes
vetor de construção do branding musical. ou acelerando os corações. Solo, em conjunto, ins-
trumental ou cantada, a música é um importante
Palavras-chave: branding; música; A&R; posi- ponto de conexão entre compositores, intérpretes,
cionamento; indústria fonográfica. ouvintes, e em muitos casos, uma oportunidade de
encontro consigo mesmo. Porém, embora a música
seja uma arte, ela não deixa de ser também, um ne-
Abstract: gócio, um bem comercial, e como tal, pode utilizar-
This article discusses the role of A&R (artist and -se de diversos artifícios mercadológicos, dentre os
repertoire), a strategic function of planning and quais, o branding. Assim, o presente artigo abor-
positioning brands within the recording industry, da o papel do A&R (artista e repertório), função
based on the Brian Epstein’s work - Beatles’ A&R estratégica de planejamento e posicionamento de
career - as a vector to the construction of musical marcas dentro da indústria fonográfica, a partir da
branding. atuação de Brian Epstein – A&R responsável pela
carreira dos Beatles – como vetor de construção
Keywords: branding; music; A&R; positionin; do branding musical (também chamado de music
recording industry. branding). O problema de pesquisa norteador é:
De que forma o A&R pode atuar como elemento
Resumén: construtor eficaz na arquitetura emocional da mar-
Este artículo analiza el papel de A&R (artista y ca de um artista musical?
repertorio), una función estratégica de planifica- O texto objetiva definir os conceitos de marca,
ción y posicionamiento de marcas dentro de la
identidade e posicionamento mercadológico e sua
industria discográfica, basada en el trabajo de
Brian Epstein, responsable de la carrera de los aplicação dentro da indústria fonográfica; eviden-
Beatles, como un vector para la construcción de ciar as competências de um profissional de A&R
la marca musical. e sua relação com o marketing; e por fim, utilizar
como exemplo a atuação de Brian Epstein como
Palabras-clave: branding; musica; A&R; posi- profissional de A&R catalisador da carreira dos Be-
cionamento; industria discográfica. atles, demonstrando que seu paradigma de atua-
ção ainda continua válido na contemporaneidade.
Résumé:
A pertinência do tema se dá em torno da crescen-
Cet article examine le rôle de A&R (artiste et
répertoire), une fonction stratégique de planifi- te expansão do consumo de música mundial, seja
cation et de positionnement des marques dans através do saudosismo da volta dos álbuns de vinil
l’industrie du disque, basée sur le travail de (HYPENESS, 2019), do vigor das apresentações ao
Brian Epstein - A&R responsable de la carrière vivo (ESTADÃO, 2019), ou pelo consumo de mú-
des Beatles - comme vecteur de construction de sica via streaming (TECMUNDO, 2019). O A&R
l’image de marque musicale.
é um tema atual que apresenta pouca bibliografia
Mots-clés: branding; musique; A&R; position- em língua portuguesa e que pode servir como um
nement; industrie du disque. alerta de oportunidades latentes que unem o cam-
po do marketing, do branding, da comunicação e
da música. A metodologia utilizada consiste no res-
gate das ideias de autores que abordam o marke-
ting, o branding, o mercado musical, e sobretudo,
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o posicionamento mercadológico, traço decisivo fenômenos estruturais e holísticos, o que significa


para uma estratégia eficaz de A&R. A experiência entendê-las como organismos vivos, dinâmicos, so-
de atuação profissional do autor como produtor ciais, culturais e sistêmicos. Como defende o autor
musical e A&R é igualmente explorada ao longo (idem, p. XVII), “a marca é a síntese da experiência
das inferências apresentadas no decorrer do artigo. de valor vivida pelos consumidores em relação a
O cérebro humano não possui uma capacidade cada um dos inúmeros produtos, serviços, empre-
ilimitada para lidar com um big data de estímulos sas, instituições ou, mesmo, pessoas com as quais
e informações. Seria impossível (e desnecessário) eles se relacionam”. As marcas são, em resumo, o
armazenar todo o conhecimento humano em um principal patrimônio das empresas. Diante de um
único cérebro. Para se defender de uma sobre- mundo no qual boa parte dos produtos tendem à
carga, possuímos uma memória de curta duração similaridade e comoditização, a sobrevivência de-
(para coisas cotidianas e de pouca importância, co- pende, sobretudo, da construção de características
mo lembrar o que comemos no café da manhã no únicas e inimitáveis das marcas, e de fortes laços
dia 20 de abril do ano passado), e uma memória afetivos e emocionais entre elas e seus consumido-
de longa duração (aonde armazenamos e recupe- res. Ou seja, do ponto de vista do consumidor, as
ramos informações marcantes (como uma viagem marcas serão sínteses de experiências objetivas e
incrível que ocorreu há dez anos atrás). O grande subjetivas vividas com e pelas marcas. As marcas
desafio do branding (isto é, da gestão de marcas) é, congregam um emaranhado de crenças, valores,
mais do que vender, tornar os produtos e serviços sentimentos e atitudes. Por isso, é correto afirmar-
memoráveis e marcantes, e não memórias e expe- mos que as marcas são, acima de tudo, expressões
riências voláteis e descartáveis. Um dos primeiros sociais.
passos para estabelecer essa relação passa pela Em um mundo globalizado e planetariamente
compreensão do papel das marcas e de sua arqui- conectado, a miríade de novas marcas é um fator
tetura emocional. lógico e inevitável. Nesse universo, além da quali-
Marcas dizem respeito a percepções e senti- dade do que é oferecido, as marcas tornam-se um
mentos. Podem estar associadas a produtos, servi- importante fator para nortear os consumidores. O
ços ou pessoas. O conceito clássico apresentado pe- valor representado pelo nome de uma marca é um
la AMA (American Marketing Association) entende ativo intangível. Uma das ferramentas sugeridas
as marcas como sendo um nome, sinal, termo, sím- por Aaker (1998) para pensar o gerenciamento de
bolo ou design, ou um conjunto de todas essas pa- uma marca chama-se de brand equity. Trata-se
lavras, com o intuito de diferenciar um produto ou de um conjunto de ativos e passivos ligados a uma
serviço de um grupo de fornecedores. Aaker (1998) marca, seu nome e símbolo: “Se o nome da mar-
defende que as marcas podem ser pensadas como ca ou seu símbolo for mudado, alguns ou todos os
um nome e/ou símbolo diferenciados, com o obje- ativos ou passivos poderão ser afetados, e mesmo
tivo de identificar bens ou serviços de um vendedor perdidos, embora parte deles possam ser desviados
ou de um grupo de vendedores e diferenciar esses para um novo nome e símbolo” (AAKER, 1998, p.
bens e serviços de seus concorrentes. Desse modo, 16). Os ativos das marcas podem ser agrupados nas
as marcas tem como função sinalizar ao consumi- seguintes categorias: lealdade à marca, conheci-
dor a origem de um produto, evitando que tal con- mento do nome, qualidade percebida, associações
sumidor possa confundir o que está sendo vendido à marca em acréscimo à qualidade percebida, e de-
com a concorrência, principalmente quando, em mais ativos como patentes, trademarks, relações
grande parte dos casos, a diferença do que é oferta- com canais de distribuição, etc. Como é possível
do é mais abstrata do que tangível. As associações notar, o que Aaker (1998) ressalta, sobretudo, diz
únicas de marcas são estabelecidas mediante os respeito à associação e percepção de marcas, pen-
atributos de produtos, nomes, embalagens, estra- samento comungado por Martins (1999).
tégias de distribuição e publicidade. Um dos capilares vitais das marcas é abordado
Sampaio (2002) lembra que as marcas são por Ries e Trout (1997) que dedicaram uma obra
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inteira para debatê-lo: o posicionamento de mar- físicos e funcionais; na segunda, os sentimento des-
cas, tema explanado pela dupla desde o início da pertados pelo ato da compra ou uso das marcas. O
década de 1970. O posicionamento, como o nome desafio maior é fazer com que, de forma leve e pre-
sugere, diz respeito a ocupar espaços simbólicos cisa, a profundidade e complexidade das marcas
e emocionais privilegiados na mente e no cora- consigam penetrar no íntimo de quem consome.
ção dos consumidores. O posicionamento é uma Martins (1999) diz que o nome em uma em-
estratégia ativa de emissão de um vendedor, mas balagem não é o mesmo que uma marca na men-
que, assim como ocorre em uma obra de ficção ou te. Como as marcas são apropriações emocionais e
uma obra de arte, só se completa e realiza, efetiva- mentais, elas existem somente na mente dos con-
mente, na mente e no coração dos consumidores/ sumidores. Ao explorar o papel dos nomes para as
receptores/públicos. É uma estratégia persuasiva marcas, Aaker (1998) entende que eles podem con-
para se fazer notar e amar. Como a adoção de um ter a essência do conceito de uma marca. Além do
posicionamento é, também, um ato criativo, os au- nome, para o autor, o símbolo é parte fundamental
tores (idem, p. 4) dizem que “o approach básico do da percepção/associação. Segundo ele (idem, p.
posicionamento não é criar alguma coisa de novo 208 – grifos ao autor), “(…) é mais fácil apreen-
e diferente, mas manipular o que já está lá dentro der as imagens visuais (símbolos) que as palavras
da mente, e realinhar as conexões que já existem”. (nomes)”. Símbolos são formas que informam, que
Aaker (1998, p. 115) observa que “o posiciona- acionam e que geram movimento. Muitas vezes o
mento é estreitamente relacionado ao conceito de mercado acaba adotando um grid estético de re-
imagem e associação. (…) Uma marca bem-posi- presentação visual e sonora repetitivo (como, por
cionada terá uma atraente posição competitiva, su- exemplo, a cor vermelha utilizada para o segmen-
portada por fortes associações”. Sampaio (2002, p. to de alimentos), o que pode representar uma ar-
39) alerta que a elaboração de um posicionamento madilha: símbolos parecidos demais para mesma
eficiente não pode ser um ato enclausurado dentro categoria de produto/serviço fazem o consumidor
de escritórios de branding: “tem que atender às perceber tais marcas como muito similares e sem
realidades das ruas e vielas do mercado”. O posi- atrativos diferenciais relevantes.
cionamento pode ser utilizado, ainda, para refletir Um ponto inicial eficaz para se começar a de-
como uma empresa procura ser percebida. O valor finir um posicionamento e representação plástica
resultante de uma marca tem relação direta com o para as marcas diz respeito a pensá-las com perso-
binômio percepção/associação, o que implicará em nalidades bem delineadas, comparando-as a pesso-
consumo e lealdade. as. Essa estratégia foi detectada pelo pesquisador e
A sociedade atual está cada vez mais satura- publicitário David Ogilvy, desde a década de 1960,
da de mensagens, sons e imagens. Para se defen- quando percebeu como os consumidores sentiam
der desse ataque voraz de estímulos que clamam as marcas: elas “(…) eram relacionadas a moder-
por serem ouvidos, percebidos, processados, e que nidade, charme, inteligência, simpatia, elegância,
resultem em uma re/ação (no caso específico que tradição (…)”, etc (MARTINS, 1999, p. 19). A cria-
nos interessa, em uma venda/culto de fã), o cérebro ção e manutenção desse imaginário perceptivo tem
cria mecanismos de defesa, rejeitando e ignorando relação com a palavra gestalt. De origem alemã,
boa parte do que é recebido pelos sentidos huma- significa unidade, harmonia e percepção. Sampaio
nos, diariamente. Em 2020, numa Era na qual um (2002) observa que o consumidor tem uma per-
dos bens mais preciosos diz respeito à Economia cepção gestáltica das marcas. Isso significa que ele
da Atenção, a simplificação pode ser um mecanis- integra e consolida todas as informações e experi-
mo eficaz frente a tal poluição mental e sensorial. ências sobre determinada marca em um mesmo
Quando confrontados com uma marca, os bene- arquivo mental, de forma aleatória, descontínua
fícios percebidos pelos consumidores podem ser e despadronizada. Todos os pontos de contato de
pensados em duas dimensões: racionais e psicoló- uma marca, incluindo sua embalagem, ponto de
gicos. Na primeira dimensão gravitam os atributos venda, material promocional e publicitário – e o
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próprio produto em si e as experiências relaciona- transformação, e parte da equação arquitetônica


das a ele – integram esse inventário perceptivo e de qualquer marca. Thompson (1995) sistematiza
emocional. Tal pensamento nos faz entender que a ideologia como o sentido a serviço do poder. Po-
a construção de uma identidade para uma marca demos compreendê-la, ainda, como um cimento
não depende exclusivamente do emissor (ou seja, social, uma ambiência, clima ou imaginário que
a própria marca), mas é um trabalho conjunto de une determinado grupo de pessoas norteadas por
co-criação entre a marca e seu público. Mais do que filosofias de vida e compreensões de mundo. As
nunca, o consumidor é peça vital e ativa dentro do formas simbólicas também são caras a Thompson.
processo do branding. Segundo ele (idem), tais formas são forjadas por
Posicionamento de marca e identidade de redes transnacionais de interesses institucionais.
marca não são sinônimos, mas são elementos Portanto, para compreender esse emaranhado de
complementares. Em linhas gerais, Castells (1999) tessituras significantes, devemos examinar atenta-
entende a identidade como a fonte de significa- mente a natureza de tais formas simbólicas e sua
ção e experiência de um povo. O indivíduo pos- relação com os contextos sociais dentro dos quais
sui, concomitantemente, a sua identidade pessoal, são produzidas, transmitidas, lidas e introjetcadas.
intransferível e particular, e um reflexo grupal de O ato de representar e as representações são
sua projeção social, em perspectiva à sua cidade, inerentes ao ser humano. Consolo (2015) lembra
estado, país e ao mundo global. Em uma ciranda que, desde 20000 atrás, nossos antepassados pri-
de diferenças e semelhanças, os seres se constro- mitivos já sentiam-se motivados a produzir re-
em e modificam no decorrer de sua existência. A presentações visuais, fato observável nas pinturas
construção da identidade está relacionada ao meio rupestres ancestrais. A autora (idem) aponta que,
em que se vive, ao espirito dos tempos passados e naquele momento, a humanidade começou a pro-
do presente, e a um sentimento de pertencimento. duzir representações de sínteses visuais bidimen-
Logo, a construção situa-se enraizada na cultura. sionais nas paredes das cavernas, retratando a rea-
Uma identidade orgânica nunca é estanque, imu- lidade tridimensional. Como complementa (idem,
tável ou pura. Está em constante negociação entre p. 27), tais extratos são “(…) representações que
si mesma e o universo. Em uma sociedade cada vez codificam uma experiência de mundo e são deixa-
mais plural, quem sabe não devamos falar em iden- das como registros de memória e de existência”.
tidade, mas identidades. Pela identidade os seres Sobre o ato de representar e significar, a autora faz
se percebem no mundo como elementos distintos. uma diferenciação entre os sinais e os signos. Nesse
Pelas diferenças, distinguem suas especificidades. sentido, todas as emanações do mundo, como pe-
Como afirma Castells (1999, p. 23), “identidades gadas, fumaça, as cores ou os sons podem ser con-
(…) constituem fontes de significado para os pró- siderados sinais. No momento em que, mediante
prios atores, por eles originadas, e construídas por uma codificação/síntese intelectual e uma deco-
meio de um processo de individualização”. dificação sistemática persistente mediante a cria-
Castells (1999) divide as identidades em três ção de um hábito interpretativo, os sinais podem,
grupos básicos: identidade legitimadora (gerencia- potencialmente, transformarem-se em signos, isto
da pelas instituições dominantes da sociedade com é, aquilo que está no lugar de alguma coisa para
o intuito de expandir e racionalizar relações assi- alguém e que representa um significado. Consolo
métricas de dominação e poder); identidade de re- (idem) ainda relata que o termo marca deriva do
sistência (criada e articulada por indivíduos que se germânico marka, que significa sinal, podendo de-
encontram em condições de dominação e estigma- signar tanto a ação de marcar algo, como também
tização); e por fim, identidade de projeto (quando o instrumento utilizado para fazê-lo. Tal observa-
os atores sociais constroem uma nova identidade ção pode ser pensada em perspectiva à evolução do
capaz de redefinir sua posição na sociedade, bus- branding, visto pela autora como um processo de
cando metamorfoses sociais). Em qualquer dessas marcação, de gravar e manter uma marca ativa na
esferas, a ideologia é um componente propulsor de mente dos consumidores.
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Uma vez que afirmamos ao início desse artigo Amadeus Mozart (1756-1791) fez fama e fortuna,
que existe uma relação direta e profunda entre os apresentando-se por diversas cidades, seja para o
conceitos de marca, posicionamento e branding grande público, como para os nobres ou para o cle-
com o fazer musical, passaremos agora a discutir ro. Na era pós-midiática, a partir da segunda me-
brevemente o que significa a indústria fonográfica e tade do século XX, um intermediário entre público
qual o papel do A&R nesse contexto. As afirmações e artistas musicais começa a desenhar as constru-
e conceitos apresentados aqui baseiam-se, sobre- ções mítico-espetaculares como hoje se conhecem.
tudo, na tese do autor (Paludo, 2017), retomando Embora o teatro e a ópera sejam os embriões do
alguns extratos de sua pesquisa sobre esse univer- espetáculo musical contemporâneo, as gravadoras
so de atuação humana. Foi entre os séculos XIV e desempenharam um papel vital no desenvolvi-
XVII, mais precisamente na era renascentista, que mento dessa estratégia promocional, uma vez que a
a noção de autor começa a ser gestada. Antes desse promoção organizada e sistematizada de um artis-
período, não se dava muita importância à autoria, ta gravado permite que seu trabalho seja executado
ainda mais como se dá hoje. Na música, mais de um na mídia, fomentando a venda de ingressos para as
século depois do Renascimento (período marcado apresentações públicas e venda de merchandising
pelo progresso técnico e científico, no qual aflora- promocional.
ram a filosofia, a literatura e o amor à beleza), o Basicamente, uma gravadora é uma empresa
compositor Johann Sebastian Bach (1685-1750) que comercializa fonogramas. Chama-se fonogra-
foi um dos primeiros artistas musicais a ter sua ma (e também de áudio) todo e qualquer registro
biografia registrada, ou seja, uma das primeiras de som gravado, seja em dispositivos analógicos
marcas a serem destacadas no fazer musical. Antes (discos de vinil ou fitas magnéticas), como em dis-
disso, permaneciam na memória e no imaginário positivos digitais (como compact discs ou arqui-
algumas obras, mas não seus autores (no caso, anô- vos de som compactados em formato MP3). Na
nimos). A figura do autor não era de todo irrelevan- estrutura organizacional de uma gravadora, den-
te, mas o que interessava de fato eram os resultados tre diretores executivos, promotores e divulgado-
do processo criativo e produtivo, em muitos casos, res que integram seu quadro funcional, encontra-
inclusive, primordialmente funcional. Naquele -se o A&R, foco desse artigo. A&R é uma sigla para
tempo, embora os músicos fossem celebrados, o Artista e Repertório (ou, no original em inglês,
interesse e entusiasmo por seu trabalho estava Artist & Repertorie). Baskerville (2017) define
muito aquém do fanatismo que nutre muitas das o profissional de A&R como aquele que tem por
carreiras musicais contemporâneas. O artista não principal função explorar e nutrir talentos e es-
era pensado como marca, nem seus atos e obras colher o repertório dos artistas assessorados por
percebidos como pontos de contato que alimentas- ele. Historicamente, essa função esteve ligada ao
sem um culto aos criadores. A música era mais um mercado fonográfico através das gravadoras. Ou-
adorno/divertimento dos abastados contratantes tra definição possível (Paludo, 2017) observa que
ou algo funcional, como o som para integrar um o A&R consiste em identificar talentos, composi-
culto religioso. tores ou intérpretes, apresenta-los sob contrato
Partindo dessa espécie de marco inicial do- e em seguida desenvolvê-los. Do profissional de
cumental aproximado, e dando um grande salto A&R não se exige obrigatoriamente conhecimen-
histórico, observamos que antes da proliferação do tos sobre teoria musical – embora seja recomen-
rádio e da televisão, no século XX, os artistas eram dado – mas, sim, um grande conhecimento de
promovidos pelas apresentações que realizavam, mercado. Porém, esse conhecimento mercadoló-
ao vivo, e pela venda de composições licenciadas gico não é, como poderia se pensar, exato, duro e
em partituras musicais comerciais. Voltando ra- cartesiano, mas sensível, humanista e catalisador.
pidamente ao passado histórico, e citando outro O A&R é aquele que vai moldar tudo o que se re-
exemplo pertencente aos clássicos pré-midiáticos, fere à estética e à formatação do trabalho de um
diferente de Bach, que não excursionava, Wolfgang artista musical. Nessa esfera, estão incluídos figu-
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rino, comportamento (como o artista se portará Para Allen (2018), gerenciar a carreira de um
perante os demais artistas, público e mídia), artista é um ato de comunhão, partilha e envolvi-
repertório (quais canções ou temas instrumentais mento efetivo, uma jornada de conhecimento ín-
serão gravadas e executadas ao vivo), definição de timo sobre quem está por detrás da persona musi-
referências (textuais, sonoras e visuais) e a esco- cal. É preciso, também, possuir um conhecimento
lha do produtor musical responsável pelo traba- holístico e sistêmico sobre o mercado musical, e
lho. Em muitos casos, o A&R acompanha todo o no que se refere às órbitas periféricas nas quais
processo de elaboração de um álbum. Em outros, gravitam elementos indiretos que tem influen-
após a definição dos pontos anteriormente citados, ciam sobre o todo (economia, política, cultura,
a gravadora entrega a verba ao produtor musical etc). Seguidamente, quando um artista atinge o
que deverá administrá-la adequadamente, dentro sucesso, tende a permanecer em uma espécie de
dos prazos, para, em data e local estabelecidos, estagnação por medo de alterar o curso da carreira
apresentar a matriz do álbum ao profissional de e perder o controle do território conquistado. O
A&R, de acordo com o planejamento por ele de- A&R muitas vezes vai encorajar o artista a tomar
finido. É comum que o produtor musical, muitas decisões arriscadas fora de sua zona de conforto, o
vezes, assuma algumas funções de A&R e, em de- que significa colocá-lo em uma zona de confronto.
terminados casos, desempenhe ambas as funções, Esse território desconhecido tem o potencial de
simultaneamente (A&R e produtor musical). catalisar mudanças significativas que vão alavan-
Atualmente, muitos artistas têm realizado car a carreira e projetar o artista para novas es-
suas produções de forma independente, uma vez feras musicais e, consequentemente, comerciais,
que os custos de produção e distribuição (sobre- embora não seja uma ciência exata, passível de
tudo digital) são bem mais acessíveis do que no insucesso.
século passado, quando a gravação, o lançamento Nenhum artista constrói sua marca e fama
e a promoção de um álbum musical dependiam, sozinho. É preciso conectar uma séria de pro-
majoritariamente, do investimento de uma gra- fissionais coadjuvantes que o auxiliarão nessa
vadora. A produção independente (ou seja, reti- construção. Um A&R virtuoso tem, além de uma
rando-se a gravadora do processo) não exclui a percepção aguçada, uma boa rede de contatos.
importância da contratação de um A&R, em casos Como afirma Allen (2018, p.2), “sem as conexões
frequentes na condição de freelancer, um criador – diretas ou indiretas – é difícil fazer negócios em
conceitual que irá prestar um serviço de mentoria nome do artista”. Para o autor (idem), as ferra-
estratégica no direcionamento de uma carreira mentas para a gestão artística estão calcadas em 4
artística. Após toda a explanação feita ao longo pontos: educação (formal oferecida por universi-
do artigo, as pontes entre marca, posicionamento dades, cursos de curta duração, vídeos educativos
de marca e branding começam a ficar mais claras ou leituras e livros e artigos); experiência (quanto
e evidentes quando aplicadas ao A&R. O A&R é, mais se pratica, mais se aprende; aprender com
sobretudo, um gestor do que podemos chamar de a experiência alheia também ajuda); visão (va-
branding musical. Embora o termo music bran- lores e objetivos bem definidos); e plano de ne-
ding seja comumente associado à utilização da gócios (um planejamento e mapa estratégico de
música em projetos publicitários ou comerciais, atuação). Especificamente no que tange à visão,
ele também pode ser entendido como o branding Allen (2018, p. 35) salienta que “(...) a visão de um
utilizado para formatar, fomentar e gerenciar uma empreendedor é uma expressão do que ele acha
carreira artística. O A&R levará em conta todos os que o seu negócio pode ser em um futuro definido
pontos descritos até aqui, funcionais, históricos – talvez em um ano ou dois” e a elaboração de uma
e culturais, para posicionar o artista de um mo- estratégia para que isso aconteça. Ao enxergar o
do mais assertivo, equacionando sua proposta ao artista como marca, o caminho do A&R passa
mercado, de maneira a torná-lo único perante os pelas etapas de definição conceitual do trabalho
demais concorrentes. musical, leitura de publico alvo e segmentação, e
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a elaboração de um planejamento e execução de canções ou temas que os artistas utilizam como


branding. O planejamento é delicado, uma vez um cartão de visitas para prospectar um contrato
que o mercado oscila rapidamente, exigindo que de gravação), acompanhando o cenário musical
os caminhos inicialmente traçados possam ser independente, lendo publicações do setor e indo
maleáveis e flexíveis à organicidade desse territó- a clubes ouvir músicas novas.
rio. Assim, um plano pré-estabelecido precisará Após a assinatura de um contrato comercial,
ser ajustado conforme as circunstâncias mudam. o profissional de A&R deve gerir uma série de ele-
Também cabe sublinhar e reforçar que, como di- mentos em vários níveis: prestar assistência ao ar-
to anteriormente, hoje vivemos reféns da Econo- tista no desenvolvimento de um projeto específico
mia da Atenção, aquela na qual uma miríade de ou da carreira como um todo; administrar os di-
ofertas de estímulos diversos e conteúdos brigam versos detalhes da pré-produção a pós-produção
frequentemente pelo interesse da audiência do de singles ou álbuns; e, por fim, se o artista esti-
entretenimento. Desse modo, evidencia-se que ver ligado a uma gravadora, ser uma ponte entre
não basta ter um trabalho musical competente ele e a gravadora. A importância de Brian Eps-
por si só: ele precisa estar posicionado, aparecer, tein para os Beatles é igualmente destacada por
ser percebido, e consumido, galgando uma fatia Spitz (2007), Courtney e Cassidy (2011) e Tiwary
da atenção no universo exponencial em expansão (2014), como veremos agora. Não vamos nos ater
da proliferação de artistas veteranos e novatos, vi- a recontar a história dos Beatles, que como é de co-
vos e mortos, querendo ser ouvidos e escutados. nhecimento comum, foi uma banda de rock britâ-
Embora a atenção hoje seja mais dispersiva, ela nica nascida na cidade portuária de Liverpool, que
sempre representou um desafio para qualquer ar- explodiu mundialmente na década de 1960 após
tista, em qualquer tempo. uma estada na Alemanha, com apresentações es-
Diferente de Bach e Mozart – que não possuí- pecificamente na cidade de Hamburgo (de 1960
am nem contrato com gravadores e, menos ainda, a 1961), tornando-se, ao longo dos anos, uma das
um profissional de A&R prestando assessoramen- mais comentadas, amadas e cultuadas de todos os
to, os Beatles devem muito do seu sucesso a um tempos. Nosso foco será, exclusivamente no início
dos precursores dessa função: Brian Epstein. O da carreira e no encontro entre os Beatles e Brian
embrião do A&R é situado por Baskerville (2017) Epstein, justamente por ele ser um dos principais
em meados da década de 1940, quando editores nomes da história do A&R (ainda que muitos pos-
musicais recorriam aos chamados song-pluggers, sam considerá-lo apenas como um mero empre-
o que podemos traduzir como conectores musi- sário), tendo agenciado uma das maiores bandas
cais. Gradualmente passaram a ser conhecidos co- do mundo sem o menor estudo ou experiência no
mo gerentes profissionais e, posteriormente, cria- assunto, o que contraria a literatura mais recente
tivos ou A&R. Após a Segunda Guerra Mundial, as sobre o tema, que indica estudo e preparação para
principais atribuições de um A&R eram: descobrir exercer tal função.
compositores promissores; ser uma ponte entre Courtney e Cassidy (2011) relatam que, em
compositores, intérpretes, produtores e gravado- 1961, Brian Epstein era o gerente da North End
ras; e por fim, catalisar a entrada de receitas de di- Music Store (NEMS), uma loja de discos situada
reitos autorais provenientes da utilização comer- em Liverpool, no interior de um estabelecimen-
cial dos fonogramas e de sua execução pública. O to maior de propriedade de sua família. Era um
desafio central de um profissional de A&R era (e ponto de venda representativo e importante na
ainda é) encontrar, contratar e promover artistas. época, tendo como um de seus ideais oferecer ao
A metodologia para localizar músicos e bandas público aquilo que ele buscasse. Se a procura não
potencialmente vendáveis diz respeito a manter- figurasse no estoque, faria-se o possível para obter
-se informado através de uma rede de contatos o produto com os distribuidores. As fontes docu-
multicapilarizada avaliando demos (gravações mentais utilizadas nessa pesquisa (Splitz, 2007;
semi-profissionais ou profissionais com algumas Tiwarky, 2014) afirmam que a versão aceita como
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a mais próxima da realidade sobre o início da his- conseguiu uma audição com o produtor musical
tória entre os Beatles e Epstein conta que alguém George Martin, o que resultou em um contrato de
veio até a NEMS e pediu uma cópia do álbum “My gravação com o selo Parlophone, pequena subdi-
Bonnie” com os Beatles. Tal álbum havia sido gra- visão pertencente à EMI, um braço menor, de se-
vado em Hamburgo, durante a tour na Alemanha, gunda linha, que lançava, sobretudo, álbuns de co-
no qual os Beatles foram banda de apoio do can- média musical. Se George Martin – que não tinha
tor e compositor Tony Sheridan, uma vez que os experiência com o rock, e sim ligação com a mú-
Beatles estavam se apresentando frequentemente sica erudita, e talvez justamente por esse moti-
em pequenos clubes na cidade germânica e aca- vo, tenho produzido resultados convincentes e
baram por gravar o artista que também estava por inventivos – ficou a cargo das transformações
lá. Brian não tinha o álbum disponível em seu es- sonoras, Epstein deteve-se (além das obvias
toque e desconhecia os Beatles. Preocupado em questões de gestão de cachês e contratos das
sempre oferecer aquilo que seu publico buscava apresentações ao vivo) de buscar e apresentar
na NEMS, resolveu investigar que banda era essa, referências que ele julgava pertinentes para
indo assisti-los em uma apresentação no Cavern construir uma imagem estelar para a banda.
Club (pequeno clube que ficava perto de sua lo- Tanto Martin, como Epstein, estiveram atentos
ja, hoje um local sagrada de peregrinação para os em moldar o projeto inicial dos Beatles para o
fãs dos Beatles, no qual a banda se apresentava sucesso, mas sem matar a sua essência. Essa
diariamente no início dos anos 1960). Impressio- essência já foi definida anteriormente (Paludo,
nado com a apresentação a qual assistiu, Epstein 2017) como a verdade artística. Entende-se
abordou os Beatles e ofereceu-se para gerenciá- por verdade artística como uma autenticidade
-los. Ele vislumbrou que a banda tinha potencial, construída segundo três variáveis chamadas de
mas faltava acabamento. Cabe ressaltar que, em- tripé virtuoso da extensão musical. Dizemos
bora o A&R comece a dar sinais de vida na década que são variáveis, pois embora defendamos
de 1940, nos anos 1960 ele ainda estava em fase que a existência simultânea desses três eixos
de crescimento e floração, não sendo uma ativida- seja necessária ao êxito e equilíbrio de forças,
de tão conhecida do público e dos artistas. Como elas agem em diferentes níveis de intensidade e
apontam os autores (2011), talvez sem a inexpe- profundidade, variando de artista para artista.
riência, porém entusiasmada, gestão de Epstein, O tripé virtuoso diz respeito a três elementos/
os Beatles jamais teriam saído dos pequenos clu- eixos: dedicação incondicional, paixão avas-
bes para ganhar o amor e a admiração do mundo. saladora e influência propulsora do meio. No
Courtney e Cassidy (2011, p. 23 – grifos dos auto- caso dos Beatles, podemos notar que desde o
res) demonstram que a banda precisou abdicar de início de sua construção os três vetores agiam
uma liderança estratégica interna para delegar tal fortemente: antes de conhecerem Epstein, o
tarefa ao A&R: grupo passou por um período de intensas e
exaustivas apresentações em condições precá-
(...) John (cuja liderança havia trazido a banda até rias em Hamburgo, tocando diariamente por
aquele ponto) essencialmente precisou demitir-se
e tornar-se mais “um dos rapazes”. Embora ainda várias horas, em condições adversas, mas com
o primeiro entre os iguais, ele certamente sabia que grande dedicação na prática das apresentações
não possuía o poder ou influência para conseguir um ao vivo, domínio de plateia e construção de
contrato de gravação de um disco em Londres para a
banda. Epstein poderia. Embora ele talvez não conse-
suas personas. Logicamente que tal afinco foi
guisse articular a distinção na época, surgia uma clara sempre catalisado por uma paixão avassalado-
diferença entre a liderança de John sobre os Beatles e ra por vencer no meio musical e pelo amor à
as habilidades gerenciais necessárias para impulsio- música em si. Já a questão do meio propulsor
nar suas carreiras à frente.
se dá justamente quando, de volta a Liverpool
em 1961, o destino acaba por colocar Epstein
Depois de inúmeras negativas, Brian de fato
no caminho da banda.
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crescer emocionalmente até ser


estimulada a um clímax final du-
rante as apresentações.
Havia um paradoxo entre
o diagnóstico inicial de Epstein
e a percepção de mercado dos
Beatles. Na visão da banda, o
rock’n’roll significava, justamen-
te, esse lado rebelde, desorgani-
zado e sem planejamento, e pelo
recepção calorosa que recebiam
do público, julgavam que tudo
Figura 1: Beatles em apresentação do Cavern Club, 1961.
estava indo bem. Além disso, a
Fonte: <h�ps://www.cavernclub.com/wp-content/uploads/2014/07/ inexperiência de Epstein somada
beatles-blackandwhite.jpg>
Acesso em 20/02/2020.
à sua ousadia de questionar um sistema de ação
que era tido como adequado pelos Beatles pare-
Nas apresentações no Cavern, os Beatles ves- cia um jogo de percepções desalinhado em rela-
tiam figurinos formados por couro e jeans, como ção às expectativas de contratante e contratados.
pode ser visto na Figura 1. Conforme Spitz (2007), Apesar de uma certa resistência inicial, os Bea-
para Epstein, as verdadeira estrelas não eram ro- tles acabaram cedendo e ouvindo as ponderações
queiros, mas sim os astros da música pop como de Epstein. Dentre as mudanças propostas, da-
Ricky Nelson, Connie Francis, Pat Boone, Bobby quele ponto em diante, estava proibido comer no
Darin e Neil Sedaka, artistas que entendiam as palco, fumar, simular brigas entre os membros,
convenções da indústria do entretenimento e falar palavrões, conversar com as garotas da pla-
estavam dispostos a adaptar suas imagens e sua teia, aceitar pedidos musicais ou dormir no pal-
música aos anseios do mercado. Durante um mês, co. Atrasos também não seriam mais tolerados.
Epstein assistiu sistematicamente às apresenta- Os Beatles também deveriam agradecer depois
ções dos Beatles e começou a detectar quais mu- de cada número, não apenas inclinando a cabeça,
danças deveriam ser tomadas de imediato para mas fazendo um agradecimento coreografado e
começar a tirar o grupo do underground e levá-lo sincronizado (SPITZ, 2007).
ao caminho do mainstream. No palco, os
Beatles tinham um comportamento sel-
vagem que não combinava com o reposi-
cionamento proposto por Epstein: fuma-
vam e bebiam, interrompiam as músicas
e começavam outra coisa; e não havia um
conceito definido, um nexo, tendo como
consequência apresentações mais calca-
das em desordenamento aleatório do que
narrativas envolventes e sedutoras. Por
ter frequentado aulas de teatro (diz a lite-
ratura que era um ator frustrado), Epstein
apreciava a construção de um espetáculo,
o cuidado aos detalhes, o encadeamento
da cena, a construção dos personagens, Figura 2: Figurino e imagem pós Brian Epstein
e, no caso musical, o controle dos altos e Fonte: <h�ps://www.nme.com/wp-content/uploads/2019/09/Webp.
net-resizeimage-1.jpg>
baixos de um repertório para fazer a audiência Acesso em 20/02/2020.
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pode atuar como elemento construtor eficaz na


arquitetura emocional da marca de um artista
musical. O que pode ser percebido ao longo da
leitura e apresentação do corpo teórico e dos re-
cortes documentais, e em específico no caso dos
Beatles, é que o A&R tem papel fundamental e
decisivo nessa edificação. Ainda que a literatura
atual defenda o preparo e estudo para exercer tal
atividade, o que de fato é indicado, não como ga-
rantia absoluta, mas como aptidão ou desejo de
atuar que deve ser lapidado, e mesmo que o A&R,
como dito antes, tenha começado a eclodir mais
sistematicamente na década de 1940, Epstein,
20 anos após esse período, ainda que inexperien-
te, foi bastante visionário e ousado. Se o desafio
do branding é o de tornar as marcas memoráveis
e marcantes, logicamente o aspecto emocional é
Figura 3: Brian Epstein e George Mar�n inerente a esse processo. Como defende Sampaio
Fonte: <h�ps://encrypted-tbn0.gsta�c.com/images?q=tbn%3AANd9Gc (2002), e aplicando seu pensamento aos Beatles,
TCNvHdXDbt6LIqFkB2r1WeVtB5OeXVLoQUTk27qU626ZaZMA_W>
Acesso em 20/02/2020. Epstein de fato observou a banda em seu contex-
to, sabendo discernir seus pontos fortes e fracos,
Brian veio a falecer em 1967. As causas fi- enxergando a banda como um organismo vivo,
caram até certo ponto nebulosas. Seguidamen- dinâmico e sistêmico, para então adequar suas
te tinha esgotamentos físicos e emocionais. Era potencialidades para gerar uma percepção de
usuário de medicamentos, drogas e álcool. Tam- marca mais eficaz e pertinente. A chamada bea-
bém era atormentado por amarguras e tensões tlemania, que nada mais é do que uma histeria
tais como lidar com a frustração de não ter sido coletiva de um grupo enorme de fãs pelos Bea-
ator (uma paixão nunca concretizada), sua ho- tles, demonstra que esse público passou a perce-
mossexualidade velada, e a pressão natural pelos ber a banda como marca de fato, como um signo
negócios dos Beatles. Sua morte foi considerada de vivacidade, amor, potencia sexual, inovação e
acidental, e não um suicídio, como se chegou a rebeldia, como síntese de experiências objetivas
cogitar na época, embora ainda se especule sobre (o consumo dos produtos de merchandising, a
o assunto. Em seu exaustivo estudo sobre os Bea- compra de álbuns musicais, ou o comparecimen-
tles, Spitz (2007) aponta que, ainda que o traba- to às apresentações ao vivo) e subjetivas (a per-
lho de Epstein tenha sido vital para os músicos, cepção simbólica oriunda das canções e de todos
ele não foi de todo brilhante. Desde a assinatu- os pontos de contato que estimularam e estimu-
ra do contrato, no início dos anos 1960 até sua lam o imaginário dos consumidores), legítimas
morte em 1967, ele foi confidente, conselheiro, expressões sociais de uma sociedade na qual a
amigo, porta voz, relações publicas, empresário juventude queria extravasar de forma catártica
e A&R dos Beatles, tendo êxitos eclipsados por com e pelo som.
uma série de erros em contratos mal feitos e Embora Reis e Trout sejam referências inter-
gerenciamentos econômicos ineficientes, justa- nacionalmente reconhecidas sobre o posiciona-
mente por sua inexperiência e incapacidade de mento de marcas, o conceito de posicionamento
lidar com a magnitude que os Beatles tomaram data do fim dos Beatles (década de 1970). Uma
de forma rápida, inesperada e avassaladora. década antes deles, Epstein já trabalhava para
A pergunta de pesquisa do presente artigo lapidar os Beatles de modo a que eles pudessem
tem como meta investigar de que forma o A&R ocupar espaços simbólicos e emocionais privile-
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giados na mente e no coração dos consumidores, var uma identidade de projeto, aquela na qual os
o que a história mostrou ser verdade. Ele foi um atores sociais constroem uma nova identidade
desbravador do posicionamento musical merca- capaz de redefinir sua posição na sociedade, bus-
dológico e do branding musical. E conforme sis- cando metamorfoses sociais, o que se verifica no
tematizado por Reis e Trout (1997), uma vez que poder de afetação que até hoje os Beatles tem em
o posicionamento não se trata de criar algo ab- seus fãs. O figurino, o penteado de cabelo rebelde
solutamente novo, mas acima de tudo, realinhar (mas cuidadosamente articulado), a encenação,
as conexões já existentes, podemos notar que foi o encadeamento das canções nas apresentações,
exatamente esse o movimento feito por Epstein a memorabilia subsequente, os álbuns musicais,
após assistir as apresentações dos Beatles no Ca- tudo posto a serviço dos Beatles para conferir-
vern Club. A conexão com a platéia e a química já -lhes um ar de mistério, sedução e força nar-
estavam lá, ainda que em estado bruto. O repo- rativa, dentro de um plano de A&R norteador.
sicionamento estratégico da banda (porque, afi- A ideologia destacada por Thompson (1995) co-
nal de contas, mesmo que desregrado, a banda mo cimento social também pode ser verificada
já possuía um posicionamento inicial verificado e percebida na biografia dos Beatles, a partir da
a partir de sua estetica e comportamento) mos- observação de uma vasta gama de materiais do-
trou-se eficaz para levá-la ao estrelato. Como es- cumentais oficiais e não-oficiais (sistematizados
creve Aaker (1998), uma marca bem posicionada por Spitz, 2007) que demonstram o imaginário
tem atraente posição competitiva alicerçada em Beatles introjectado nos fãs da banda que, mes-
fortes associações, o que no caso dos Beatles, se mo extinta há várias décadas, continua conquis-
percebe e se comprova. Sampaio (2002) defende tando e cativando novas audiências, sinal de
que o posicionamento é um ato ativo, que deve- que o A&R de Epstein ainda ecoa mesmo após
-se ir a campo para senti-lo e percebe-lo. Foi essa a sua morte.
a atitude de Epstein, unindo seu conhecimento Em suma, o A&R é um catalisador, um men-
de público e gosto musical adquiridos na NEMS e tor, um conector, tudo isso e muito mais, como já
indo a campo, atrás dos Beatles, em sua imersão descrito e explanado. Hoje, a profissão já é bas-
de diagnóstico executada com cuidado in loco no tante conhecida do mercado musical, embora
Cavern Club. muitos fãs nem sequer saibam de sua existência,
Lembrando o sentido da gestalt apresenta- ou do papel que muitos A&Rs desempenharam
do, podemos aplicá-lo na analise ao mencionar- para que seus ídolos chegassem aos seus corações
mos que Epstein buscou integrar e consolidar para serem estimados, amados e idolatrados. O
as informações e experiências que tinha em um A&R é o timoneiro do branding musical. Poderí-
mesmo arquivo mental para pensar em como amos, por fim, traçar um paralelo entre o A&R e
agir. Castells (1999) entende a identidade como como seus ensinamentos podem ser aplicados a
fonte de significação e experiência, o que pode diversos outros campos produtivos, não neces-
ser percebido na atenção dada aos detalhes pa- sariamente musicais ou artísticos. O posiciona-
ra elaborar o plano de ação dos Beatles. Obvia- mento de marca não é exclusividade do A&R, e
mente que o trabalho foi realizado em conjunto sim um mecanismo de sobrevivência essencial
entre a banda, Epstein e George Martins, esses para as marcas. O figurino poderia ser pensado
últimos, os principais atores externos à banda em perspectiva as emanações imagéticas de uma
responsáveis por moldar a forma da marca e su- marca, como as embalagens de um produto e sua
as emanações. E claro que a Parlophone e a EMI comunicação, por exemplo, assim como o reper-
também contribuíram com sua expertise e poder tório de canções poderia ser visto como o por-
de ação e distribuição. Analisando os paradigmas tfólio de produtos ou serviços ofertados. Fica em
sobre os tipos de identidade de Castells (idem) aberto a sugestão para esse tipo de comparação
e aplicando-os a Epstein, podemos dizer que o e para outros olhares sobre o A&R, uma função
A&R desenvolvido por ele pautou-se por alinha- essencial na Era da Economia da Atenção.
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