Você está na página 1de 109

COMO ME DESCOBRI ATEU

Antes de iniciar um combo de séries textuais ateístas e secularistas, começo contando


como me tornei, ou melhor, como me descobri ateu.

De início, devo ressaltar que, durante parte de minha infância até o início da adolescência,
tive três experiências religiosas muito breves e oportunas. Nada tão convicto ou
pretensioso, apenas passagens vagas e ocasionais.

A primeira experiência religiosa que vivenciei foi no catolicismo, a partir da igreja que dá
nome ao bairro onde cresci: Santo Antônio. No dia do “santo casamenteiro” (13 de junho),
uma procissão reúne milhares de fiéis nas proximidades da igreja símbolo do pequeno
bairro, promovendo uma pequena caminhada em torno do quarteirão onde fica localizada a
paróquia. Durante o trajeto, cada devoto carrega uma vela acesa em homenagem à
santidade bairrista. E ao fim da marcha, na chegada à igreja, o padre entrega a cada
participante um pão francês (considerado como algo “sagrado” pelos religiosos presentes na
cerimônia santa).

O pão entregue pelo sacerdote era de fato muito saboroso, mas normal como qualquer
outro. Para uma criança doutrinada como eu era, claro, parecia possuir um sabor especial.
E era este simples alimento composto por farinha e trigo que me fazia acompanhar aquela
cansativa procissão a pé pelo bairro. Um puro e simples pão francês, consumido da forma
como me era entregue (sem recheio, nem uma manteiguinha sequer), era o que me
motivava a marchar com uma vela acesa pelas ruas da cidade durante a noite. Uma simples
unidade de pão, que poderia adquirir em dúzias na padaria da esquina, me impulsionava a
bater pernas atrás de uma estátua de gesso qualquer.

Ao menos era gratuito; tanto a caminhada, quanto o pão.

Mas isso até o dia em que, após o encerramento da procissão, quando cheguei à igreja
acompanhado por minha mãe, os pães haviam acabado sem que eu tivesse provado ao
menos um. Depois daquele dia, a revolta foi tamanha que nem um pão daqueles recheado
com queijo, presunto e bastante requeijão me faria voltar à caminhada religiosa para gastar
minhas energias e meu tempo com um rito cristão besta.

Minha segunda experiência “religiosa” (bem, o espiritismo não é de fato uma religião, mas
sim uma doutrina) foi vivenciada em um centro espírita também localizado no bairro onde
cresci. Neste centro havia uma área infanto-juvenil destinada às crianças, para que estas
pudessem se divertir e passar o tempo enquanto seus pais ou responsáveis praticavam os
rituais da doutrina espiritual. E eu, em meus plenos 8/9 anos, para poder brincar, desenhar
e correr junto de outras crianças, aproveitei e muito aquela parte recreativa do complexo
espírita. Por vezes cheguei até a frequentar o local aos finais de semana, em momentos de
lazer das atividades escolares, para curtir o espaço com alguns amigos.

Não é que eu era uma criança espiritualista ou que o espiritismo me representasse algo.
Muito pelo contrário. As reuniões, as palestras e as sessões do centro espírita eram muito
cansativas e monótonas, ainda mais para um menino de 8/9 anos. A área infanto-juvenil me
serviu, além de um entretenimento recreativo, como uma rota de escape do tédio espiritual
e de suas práticas.

A terceira e última experiência religiosa que tive foi no budismo, mais especificamente em
um budismo japonês, diferente do tradicional e mais popular budismo indiano  —  que louva
o mito Buda. Trata-se do budismo que prega e segue os ensinamentos do monge Nitiren
Daishonin.

Como eu ingressei nessa mitologia oriental?

Bem, meu pai foi quem ingressou primeiro, por incentivo e para acompanhar uma de suas
amigas de longa data; eu o segui por curiosidade e por puro companheirismo mesmo. Não
havia nada que me despertasse atenção naqueles rituais japoneses.

No início, as orações (o Nam-Myoho-Rengue-Kyo ou Daimoku) pelo Sutra, os encontros nas


casas dos outros adeptos e as reuniões junto a eles me divertiam e chegaram a me deixar
bastante empolgado. Porém com o passar do tempo, após alguns meses naquela rotina de
rezas e mantras, tudo aquilo se tornou maçante demais  —  quase como as palestras e
sessões do centro espírita, porém nem tão maçante assim  — , freando minha empolgação
inicial. Creio que até meu pai passou a se desgostar, tanto que abandonou a doutrina e
seus ritos.

Só havia uma única coisa que realmente me agradava no budismo: os encontros infanto-
juvenis que aconteciam aos sábados entre os adolescentes participantes da religião
japonesa. Eram reuniões diferentes das atividades que ocorriam na área recreativa do
centro espírita, sendo mais voltadas a jovens pré-adolescentes (como eu, na época com 12
anos), geralmente contendo os mesmos membros e não sendo realizadas em um local fixo  
—  apesar de serem organizadas em horários e dias específicos.

Fora os encontros juvenis aos finais de semana, quase não tive nenhuma outra experiência
bacana no pouco tempo que fiquei no budismo (pelo menos não que eu me recorde). De
resto, só reuniões para recitar orações toscas e encontros monótonos que valeram mais
para conhecer pessoas legais e engraçadas do que pelos fins religiosos em si.

Entretanto, foi no budismo que tive o envolvimento mais ativo e direto com a religião. Fui
adepto, participei dos rituais e fiz as orações nos lugares e nas horas corretas, sempre
utilizando os instrumentos místicos exigidos (Gohonzon, por exemplo). Cheguei até a me
“formar” como budista, tendo cerimônia e certificado — este que saiu com meu último
sobrenome trocado por um outro nada a ver comigo (sabe-se lá o porquê).

O budismo de Nitiren Daishonin foi a mitologia que mais segui e a que realmente tive fé.
Mas esta fé durou por um período muito curto (não pode se sustentar em contradição e em
confronto com a realidade que vivencio).
Após abandonar o budismo (não oficialmente, mas na prática), não voltei a ter outras
experiências religiosas. Passei então a me declarar como católico socialmente, mesmo não
praticando. Dizia ser católico da boca para fora, como resposta quando me questionavam
se possuía alguma religião (incorporei a mais tradicional e a que batiza o bairro onde vivo).
Mas depois de um tempo parei de me autoproclamar como católico, passando a afirmar que
apenas acreditava em deus e que não tinha religião. Simples assim.

Nunca questionei minha fé ou a crença em geral. Dizia que acreditava em deus também da
boca para fora, sem convicção se acreditava de fato ou se só afirmava que sim como algo
automático, estabelecido pelo consenso da hegemonia social.

Afinal, é possível não crer em deus?

Passei a me questionar quanto a isso e a buscar explicações lógicas. Talvez houvessem


pessoas que negassem a existência de deus e rejeitassem a afirmação automática desta
suposta existência.

Confesso que, até os 15 anos, eu não sabia o que era e o que significava ‘ateísmo’. Achava
que um ateu era um religioso, alguém que seguia uma religião diferente, com crenças pouco
habituais, e que não acreditava no deus judaico-cristão, mas sim em outra deidade. Afinal,
existem inúmeras religiões no planeta inteiro, e o ateísmo poderia ser uma delas. Não sabia
que era justamente a ausência de religião e a descrença em qualquer deus.

Então comecei a pesquisar sobre ateísmo. Vi vídeos sobre ateísmo, li artigos sobre o tema,
consumi conteúdos ateístas e absorvi os argumentos lógicos e racionais favoráveis à
ideologia. Me identifiquei com o pensamento científico, com o humanismo e com o ceticismo
(sou um ateu cético, não um ateu espiritualista). Percebi que tudo aquilo fazia sentido, e
passei a questionar a fé e a valorizar a razão acima de tudo.

Naquele momento, em 2015, durante a minha transição dos 15 para os 16 anos, foi quando
conheci o ateísmo, suas ideias e suas visões de mundo. Percebi que, enquanto afirmava
acreditar na existência de deus sem convicção alguma, e enquanto desfrutava dos
supérfluos prazeres religiosos por puro interesse e benefício pessoal (as atividades infanto-
juvenis, no espiritismo e no budismo, e o pão, no catolicismo), eu era de fato um agnóstico
que desconhecia o ateísmo e o próprio agnosticismo. Era um ateu sem sequer saber o que
era ser um ateu. Bastava conhecer o ateísmo, seus sentidos e seus argumentos.

Me assumi como ateu perante a sociedade e resisti aos preconceitos e à intolerância da


comunidade cristã. Me tornei um ateu convicto, que milita pelos ideais ateístas, pregando o
secularismo humanista e combatendo o cristianismo centralizador e a matrix religiosa que
predomina no mundo. Passei a defender a laicidade do Estado e, buscando
representatividade, a lutar em prol da visibilidade ateia.

Até tatuei o símbolo ateísta em meu peito, representando meu orgulho e minha luta.

E é por isso que sempre digo: eu não virei ou me tornei ateu. Eu me descobri ateu, e fiz do
ateísmo minha vida.

(21/01/2021)
ATEÍSMO COMO UMA FILOSOFIA DE VIDA

No dia 12 deste mês de fevereiro, comemora-se o ‘Dia do Orgulho Ateu’, em homenagem


ao aniversário do naturalista inglês Charles Darwin, pai fundador da teoria evolucionista nas
ciências biológicas. Uma célebre data que prestigia o biólogo que desenvolveu a teoria da
seleção natural das espécies, símbolo do ativismo ateísta cientificista do século XXI.

Mas por que se orgulhar de ser ateu? O que o ateísmo representa além da descrença em
divindades?

Bem, primeiramente é importante destacar que o ideário ateísta não se limita apenas à
oposição ao teísmo e às crenças religiosas. Há muito mais que a ideologia ateísta pode
proporcionar, estando vinculada ao ceticismo, ao racionalismo e ao humanismo, e que a
grande maioria dos indivíduos, inclusive muitos ateus, desconhece por não se
aprofundarem e por não se permitirem ampliar o conhecimento sobre o ateísmo.

Existem duas formas de ser ateu, segundo a filosofia:

1. Ateísmo fraco (ou negativo): É uma descrença (ou ausência de crença) ou uma
negação à crença. O ateu fraco (ou ateu negativo) é aquele que não acredita na
existência de deus(es), que duvida da existência deste(s) ou que nega/rejeita a
crença em divindades.
2. Ateísmo forte (ou positivo): É um tipo de crença, mas não uma religião. O ateu forte
(ou ateu positivo) é aquele que acredita na inexistência de deus(es).

Mas a população ateia é minoritária, social e numericamente, no Brasil e no mundo inteiro.


São poucos os indivíduos que se definem como ateus  —  sendo que grande parte ainda
opta por se afirmar apenas como “sem religião”, devido ao intenso preconceito social que a
comunidade ateísta sofre frequentemente. E dessa minoria que se declara ateia, quase que
sua totalidade se identifica na corrente do ateísmo fraco, isto é, no âmbito da descrença em
divindades ou da rejeição ao teísmo. São poucos os ateus, extraídos do conjunto minoritário
de sua população, que se identificam na corrente do ateísmo forte.

Porém o ateísmo não se baseia  —  ou não precisa necessariamente se basear  —  somente
na descrença em deuses e na ausência de fé religiosa, ou na crença na inexistência de
mitos. O ateísmo, visto por um outro olhar, acometido por um novo sentido, e incorporado a
um ativismo humanista e secularista, pode ser filosoficamente absorvido como uma forma
cética e racional de se perceber a realidade e, principalmente, de vivenciá-la.

O ateísmo é, acima de tudo, um ideal libertador. Enquanto a religião é, como bem disse Karl
Marx, “o ópio do povo”, ou seja, a ferramenta que aprisiona as mentes dos indivíduos em
conceitos reacionários, fantasiosos, místicos e, consequentemente, irracionais, fazendo com
que estes se acomodem na alienação e se contentem com as injustiças e com seu
sofrimento no mundo, enquanto buscam uma recompensa divina após a morte, o ateísmo é
a chave capaz de libertar a mente humana dos conceitos e da concepção de mundo
religiosa. Esta ideologia nos possibilita expandir os pensamentos em direção a um universo
mais amplo, racional e plural, extrapolando a bolha social conservada pela fé, permitindo e
induzindo questionamentos sobre a vida e a realidade, e constituindo uma visão muito mais
realista sobre ela,sem a influência tola de sonhos superestimados ou de ilusões infundadas
e sem a mínima lógica.

Se considerarmos que a pior prisão é a da mente, e que as mitologias, como o cristianismo,


por exemplo, são as formas concretas, por intermédio da abstração teísta, de aprisioná-la, a
ideologia ateísta torna-se a rota de escape para um mundo racional e para a construção de
novas ideias. O ateísmo, para além da pura e simples descrença e da oposição às religiões,
é também o uso primordial da razão em detrimento da irrisoriedade da fé.

Essa concepção transformou a forma como percebo o universo ao meu redor. Após ter me
descoberto ateu1, passei a questionar tudo em torno da realidade na qual estou inserido,
adotando uma nova visão sobre ela e sobre os aspectos que a compõe. O ateísmo
expandiu minhas ideias e libertou minha mente da concepção de mundo ortodoxa imposta
pelo cristianismo, me proporcionando observar a realidade, questioná-la e percebê-la a
partir de uma visão cética, racional e secularista. Absorver o pensamento científico,
privilegiar o uso da razão sobre a fé e abolir os dogmas espirituais fez com que me tornasse
um indivíduo mais focado, mais questionador e mais desconfiado. Passei a planejar cada
ação de minha vida, a pensar mais antes de agir, a buscar o empirismo para as
adversidades e para as questões da vida social e para os desdobramentos do universo
natural,sem me deixar influenciar ou ceder aos artifícios irracionais da fé que fogem à lógica
e ao âmbito científico.

Além disso, o ateísmo, atrelado à visão ceticista e secularista da realidade, também fez com
que me tornasse um indivíduo mais compreensivo e mais aberto às diferenças sociais e
naturais. Passei a estabelecer maior empatia com a diversidade social e com as lutas de
grupos minoritários/identitários  —  estes tão oprimidos e vítimas do conservadorismo cristão.
Desde que me descobri ateu, minha mente se abriu para fora dos conceitos tradicionalistas
e reacionários (como, por exemplo, a constituição patriarcal da sociedade e a imposição
infundada da tal “família tradicional”) e partiu em direção ao pluralismo, o que me permitiu
observar a sociedade e as relações sociais a partir de novas percepções e buscar
compreender as trajetórias, as dificuldades, as lutas e as necessidades dos mais diferentes
tipos de indivíduos e grupos, fugindo do egocentrismo e do etnocentrismo que os ideais
conservadores, embasados pela mitologia cristã, sustentam.

Com o tempo, passei a me solidarizar, a defender, a apoiar, e até mesmo a militar por
pautas identitárias de outros grupos minoritários dos quais não pertenço e não tenho
propriedade pessoal para atuar  —  justamente por não estar incluso como membro
participante. Em confronto aos ideais conservadores e aos conceitos retrógrados que o
cristianismo e outras religiões sustentam, o ateísmo e a concepção de mundo secularista
me fizeram compreender a luta feminista e dos movimentos do povo negro, dos indígenas e
da comunidade LGBTQIA+.

Aliás, esta é uma prática comum entre os ateus, tendo em vista que também somos um
grupo identitário e minoritário e que também somos vítimas do fundamentalismo cristão. E é
uma tremenda hipocrisia alguém que se identifica com algum desses grupos e/ou milita por

1 Ver texto do mês anterior, Como me descobri ateu.


suas lutas se afirmar como cristão, estando de acordo com os ideais segregatórios do
inimigo. Pura contradição.

Estar livre das amarras intolerantes que o conservadorismo sustenta, embasadas pelos
conceitos cristãos e fundamentalistas, me permitiu entender e me fez defender a
diversidade social e o pluralismo étnico, de gênero e sexual de outros grupos minoritários,
irmãos da luta dos ateus contra o preconceito e a discriminação dentro da sociedade. Da
mesma forma, também pude, por meio da consciência empírica e do raciocínio lógico, fazer
o que nenhum religioso/cristão tem coragem ou capacidade de fazer com os ritos e dogmas
de sua fé: questioná-los, colocá-los em dúvida, confrontá-los e atestar suas controvérsias,
sua irracionalidade e sua ineficácia moral. Tornei-me um indivíduo progressista, assim como
o ateísmo é e como todo ateu deve ser.

Assim sendo, a capacidade do ateísmo, para além da pura e simples descrença, é a de


transformar o indivíduo corrompido pelo sistema religioso/conservador em um ser pensante,
racional e com a mente aberta para o mundo e suas descobertas. E dentre suas formas e
concepções da realidade, o ateísmo proporciona, para aqueles que estão dispostos a se
libertar da matrix da fé religiosa: o privilégio do uso da razão e da ciência; o questionamento
da realidade social e natural; uma concepção cética e uma visão de mundo realista e
secularista; e uma percepção progressista da sociedade, dos indivíduos e de seus grupos,
compreendendo e tendo empatia pela diversidade social e pelas lutas/pautas identitárias
das minorias socialmente oprimidas.

É essa percepção cética, cientificista, progressista, racional e secular da realidade e do


universo que faz do ateísmo mais do que simplesmente crer na ausência ou duvidar da
existência. Faz dele uma filosofia de vida passível de se orgulhar.

Obs.: Eu sou um ateu forte/positivo. Já fui, no início de minha descoberta


ateísta, assim como a maioria dos ateus são atualmente ou foram em seus
momentos iniciais de ateísmo, um ateu fraco/negativo. Hoje posso afirmar crer
na inexistência de deus e que este de fato não existe. A falta de evidências da
existência é automaticamente a evidência da inexistência (e não tente inverter o
ônus da prova, este sempre foi e sempre será teísta).

(15/02/2021)

SAINDO DO ARMÁRIO

No ano de 2007, o biólogo britânico Richard Dawkins  —  ativista ateu e autor do livro The
God Delusion (Deus, um Delírio) — promoveu, a partir de sua fundação, a Richard Dawkins
Foundation for Reason and Science (Fundação Richard Dawkins para a Razão e a Ciência),
e com a coordenação da British Humanist Association (Associação Humanista Britânica), a
chamada ‘Out Campaign’. Essa campanha foi realizada na Inglaterra em 2008 com o
objetivo de fazer com que mais ateus “saíssem do armário”, ou seja, assumissem seu
ateísmo publicamente, enfrentando os preconceitos e a discriminação social que a
comunidade sofre constantemente. A expressão “sair do armário” foi fortemente utilizada no
projeto, sendo inspirada no ditado popularmente usado pela comunidade LGBTQIA+, outra
minoria socialmente oprimida.

Dawkins idealizou a campanha com o propósito de incentivar os ateus a expressarem sua


descrença e seus ideais humanistas e secularistas. O biólogo também os encorajou a
defender a separação total entre igreja e Estado e a dar visibilidade à causa ateísta através
de ações e propagandas representativas. Com este incentivo, o projeto ateísta ganhou
destaque no Reino Unido com o surgimento da ‘Atheist Bus Campaign’, campanha que
promoveu propagandas de cunho ateísta e secularista nos ônibus, em protesto e resposta
às mensagens religiosas presentes no transporte público. Essa iniciativa britânica inspirou
ações semelhantes por parte de associações e ligas ateístas em diversos países. No Brasil,
a ATEA (Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos) expôs publicidades ateístas nos
ônibus de três capitais do país no ano de 2011: Porto Alegre-RS, Salvador-BA e São Paulo-
SP.

Essas campanhas e ações realizadas por grupos ateístas entre o final da década de 2000 e
início da década de 2010 foram muito responsáveis por impulsionar o movimento ateísta, a
luta em prol da laicidade do Estado, e por fazer com que mais ateus se assumissem perante
a sociedade, resistindo à intolerância promovida pelos religiosos contra os descrentes.
Foram iniciativas importantes que estimularam a visibilidade dos ateus em meio às
sociedades ocidentais dominadas pelo cristianismo no mundo inteiro.

Visibilidade e representatividade são fatores essenciais para minorias sociais e/ou


numéricas, e a comunidade LGBTQIA+, por exemplo, compreende muito bem a dificuldade
que seus membros têm para se assumirem publicamente. Em sociedades
heteronormativas, onde somente a heterossexualidade é vista e socialmente aceita como
uma orientação sexual “normal” e “natural” (por conta de concepções conservadoras e
retrógradas, sustentadas pelas religiões e pelo fundamentalismo religioso), um indivíduo
assumir uma sexualidade ou identidade de gênero diferente da “habitual” é um desafio
extremamente complicado. E justamente pelo fato de serem uma minoria social e numérica,
indivíduos deste grupo acabam sofrendo discriminação e preconceito por parte de seus
familiares e/ou da sociedade em geral, o que os fazem temer essa revelação pública, assim
como a própria aceitação pessoal, reprimindo e escondendo suas características
particulares do convívio social.

A mesma experiência ocorre com nós, os ateus. Por também sermos uma minoria social e
numérica (muito mais até do que a comunidade LGBTQIA+), que vive em meio a
sociedades dominadas pelas religiões, reprimir ou esconder nossas convicções e
concepções céticas e descrentes são formas temerárias de precaver a discriminação
fundamentalista. O medo de não ser aceito, de ser hostilizado e de ser excluído do convívio
social e/ou familiar faz com que muitos ateus encubram seus pensamentos ateístas e
seculares por trás de uma falsa aceitação/concordância dos dogmas e preceitos teístas e
religiosos.

Esse preconceito contra ateus (a chamada ‘ateofobia’) se institucionaliza e se prolifera em


diversos setores da sociedade, principalmente no âmbito religioso (em igrejas e templos)
que dissemina cada vez mais esses ataques e as constantes tentativas de silenciamento.
Isolar os ateus e conspirar contra eles e contra a negação à fé religiosa são as formas das
religiões sustentarem o domínio imperial de seus dogmas e conceitos, sem
questionamentos ou oposição, enquanto ferem a laicidade e mantém a sociedade e as
instituições enclausuradas sob seu obscurantismo fundamentalista e reacionário.

Um exemplo da institucionalização da ateofobia é a opinião pública que a sociedade


religiosa tem dos ateus e a imagem distorcida que constroem sobre nós. Para apontar a
discriminação contra ateus, citando apenas o Brasil, um dos países mais religiosos do
planeta, algumas pesquisas demonstram claramente essa visão preconceituosa e
intolerante que a sociedade brasileira cristã tem em relação aos descrentes.

Encomendada pela CNT/Sensus em 2007, uma pesquisa de intenção de voto para a


presidência da República colocou alguns grupos minoritários em um possível cenário
eleitoral. Ao serem perguntados sobre a possibilidade de votarem nos seguintes candidatos,
84% dos entrevistados disseram que votariam em um candidato negro; 57% disseram que
votariam em uma candidata mulher; 32% assumiram votar em um homossexual; mas
apenas 13% responderam que votariam em um candidato ateu2. Nesse cenário, 87% dos
brasileiros jamais votariam em um ateu para a presidência da República.

Em outra pesquisa, realizada em 2008 pela Fundação Perseu Abramo, agora avaliando a
rejeição e a aprovação da comunidade ateia pela sociedade brasileira, 42% dos
entrevistados admitiram sentir aversão aos descrentes, sendo que, desses, 17% declararam
sentir ódio ou repulsa e 25% assumiram ter antipatia3.

Já em pesquisa realizada em 2012 pelo Instituto Datafolha, 86% dos entrevistados


afirmaram que acreditar em deus torna as pessoas melhores, enquanto apenas 13%
(porcentagem semelhante à da pesquisa de 2007) disseram que a crença em uma
divindade não necessariamente torna uma pessoa melhor4.

Esses e outros tantos índices de rejeição aos ateus e ao ateísmo como ideologia são
publicamente expressados em diversos discursos e em diversas ações que promovem
intolerância contra os descrentes. Esses números apontados nas pesquisas citadas foram
explicitados, por exemplo, em julho de 2010, quando o apresentador do programa ‘Brasil
Urgente’, da Rede Bandeirantes, José Luiz Datena, discriminou os ateus ao vivo em cadeia
nacional, responsabilizando a descrença em deus pela “degeneração da sociedade” e
associando o ateísmo à criminalidade (posteriormente Datena e a Band foram processados

2AZEVEDO, Reinaldo. VEJA 5 — Só 13% dos brasileiros votariam num ateu para presidente.
Veja, 2007. Disponível em: <https://veja.abril.com.br/blog/reinaldo/veja-5-so-13-dos-brasileiros-
votariam-num-ateu-para-presidente/>. Acesso em: 18 de mar. de 2021.

3BERNARDO, André. Preconceito, agressividade e desconfiança: como é ser ateu no Brasil.


BBC Brasil, 2016. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-
37640191#:~:text=%22Religi%C3%A3o%20n%C3%A3o%20define%20car%C3%A1ter%22,repulsa%
20e%2025%25%2C%20antipatia.>. Acesso em: 18 de mar. de 2021.

4Brasileiros ligam criminalidade à maldade e acreditam que fé em Deus torna as pessoas


melhores. Datafolha/Folha de São Paulo, 2012. Disponível em:
<https://datafolha.folha.uol.com.br/opiniaopublica/2012/12/1211082-brasileiros-ligam-a-criminalidade-
a-maldade-e-acreditam-que-fe-em-deus-torna-as-pessoas-melhores.shtml>. Acesso em: 18 de mar.
de 2021.
pela ATEA e condenados pelas ofensas promovidas). Esses números também foram
tendenciosa e oportunamente utilizados pela campanha de Jair Bolsonaro à presidência da
República, em 2018, para acusar, de maneira leviana e mentirosa, os candidatos Haddad e
Manuela de serem ateus em uma propaganda eleitoral exibida às vésperas do segundo
turno, com o propósito de reduzir a popularidade e minimizar os votos de seus adversários.
Assim como, da mesma forma, esses números, que retratam o pensamento da maioria da
sociedade brasileira, ajudaram a eleger Bolsonaro, um sujeito que ataca constantemente a
laicidade do Estado, que, em 2017, disse que, no Brasil, “não existe essa historinha de
Estado laico, o Estado é cristão”, e que tinha como slogan de campanha a frase “Deus
acima de todos”, como presidente de um Estado secular.

Mas para a sorte e alívio dos ateus brasileiros, a ATEA, assim como algumas outras
associações ateístas existentes no país, está presente e atuante para monitorar e combater
casos de discriminação e intolerância contra os ateus, assim como para denunciar atos que
violem a laicidade das instituições e do setor público. O que a comunidade ateia sofre e tem
de suportar em uma sociedade predominantemente cristã em pleno século XXI e em um
Estado constitucionalmente laico é inadmissível e não pode ser tolerado.

Eu mesmo, apesar de ter sido bem aceito e compreendido por meus familiares (com
exceção de certas discordâncias por determinadas partes), já sofri muito preconceito social
após ter “saído do armário” e me assumido ateu. Todo ateu percebe aquele olhar de susto,
de negação ou de reprovação quando se revela como tal, e no meu caso nunca foi
diferente. Já fui isolado, oprimido e excluído do convívio social, em trabalhos, cursos e na
escola, só pelo fato de ser ateu. Tive relacionamentos íntimos e sociais interrompidos e/ou
impossibilitados de acontecer por causa da intolerância e do ódio cristão. Por vezes, já tive
de ocultar e reprimir meu ateísmo, meus pensamentos e minhas posições para evitar ser
discriminado ou rejeitado. Essa sociedade corrompida, dominada e doutrinada pelo
cristianismo costuma tratar os ateus como se fossem pessoas horríveis, criminosas, imorais
e não confiáveis. Isso eu não aprovo e não me conformo.

Mas não podemos abaixar a cabeça, nem aceitar calados as diversas formas de opressão.
Os ateus devem: se assumir publicamente; dar visibilidade ao ateísmo através da
propaganda; buscar representatividade e ocupar espaços dentro da sociedade religiosa;
resistir e enfrentar a discriminação e a intolerância dos religiosos; combater o domínio
religioso e descontruí-lo; defender a laicidade do Estado e o pensamento científico; e militar
os ideais ateístas, secularistas e humanistas. O bom e verdadeiro ateu é aquele que “sai do
armário”, que representa a causa ateísta e que assume o ateísmo como parte de sua vida.

(19/03/2021)

O BATISMO, A DOUTRINAÇÃO RELIGIOSA E O ABUSO INFANTIL

Imagine um bebê recém-nascido, em seus primeiros meses de vida e que há pouco tempo
surgiu do ventre de sua mãe. Ou então imagine uma criança em idade pré-escolar, entre
dois e cinco anos.

Agora, diga-me: quem você imaginou? Como imaginaste?


Muito provavelmente você tenha imaginado um ser puro e inocente, sem malícia, tendência
ou ideologia. Creio que devas ter idealizado e fantasiado em sua mente um filhote humano
com as características que contemplam a pureza infantil. Se o fez, correspondeu ao natural.

Um bebê recém-nascido ou uma criança até mais ou menos a fase da pré-adolescência


geralmente não possui maturidade o suficiente para se posicionar e se perceber a partir de
concepções ideológicas, políticas e religiosas. São raros os exemplos em que,
precocemente, o senso crítico se faz presente nessa fase, sendo, na maioria dos casos,
fruto de vivências que, compulsoriamente, estimularam uma certa aceleração do processo
social de maturidade ou de um processo prematuro de socialização. Mas, no aspecto geral,
e na totalidade do que pode ser analisado e verificado, a infância é a fase da vida humana
que preserva a inocência em sua essência.

A partir dessa percepção, podemos observar também que ninguém, absolutamente


ninguém, nasce possuindo alguma crença ou concepção religiosa. Um bebê não é
concebido do ventre materno sabendo o que é a fé, o que é rezar, o que é um dogma
religioso ou o que é um deus. Da mesma forma que ele não nasce sabendo ler, escrever ou
falar, sendo tudo isso fruto de aprendizados obtidos através da vivência em sociedade e das
experiências e ensinamentos que este adquire ao longo de sua vida. Sem a introdução de
conhecimentos, sejam eles benéficos ou não, a pureza e a inocência infantil não
terminariam. A criança não passaria a acreditar em coisas que não nasceu acreditando ou
sequer conhecendo. E é justamente o fato de nascermos sem crer em nada e sem conhecer
nada que nos torna puros e inocentes. A pureza e a inocência, sem deus, sem crença e
sem religião, faz com que, unanimemente, nasçamos todos ateus.

E todo inocente se mantém puro e descrente, até a doutrinação religiosa destruir sua pureza
e sua ingenuidade.

Desde o nascimento do ser humano, a religião predominante da localidade onde o indivíduo


nasce irá doutriná-lo até torná-lo um de seus membros; seu servo, seu escravo. Quem
nasce no oriente deverá sofrer a influência doutrinária de religiões orientais, como o
islamismo, o budismo e o hinduísmo. Já quem nasce no ocidente provavelmente sofrerá o
peso das doutrinas judaico-cristãs. E isso só demonstra que não existe religião verdadeira
ou melhor, nem que há destino religioso premeditado ao nascer. A religião será imposta aos
indivíduos conforme a localidade onde estes nascem, salvo aqueles que tenham a sorte de
serem gerados e/ou criados por progenitores que conseguiram, no decorrer de suas vidas,
se libertar do obscurantismo religioso e que, por conta disso, prezam por uma criação
infantil laica. Entretanto, a doutrinação religiosa promovida por parte da sociedade civil, e
muitas vezes por meio próprio Estado, mesmo em países oficialmente laicos, é
praticamente inevitável.

A religião destrói a infância, a pureza e a inocência. O método das sociedades religiosas é


introduzir os conceitos e dogmas de determinada fé na educação e na criação das crianças,
formando-as como componentes do rebanho e integrando-as à massa de manobra
alienada. É por isso que a população religiosa é quase sempre superior aos não-religiosos e
aos ateus, e que determinada religião predomina em determinados países ou regiões. A
doutrinação religiosa desde a infância até a fase adulta cumpre o papel fundamental para a
formação de uma sociedade dominada pela fé. É o método de alienação do povo.
E as formas de doutrinação são das mais variadas. Estão presentes em diversas áreas, em
diversas culturas, em diversas instituições e em diversos setores da sociedade, tanto nos
âmbitos públicos quanto nos privados.

O ensino religioso confessional nas escolas  —  uma afronta à laicidade do Estado  —  é um
clássico em toda e qualquer religião. É um método aplicado em diversas regiões e em
diversas sociedades nos mais diferentes países. Nele, somente uma religião é ensinada  — 
a religião predominante e cultural, hegemônica no referido lugar  —  e aproveita-se de um
espaço de formação intelectual e de absorção de conhecimentos científicos, onde somente
ciências empíricas deveriam ser ensinadas, para embutir teorias fantasiosas e místicas na
cabeça dos ingênuos que maravilham todos aqueles delírios metafísicos (como o
criacionismo, por exemplo), obrigando-os a recitar e praticar os ritos daquela fé (como a
leitura da Bíblia e a oração, por exemplo). Além disso, o ensino religioso doutrinário, antes
de ser instituído nas áreas de ensino, se origina no âmbito familiar, onde os próprios pais e
parentes despejam os mandamentos e as alegações de suas fábulas mitológicas na mente
das crianças, introduzindo o medo e a punição (ao demônio e ao inferno, por exemplo), a
culpa e o pecado, a devoção e a submissão (ao mito, através da oração) e a repreensão ao
livre pensamento (ao questionamento à fé religiosa e seus ritos) e às suas liberdades
individuais (como a masturbação e a identidade sexual e de gênero) na vida destas.

Além do ensino religioso nas instituições de ensino, a doutrinação religiosa se estende e se


multiplica de diferentes formas, principalmente no cristianismo e em especial no catolicismo.
A catequese, isto é, o ensino dos princípios da mitologia cristã, é uma das ilustres maneiras
dos cristãos doutrinarem os indivíduos a fim de obter novos adeptos para sua seita
desprezível. Fizeram com os índios nativos na América e com os escravizados trazidos da
África praticamente o mesmo que fazem com as inocentes crianças. A igreja e os
representantes católicos inserem na pura mente infantil os dogmas e os conceitos “morais”
de sua doutrina e os mandamentos e as fábulas da Gibíblia (porém escondendo os horrores
que esta prega e que a própria igreja praticou e pratica), com o objetivo de manipular a
criança e torná-la serva do cristianismo. Esse é o intuito da doutrinação: conquistar novos
adeptos (crentes) desde os primórdios da infância para seguirem os dogmas de
determinada crença e, posteriormente, propagar esses mesmos ideais, a partir da mesma
forma de doutrinação, aos futuros inocentes, perpetuando o ciclo vicioso que sustenta a
dominação global religiosa e possibilitando lucrar com sua comercialização da fé.

Aliás, essa também é a essência da catequese: doutrinar. Catequisar significa tornar


alguém cristão. Os índios, os negros escravizados, as crianças, os descrentes, todos os
puros e inocentes. Se não o fazem sorrateiramente, de forma educacional e institucional,
através do ensino religioso doméstico ou escolar, o fazem forçado, através da repressão, da
lei, da punição aos “hereges”, do Estado teocrático ou, no caso da inocência infantil, do
batismo. Nada pode ser mais podre e imoral do que batizar um inocente, e a filosofia
anticlerical e o pensamento secularista nos ensinam a combater esse adestramento cristão.

Como já havia dito, um bebê ou uma criança não possui maturidade suficiente para se
posicionar e se perceber a partir de concepções religiosas. No momento em que os pais ou
parentes submetem o inocente a um batizado forçado, isso configura como doutrinação
religiosa e abuso infantil. Uma criança não tem capacidade crítica para consentir com a
realização do batismo, justamente por não possuir maturidade suficiente para entender ou
se posicionar sobre o dogma. E mesmo que uma criança maior de, por exemplo, nove ou
dez anos, diga aceitar ser submetida ao desejo social cristão e individual dos pais de
realizar o rito de passagem, estará o fazendo, habitualmente, sob condição de
doutrinado/influenciado, sem possuir consciência plena de sua escolha.

Um batizado só pode ser legitimado quando o indivíduo, maduro e/ou emancipado, opta, por
livre e espontânea vontade  —  mesmo esta sendo fruto de doutrinação religiosa infantil — ,
por realizar e se submeter ao rito de passagem, sob própria consciência e
responsabilização de seus atos e decisões. Assim, esse indivíduo escolherá o local e a
corrente religiosa onde será sacramentado. Deste modo, trata-se de um direito, de uma
liberdade religiosa e individual garantida pela laicidade de um Estado democrático e plural.

Tudo parte do princípio de liberdade e da premissa do querer e da livre escolha. Quem optar
por não se batizar ou decidir não submeter o(a) filho(a) ao batizado, tudo bem, melhor
ainda. Pois, ignorando exemplos de teocracias repressivas e autoritárias, onde o batismo é
obrigatório e passível de punição a quem não o realize, em nações seculares, ninguém
jamais morreu ou sofreu quaisquer danos físicos ou mentais somente pelo fato de não ter
participado do ritual religioso. Absolutamente ninguém. O batismo não passa de uma forma
de doutrinação forçada, podendo ser caracterizado como abuso infantil. É um rito de
passagem institucionalizado socialmente em diversas sociedades para violar a inocência e a
pureza ateísta das crianças, adestrando-as à servidão religiosa.

E convenhamos: violação da infância, do corpo, da mente e das liberdades individuais,


coletivas e sexuais faz parte da essência das religiões. É através do ensino religioso; da
catequese; da imposição social do batismo infantil e do casamento religioso; da proibição de
comer carne, de ingerir bebidas alcóolicas e de realizar transfusão de sangue e doação de
órgãos (no caso das “Testemunhas de Jeová”); da institucionalização do medo, da punição
e da submissão; das orações forçadas e das leituras obrigatórias da Bíblia; dos contantes
ataques à laicidade do Estado; da opressão às mulheres, aos negros, aos indígenas, aos
imigrantes e aos LGBT’s; da circuncisão (no judaísmo) e da mutilação genital feminina (no
islamismo). O jornalista Christopher Hitchens aborda esses e outros temas no livro Deus
não é grande  —  como a religião envenena tudo.

A doutrinação religiosa não corrompe somente a infância, mas também a vida particular e
social dos indivíduos. O filósofo Jean-Jacques Rousseau disse que “o homem nasce bom, a
sociedade que o corrompe”. Eu proponho uma readaptação de sua célebre frase. O homem
nasce bom, a religião que o corrompe.

(08/04/2021)

IMAGINE UM MUNDO SEM RELIGIÃO

Imagine there’s no countries. It isn’t hard to do. Nothing to kill or die for. And no religion too.
A frase acima é um trecho da canção Imagine, do ateu, cantor e ex-Beatle John Winston
Lennon. Na tradução do original inglês para o português, “Imagine que não há países. Não
é difícil de fazer. Nada para matar ou morrer. E nenhuma religião também”. Essa é uma das
tantas reflexões propostas por Lennon ao idealizar um novo mundo em sua música:
imaginar um mundo sem religião. Eu particularmente consigo fazer isso muito bem, e
quando faço, deslumbro uma utopia na Terra. Tenho certeza de que o mundo seria muito
melhor se não existissem religiões.

O mundo seria um lugar melhor se não houvessem conflitos bélicos, guerras, armas de
fogo, catástrofes, disputas político-ideológicas, intolerância, preconceito e discriminação.
Claro que nem tudo isso é consequência direta das religiões e de seus dogmas, e que a
inexistência da fé não necessariamente tornaria o planeta 100% melhor ou perfeito. A
política, as ideologias e a própria natureza do planeta tem suas responsabilidades e
interferem muito na vida humana e na realidade social, muitas vezes mais do que as
crenças religiosas. Não há uma totalidade ou uma garantia absoluta e exata. Mas é possível
idealizar que, em uma suposição que leve em consideração os atos repulsivos cometidos
em nome da fé e dos inúmeros deuses inexistentes, o mundo seria mais ou menos uns 70
ou 80% melhor se as religiões jamais tivessem existido.

A religião é algo inútil que, a partir da fé nos misticismos míticos, o ser humano inventou
para suportar as injustiças, o medo e o sofrimento da vida na Terra. Mas ao mesmo tempo
em que a religião transmite a falsa e enganadora imagem de aliviar a dor e a tristeza, ela
assume o papel de alienar e controlar o povo e as sociedades. Na verdade, ninguém jamais
precisou da fé em algum deus ou de alguma religião para ser feliz ou ter sucesso na vida (e
muitos ateus, agnósticos e irreligiosos são prova disso), porém o poder alienante das
mitologias é justamente fazer com que todos acreditem que precisam delas, de seus
dogmas e de seus mitos para viverem e terem uma razão para isso. E a religião, quando
não se limita à sua inutilidade e insignificância para o mundo e a sociedade (como é o caso
das religiões afros, hindus, budistas e outras doutrinas espiritualistas e minoritárias),
assume o papel de ser a causa de malefícios à humanidade.

Nenhuma religião jamais contribuiu beneficamente para a humanidade, nem a fé nos mitos
trouxe algo de bom para o bem-estar e o progresso social. Tudo o que as crenças religiosas
transmitiram ao planeta foram retrocessos e infortúnios. E aqueles que dizem
falaciosamente que a igreja e o clero contribuíram para avanços tecnológicos, científicos e
filosóficos, como a criação de hospitais e universidades, se enganam e tentam enganar o
mundo com suas inverdades. Pessoas religiosas podem ter praticado o bem, feito coisas
boas e contribuído para o progresso da humanidade, como no caso da criação dos hospitais
e das universidades, mas foi a ciência e a filosofia as únicas responsáveis por todos esses
avanços, não as religiões, a fé ou os mitos. Apesar de haver a interferência de pessoas
religiosas, tudo o que foi criado e construído no mundo se deve ao trabalho humano e aos
próprios seres humanos, não às instituições religiosas. E no caso dos hospitais e das
universidades, estes só se desenvolveram após um longo processo de secularização e de
investimentos científicos.

As religiões, em especial as hegemônicas e com maiores adeptos, jamais fizeram algo de


bom para a humanidade. Tudo o que fizeram foi causar, promover e apoiar ódio,
intolerância, medo, tragédias, punições, violências e mortes por onde passaram e onde
atingiram influência e dominação. A religião foi a pior invenção da história da humanidade.

Acha que não? Então vamos imaginar como seria um mundo sem religião.

Imagine um mundo sem a Inquisição Católica, sem as torturas e mortes cometidas pela
Igreja Católica Romana para combater e punir o que os inquisidores católicos tratavam
como sendo “heresia”, “blasfêmia”, “bruxaria” e “feitiçaria” e sem as fogueiras santas que
queimaram livros e livres pensadores vivos durante a Idade Média, matando em torno de
100 mil pessoas na época5.

Imagine um mundo sem o genocídio promovido pela Igreja Católica, sem a usurpação de
riquezas de outros povos pelo Vaticano, sem a catequisação dos povos indígenas nativos
da América e dos negros escravizados da África e sem o etnocídio praticado e estimulado
pelos católicos e protestantes europeus contra os povos de suas colônias americanas e
africanas.

Imagine um mundo sem a Igreja Católica para apoiar e contribuir com a ascensão e a
instauração do Fascismo, com Mussolini na Itália, e do Nazismo, com Hitler na Alemanha,
como fez o Papa Pio XII6. Imagine um mundo sem esta mesma igreja para financiar e apoiar
golpes e ditaduras, como ocorreu na Espanha franquista, em Portugal com Salazar e nos
regimes militares na América Latina (inclusive o Brasil de 1964 a 1985).

Imagine um mundo sem o confronto entre Israel e Palestina, entre árabes mulçumanos e
judeus por um suposto “território sagrado e prometido”, e sem a invasão sionista e o
massacre judaico contra os povos árabes palestinos.

Imagine um mundo sem os terroristas mulçumanos do Estado Islâmico, sem a Al-Qaeda,


sem os atentados de 7 de setembro de 2001 e sem o islamismo extremista que tortura e
mata pessoas (de forma semelhante ao que o cristianismo fez no passado).

Imagine um mundo sem os casos de pedofilia e estupro envolvendo padres e bispos nas
igrejas, sem a exploração e a comercialização da fé para enriquecimento ilícito por parte de
pastores evangélicos, sem casamentos e batismos forçados e sem a pregação de ódio e
intolerância por líderes religiosos.

Imagine um mundo sem testemunhas de Jeová recriminando e tentando impedir e proibir a


realização de transfusões sanguíneas e doações de órgãos, sem judeus circuncidando
crianças inocentes recém-nascidas e sem mulçumanos mutilando genitálias femininas e
restringindo a liberdade individual das mulheres árabes por trás de uma burca.
5 GARCIA, Maria Fernanda. Parteiras, indígenas e até crianças foram mortos pela Inquisição.
Observatório do Terceiro Setor, 2020. Disponível em:
<https://observatorio3setor.org.br/noticias/parteiras-indigenas-e-ate-criancas-foram-mortos-pela-
inquisicao/#:~:text=amea%C3%A7a%20%C3%A0s%20doutrinas.-,Em%20seu%20auge%2C%20nos
%20s%C3%A9culos%2016%20e%2017%2C%20estima%2D,a%20poss%C3%ADveis%20adeptos%
20%C3%A0%20bruxaria.>. Acesso em: 05 de maio de 2021.

6Bispos alemães admitem que a Igreja Católica foi “cúmplice” de crimes nazistas. History
Brasil. Disponível em: <https://history.uol.com.br/noticias/bispos-alemaes-admitem-que-igreja-
catolica-foi-cumplice-de-crimes-nazistas>. Acesso em: 06 de maio de 2021.
Imagine um mundo sem teocracias fundamentalistas, sem bancadas reacionárias cristãs no
Congresso Nacional, sem doutrinação religiosa, sem discursos e versículos bíblicos
pregando racismo, LGBTfobia, xenofobia e misoginia, sem conceitos e princípios morais
conservadores, tradicionalistas e patriarcais e sem ataques e violações à laicidade do
Estado.

Imagine um mundo sem medo de punições e leis divinas, pecados, “carma”, inferno ou
demônio. Um mundo laico, sem imposições e concepções religiosas, sem fé, sem
misticismo e espiritualismo, sem devoção a deus.

Imagine um mundo justo e igualitário, secular, onde todos tenham liberdade de expressão,
direitos humanos, civis e sociais e liberdades individuais, coletivas e sexuais garantidas e
respeitadas. Um mundo com separação total entre igreja e Estado, com socialização de
bens e riquezas e com muito empirismo, racionalismo, humanismo e materialismo.

Imagine um mundo sem religião.

#ImagineNoReligion

(07/05/2021)

A RELIGIÃO E A POLÍTICA DO ATRASO

A religião é uma das causas do atraso social no mundo inteiro. No capítulo anterior pude
apresentar explicitamente os malefícios que as crenças religiosas geraram e impuseram à
humanidade, enfatizando que o mundo seria muito melhor se elas jamais existissem. E esse
fator leva em consideração tanto questões científicas, tecnológicas, naturais e materiais,
quanto abordagens do âmbito social, econômico, sexual e reprodutivo.

Um exemplo claro dos impactos maléficos das religiões à realidade natural e social pode ser
demonstrado ao analisarmos países verdadeiramente laicos e com menor influência
religiosa. Pesquisas apontam que os países com menor número de religiosos são os mais
desenvolvidos, os mais pacíficos, os mais ricos e os com melhor qualidade de vida no
planeta. Em contrapartida, as nações menos desenvolvidas, mais pobres, com maiores
índices de violência e criminalidade e com menor qualidade de vida são predominantemente
religiosas.

Se analisarmos os cinco países com a maioria da população declarada como sem religião
no planeta7 e compararmos com seus respectivos índices de desenvolvimento humano

7 FERREIRA, Leonardo. Conheça os 5 países menos religiosos do mundo. Terra, 2021.


Disponível em: <https://www.terra.com.br/vida-e-estilo/horoscopo/conheca-os-5-paises-menos-
religiosos-do-mundo,b79d3358f05b6d9e5543da83c6345bd9jgu2cm1u.html>. Acesso em: 08 de junho
de 2021.
(IDH)  —  de acordo com dados de 2019 da Organização das Nações Unidas (ONU )8  — ,
teremos uma breve noção dessa realidade. Dentre estes países, a China (com apenas 7%
da população declaradamente religiosa), segunda maior potência econômica do mundo, o
Japão (com apenas 13% da população declaradamente religiosa), a Estônia (com apenas
16% da população declaradamente religiosa), a Suécia (com apenas 19% da população
declaradamente religiosa) e a Noruega (com apenas 21% da população declaradamente
religiosa) assumem o pódio dos mais irreligiosos do planeta. Em comparação com o IDH,
somente a China não aparece entre as nações com desenvolvimento humano muito alto,
estando na 85ª posição, atrás do Brasil, entre as que possuem desenvolvimento humano
apenas alto. Japão e Estônia ocupam o ranking entre as 30 nações com maior
desenvolvimento humano do mundo, estando nas 19ª e 29ª posições, respectivamente. E o
destaque fica com as duas nações restantes, Suécia e Noruega, sendo a primeira ocupando
a 7ª posição e a segunda ocupando a 1ª posição (simplesmente o país líder no ranking)
entre os países com maior IDH no planeta.

E não para por aí. De acordo com uma pesquisa feita em 2015 pela empresa WIN/Gallup
com 64 mil pessoas em 65 países9, outros quatro países entre os menos religiosos do
planeta estão entre as 13 primeiras posições no IDH mundial. São eles: Hong Kong (em 4ª),
Alemanha (em 6ª), Holanda (em 8ª) e Reino Unido (em 13ª). Em contrapartida, os países
mais religiosos do mundo, Tailândia, Armênia, Bangladesh, Geórgia, Marrocos, Fiji, África
do Sul, Argélia, Quênia e Macedônia, possuem índices de desenvolvimento humano muito
mais baixos, ocupando as posições 79ª, 81ª, 133ª, 61ª, 121ª, 93ª, 114ª, 91ª, 143ª e 82ª,
respectivamente.

Esses dados não são coincidências, são evidências que indicam um dado argumentativo. E
outros estudos e pesquisas podem atestar cada vez mais esta posição.

Um estudo realizado em 2009 pela ONG Vision of Humanity10, de acordo com o ‘Ranking da
Paz’ do respectivo ano, demonstrou que países com menor influência religiosa e com maior
número de ateus tendem a ser mais pacíficos, justos e possuírem melhor qualidade de vida.
Outra pesquisa, agora de 2010, feita pela empresa Gallup em 114 nações11, atestou que
quanto mais religiosos são os habitantes de um país, mais pobre ele tende a ser. Já um

8FREIRE, Diego. Veja o ranking completo dos 189 países por IDH. CNN, 2020. Disponível em:
<https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/2020/12/15/veja-o-ranking-completo-de-todos-os-paises-
por-idh>. Acesso em: 08 de junho de 2021.

9 Os países mais e menos religiosos do planeta. BBC, 2015. Disponível em:


<https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/04/150414_religiao_gallup_cc>. Acesso em: 09 de
junho de 2021.

10Ranking mostra que países ateus são os mais pacíficos. Vírgula, 2009. Disponível em:
<https://www.virgula.com.br/home/legado/ranking-mostra-que-paises-ateus-sao-os-mais-pacificos/>.
Acesso em: 10 de junho de 2021.

11SCHWARTSMAN, Hélio. Quanto mais religioso, mais pobre tende a ser um país, diz
pesquisa. Folha de S. Paulo, 2010. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/poder/805103-
quanto-mais-religioso-mais-pobre-tende-a-ser-um-pais-diz-pesquisa.shtml>. Acesso em: 10 de junho
de 2021.
levantamento feito em 2012 pela HypeScience12 (veja gráfico abaixo) mostrou que quanto
menos desenvolvido é um país, mais se acredita em deus. Por fim, segundo a pesquisa
Americans are far more religious than adults in other wealthy nations, realizada em 2018
pelo Instituto PEW13, os países com as maiores economias do mundo possuem menos
práticas religiosas (com exceção apenas dos EUA).

Gráfico da pesquisa feita pela HypeScience em 2012.

Não é por acaso que teocracias totalitárias e países com maioria absoluta de religiosos
possuem altos índices de violência, criminalidade e desigualdade social, altas taxas de
miséria e baixo desenvolvimento econômico e social. Também não é por acaso que nações
com menos religiosos e maior número de ateus e agnósticos possuem melhor qualidade de
vida e são considerados os melhores lugares para se viver no mundo, tendo até fechado e
reutilizado presídios por falta de detentos (exemplos da Suécia e da Holanda14). Não que a
religião seja a causa única e exclusiva ou que esteja diretamente relacionada ao regresso
de uma comunidade, mas a sua ausência ou escassez é um dos principais fatores que
contribuem para o progresso de uma sociedade justa e igualitária.

E tudo isso parte de uma via de mão dupla. A falta de domínio religioso, o respeito às
liberdades laicas, Estados verdadeiramente seculares e a separação da igreja das
instituições públicas e dos governos são características de sociedades que se permitem
investir em políticas públicas de excelência para reduzir desigualdades e priorizar áreas da
ciência, da tecnologia, da educação e da saúde sem a influência de dogmas e conceitos
impostos pela fé. Ao mesmo tempo, o forte investimento científico, tecnológico, educacional
e cultural e as políticas de desenvolvimento estabelecidas são os motores que transformam
12RIBEIRO, Marcelo. Quanto menos desenvolvido é o país mais se acredita em Deus.
HypeScience, 2012. Disponível em: <https://hypescience.com/paises-pobres-acreditam-mais-deus/>.
Acesso em: 10 de junho de 2021.

13Os países mais religiosos são os mais pobres e os menos religiosos os mais ricos. Instituto
Humanitas Unisinos, 2018. Disponível em: <http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/584060-os-paises-
mais-religiosos-sao-os-mais-pobres-e-os-menos-religiosos-os-mais-ricos>. Acesso em: 10 de junho
de 2021.

14 PAIVA, Marcelo Rubens. Holanda e Suécia reutilizam presídios por falta de presos. Estadão,
2016. Disponível em: <https://cultura.estadao.com.br/blogs/marcelo-rubens-paiva/holanda-e-suecia-
fecham-presidios-por-falta-de-presos/>. Acesso em: 11 de junho de 2021.
essas sociedades e fomentam seu progresso, libertando os cidadãos das doutrinas
religiosas e tornando-os livres pensadores racionais e emancipados do obscurantismo
metafísico e sobrenatural.

Ora, pare e reflita: precisamos evoluir, certo? Mas como iremos evoluir com políticas
atrasadas, adotadas apenas em países atrasados? Fica um tanto difícil assim. Políticas
públicas que preveem a descriminalização do aborto e o o tratam como tema de saúde
pública, que incentivam debates e educação de gênero e sexualidade nas escolas, que
adotam medidas de prevenção à gravidez e à infecções sexualmente transmissíveis e que
realizam pesquisas com células-tronco embrionárias só são admitidas em países laicos que
não permitem a influência moral dos pregadores da fé e de seus interesses nas instituições.
E são estes Estados seculares que se desenvolvem e evoluem, enquanto o resto amarga
no submundo do atraso religioso.

É lógico que nada isenta o sistema capitalista, as interferências externas imperialistas e os


processos históricos/coloniais de suas responsabilidades e influências para o
subdesenvolvimento, a pobreza e o atraso de países como o nosso; mas a religião não está
à parte disso. Se tivéssemos um Estado laico de fato, com separação total entre igreja e
Estado e respeito às liberdades laicas e democráticas, com certeza abriríamos espaço para
o florescimento de políticas públicas de qualidade, de garantias de direitos civis, humanos e
sociais e de liberdades individuais, coletivas, sexuais e reprodutivas e de investimentos em
ciência, arte, cultura, tecnologia, saúde e educação, o que desenvolveria nossa sociedade e
nos faria progredir e avançar cada vez mais. Basta observar e perceber que em países
desenvolvidos social e economicamente as leis e as políticas governamentais são
amplamente progressistas, enquanto em países atrasados a legislação e as políticas
estatais são muito mais conservadoras, fundamentalistas e, consequentemente,
reacionárias.

Uma das razões primordiais para o desenvolvimento científico e tecnológico da União


Soviética, tornando-a uma potência global, foi a adoção de um pleno sistema de ateísmo de
Estado e a abolição das religiões no país  —  medida que foi uma das mais promissoras da
Era ditatorial stalinista e de toda a URSS. Não que o essencial seja realmente a defesa de
um Estado ateu em detrimento de uma real laicidade. Não é bem assim. A luta por um
Estado secular é básica e fundamental por ser o teto a ser alcançado conforme nossa atual
realidade, estando o ateísmo estatal fora dos planos concretos que não sejam parte da
utopia ideal (não conseguimos obter nem mesmo um Estado laico de fato, quem dirá um
ateu!). Porém se assegura que a manutenção das liberdades e das pluralidades religiosas,
por mínimas e mais restritivas que sejam, constitui um risco para o avanço de uma
sociedade e da democracia. E para se tolerar a existência das mitologias irracionais, ao
mesmo tempo em que se busca progredir e desenvolver, é necessário dosar os limites
institucionais que elas atingem e que seus representantes ocupam e influenciam. Das duas
uma: é privar e restringir o alcance da religião ao seu âmbito particular, instigando o avanço,
ou permitir sua livre adoção e expansão, impulsionando o atraso.

Os religiosos costumam dizer que todo ateu é um “à toa” (quase todo ateu já deve ter ouvido
isso quando se assumiu como tal), mas não é à toa que onde há mais ateus há mais
progresso, mais desenvolvimento e mais liberdade. À toa de verdade são os crentes,
aqueles que atacam frequentemente a laicidade do Estado com suas aberrações
mitológicas. Eles, a religião e a política do atraso.

(12/06/2021)

A MORAL ATEÍSTA

Os religiosos frequentemente apelam para o tema da moralidade ao defenderem suas


doutrinas mitológicas e condenarem o ateísmo. Segundo eles, “um ateu não pode ser moral,
pois não há discernimento moral sem haver crença em deus”, assim como “um indivíduo
que não teme os deuses nada tem a temer ou a perder, portanto tudo é permitido”. Mas
essas afirmações têm algum sentido ou fundamento lógico?

No capítulo anterior mostrei que os países menos religiosos são mais desenvolvidos, mais
ricos e mais pacíficos, apresentando um comparativo de pesquisas e estudos e entre o IDH
de países mais e menos religiosos no planeta. Também destaquei que os países com maior
influência e domínio da religião são mais violentos e atrasados, enquanto que nações com
maior número de ateus, como a Suécia e a Holanda (ambas com altos índices de
desenvolvimento humano), fecharam e reutilizaram presídios por conta da baixa
criminalidade e pela falta de detentos.

Se analisarmos os dados, observarmos a realidade social e compararmos os diferentes


aspectos, veremos que a moralidade não está diretamente relacionada à religião ou a falta
dela. Primeiramente, moralidade é algo muito subjetivo, o que difere da ética, que costuma
manter um consenso universal entre as mais diferentes sociedades e sobre atitudes e
normas gerais estabelecidas. O que é moral para um determinado grupo pode não ser
considerado moral para uma comunidade oposta, e vice-versa. Um grupo fundamentalista
religioso, por exemplo, considera o tema do aborto como um tabu e trata como algo imoral,
enquanto um movimento feminista o absorve como causa e o trata como uma questão
moral, de acordo com seus interesses.

Agora vamos analisar o mundo de forma geral, em contexto global. O planeta é composto
por um número predominante de teístas e religiosos  —  independente de qual seja a religião  
—  em detrimento de uma pequena parcela de ateus, que são uma minoria numérica e
social. Neste mesmo planeta, a criminalidade e a violência são registradas em grande
escala em diversas regiões, sendo tratadas como problemas sociais e “imorais”, digamos
assim (aí vale considerar subjetivamente o que cada grupo e nação considera como ato
criminoso). Então se os ateus são “imorais” e uma minoria no mundo todo, como que há
altos índices de criminalidade e violência em diversos países, principalmente naqueles com
percentual de religiosos acima de 85%? A conta não bate com a narrativa.

Se observarmos o Brasil em especial, um dos países com as maiores taxas de homicídios e


criminalidade do mundo (de acordo com dados da ONU15) e com maior número de

15MATTOS, João. Índice de homicídios no Brasil é cinco vezes a média global, aponta OMS.
Jornal do Comércio, 2018. Disponível em:
<https://www.jornaldocomercio.com/_conteudo/2018/05/geral/627930-indice-de-homicidios-no-brasil-
e-cinco-vezes-a-media-global-aponta-oms.html>. Acesso em: 12 de julho de 2021.
religiosos  —  predominantemente cristãos: católicos e evangélicos (de acordo com pesquisa
Datafolha de 201916)  — , veremos que a falácia da “imoralidade ateísta” é reversa. Os ateus
representam apenas 1% entre 2% da população brasileira, e os percentuais de
criminalidade no país são muito superiores a isto. Nem se todos os ateus do Brasil e do
mundo cometessem crimes por supostamente “não terem referência de moralidade por não
possuírem fé” e porque “sem deus tudo seria permitido”, não atingiríamos as altíssimas
taxas de homicídios e violência, como estupro e roubos, que atualmente registramos no
planeta inteiro.

Ora, repare bem os fatos. Você jamais viu ou irá ver um meliante, após ter cometido os
crimes mais perversos e inúmeras barbaridades contra a sociedade, assim que detido, ir à
frente de um delegado ou juiz e declarar, em alto e bom tom: “eu não acredito em deus!”.
Todos acreditam, com convicção. Podem ser religiosos daqueles bem crentes, de orarem e
irem à igreja, ou não. Mas a maioria massiva dos criminosos são teístas, doutrinados a
serem crentes em algum deus (e no caso do Brasil, cristãos, que creem no mito judaico-
cristão).

Sabe o que você irá relatar, observar e/ou presenciar? Pastores evangélicos envolvidos em
esquemas de corrupção, como lavagem de dinheiro. Padres acusados de praticar pedofilia
dentro da igreja. Líderes e ditadores sanguinários e autoritários que promovem genocídios
em nome de deus e/ou com a “bênção” deste (como é o caso de Hitler, que era cristão).
Religiosos  —  daquelas famílias “de bem” hipócritas que vão à igreja todos os domingos  — 
denunciados por agredir e estuprar a esposa dentro de seus lares (por tratarem as mulheres
como sua propriedade; “submissas”, como pregam essas mitologias). Criminosos
assassinos com tatuagens de crucifixos, versículos bíblicos ou com a imagem de Jesus
estampadas pelo corpo na cadeia. Quase nunca um ateu, ou muito menos um militante
ateísta convicto de sua liberdade racional.

Isso tudo ocorre porque as religiões são hipócritas e contraditórias por natureza, o que
consequentemente torna os religiosos seres hipócritas e contraditórios. Dizem que a religião
prega o “amor” e a “paz” mas os próprios religiosos não convivem em paz uns com os
outros e os extremistas religiosos não são extremamente pacíficos ou amorosos  —  visto as
guerras santas e os conflitos em territórios e fronteiras entre países teocráticos. O que de
fato as mitologias irracionais e imundas pregam é intolerância, preconceito, segregação,
repressão, violência, torturas, extermínio e discriminação. E são essas práticas que são
imorais, ao menos para nós ateus e livres pensadores.

Boa parte das guerras e dos conflitos bélicos tiveram ou têm motivações religiosas, de
ideais religiosos  —  como é o caso do conflito entre Palestina e Israel. A grande maioria dos
crimes cometidos e da violência praticada são ocasionados por teístas ou por pessoas
religiosas. A discriminação e a intolerância contra grupos minoritários é predominantemente
instigada por grupos fundamentalistas religiosos. Mas os ateus que supostamente são os
“imorais” somente pelo fato de não terem um amigo imaginário e invisível benevolente…

1650% dos brasileiros são católicos, 31%, evangélicos e 10% não têm religião, diz Datafolha.
G1, 2020. Disponível em: <https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/01/13/50percent-dos-brasileiros-
sao-catolicos-31percent-evangelicos-e-10percent-nao-tem-religiao-diz-datafolha.ghtml>. Acesso em:
12 de julho de 2021.
Uma coisa é certa e muito clara: religião ou a ausência dela não define o caráter de
ninguém. Vários ateus são pessoas muito boas, solidárias e com uma índole impecável,
superior a qualquer idólatra religioso. Em contrapartida, muitos religiosos são pessoas
inescrupulosas, ordinárias e de péssima índole. Portanto que seja extinta a falácia canalha
de que ateus são imorais e pessoas inconfiáveis, perigosas e sem caráter.

Os cristãos particularmente se apropriam da moralidade como se fosse uma qualidade e


uma característica própria apenas deste grupo. Eles tratam os mandamentos de “não
matarás” e “não roubarás” como se representassem somente a sua comunidade e a
“moralidade cristã” unicamente. Mas e quanto aos milhões de ateus e outros religiosos que
não matam ou roubam no mundo? E quanto aos milhões de cristãos que cometem ou
cometeram estes crimes? Provavelmente vão imputar que os justos e morais seguem a
cartilha hipócrita cristã, enquanto irão tentar desvincular o cristianismo do seio dos
criminosos imorais. É o método do mecanismo estrutural teísta ignorar e deturpar o fato de
que a moral e a justiça antecedem a religião e permanecem mesmo após a sua superação.

O filósofo materialista e ateísta Barão d’Holbach, em sua obra O Sistema da Natureza


(1770), já fazia essa crítica à moral religiosa. Segundo ele, a religião constrói uma base
errada da moral e que é perigoso fazer dela os alicerces da moral; pois se esses alicerces
se desmoronarem, a moral corre sério risco de desmoronar com eles.

E a moral ateísta é pura e verdadeira. Os ateus não praticam o bem ou são solidários por
esperar uma “recompensa divina” ou por temer o castigo de um “deus todo-poderoso” e
vingativo. Tudo o que fazemos é puramente por nossa própria consciência, nosso caráter e
nossas ideias, para o bem-estar da sociedade e da humanidade, e não por uma
recompensa num “paraíso” ou para evitar uma punição num “inferno”. E é justamente por
isso que a moralidade religiosa é hipócrita, genuinamente hipócrita. Alguém que é realmente
bondoso não será justo e solidário somente porque está sendo supostamente “vigiado” por
um ser onipresente e onisciente ou porque busca ser recompensado numa suposta “vida
eterna” após a morte. Ter e demonstrar caráter por medo ou interesse não é nada orgânico
nem verídico, mas falso e submisso  —  doutrinado. E os ateus não são assim. Somos
educados a seguir e a obedecer a lei e a ordem, que são as únicas instâncias que nos
fiscalizam, em consonância com nossos princípios materialistas e seculares. Por isso a
nossa moralidade (a mais legítima e verdadeira) é pura, resiliente e incompatível com a
moral e a ética religiosa que tanto rejeitamos.

Um estudo britânico realizado em 2018 pela Frontiers in Psychology e divulgado pelo jornal
The Independent17 atestou que os ateus são pessoas mais inteligentes do que os religiosos.
De fato as religiões são irracionais e não possuem o mínimo de lógica ou embasamento
científico, porém não concordo tanto com a posição apontada pelo estudo. Não vejo que o
fato de ser ateu ou religioso (ao menos não um fundamentalista religioso) defina a
inteligência de alguém, da mesma forma que não define o caráter. Inteligência parte de um
capital cultural adquirido, da absorção de conhecimentos que compõem o intelecto, e que
pode sim ser facilitado pela ausência de dogmas religiosos torpes. Mas crença ou
descrença puramente não estabelece isso. O que de fato idealizo é que nós ateus somos

17Ateus são mais inteligentes do que pessoas religiosas, aponta estudo. UOL, 2018. Disponível
em: <https://www.uol.com.br/tilt/ultimas-noticias/redacao/2018/01/29/ateus-sao-mais-inteligentes-do-
que-pessoas-religiosas-aponta-estudo.htm>. Acesso em: 12 de julho de 2021.
psicologicamente, não intelectualmente, mais evoluídos e superiores do que os crentes
bitolados. A ausência de fé e o predominante uso da razão estimulam nossa capacidade
mental, propiciando o livre pensamento que os crédulos são incapazes de atingir por conta
de seu aprisionamento às mitologias e seus ritos e de sua inconstante relação com a
realidade. E isso é um fato facilmente observável.

(14/07/2021)

NÃO EXISTE FEMINISMO CRISTÃO

Não existe feminismo cristão! Aliás, não existe feminismo e religiosidade, por ser
contraditório por natureza. As mitologias religiosas, em especial o cristianismo, são
incompatíveis com a ideologia feminista. É como água e óleo: o feminismo não combina e
não se mistura com a moral religiosa. E sabe por que não? Porque os princípios feministas
desconstroem os princípios religiosos, da mesma forma que os conceitos religiosos
oprimem e sufocam a liberdade e os direitos das mulheres, bem como a igualdade entre os
gêneros.

Todas as religiões são machistas e sustentam a base da sociedade conservadora patriarcal.


Todas elas, com exceção da doutrina espírita (que não é unanimemente considerada uma
religião), são misóginas, detestam mulheres. Claro que o foco desse ódio às mulheres e aos
seus direitos e liberdades individuais, coletivas, reprodutivas e sexuais se concentram mais
nas religiões hegemônicas do planeta, como o islamismo  —  que priva as mulheres de suas
liberdades, força-as o uso da burca, obriga-as a aceitar casamentos impostos desde muito
cedo e mutila suas genitálias desde a infância  —  e o cristianismo.

Como vivemos em uma sociedade ocidental e em um dos países com maior número de
cristãos do mundo  —  o Brasil  — , irei focar na mitologia cristã em especial e em sua política
de opressão e silenciamento às mulheres. É certo que o cristianismo não obriga as
mulheres a usarem burca ou algo do gênero e também não as impõe um casamento forçado
e arranjado desde muito novas (ao menos não nos tempos atuais, pois no passado sim),
mas a metodologia cristã contra fêmeas e indivíduos do gênero feminino não se limita a
estas práticas, apesar do que os fundamentalistas cristãos e anti-islamismo acreditam e
pregam.

Sabe aquele estereótipo tradicional e conservador imposto às meninas desde cedo de que a
mulher deve ser dona de casa, responsável por zelar pelo lar e pela família, “recatada e do
lar”? Pois bem, este “padrão feminino” é socialmente construído e instituído em sociedades
patriarcais e conservadoras a partir de concepções religiosas. É a religião que
institucionaliza o papel da mulher exclusivamente como serva e protetora do lar, e no
cristianismo isso possui raízes bíblicas, como pode-se observar no seguinte versículo:

“[…] ensinem as mulheres novas a serem prudentes, a amarem seus maridos, a amarem
seus filhos, a serem moderadas, castas, boas donas de casa, sujeitas a seus maridos, a fim
de que a palavra de Deus não seja blasfemada.” (Tito 2:4-5)
Da mesma forma em que a Bíblia estipula o padrão de mulher “perfeita” e institucionaliza
estereótipos adequados a cada um dos gêneros, como o papel do homem e da mulher na
sociedade, o folheto cristão também impõe que as mulheres devem ser submissas aos seus
maridos, como se elas fossem de sua propriedade, um objeto sexual à disposição da
vontade e do prazer do homem, como mostram os seguintes versículos:

“[…] mulheres, sujeite-se cada uma a seu marido, a fim de que, se ele não obedece à
palavra, seja ganho sem palavras, pelo procedimento de sua mulher, observando a conduta
honesta e respeitosa de vocês.” (1 Pedro 3:1-2)

“Mulheres, sujeite-se cada uma a seu marido, como ao Senhor, pois o marido é o cabeça da
mulher, como também Cristo é o cabeça da igreja, que é o seu corpo, do qual ele é o
Salvador. Assim como a igreja está sujeita a Cristo, também as mulheres estejam em tudo
sujeitas a seus maridos.” (Efésios 5:22–24)

Ou seja, o cristianismo impõe que a mulher deve ser submissa ao seu marido (o homem,
como o conceito heteronormativo estipula) da mesma forma que os cristãos são submissos
e servos de seu deus, um ser imaginário e invisível com caráter de um todo-poderoso
ditador autoritário. Aí está institucionalizado o método de objetificação sexual da mulher,
tratando-a como uma mera escrava sexual e serviçal do homem. Pois, segundo a mitologia,
o marido seria “o cabeça da mulher” assim como Cristo é “o cabeça da igreja, que é o seu
corpo, do qual ele é o Salvador”. Assim sendo, as mulheres estariam sujeitas aos desejos
do homem, que é o seu mentor com posse de seu corpo. Do contrário, não há nenhum
versículo bíblico que imponha ao homem esta mesma submissão e servidão à sua esposa.

Em outras passagens, agora em Coríntios e Timóteo, a fé cristã impõe o silenciamento às


mulheres, enfatizando que elas devem se manter caladas e submissas às vontades da
igreja, do pastor e do marido fiel e devoto:

“[…] as mulheres estejam caladas nas igrejas; porque lhes não é permitido falar; mas
estejam submissas como também ordena a lei.” (Coríntios 14:34)

“Não permito que a mulher ensine nem que tenha autoridade sobre o homem. Esteja,
porém, em silêncio.” (1 Timóteo 2:12)

A partir destes trechos, nota-se a contradição cristã quando se há pastoras e outras líderes
religiosas pregando a palavra nas igrejas e nos templos religiosos, assim como se pode
perceber esta posição de inferioridade que a mulher ocupa em relação ao homem na
concepção de “família tradicional” cristã.

Já em outros versículos, ainda em Coríntios e Timóteo, o mesmo cristianismo institui que as


mulheres não têm autonomia sobre o próprio corpo e impõe a forma como elas devem se
portar e se vestir perante a sociedade cristã:

“A mulher não tem autoridade sobre o seu próprio corpo, mas sim o marido […]” (Coríntios
7:4)

“Da mesma forma, quero que as mulheres se vistam modestamente, com decência e
discrição, não se adornando com tranças e com ouro, nem com pérolas ou com roupas
caras, mas com boas obras, como convém a mulheres que declaram adorar a Deus.” (1
Timóteo 2:9–10)

E não para por aí. Além desse silenciamento e repressão aos corpos femininos, a porca
mitologia ainda legitima e estimula a violência contra a mulher e contribui com casos de
feminicídio. Segundo Deuteronômio, o marido possui direito e autoridade de matar sua
esposa caso descubra que ela não é mais virgem, assim como uma mulher adúltera ou que
foi estuprada (e não tenha gritado pedindo socorro) deve ser apedrejada até a morte e uma
virgem solteira que for violada poderá ser comprada por seu estuprador junto ao seu pai:

“Se, contudo, a acusação for verdadeira e não se encontrar prova de virgindade da moça,
ela será levada à porta da casa do seu pai e ali os homens da sua cidade a apedrejarão até
a morte. Ela cometeu um ato vergonhoso em Israel, prostituindo-se enquanto estava na
casa de seu pai. Eliminem o mal do meio de vocês.” (Deuteronômio 22:20–21)

“Se numa cidade um homem se encontrar com uma jovem prometida em casamento e se
deitar com ela, levem os dois à porta daquela cidade e apedrejem-nos até a morte: a moça
porque estava na cidade e não gritou por socorro, e o homem porque desonrou a mulher
doutro homem. Eliminem o mal do meio de vocês.” (Deuteronômio 22:23–24)

“Se um homem se encontrar com uma moça sem compromisso de casamento e a violentar,
e eles forem descobertos, ele pagará ao pai da moça cinquenta peças de prata e terá que
casar-se com a moça, pois a violentou. Jamais poderá divorciar-se dela.” (Deuteronômio
22:28–29)

A Bíblia estipula papéis e funções sociais às mulheres, impõe vestimentas, submissão e


formas de comportamentos a elas, legitima seu silenciamento, a violência e os abusos que
sofrem e prega punições e repressões aos seus corpos, tratando-os como impuros e
abjetos. Por isso a adoção de métodos de castidade e conventos: para mantê-las presas e
limitadas ao destino e às tarefas que a sociedade cristã estabeleceu a elas, sob domínio e
respaldo do homem. E não é à toa que estes conceitos misóginos se perpetuam, na prática,
em meio às sociedades ocidentais dominadas pelo cristianismo que constantemente viola
as laicidades constitucionais.

Os inúmeros casos de feminicídios, de assédios e abusos contra as mulheres e de estupro


são ocasionados e legitimados pela mitologia cristã. É o conservadorismo cristão
reacionário que institucionaliza a cultura do estupro e a violência contra a mulher a partir de
seus conceitos torpes de submissão feminina e de culpabilização da vítima (caso da mulher
apedrejada por não ter gritado por socorro enquanto era violentada)18. E não dá para
desvincular o cristianismo, que diz que “a mulher não tem autoridade sobre o seu próprio
corpo, mas sim o marido”, disto. A doutrina cristã está diretamente vinculada à misoginia e é
predominantemente responsável pelos infortúnios femininos na sociedade patriarcal.

Há tantos exemplos que atestam a participação dos ideais cristãos nos ataques aos direitos
e às liberdades democráticas das mulheres: como quando os cristãos são contrários ao

18 Igrejas silenciam vítimas de violência doméstica, dizem evangélicas. O Tempo, 2021.


Disponível em: <https://www.otempo.com.br/brasil/igrejas-silenciam-vitimas-de-violencia-domestica-
dizem-evangelicas-1.2514436>. Acesso em: 02 de agosto de 2021.
divórcio, forçando as mulheres a manter um casamento ou um relacionamento abusivo;
quando são contra o uso de preservativos e métodos anticoncepcionais, colocando em risco
a vida da mulher e a privando-a de suas liberdades sexuais e reprodutivas; quando
repreendem a liberdade e a pluralidade sexual delas; quando se opuseram ao sufrágio
universal, impedindo-as de votar sem as ordens do marido, de trabalhar fora de seus lares e
de estudarem, se formarem e conquistarem sua independência, sem ter que depender de
homem algum; quando se manifestam em oposição à emancipação feminina das tarefas do
lar e da família, bem como do próprio matrimônio; quando legitimam o marido ou namorado
matar ou agredir sua esposa ou parceira alegando “legitima defesa da honra”; quando
recriminam vestimentas, opiniões e comportamentos delas que subvertam o estereótipo pré-
estabelecido para o gênero; quando perpetuam e colaboram com pensamentos e conceitos
machistas e sexistas; quando as impõem um estilo de vida “recatado e do lar” a elas, com o
único objetivo de casar e ter filhos; e quando líderes religiosos legislam e julgam contra a
descriminalização do aborto, uma pauta de saúde pública e de autonomia sobre o próprio
corpo, aferindo o Estado laico e restringindo a liberdade individual feminina. Estas são as
diferentes formas do cristianismo privar, violar e oprimir as mulheres.

Os movimentos feministas, bem como as mulheres de modo geral, não podem permitir que
homens brancos decidam por suas vidas, assim como líderes religiosos com os mesmos
padrões legislem sobre seus direitos, sobre suas liberdades e sobre seus corpos. É
inadmissível que o pai, o marido, o namorado, o pastor, o padre, o bispo ou qualquer outro
cristão, com base em dogmas cristãos, defina o destino e o estilo de vida de qualquer
mulher que viva em meio a uma sociedade secular. E aí acrescenta-se mais um motivo
primordial para se defender a secularização das instituições públicas, a partir de um plano
de transformação em prol da plena laicidade.

Se a revolução será feminista, é fundamental que esse feminismo seja ateísta, secularista e
anticlerical. As mulheres, e principalmente as mulheres ditas feministas, devem conhecer e
aprender as origens do que as oprime e se desvincularem do cristianismo e de qualquer
outra religião imediatamente. E após abandonarem a fé, a moral e a ética religiosa, os
movimentos feministas devem, além de lutarem e militarem em prol dos direitos e das
liberdades das mulheres, bem como da igualdade de gênero, adotar bandeiras de luta em
defesa da laicidade do Estado e em oposição ao cristianismo, à religião, à igreja e ao clero.

A religião é o que constrói, institui, sustenta e embasa a sociedade conservadora patriarcal,


e no mundo ocidental essa responsabilidade cabe ao cristianismo. Assim, é a mitologia
cristã, a partir da Bíblia e de suas concepções reacionárias, que oprime as mulheres, as
privam de suas liberdades e viola seus direitos humanos, civis e sociais. Desta forma, por
princípio, não existe feminismo cristão, nem nenhuma mulher feminista pode se considerar
cristã ou adotar o cristianismo, pois estará compactuando e absorvendo as raízes de sua
opressão, do machismo e da misoginia. A missão delas é romper as correntes e as
barreiras da fé, através do uso indiscriminado da razão e o livre pensamento, para, assim,
conseguirem superar e derrubar o patriarcado, tentáculo do cristianismo.

De maneira geral: ou se é feminista ou se é cristão. Os dois não dá.

(04/08/2021)
O CRISTIANISMO E AS RAÍZES DA LGBTFOBIA

No capítulo anterior foram expostas as contribuições e as atribuições das religiões  —  em


especial da religião cristã  —  para a institucionalização e a consolidação de uma sociedade
patriarcal, sustentada a partir de conceitos conservadores, estes machistas, sexistas e
misóginos. Assim, viu-se que, com base no fundamentalismo cristão, através de
concepções bíblicas, o conservadorismo e seus ideais reacionários e fundamentalistas se
sustentam na sociedade, oprimindo e reprimindo direitos e liberdades das mulheres,
inferiorizando-as, bem como a igualdade entre os gêneros.

Mas as vítimas dessas doutrinas tradicionalistas e conservadoras não são somente os


indivíduos fêmeas e pertencentes ao gênero feminino. A intolerância das mitologias
religiosas alcança outros grupos socialmente minoritários, como os negros, os indígenas, os
integrantes de religiões afros, os ateus, os agnósticos e a comunidade LGBTQIA+. Essa
essência fundamentalista e ultraconservadora, presente principalmente nas religiões mais
hegemônicas, como o cristianismo e o islamismo, faz com que as mitologias espiritualistas
constituam, além de concepções machistas, sexistas e misóginas, conceitos que pregam a
homofobia, a lesbofobia, a bifobia, a transfobia e a LGBTfobia como um todo. Em aspectos
gerais, as religiões carregam consigo o preconceito, a discriminação, a aversão e o ódio
contra indivíduos pertencentes à comunidade LGBTQIA+, bem como a diversidade e a
liberdade sexual e de gênero.

Focando no cristianismo, que é o principal alvo de toda e qualquer crítica a qual estes textos
se direcionam, mas sem esquecer ou encobrir as perversidades do islã, que até hoje
assassina e tortura homossexuais brutalmente em suas teocracias fundamentalistas no
Oriente Médio, tornando a homossexualidade crime sujeito a pena de morte, pode-se
observar que, da mesma forma como são reforçados e estigmatizados conceitos misóginos
e sexistas, a Bíblia “Sagrada” também institui em seus versículos discursos de ódio contra
pessoas com comportamentos homossexuais e que praticam relações homoafetivas. Em
Levítico, no Velho Testamento, essa percepção homofóbica fica evidente:

“Não se deite com um homem como quem se deita com uma mulher; é repugnante.”
(Levítico 18:22)

“O homem que se deitar com outro homem como se fosse uma mulher, ambos cometeram
uma abominação, deverão morrer, e seu sangue cairá sobre eles.” (Levítico 20:13)

É claro que, na época em que a Bíblia foi escrita por seja lá quem a tenha escrito, não havia
conscientização de luta por respeito, direitos e igualdade LGBTQIA+, e os homossexuais
eram minorias numéricas e sociais muito inferiores ao que são hoje, o que faz com que não
hajam tantos versículos direcionados ao tema da homossexualidade. Porém fica claro como
o cristianismo e sua moral fundamentalista percebe e julga os gays e seus atos.

Os cristãos, principalmente as tendências evangélicas e neopentecostais (ao menos nos


últimos trinta anos, mas sem isentar a Igreja Católica), justificam sua homofobia pregada
com a célebre e clássica frase: “deus abomina o pecado, não o pecador”. Segundo eles, é
considerado “pecado” duas ou mais pessoas emancipadas e do mesmo sexo praticarem
relações afetivas, românticas e se amarem, não interferindo na vida privada do restante da
sociedade, mas cabendo exclusivamente ao âmbito particular delas próprias. Enquanto as
inúmeras perversidades cometidas por essa mitologia, a partir da igreja e de seus líderes,
são aceitas e normalizadas “pelo bem-estar coletivo”, o fato de duas pessoas do mesmo
sexo sentirem atração sexual uma pela outra e se deitarem em momento de prazer é
considerado algo “abominável” e “repugnante” pelos cristãos e, supostamente, pelo deus
invisível e imaginário que eles idealizam em suas mentes doentias.

Mas e quanto ao livre arbítrio autorizado e concedido por esse mesmo deus?

Ora, para os evanjegues conservas e boa parte dos crentes bitolados, o deus deles não se
importa com a injustiça, com a fome, com a miséria, com as catástrofes, com as tragédias e
com todos os males que ocorrem no mundo. O que de fato enfurece o mito judaico-cristão
(e também Alá, para os terroristas orientais) é um beijo gay, o direito à união homoafetiva, a
adoção por casais homossexuais e as práticas sexuais que eles realizam entre si. É isso o
que de fato deixa o “pai” de Jesus (e o de Maomé), o mão furada, irado.

Os fundamentalistas cristãos frequentemente associam a homossexualidade e as relações


sexuais homoafetivas à queda das cidades de Sodoma e Gomorra, retratadas na mitologia
bíblica. Para eles, a culpa do deus “justo e bondoso” deles ter devastado duas cidades e
assassinado seus habitantes é devido aos “pecados e práticas contrárias à moral hebraica” 
—  dentre estes, relações homossexuais. A partir disso, até hoje os religiosos sustentam seu
ódio à comunidade LGBTQIA+, acusando seus membros de provocarem um suposto futuro
"apocalipse" que um dia cairá sobre a Terra em decorrência da “fúria divina” contra os
“pecados da humanidade”.

O que Levítico prega é que um homem que se deitar com outro homem da forma como se
deita com uma mulher (na concepção heteronormativa) está cometendo algo “repugnante”,
“pecaminoso” e “abominável”. Ou seja, os homossexuais, ao praticarem relações sexuais e
afetivas com seus pares, são tratados pelo cristianismo como abominações e aberrações,
seres pecadores, impuros, depravados e imorais, e, por isso, deverão ser mortos, “e seu
sangue cairá sobre eles”.

Não é por acaso que milhares de LGBTs são agredidos e assassinados diariamente no
mundo teísta.

Mas não é apenas em Levítico que o cristianismo destila seu ódio aos homossexuais. Em
Coríntios, ainda no Velho Testamento, a doutrina mitológica enfatiza quais são os grupos
“perversos” que não poderão herdar o tal “Reino de Deus”:

“Vocês não sabem que os perversos não herdarão o Reino de Deus? Não se deixem
enganar: nem imorais, nem idólatras, nem homossexuais, passivos ou ativos, nem
ladrões, nem avarentos, nem alcoólatras, nem caluniadores, nem trapaceiros herdarão o
Reino de Deus.” (1 Coríntios 6:9–10)

Segundo a Bíblia, os homossexuais, passivos ou ativos, são tão “perversos” quanto ladrões,
alcoólatras, avarentos e caluniadores, não merecendo aderir ao “Reino de Deus” (o céu, ou
“paraíso”, na “vida eterna”, de acordo com as concepções espiritualistas). Os homossexuais
são taxados como seres “imorais” (igualmente a nós, os ateus), não sendo merecedores de
uma vaga no reino da divindade cristã por serem "perversos" perante a moral religiosa. Mas
o que deve confortar os homossexuais, bem como toda a comunidade LGBTQIA+ (e, claro,
nós, os ateus, os “hereges”), é que não herdarão uma “vida eterna” ao lado de seus
carrascos homofóbicos, dos padres pedófilos, dos líderes fundamentalistas, dos racistas,
dos tiranos, dos estupradores e de todos aqueles cristãos imundos deixados de fora da lista
de personas non gratas no “Reino dos Céus”. Estarão todos privilegiadamente ao lado dos
alcoólatras faceiros, de nós, os “hereges”, e dos caluniadores (da Bíblia, se for o caso). Só o
que atormenta é a grande possibilidade dos excluídos e renegados estarem juntos aos
pastores sonegadores e exploradores de dízimos; os ladrões, non gratos até o Velho
Testamento.

E para quem pressupõe que o veneno bíblico não atingiria os transgêneros, as transexuais
e as travestis, alguns dos grupos que mais sofrem violência e discriminação entre a
comunidade LGBTQIA+, se enganou veementemente. Em Deuteronômio as pessoas trans
também são caracterizadas como seres “abomináveis” perante o deus do cristianismo:

“Não haverá traje de homem na mulher, e nem vestirá o homem roupa de mulher; porque,
qualquer que faz isto, abominação é ao Senhor teu Deus.” (Deuteronômio 22:5)

Ou seja, mais uma vez as prioridades de deus são aqui questionáveis. Um ser
supostamente “todo-poderoso” e “criador do céu e da Terra” parece se indignar mais com
um homem que veste trajes femininos do que com todo o mal que existe no planeta. Aliás,
um ser “onisciente”, que deu a vida ao universo e a todos os seres que nele residem, está
supostamente incomodado com atitudes banais que ele já sabia previamente que suas
criaturas, dessa forma por ele criadas, iriam efetuar.

Crer em fábulas assim para fundamentar narrativas LGBTfóbicas e transfóbicas é que é de


fato perverso e abominável.

Observando essas passagens bíblicas e as ações fundamentalistas das igrejas, percebe-se


que não é à toa que os países onde mais se mata e mais morre indivíduos da comunidade
LGBTQIA+ são os com maior influência religiosa, incluindo o Brasil  — predominantemente
católico  —  e diversas nações teocráticas do mundo oriental. Não é coincidência as altas
taxas de violência cometida contra gays, lésbicas e pessoas trans em um mundo dominado
pela religião e por dogmas e preceitos religiosos. Quando se afirma que o mundo seria
muito melhor sem religião, se está idealizando um mundo justo e igualitário para todos,
independente de raça, etnia, nacionalidade, sexo, gênero e orientação sexual.

Quem é sempre contrário aos direitos da comunidade LGBTQIA+, como casamento gay19,
inclusão de nome social, processo de transgenitalização e adoção por casais
homoafetivos20, são os fundamentalistas religiosos cristãos, como pastores, bispos e

19 CASTRO, Gabriel. Marcha de evangélicos e católicos protesta contra aborto, casamento gay
e legalização da maconha. Veja, 2011. Disponível em: <https://veja.abril.com.br/brasil/marcha-de-
evangelicos-e-catolicos-protesta-contra-aborto-casamento-gay-e-legalizacao-da-maconha/>. Acesso
em: 02 de setembro de 2021.
20 NUBLAT, Johanna e GUIMARÃES, Larissa. CNBB critica decisão que permite adoção de

crianças por gays. Folha de São Paulo, 2010. Disponível em:


<https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2010/04/727623-cnbb-critica-decisao-que-permite-adocao-
de-criancas-por-gays.shtml>. Acesso em: 02 de setembro de 2021.
padres, inclusive o próprio Papa e o Vaticano21. Quem se opõe a movimentos de luta LGBT,
educação e debate sobre gênero e sexualidade nas escolas e criminalizar a LGBTfobia22,
como forma de combate à intolerância, são os grupos conservadores cristãos. Quem é
contra pautas de igualdade e identidade de gênero e que trata as relações sexuais
homoafetivas como “pecado” e “aberração”, apostando em “cura gay” para o que não é
doença, são os membros reacionários das igrejas23. E quem prega o preconceito, a
intolerância, a discriminação e o ódio contra esta comunidade são sempre os líderes
religiosos, bem como seus fiéis ordenados24.

E, em meio a tudo isso, os crentes seguem a cartilha hipócrita cristã: serem


preconceituosos e intolerantes para posteriormente irem à igreja aos domingos rezarem, se
“arrependerem” de seus pecados e receberem o “perdão divino” que abençoa a política de
segregação do cristianismo.

Se as mulheres sofrem com os estigmas machistas, sexistas e misóginos de uma sociedade


patriarcal, a comunidade LGBTQIA+ sofre com os estigmas LGBTfóbicos (homofóbicos,
lesbofóbicos, bifóbicos, transfóbicos, etc.) de uma sociedade heteronormativa. E ambas as
sociedades conservadoras, que abarcam concepções reacionárias que oprimem e reprimem
minorias sociais, são sustentadas pelo fundamentalismo religioso (cristão, no mundo
ocidental) que predominantemente ataca e fere a laicidade do Estado.

Assim como as mulheres e ativistas feministas não podem se sujeitar ao cristianismo,


absorvendo as raízes de sua opressão, os movimentos LGBTQIA+ também têm o dever de
rejeitar a moral e a ética religiosa, enfrentar os ideais conservadores, combater o clero, a
igreja e a mitologia cristã e defender a secularização das instituições, bem como um Estado
verdadeiramente laico. A militância LGBTQIA+ por diversidade sexual e por pluralidade,
igualdade e identidade de gênero deve ser ateísta e secularista e resistente contra toda e
qualquer forma de opressão reacionária, em prol da laicidade constitucional, do declínio do
conservadorismo e da derrocada do fundamentalismo religioso.

A comunidade LGBTQIA+, assim como todo e qualquer grupo socialmente minoritário, só irá
conquistar seus objetivos, seu espaço na sociedade e se libertar das correntes que a
aprisionam quando, de maneira cética e racional, questionar, desconstruir e negar o
cristianismo e, com ele, as raízes da LGBTfobia.

(04/09/2021)

21 Com aval do papa, Vaticano proíbe bênção a união gay e chama homossexualidade de
pecado. Folha de São Paulo, 2021. Disponível em:
<https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2021/03/com-aval-do-papa-francisco-vaticano-proibe-bencao-
a-casamento-homossexual.shtml>. Acesso em: 03 de setembro de 2021.
22 NEVES, Rafael. Projeto para criminalizar homofobia emperra por desacordo com

evangélicos. Congresso em Foco, 2019. Disponível em:


<https://congressoemfoco.uol.com.br/especial/noticias/projeto-para-criminalizar-homofobia-emperra-
por-desacordo-com-evangelicos/>. Acesso em: 03 de setembro de 2021.
23 BOTTREL, Fred. Casais gays são ‘aberração moral’, diz pastora de palestra para reverter

homossexualidade. Estado de Minas, 2016. Disponível em:


<https://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2016/11/23/interna_gerais,826287/gays-aberracao-moral-
pastora-palestra-igreja.shtml>. Acesso em: 04 de setembro de 2021.
24 Pastor americano diz que gays devem ser executados para um ‘Natal livre de Aids’. O Globo,

2014. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/brasil/religiao/pastor-americano-diz-que-gays-devem-


ser-executados-para-um-natal-livre-de-aids-14745219>. Acesso em: 04 de setembro de 2021.
A IDEOLOGIA ATEÍSTA NO ESPECTRO POLÍTICO

A ideologia ateísta não é propriamente de esquerda, de direita ou de centro. Bem como


diversas outras causas de grupos minoritários, a causa ateísta não se relaciona
exclusivamente com um espectro político-ideológico específico. O ateísmo é, em sua
essência, um ideal progressista, se opondo ao conservadorismo que, em contrapartida, é a
essência da religiosidade.

Os movimentos sociais feministas, indígenas, afros e LGBTQIA+ promovem ações em prol


da igualdade, do respeito, da tolerância e da diversidade, reivindicando a conquista de
maior liberdade e de mais direitos civis, políticos e sociais. Esses movimentos, ao
organizarem suas lutas e mobilizarem minorias sociais a militarem por elas, engajam ações
vinculadas ao eixo social da estrutura do Estado, e não ao espectro político e econômico.
Assim, o ativismo de grupos social e numericamente oprimidos e excluídos se relaciona
com os ideais progressistas, não esquerdistas, direitistas ou centristas e suas propriedades
ideológicas de modo particular.

Nesse sentido, dois militantes, um da causa LGBTQIA+ e uma ativista feminista, podem,
sem praticamente nenhum conflito ideológico com a causa por qual militam, ser socialistas
ou liberais, ainda sendo progressistas de todo o modo. Isso ocorre porque o progressismo e
o seu antagônico, o conservadorismo, se vinculam com o âmbito social e independem de
relação direta com um espectro político exclusivo. Portanto, um ativista de uma causa social
minoritária, sendo um progressista por sua definição de militante social, pode ter distintas
posições políticas e econômicas em relação a outros âmbitos da estrutura do Estado.

Entretanto, um ativista de uma causa social identitária pró-diversidade jamais poderá se


considerar um conservador, por sua contradição em termos. O conservadorismo idealiza o
oposto do que o progressismo defende e promove: a luta e a justiça social, portanto apoiar
e/ou compactuar com representações e ideais conservadores e reacionários subverte a real
essência do eixo progressista.

E a ideologia ateísta como ativismo social se estabelece por essa mesma corrente. Nesse
sentido, um ateu militante da causa ateísta por representatividade, visibilidade e respeito,
além de pró-laicidade  —  progressista por essência  — , pode ser, ao mesmo tempo,
defensor tanto de uma economia planificada, quanto do livre mercado. Não existe relação
direta entre a militância por pautas sociais e posicionamentos econômicos e institucionais.
Cada grupo político interpreta a estrutura social a partir de suas correntes teóricas e
filosóficas, atrelando seus posicionamentos ao elo central da ideologia.

O progressismo e o conservadorismo são posicionamentos sociais/morais presentes nos


mais distintos espectros políticos. Alguns exemplos que temos de correntes progressistas à
direita do espectro político estão no Livres, no MBL e em setores do NOVO e do PSDB.
Nesses casos, são movimentos e partidos políticos que defendem o livre mercado e
algumas pautas sociais progressistas, como a descriminalização do uso recreativo da
cannabis e o voto facultativo (liberais na economia e nos costumes). Já à esquerda do
espectro político, temos exemplos de correntes progressistas em praticamente todos os
movimentos e partidos políticos, com destaque para o Juntos!, o PSOL e setores do PT e do
PDT. Nesses casos, as entidades mencionadas defendem uma economia planificada ou de
distribuição de renda, em um Estado socialista ou de bem-estar social, e pautas sociais
amplamente progressistas, como a descriminalização do aborto e a união civil homoafetiva
(socialistas na economia, liberais nos costumes).

Mas se analisarmos ambos os espectros e as pautas gerais de suas entidades, veremos


que o progressismo está muito mais ligado à esquerda do que à direita. Apesar das várias
correntes marxistas radicais não-identitárias em setores da extrema-esquerda
revolucionária, o identitarismo social se concentra nas mobilizações e em ações da parte
majoritária e hegemônica da esquerda, enquanto que ideais conservadores, tradicionalistas
e extremistas estão mais centralizados à direita do espectro político.

Os partidos e movimentos de esquerda são os que mais defendem pautas e mobilizam


ações em prol da diversidade e de grupos minoritários socialmente oprimidos. São os
setores ligados à esquerda que engajam lutas identitárias e representativas, organizando
reivindicações em prol de minorias, como mulheres, negros, indígenas e a comunidade
LGBTQIA+. Enquanto que, por outro lado, grupos fundamentalistas religiosos,
conservadores e reacionários, que oprimem e reprimem ativismos identitários das minorias
por tolerância, direitos, respeito, visibilidade e representatividade, se concentram, em sua
totalidade, entre a direita e, principalmente, a extrema-direita protofascista, esta composta
por grupos supremacistas que pregam o ódio à pluralidade social.

E dentre os grupos minoritários e as pautas identitárias, o ativismo social ateísta e as ações


em defesa de um Estado verdadeiramente laico, nesse sentido político, não são uma
exceção. Dentre as poucas vezes em que a comunidade ateísta e os manifestos pró-
laicidade ganharam destaque como causa social no eixo progressista, todas foram através
do campo da esquerda ou de entidades ligadas de alguma forma a ela. Por isso, torna-se
praticamente inevitável relacionar a causa ateísta e secularista à esquerda política.

Além de associações e organizações ateístas com ideais progressistas pelo mundo, os


casos em que o ateísmo teve maior relevância como ativismo social ocorreram em países
socialistas do leste europeu. O ateísmo instituído como um ideal oficial de Estado nas
repúblicas socialistas do Bloco do Leste obteve conquistas positivas e negativas: por um
lado, impulsionou os avanços científicos e tecnológicos dos comunistas durante a Guerra
Fria, bloqueando influências fundamentalistas religiosas nestas áreas e eliminando o
domínio da igreja no poder público; por outro, perseguiu pessoas inocentes, privou-as das
práticas de sua fé e instituiu um modelo totalitário que, apesar de seus benefícios, como a
exclusão da fé religiosa da sociedade civil, contraria os ideais desejados através da
obtenção de um Estado e de uma sociedade laica, que é pelo que minimamente a
comunidade ateia engajada em luta social atualmente milita no mundo todo.

O Estado ateu instituído oficialmente na União Soviética desde 1922 e por durante toda a
ditadura stalinista, bem como em nações como China, Cuba e Coreia Popular em
determinados períodos de suas histórias, é o exemplo clássico do ateísmo como causa
social na esquerda do espectro político. Os Estados socialistas, em especial o soviético,
confiscaram propriedades religiosas, destruíram igrejas, promoveram universalmente o
ensino do ateísmo nas escolas, perseguiram religiosos e investiram em propagandas de
ridicularização da fé religiosa (ver cartaz abaixo). E foi por meio do ateísmo de Estado que,
além de se desenvolverem tecnológica e cientificamente, os socialistas posicionaram a
ideologia ateísta e seus ativistas mais à esquerda do eixo progressista, em confronto ao
fundamentalismo religioso posicionado mais à direita do eixo conservador.

Capa do exemplar nº. 22 da revista ateísta e antirreligiosa Bezbozhnik (Sem Deus), publicada na União
Soviética entre 1922 e 1941 pela Liga dos Ateus Militantes. Na edição, os deuses das três religiões
hegemônicas do mundo (judaísmo, cristianismo e islamismo) sendo esmagados pelo Primeiro Plano de Cinco
Anos da URSS.

E não que a Era Stalin na URSS tenha errado nesse sentido em sua totalidade. Na verdade,
talvez um dos únicos acertos e benefícios do stalinismo durante sua ditadura sanguinária
tenha sido instaurar o ateísmo como política de Estado, rompendo com a dominação social
da religião, um dos pilares da estrutura do extinto  —  pela Revolução de 1917  —  czarismo
russo. Mas o ideal utópico de uma sociedade ateia, em detrimento da solução reformista por
uma laicidade real e soberana, foi posto em prática de forma equivocada, o que eliminou por
completo qualquer ilusão de em algum momento se consolidar uma sociedade que elimine a
religião por completo em um mundo em que a fé religiosa infelizmente ainda não foi
superada ou sequer limitada pelas laicidades constitucionais.

Em suma, o erro não está em idealizar utopicamente uma sociedade ateia e um ateísmo
como política estatal de modo como um sonho improvável. O erro é idealizar que o Estado
ateu seja de fato possível em um mundo dominado pela fé religiosa e onde nem o Estado
laico, que é o básico a ser conquistado, pôde ser implementado em sua totalidade, com a
secularização de todas as instituições. E pior: objetivar o ateísmo de Estado como solução
para um mundo onde há mais teocracias fundamentalistas  —  promovidas e sustentadas
pelos conservadores da extrema-direita  —  do que nações com instituições públicas
totalmente secularizadas é um completo devaneio que parte da comunidade ateia militante
ainda se deixa recair.

Como bem disse o sociólogo Karl Marx (um dos símbolos da esquerda para o ateísmo), a
religião é um modo de alienação da sociedade para suportar e aceitar os males e as
injustiças da vida social; “é o ópio do povo”. Sendo a fé religiosa o instrumento de alienação
irracional da sociedade, o ateísmo é a chave racional para sua libertação. E em oposição
aos ideais religiosos que consolidam e sustentam o conservadorismo, a causa ateísta, suas
pautas e sua militância, independente de sua história ligada à esquerda, é essencial e
exclusivamente progressista, estando acima de qualquer relação direta com os diferentes
espectros políticos.

Em resumo: a ideologia ateísta não possui espectro político definidor. Um ateu pode ser
ideologicamente de esquerda, de direita ou de centro, sem qualquer conflito com suas
concepções irreligiosas, céticas e/ou seculares. O ateísmo é um ideal essencialmente
progressista (no eixo social), bem como sua causa e toda a sua comunidade deve ser.
Desta forma, o ateu é um ser progressista, não conservador, já que é o conservadorismo e
suas concepções reacionárias o eixo social atrelado ao fundamentalismo religioso. Desse
modo, o ateu que compactuar com posições e ideias conservadoras estará em consonância
com a moral e a ética conservadora (esta que provém de “deus”, da religião) que tanto deve
ser rejeitada pelos livres-pensadores.

Assim, apesar da relação histórica e cultural entre a esquerda e o ativismo ateísta como
causa social, a ausência de crenças religiosas e fé em divindades não atribui ao ateu,
politicamente, nada além do que uma visão de sociedade laica, racional, justa e igualitária,
centrada nos direitos humanos e na cidadania.

(20/10/2021)

A INVISIBILIDADE DO ATIVISMO ATEÍSTA E SECULARISTA NO CAMPO


SOCIAL PROGRESSISTA

No capítulo anterior foi exposto que o ateísmo, bem como o ativismo social secularista, pró-
laicidade, é uma ideologia essencialmente progressista. Desse modo, o ideal ateísta,
vinculado ao progressismo no eixo social, se opõe ao conservadorismo, que é o campo
social sustentado pela moral religiosa e “divina”. Assim, um ateu  —  especialmente um ateu
militante  —  deve ser um indivíduo progressista por definição, não sendo coerente a
vinculação de um descrente com a moral conservadora e fundamentalista, alicerçada pelas
religiões (o que seria o mesmo que um judeu nazista ou gay homofóbico). Contudo, também
foi ressaltado que o ateísmo não possui espectro político definidor, podendo a comunidade
ateia  —  dentro do campo progressista  —  se identificar tanto com posicionamentos sócio-
políticos da esquerda, quanto da direita, apesar da relação histórica mais fortemente
estabelecida entre a esquerda e o ativismo ateísta.

A partir disso, neste texto, pretendo questionar a invisibilidade que o ativismo ateísta e
secularista sofre no campo social em que se vincula. Através de uma análise observacional
da sociedade, meu intuito é problematizar a escassez de visibilidade dada à causa ateia e
secular e às suas pautas pró-laicidade e contra a ateofobia nos coletivos, entidades e
movimentos sociais e políticos do eixo progressista. A ideia central é questionar esses
setores da sociedade progressista quanto à importância atribuída aos ateus e aos seus
interesses em comparação com outros grupos identitários e minoritários  —  social e/ou
numericamente  —  também oprimidos e excluídos das organizações coletivas. E vale
destacar que o texto aqui exposto é parte de um tema de pesquisa vinculado a um projeto
de pesquisa que produzi para a disciplina de Introdução à Pesquisa Social, do curso de
bacharelado em Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Como ateu militante e convicto que sou  —  e assim me assumo perante a sociedade
conservadora —, observo que, assim como outros grupos identitários minoritários (e os
ateus são minorias sociais e numéricas no Brasil e no mundo todo) que reivindicam
respeito, compreensão, reconhecimento, direitos, liberdades, visibilidade, representatividade
e inclusão em espaços da sociedade, bem como perante o Estado, a comunidade ateísta
também se organiza como minoria socialmente oprimida para lutar pelo que lhe é de direito,
combater a discriminação imposta pelas maiorias religiosas e defender um Estado
verdadeiramente laico, bem como a secularização das instituições, dos órgãos e dos
espaços públicos. Nesse sentido, minha problemática de investigação social se centraliza
na participação, no engajamento e na mobilização de grupos ateístas, secularistas,
humanistas e racionalistas na sociedade. Mais especificamente, minha indagação é não
apenas quanto à organização de movimentos ateus no campo social progressista, mas à
falta de visibilidade que os coletivos, entidades e movimentos deste eixo social, liderados e
articulados por diversos setores, dão ao ativismo ateísta e às suas reivindicações em favor
da laicidade do Estado.

Ora, repare como coletivos, entidades e movimentos do setor progressista da sociedade  — 
predominantemente mobilizados pela esquerda política  —  visibilizam lutas e reivindicações
de outros grupos identitários de minorias e compare com a quase inexistente visibilidade
que destinam à comunidade ateísta e secularista (grupo identitário, minoritário e
socialmente oprimido) e à defesa da laicidade do Estado. Esses setores progressistas não
identificados com uma pauta ou com um grupo específico jamais abdicam de incluir e
promover a representatividade e a visibilidade de lutas e agendas de minorias sociais e/ou
numéricas que são constantemente marginalizadas pelo Estado, pelas instituições e pela
sociedade de modo geral.

No tocante ao Brasil, as mulheres  —  maioria da população em percentual mas minoria em


relação de poder social  — , por exemplo, são quase sempre representadas por integrantes e
lideranças feministas e têm suas pautas de combate ao machismo, ao sexismo, à misoginia
e à violência e desigualdade de gênero visibilizadas e engajadas até mesmo por coletivos,
entidades e movimentos do campo progressista que não são exclusivamente identificados e
dedicados à luta feminista. O mesmo ocorre com a comunidade negra  — também maioria
em números absolutos e minoria socialmente oprimida —, que tem suas pautas antirracistas
e de igualdade étnico-racial absorvidas e mobilizadas na atuação social por setores
independentes do eixo progressista que não se dedicam exclusivamente ao debate sobre a
negritude e às reivindicações dos negros.

Por outro lado, grupos que, assim como os ateus, são minorias sociais e numéricas,
também são incluídos na mobilização e no engajamento social, encontram um amplo
espaço de apoio no campo progressista para visibilizar suas pautas em combate aos ideais
reacionários e obtém dos coletivos, entidades e movimentos desse eixo social um ambiente
que absorva e promova suas causas reivindicatórias. Isso ocorre, por exemplo, com os
povos indígenas e com a comunidade LGBTQIA+. Pautas como a demarcação dos
territórios indígenas, o combate ao extermínio da população originária, as cotas raciais, o
direito à união civil homoafetiva, o combate à LGBTfobia e a promoção e defesa da
pluralidade sexual e de gênero são constantemente debatidas em setores progressistas
não-identitários com as causas específicas desses grupos, proporcionando a devida
notoriedade das reivindicações dessas minorias e mobilizando manifestações, protestos,
atos e agendas de lutas nacionais que as insiram no debate público e no cenário político.

O que instigo aqui não é pregar discursos intolerantes que induzam que a visibilidade e a
representatividade de outros grupos identitários minoritários —  como as mulheres, os
negros, os indígenas e a população LGBTQIA+  —  seja desnecessária. É extremamente
essencial e fundamental que se dê a devida amplitude às pautas reivindicadas por essas
minorias no debate público e nas rodas de conversas e que se mobilize ações que
combatam as desigualdades, as injustiças e as discriminações sofridas por esses grupos e
que garantam os direitos que muitas vezes lhes são negados e/ou reprimidos. A inclusão de
membros e pautas dessas comunidades oprimidas pelo preconceito que se ascende na
sociedade conservadora por parte de setores e projetos progressistas é de muita
importância para se revolucionar os costumes morais de uma sociedade por mais justiça e
igualdade social. Mas a questão que fica é: por que outros grupos social e/ou
numericamente minoritários, como os ateus, são invisibilizados, juntamente com suas
pautas reivindicatórias, nessas lutas e ações sociais?

Até minorias religiosas e pessoas com deficiência por vezes (mas ainda assim raras vezes)
têm suas pautas absorvidas por coletivos, entidades e movimentos independentes, bem
como seus representantes incluídos na linha de frente de mobilizações, enquanto que a
comunidade ateísta e seu ativismo em prol do Estado laico sofre com a exclusão e com a
discriminação dentro desses espaços de mobilização  —  que deveriam ser plurais e
receptivos  — , quando não se organizam, independentemente, através de associações
exclusivamente identificadas com a causa  —  como é o caso da atuação pública da
Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos (ATEA)  —  e constroem em âmbito particular
seus próprios manifestos e suas próprias ações, sem contar com o apoio e com a
notoriedade do restante majoritário do campo progressista.

A hipótese que tenho para tentar compreender e explicar esse apagamento do ativismo
ateísta e secularista das mobilizações sociais e da atuação política e social de setores
progressistas é devido à falta de lideranças que introduzam as pautas em favor da
comunidade ateia e em prol da laicidade do Estado nesses espaços e à escassez de atores
que levantem essas bandeiras e representem a causa dentro desse campo social. Creio
que falta muito engajamento dos ateus a militarem ateísmo e defenderem a laicidade como
bandeira principal de luta, bem como daqueles ateus que, assim como eu, já atuam
ativamente em promoção da ideologia, mas infelizmente não encontram oportunidades e
espaços oportunos para posicionarem esse ativismo e suas reivindicações na vida pública.
É preciso que a iniciativa parta mais do indivíduo ateu militante em demanda direta aos
coletivos, entidades e movimentos estudantis, trabalhistas, sindicais, de juventude etc., e
deles para o restante da sociedade e do poder público, e menos das iniciativas essenciais
da ATEA para o legislativo e o judiciário, obscurecendo essa causa tão essencial. Porém,
nada justifica que militantes que atuam no campo progressista em prol de um mundo mais
justo e igualitário, sendo estes pertencentes a grupos minoritários ou não, militem em
defesa de pautas de outras comunidades identitárias e se solidarizem com suas
reivindicações, enquanto invisibilizam os ateus e esquecem que também somos minorias
com necessidades e interesses a serem conquistados.

Essa invisibilidade ateia no eixo progressista da sociedade, privilegiando aqueles que, fora
do âmbito da militância, não possuem posição social de privilégio, apaga o fato de que os
ateus também são minorias sociais que sofrem forte discriminação nos espaços públicos e
que a defesa da laicidade constitucional contra os ataques dos fundamentalistas religiosos
que constantemente a violam deve ganhar espaço em destaque nas mobilizações de rua. É
urgente que se construam bases coletivas que promovam atos em prol do Estado laico por
todo o país, que se debata ações no legislativo e no judiciário em defesa da comunidade
ateia e que, a partir de atuações representativas, se combata atos e discursos
discriminatórios contra os descrentes. Só assim será possível enfrentar ataques à laicidade
do Estado e impedir que ocorram casos de ateofobia como os praticados por José Luiz
Datena ao vivo no programa Brasil Urgente da Rede Bandeirantes, em julho de 2010, pela
âncora do SBT Brasil Rachel Sheherazade, em 2013, e pelo candidato à presidência da
República Jair Bolsonaro, em 2018.

Ferir a laicidade constitucional é ferir o Estado democrático de direito; e as instituições


públicas, que devem ser seculares, são frequentemente golpeadas por aqueles que visam
destruir a democracia. Como consequência, são esses violadores antidemocráticos que, a
partir do respaldo de suas posições de influência na sociedade civil, atentam contra as
liberdades e os direitos das minorias. Por conta disso, são necessários núcleos que deem
uma atenção especial ao que os ativistas ateístas e secularistas reivindicam, pelo bem-estar
de todo o povo. Dessa forma, a problemática sociológica que fica é justamente o porquê de
setores do campo progressista ignorarem esses problemas sociais e não os agregarem em
agendas de luta juntamente com outros grupos minoritários que seriam diretamente
beneficiados pela separação total entre Estado e Igreja.
Ainda, acrescentando aqui uma experiência pessoal de dois espaços sociais em que estou
inserido e integrado, essa invisibilidade ateísta e secularista na sociedade se torna
perceptível. Como estagiário da Secretaria de Igualdade, Cidadania, Direitos Humanos e
Assistência Social do Estado do Rio Grande do Sul  —  no Departamento de Direitos
Humanos e Cidadania  — , noto a fundamental presença de coordenadorias que
representam e abordam pautas de diversos grupos minoritários e/ou invisibilizados pela
sociedade (criança e adolescente, pessoa com deficiência, diversidade sexual, igualdade
étnica-racial e pessoa idosa), mas sinto a falta de uma coordenadoria que trate
especificamente de pautas em defesa do Estado laico, dos ateus e de minorias religiosas
oprimidas pela sociedade predominantemente cristã, promovendo políticas públicas para
esses núcleos sociais. É de extrema importância que todas as pautas e todos os grupos
mais fragilizados e que merecem maior atenção e respaldo sejam inseridos nas políticas
públicas de Estado, dando-se a devida atenção e reconhecimento. Por outro lado, enquanto
militante em um coletivo estudantil e de juventude que organiza eventos de mobilização em
defesa da educação, da democracia e de comunidades marginalizadas pelo Estado e pela
sociedade civil, por vezes sinto muita falta, nesse e em outros coletivos, entidades e
movimentos similares, de uma atenção especial com a comunidade ateísta e de atos que
promovam a defesa do Estado laico, contra o fundamentalismo religioso, como pauta
central.

Não que eu esteja comparando a urgência e a necessidade das reivindicações desses


outros grupos minoritários com as pautas pelas quais os ateus ativistas militam. Nem estou
puxando brasa para o meu assado, exagerando, me “vitimizando” ou criando demandas que
não são necessárias ou que não correspondam ao apelo popular. Os contextos, os
processos históricos e as necessidades de cada comunidade são distintos e únicos, assim
como todas as reivindicações são válidas e essenciais, cada uma à sua maneira, conforme
sua necessidade. Mas o fato é que: 1) os ateus são minorias sociais e numéricas; 2) os
ateus sofrem discriminação25 e preconceito por não compactuarem com as crenças da
maioria, sendo invisibilizados na sociedade; 3) a laicidade do Estado é constantemente
violada por grupos fundamentalistas e reacionários que atentam contra as liberdades
democráticas; e 4) o ativismo ateísta e secularista existe (apesar de ser pouco atuante e
conhecido) e luta para que os ateus sejam reconhecidos e respeitados e para que o Estado
laico não sofra os ataques que vem sofrendo. Nós não queremos privilégios, só pedimos ao
campo progressista, seus atores e seus setores  —  estes que defendem as minorias
oprimidas da intolerância das maiorias  —  que a nossa causa, os nossos membros e as
nossas pautas sejam representadas e, principalmente, visibilizadas junto aos outros grupos
sociais, à sociedade civil e ao Estado. Pois defender os interesses dos ateus é o mesmo
que defender a laicidade do Estado, que é o mesmo que defender todos os grupos
identitários minoritários, que é o mesmo que defender o bem-estar social da população, que
é o mesmo que defender a democracia.

Sem laicidade não há liberdade, igualdade e fraternidade (os princípios e pilares da


democracia).

25 VIRGINIA, Anna. Países onde ser ateísta é literalmente mortal. Folha de São Paulo, 2013.
Disponível em: <https://religiosamente.blogfolha.uol.com.br/2013/12/11/13-paises-onde-ser-ateista-e-
literalmente-mortal/>. Acesso em: 19 de novembro de 2021.
(19/11/2021)

O NATAL E O URUGUAI LAICO

A festividade de encerramento do ano popularmente conhecida como ‘Natal’ é, além de uma


entre tantas datas festivas que induzem o consumo e aquecem o mercado capitalista no
mundo todo, uma celebração marcada pelo encontro dos entes queridos ao final de um
ciclo. O real simbolismo da festividade natalina é, fora o alto consumismo, a saborosa ceia e
a troca de presentes, a reunião das famílias em seus lares de carinho e afeto.

Ao contrário do que o senso comum cristão propaga a partir de uma representação natalina
em torno de um presépio e do suposto nascimento do mito Jesus (o que seria o filho dotado
do deus invisível e imaginário do cristianismo), o Natal não é uma festividade de origem
cristã, mas sim uma das diversas celebrações/rituais do paganismo que o cristianismo se
apropriou e absorveu, adaptando sua história, para chamar de seu. Na realidade, o Natal é
basicamente um evento pagão que os cristãos roubaram e subverteram, tornando-o uma
festa adepta em torno de seu mito e de sua mitologia, além de também alimentar e
impulsionar os motores da economia capitalista no ocidente.

Porém, apesar do Natal ser considerado uma festividade diretamente relacionada à


mitologia cristã desde sua origem em grande parte dos países ocidentais, no Uruguai
verdadeiramente laico, com a secularização do calendário nacional desde o início do século
XX, a celebração “natalina” foi laicizada e renomeada, valorizando-se o real sentido desta
data festiva. O chamado ‘Día de la Familia’26 uruguaio valoriza a união familiar e o afeto
fraterno acima das crenças religiosas de culto à personalidade e ao nascimento de um ser
místico adorado e idolatrado. O calendário oficial do país latino-americano, ao reconhecer e
instituir o Natal como sendo o dia da reunião familiar, além de laicizar sua cultura, remove
do domínio cristão uma festividade pagã que com o tempo e a história tornou-se secular.

O país vizinho merece ganhar esse reconhecimento por parte dos ativistas secularistas que
militam em prol de um Estado laico de fato, mas não somente por isso. O Uruguai é
genuinamente o maior exemplo de laicidade que temos na América Latina. No país latino
mais laico e progressista de todos, não há a frase “deus seja louvado” ou algo do gênero em
sua moeda oficial (o peso uruguaio); não há ensino religioso nas escolas públicas; hospitais
e outras instituições públicas não exibem crucifixos em suas dependências; não contém
preâmbulo citando algum deus na Constituição Federal; e não há símbolos religiosos no
Parlamento ou nos demais órgãos do Estado. A estável, resistente e fortalecida laicidade
estatal uruguaia rompe com os ataques e intervenções religiosas desde o calendário
nacional, não permitindo que a igreja viole a secularização das instituições públicas e
estabelecendo a separação total desta do Estado democrático de direito.

O Brasil, país laico apenas na teoria e teocrático cristão na prática institucional, deve
aprender e seguir o fabuloso exemplo do Uruguai laico. Não se pode mais tolerar violações

26PALOMO, Elvira. No Uruguai laico, o Natal é o ‘Dia da família’. El País, 2013. Disponível em:
<https://brasil.elpais.com/brasil/2013/12/24/sociedad/1387857811_264222.html?fbclid=IwAR3nqYtbt-
PIcwKlpf2798AoKZxlceLK8nb_VK7EVcyvuEADP9HYcYP_h6sw>. Acesso em: 11 de dezembro de
2021.
fundamentalistas religiosas à laicidade constitucional. O modelo uruguaio de secularização
do calendário nacional deve ser adotado em solo brasileiro, substituindo o Natal pelo Dia da
Família e eliminando todos os feriados cristãos (no caso, somente católicos) do calendário
em todo o território. Todos os dias e feriados “santos” devem ser substituídos pela
oficialização de feriados nacionais em outras datas, como o dia do “descobrimento”
(colonização) do Brasil, o dia internacional dos povos indígenas, o dia da consciência negra,
o dia internacional dos direitos humanos, o dia internacional da mulher etc. Existem diversos
marcos e diversas datas seculares que representam grupos e atores da sociedade civil e
que podem muito bem alterar os feriados que atualmente celebram santidades católicas. E
aqueles religiosos que quiserem comemorar e homenagear seus mitos e ritos nas datas
apropriadas, que façam sem impor ao restante da sociedade e ao Estado a sua oficialização
em formato de feriado, fazendo com que os não-adeptos tenham de se sujeitar e modificar
seus afazeres e hábitos de vida por causa de uma evidente agressão ao Estado laico. A real
laicidade permite e garante a livre manifestação religiosa, mas nunca a impondo
oficialmente à vida pública, às instituições e à sociedade civil por intermédio do poder do
Estado, seja no calendário nacional ou em qualquer outra esfera institucional.

Tomemos o exemplar modelo do calendário uruguaio  —  sem Natal, sem dia de Nossa
Senhora dos Navegantes, sem dia de Nossa Senhora de Aparecida, sem Corpus Christi,
sem Semana “santa” (lá é a “Semana do Turismo”27), sem o raio que o parta!  —  como
espelho de um Estado verdadeiramente laico e que respeita a secularização da sociedade,
das instituições e do poder público. Que se substitua os feriados de caráter religioso
exclusivos do catolicismo por datas marcantes que representam e visibilizam momentos,
histórias, lutas e conquistas do povo. A democracia não existe sem laicidade, que não existe
sem secularização, que, assim como deus, não existe havendo hegemonia e privilégios de
alguma religião oficializada sobre as demais crenças (ou descrenças) pelo Estado que deve
ser laico.

Façamos de Montevidéu a capital latino-americana da laicidade. Os nossos vizinhos e


hermanos uruguaios, em nome da laicidade da nação e do verdadeiro símbolo que
representa a festividade do dia 25 de dezembro, desvincularam o simbolismo cristão e suas
heranças da festa pagã, reverenciando o marco principal e único da data que fora, com o
passar do tempo, secularizada pelas novas culturas mais progressistas: a família e o
encontro desta ao fim do ano em ambientes de fraternidade e amor recíproco. O ‘Día de la
Familia’ do Uruguai laico, marco da secularização do calendário oficial do país castelhano, é
a representação do que é um Estado plenamente secular para além das formalidades da
Constituição e das teorias políticas institucionais.

Que os ventos soprem em nossa direção!

Desejo a todos e todas um feliz dia da família e um próspero ano novo.

Boas festas! Viva o Estado laico!

(13/12/2021)

27PALACIOS, Ariel. 11 coisas sobre o Uruguai, pioneiro nas liberdades sociais, que talvez você
não soubesse. O Globo, 2018. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/epoca/11-coisas-sobre-
uruguai-pioneiro-nas-liberdades-sociais-que-voce-talvez-nao-soubesse-23172672>. Acesso em: 12
de dezembro de 2021.
POR QUE MILITAR ATEÍSMO?

As sociedades impregnadas pela fé religiosa e por seus dogmas teístas são incapazes de
compreender os motivos e a importância da existência de um ativismo ateísta entranhado
em seus setores civis. Do ponto de vista do senso comum, o ateísmo se resume
basicamente na descrença na existência de divindades ou na crença na inexistência desses
mitos, não havendo razões que justifiquem a institucionalização e a consolidação de uma
militância ateia em prol do que seria puramente uma mera negação a deus. Mas o que os
crentes religiosos desconhecem e não entendem é que o ateísmo vai muito além de
simplesmente crer na ausência ou duvidar da existência.

Sim, é óbvio que para um indivíduo ser considerado ateu ele não pode acreditar em nenhum
deus e não deve possuir religião. Aquele que não crê na existência de um divino e não
pratica nenhuma fé religiosa é um ateu por sua definição genuína. Entretanto, o ateísmo
como ideologia sociopolítica abrange variados temas e diversas demandas civis, políticas e
sociais que ultrapassam o puro e raso limite da crença e da descrença no âmbito teológico.
O ateu como ser social, membro de uma sociedade laica, em um Estado democrático,
possui uma série de direitos que lhe deve ser defendidos, obtidos e/ou garantidos, além de
inúmeros problemas que exigem um combate ativo, sendo tudo isso oriundo diretamente de
um ativismo participativo, representativo e bastante atuante. Portanto o ateísmo é também
uma causa social e, além disso, uma visão filosófica de mundo e de percepção da realidade
natural e social.

Então por que militar ateísmo?

A militância ateísta não incorpora nem se resume  —  e jamais deverá incorporar e se
resumir  —  em discutir a existência de deus ou tentar provar sua inexistência. O ateísmo se
origina de uma negação à crença no divino e à afirmação de que tal divindade exista ou
tenha em algum momento existido, intervindo, assim, na ordem natural do planeta e dos
seres que nele habitam. Desse modo, a afirmação de que deus existe, que é de fato real e
que é o grande e supremo criador do universo, dos seres vivos e de toda a natureza
antecede a negação ateia a essa afirmativa originada das doutrinas teístas. Nesse sentido,
cabe aos que primeiramente afirmam o dever de comprovar e sustentar tal afirmação, e não
aos que negam uma afirmativa sem qualquer base de sustentação e fundamento. Não se
tem como provar que algo não exista, nem sequer há razões para se buscar comprovar a
inexistência de algo. A ciência e seus métodos jamais promovem investigações e estudos
desse tipo. Se não há qualquer evidência ou um básico indício de que tal coisa exista, então
ela, por lógica, não existe. É muito claro e objetivo. Sendo assim, no caso em relação a
deus, o ônus da prova é e sempre será teísta.

Tente imaginar um grupo de cientistas ou um centro de pesquisas se dedicando a fazer um


estudo para provar que um unicórnio que supostamente está orbitando entre os anéis de
Saturno não é real, tudo porque um grupo fundamentalista estabeleceu tal crença e impôs
essa afirmativa que fora instituída e acolhida pela grande maioria dos povos de determinada
parte do planeta. Imagine que se invista uma grande quantia de recursos públicos e um
forte empenho da comunidade científica para realizar a pesquisa, apesar de não haver
sequer um indício mínimo de que o suposto unicórnio possa existir, sendo tudo baseado em
uma mera crendice sem fundamento e lógica. Seria um desperdício de tempo e dinheiro se
dedicar a um objeto de estudo e a um projeto irrelevante e fantasioso como esse.

O exemplo é meramente hipotético, mas pode ser comparado a outras hipóteses místicas e
análogas ao pressuposto, como a existência do Monstro do Espaguete Voador, do, como
propôs o filósofo Bertrand Russell, bule de chá orbitando pelo espaço sideral, ou deus.
Perceba que, nesses casos, qualquer afirmação infundada, por mais que não possa ser
refutada, não é digna de absolutamente nenhuma notoriedade e credibilidade se esta não
possuir indícios que a sustentem e embasem. Essas afirmativas falíveis, que são incapazes,
por lógica, de serem desmentidas, requerem comprovação por parte daqueles que as
fizeram, ao invés de se recorrer à inversão ao ônus da prova contra os que, por óbvio,
negam suposições medíocres e estapafúrdias, na tentativa de atestar sua veracidade.

Eu particularmente jamais discuto se deus existe ou não, me negando veementemente a


desperdiçar meu precioso tempo com temas de discussão bestas e sem sentido como este.
Da mesma forma, não aceito que os crentes invertam o ônus da prova contra mim,
buscando consolidar seus argumentos superficiais por intermédio da alegação estúpida de
que não sou capaz de “provar que deus não existe”. Uma ova, teístas! Se não há evidências
ou sequer mínimos indícios de que deus existe, portanto deus não existe. Isso é um fato,
uma obviedade. Eu nunca vi um deus, e desconheço qualquer pessoa que tenha visto.
Aliás, na minha concepção, acho que seja impossível qualquer indivíduo ter esse
conhecimento estando em plenas condições mentais, apesar do que uns e outros
fundamentalistas alienados, com seus conhecimentos anedóticos, venham a testemunhar.
Pois não há nada no universo que comprove que deus é real e que sustente essa crendice
que uma maioria barulhenta propaga durante séculos por meio de dominação e doutrinação.
E caso os crentes recorram ao falho e raso argumento de que a evidência da existência de
sua divindade é a existência do planeta, recorro mais uma vez ao ônus da prova que lhes
cabe: provem. O planeta está aí para quem quiser ver, mas onde está deus que não o vejo?
Os meus olhos não visualizam ações divinas, menos ainda a presença celestial. E se deus
criou o mundo, então quem criou deus? De onde ele surgiu? São questões que os
pregadores e mercenários da fé são incapazes de desvendar e responder com
transparência e objetividade, sem suposições místicas e malabarismos argumentativos que
se aproveitam, levianamente, de lacunas científicas ou da negação da realidade natural e
social.

Portanto, é vedado ao ativismo ateísta e aos ateus de modo geral a atribuição de provar a
inexistência do mito que os teístas criaram em suas mentes perturbadas, bem como debater
ou teorizar tal crença sem relevância para o mundo real e material. Eu seguirei ateu até o
dia em que um teísta, com absoluta certeza e sem sombra de dúvidas, me mostrar e, assim,
me comprovar de forma racional a existência do seu deus. Até lá  —  e tenho plena
convicção de que esse dia jamais existirá  — , seguirei convicto e orgulhoso de meu ateísmo,
questionando e desconstruindo a fé religiosa, juntamente com todo bom e verdadeiro
militante ateu que se preze e que reconheça nossa evolução psíquica em relação a eles.
Isso, evidentemente, tendo em vista que, como costumo dizer, a falta de evidências da
existência é, automaticamente, evidência da inexistência. E, como bem enfatizou o
astrônomo Carl Sagan, “alegações extraordinárias requerem evidências extraordinárias”.
Mas então o que é militar ateísmo?

Militar ateísmo é: se assumir e se afirmar como ateu/ateia perante a sociedade


civil e o Estado, posicionando e usufruindo do direito à descrença e à negação
divina; representar-se como ateu/ateia em espaços públicos e em debates
plurais e participativos, especialmente quanto se aborda temas relacionados a
religião e laicidade; divulgar e visibilizar argumentos, conteúdos, personalidades
e propagandas pró-ateísmo e secularismo em ambientes e plataformas sociais,
sejam elas físicas ou digitais; instituir e propagar ideais e conceitos
progressistas no âmbito social, em oposição e desconstrução ao
conservadorismo e às suas concepções de moralidade sustentadas e
embasadas na fé religiosa; combater a discriminação e a intolerância contra a
comunidade ateia  —  uma minoria social e numérica excluída e oprimida
socialmente  — , esta originada dos religiosos fundamentalistas  —  a chamada
ateofobia  — , bem como os preconceitos sofridos por outros grupos identitários
minoritários oprimidos e discriminados pela igreja e por suas tradições
conservadoras e fundamentalistas; defender um Estado verdadeiramente laico,
com neutralidade em todas as instâncias, separação total entre igreja e governo
e secularização radical das instituições, dos órgãos e de todo o setor público; e
enfrentar ataques à laicidade constitucional e intervenções religiosas no poder
público, além do domínio da religião hegemônica e de seus líderes e
representantes nas esferas governamentais executivas, legislativas e
judiciárias.

O ativismo ateísta, a ser melhor estruturado, consolidado e inserido na militância do campo


progressista da sociedade civil28, tem intuitos e demandas democráticas e inclusivas que
ultrapassam a mera definição do ser ateu. Por isso é de extrema importância que toda a
comunidade ateia tome conhecimento e compreenda as necessidades e os motivos de ser
mais do que um mero descrente em deus, mas de instituir essa negação afirmativa na
sociedade, revolucionar o sistema praticamente teocrático e sua ordem, e conquistar a
tomada de espaços através da ocupação, da resistência e, claro, de muita luta. Se faz
urgente a construção de bases seculares sólidas que ampliem e fomentem o ateísmo como
militância sociopolítica no debate público e nas agendas de conscientização e de
mobilização. São por essas razões, e para com esses objetivos, que se introduz tal
manifesto. O ateísmo e o secularismo devem ter suas bandeiras erguidas, conjuntamente,
em prol da democracia e da laicidade e em confronto à moral e à ética religiosa/teísta, por
meio de um movimento representado na figura de entidades identitárias e participativas que
organizem e engajem pautas em torno especificamente desse ativismo.

Entenda a definição de movimentos progressistas e como o ativismo ateísta se


articula neste campo social29:

28 Ver capítulo A invisibilidade do ativismo ateísta e secularista no campo social progressista.


29 Texto corresponde à parte de revisão bibliográfica de meu projeto de pesquisa produzido para a
disciplina de Introdução à Pesquisa Social, do curso de Ciências Sociais da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul (UFRGS), durante o segundo semestre de 2021.
Os movimentos sociais seriam ações coletivas direcionadas ao Estado por parte de atores
que compartilham de uma localização estrutural e de desafios em comum. No caso de
movimentos sociais progressistas, refere-se a atores que compartilham de uma identidade
em comum (LeDrew, 2013), como indivíduos pertencentes a grupos identitários minoritários  
—  social e/ou numericamente  —  oprimidos e excluídos pela sociedade. Quanto a
movimentos políticos, estes seriam estabelecidos a partir de ações destinadas ao Estado
com o intuito de promover mudanças na política institucional (LeDrew, 2013). Sendo assim,
no sentido de movimentos políticos progressistas, refere-se a ações com o objetivo de
promover a inclusão, a visibilidade e a representatividade dessas minorias na política
institucional, a partir de pautas e projetos no poder legislativo que visem combater a
discriminação, a intolerância e as injustiças contra esses grupos sociais, reduzindo
desigualdades e reparando problemas históricos e estruturais.

Segundo Stephen LeDrew (2013), o ativismo ateísta pode ser identificado por meio de
entidades (associações, coletivos e/ou organizações) compostas por atores identificados
como ateus e que se organizam em torno de temas como ateísmo, secularismo,
racionalismo, ceticismo e humanismo, além de se manifestarem e militarem em defesa de
pautas em prol da laicidade do Estado, como a separação total entre igreja e Estado, a
secularização das instituições e dos órgãos públicos e a proteção do direito e da liberdade
de descrença e negação ou dúvidas às crenças religiosas. De acordo com o autor, esse
ativismo pode ser classificado como sendo um movimento cultural, o qual se caracterizaria
pela construção e a defesa de identidades compartilhadas a partir de ações ideológicas
destinadas à sociedade com o intuito de provocar transformações nos valores e nas crenças
sociais.

Dentre as entidades que representam e organizam o movimento cultural ateísta pelo


mundo, engajando esse ativismo, destacam-se a Atheist Alliance International, a British
Humanist Association  —  do Reino Unido  — , a American Atheists  —  fundada nos EUA em
1963 pela ativista ateia Madalyn Murray O’Hair  — , a Richard Dawkins Foundation  — 
fundada em 2006 pelo biólogo britânico Richard Dawkins  —  e a Associação Brasileira de
Ateus e Agnósticos (ATEA)  —  fundada em 2008, em São Paulo/SP, pelo engenheiro Daniel
Sottomaior.

LeDrew (2013) define as ações promovidas pelas entidades ateístas como sendo formas de
comprovar o enfoque cultural desse movimento progressista, quando estas destinam seus
manifestos em defesa de um grupo social e numericamente minoritário oprimido e excluído  
—  os ateus  —  e de pautas em sua promoção e garantia  —  como o Estado laico. No caso
brasileiro, a ATEA se articula através de um chamado ativismo jurídico como sua principal
forma de atuação política e social (Montero; Dullo, 2014), investindo em ações judiciais que
cobram do poder público a garantia da laicidade constitucional e o respeito à comunidade
ateia perante a sociedade e o Estado.

Quanto às atuações da militância ateísta, para além de campanhas de publicidade e


vinculação de propaganda secularista em espaços públicos por intermédio de suas
entidades representativas, as ações do movimento

têm sido favorecidas pelo uso da internet. Os grupos ateístas passaram a usar
blogs, fóruns de discussão, podcasts e redes sociais, com destaque ao
Facebook. Essas comunidades virtuais se mostraram cotidianamente
envolvidas com o ateísmo (Silva, 2020, p. 148).

Esse ativismo virtual que ganhou força e notoriedade a partir da segunda metade da década
de 2000, impulsionado por entidades que promovem o ateísmo como causa social pelo
mundo todo e por ateus que militam ativamente pela ideologia antirreligiosa, é identificado
por meio do termo “neoateísmo” (Silva, 2020), o qual LeDrew (2013) define como sendo um
movimento intelectual que surgiu no início do século XXI promovendo uma defesa da
modernidade, do racionalismo e do humanismo, via cientificismo (evolucionismo darwinista),
contra as mitologias religiosas, o relativismo cultural e a pseudociência. A expressividade
prática dessa militância virtual se tornou notável e mais significativa através de iniciativas e
ações que ultrapassaram os limites da internet, como é o caso do evento ‘Encontro Nacional
de Ateus’ (ENA), realizado entre 2012 e 2016, da publicação das edições impressa e digital
da Revista Ateísta, produzida entre 2014 e 2018, e do ativismo político representado com
identidade exclusiva no país, até então, pelo militante ateísta Edmar Luz, que fora candidato
a vereador pela cidade de São Paulo nas eleições de 2016 e 2020, a deputado federal pelo
estado paulista em 2018, e é popularmente conhecido como sendo o primeiro “político ateu”
do Brasil.

Já nessa corrente filosófica cientificista evolucionista, atrelada também ao humanismo


materialista, destaca-se a influência teórica e as obras dos que seriam os “pais fundadores”
do neoateísmo: Richard Dawkins (com Deus, um delírio), Christopher Hitchens (com Deus
não é grande: como a religião envenena tudo), Sam Harris (com O fim da fé) e Daniel
Dennett (com Quebrando o encanto).

(13/01/2022)

“DEUS SEJA LOUVADO”? UMA OVA!

A Constituição Federal de 1988  —  a chamada ‘Constituição Cidadã’  —  oficializa a laicidade
do Estado brasileiro em dois momentos: o primeiro no inciso VI do artigo 5º, onde é
assegurada a liberdade de crença e o livre exercício dos cultos religiosos, bem como sua
proteção, e o segundo no inciso I do artigo 19, onde fica estabelecido que

é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios


estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o
funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de
dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de
interesse público.

Apesar da Carta Magna de 88 não referenciar o termo ‘Estado laico’, a laicidade estatal está
estabelecida por incorporar as bases secularistas (não haver definição de religião oficial no
país; liberdade de crença; livre exercício da fé; neutralidade estatal perante as religiões e
separação entre Igreja e Estado) ao texto constitucional. Essa oficialização imputada na
Constituição é o que caracteriza o Brasil como sendo um Estado laico, diferentemente de
um Estado confessional ou teocrático.
Porém, a despeito da teoria constitucional, na prática efetiva a laicidade do Estado não é tão
perceptível quanto deveria. Muito pelo contrário, os ataques e desrespeitos que
constantemente ferem o que está implicitamente expresso na Constituição Federal são
alarmantes aos olhos daqueles que se sentem agredidos e ameaçados com tamanha
violação.

Sim, é verdade que o Brasil não possui uma religião oficial desde o advindo da República,
que trouxe, em suas raízes, o princípio da laicidade, que é um dos pilares que sustenta a
democracia republicana. O país também garante a liberdade de crença (e de descrença, o
que é fundamental) e o livre exercício da fé religiosa, bem como a proteção aos cultos e a
manifestação particular dos crédulos. Mas neutralidade estatal? Separação entre Igreja e
Estado? Isso com certeza não há nessa Pátria doutrinadora.

Ainda faltam alguns pilares a serem erguidos, lapidados e consolidados para obtermos uma
laicidade plena e factual. A intolerância religiosa em casos circunstanciais (e promovida de
religiosos para com religiosos, é bom destacar) ainda é um problema social, enquanto que a
fé hegemônica da classe dominante e da imensa maioria é privilegiada pelo Estado e
impera sobre as demais crenças. Na prática, vivemos sob um Estado confessional cristão,
por vezes  —  e em ocasiões bastante específicas  —  beirando uma teocracia regida ora pela
Igreja Católica, ora por grupos influentes dos templos evangélicos. E se esses setores
fundamentalistas e conservadores ainda não conseguiram impor efetivamente a autocracia
cristã que tanto almejam, isso se deve à luta e à resistência de setores progressistas que
prezam e zelam pelo pouco de laicidade que, por enquanto, ainda sustentamos.

Essa exposição crítica aparenta ser um mero exagero de ateu revoltado? Então analisemos
alguns casos típicos brasileiros:

A começar pela própria Constituição Federal de 1988. O mesmo texto constitucional que
oficializa o Brasil como sendo um Estado laico  —  por mais que não cite nenhum termo que
se refira diretamente à laicidade  —  se inicia com o seguinte preâmbulo:

Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional


Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o
exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-
estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de
uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia
social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica
das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.

Mas como assim, “sob a proteção de Deus”? Como uma Constituição dita “laica” e “cidadã”
é promulgada sob a “proteção” de um mito religioso? Onde está a neutralidade do Estado
em relação à fé neste caso?

Eu poderia adentrar em um ponto de questionamento quanto ao que um deus imaginário e


invisível pode proteger e assegurar. Poderia também propor uma reflexão sobre como um
suposto deus que não é capaz de proteger os seus próprios devotos dos malefícios do
mundo, impedindo que estes ocorram, seria capaz de resguardar um conjunto de normas
jurídicas de um Estado que não deve reconhecê-lo oficialmente. Entretanto, a inserção
detalhada de críticas e interrogações ao teísmo desvirtua a proposta central deste artigo e
usufrui de uma temática previamente planejada para um próximo. O “X” da questão aqui
está na problematização do termo ‘deus’, que fora empregado irregularmente numa
Constituição laicista que, em contrapartida, omite o termo ‘laico’ de seu conteúdo legal.

Sabe-se que existem diversas definições de deus e que o termo, universalmente, é muito
amplo, mas, ao ser empregado na Carta Magna de um país historicamente influenciado e
dominado pela Igreja Católica  —  ainda mais nos tempos imperiais, onde o catolicismo era
institucionalizado como sendo a religião oficial da nação  — , assim como formado por uma
maioria populacional que se afirma como católica/cristã, praticante ou não, fica evidente que
o tal deus citado no preâmbulo constitucional se refere ao mito judaico-cristão, aquele que é
louvado e acreditado pelos sujeitos que, na Assembléia Constituinte do final da década de
1980, professavam, em imensa maioria, a fé cristã. Nesse sentido, além de ferir a
neutralidade do Estado ao absorver uma doutrina em particular, o próprio Estado brasileiro
exclui os ateus e os agnósticos singulares da proteção constitucional. A partir dessa
interpretação, a Constituição Federal em vigor foi promulgada sob a proteção de um deus
que uma pequena parcela da população, porém significativa, não reconhece e/ou se
submete. Assim, ao violar a laicidade logo em sua introdução, a Constituição “Cidadã” exclui
membros da nação e parte do povo, sabotando a democracia e desestruturando um dos
pilares mais sólidos que a constitui: a secularização do patrimônio público e das esferas
governamentais.

Contudo, não é somente no preâmbulo constitucional que a laicidade do Estado é violada


pela própria estrutura institucional e por seus representantes políticos. Se já não bastasse
sujeitar a proteção da Carta Magna sob um ser imaginário, invisível e atrelado à fé de uma
religião centralizadora, violando a neutralidade estatal, o Estado brasileiro fere o princípio
secular da separação total entre Igreja e Estado ao privilegiar uma mitologia específica
sobre as demais. O cristianismo católico se sobressai e impera acima das outras religiões
presentes no país por ser a religião hegemônica, isto é, a fé absorvida pela grande maioria
da população e, principalmente, por grupos do topo da pirâmide social. A agenda cristã
promovida com o intuito de dominação nacional e global é de interesse das classes
dominantes, as elites do capitalismo mundial. E esse privilégio pelo cristianismo que a
máquina estatal estimula pode ser reparado no calendário nacional, nos órgãos públicos e
até na moeda oficial.

Existem ao menos cinco feriados católicos ao longo do ano, mas absolutamente nenhum
que marque algum rito de outra fé religiosa. Um deles, o do dia 12 de outubro, foi
promulgado a partir da Lei nº. 6.802, que declara oficialmente a estátua de Nossa Senhora
de Aparecida como sendo a ‘Padroeira do Brasil’. Nesses casos, trata-se de uma violação
da neutralidade do Estado no âmbito religioso e da separação entre Poder Público e setores
vinculados à Igreja. Com essas datas oficializadas como sendo feriados nacionais, uma
religião é privilegiada e imposta à sociedade civil, as minorias religiosas são excluídas e o
Estado deixa de ser neutro no âmbito religioso, rompendo com bases estruturais do Estado
laico. Em outro capítulo30, expus a ideia de eliminar os feriados religiosos e substituí-los por
datas seculares que representam lutas, celebrações e conquistas de grupos da sociedade
civil, secularizando, assim, o calendário nacional, como o Uruguai vem fazendo com o seu
desde o século XX. Se datas de outras mitologias não são reconhecidas oficialmente pelo
30 Ver O Natal e o Uruguai Laico.
Estado e declaradas como feriados nacionais, bem como o Dia Nacional do Orgulho Ateu
em 12 de fevereiro, então que se extermine com as celebrações do catolicismo do
calendário brasileiro.

Por outro lado, além dos feriados cristãos, outra violação à laicidade estatal pode ser
percebida nas intituições públicas que exibem a imagem de um crucifixo, símbolo do
cristianismo e instrumento de tortura dos velhos tempos, em locais de destaque. Esse
simbolismo cristão  —  assim como outras representações  — , acompanhado da imagem do
mito Jesus pregado a ele, é exposto em hospitais, praças, escolas e repartições públicas,
no Congresso Nacional e até no Supremo Tribunal Federal (STF), não estando
acompanhado por nenhum outro emblema que represente alguma fé religiosa alternativa. O
símbolo da mitologia cristã é constantemente exposto em locais públicos, estando em
posição de privilégio e imperando sobre os demais escudos de outras religiões, que são,
portanto, invisibilizadas.

Um Estado laico deve se manter sempre isento em relação às mitologias religiosas ou, na
pior das hipóteses, abarcar todas elas de modo igualitário. Porém, como há um excedente
de religiões no planeta e um número amplo de religiosos no país, não seria cabível e
aceitável equiparar todas as crendices de todos os cidadãos com efetividade, agregando
todas as simbologias representativas existentes. Por conta disso, o ideal é que a esfera
pública permaneça isenta e se omita de questões voltadas ao âmbito religioso/ideológico,
bem como à existência ou não de divindades. Pois, nesse caso, além de violar a
neutralidade e a separação entre Estado e Igreja, o Brasil fere a secularização dos órgãos e
das instituições, rompendo com pilares da laicidade no Poder Público e, consequentemente,
com o Estado democrático de direito.

Por fim, um dos ataques mais absurdos e asquerosos à laicidade do Estado que é
necessário ressaltar, e que assim como os símbolos religiosos em locais públicos o exemplo
uruguaio também extinguiu, prezando pela secularização da estrutura social, está na moeda
oficial brasileira, o Real. Do mesmo modo como no preâmbulo da Constituição, a moeda
nacional também cita deus, em referência ao mito judaico-cristão, com louvor e proteção.
“Deus seja louvado”, esta é a frase estampada no canto inferior de toda nota de dinheiro do
Brasil desde a década de 1980, antes da Constituição de 88 (mas ainda durante um período
laico), quando o então presidente José Sarney, católico praticante e, como tal, inimigo do
Estado secular, solicitou sua inclusão na moeda da época, o Cruzado  —  criada a partir do
Plano Cruzado, em 1986.

“Deus seja louvado”? Uma ova!

Assim como a introdução constitucional, a frase expressa na moeda nacional privilegia um


grupo religioso dominante e influente  —  os cristãos  — , exclui e oprime os ateus, impondo
goela abaixo as crendices da maioria à minoria, e viola a neutralidade estatal e a
secularização da moeda, ferindo o Estado laico. É inadmissível e repugnante que, em pleno
século XXI, mesmo com a oposição de setores progressistas e secularistas da sociedade
civil, pró-laicidade, a frase seja mantida, estando em confronto com o que diz a atual
Constituição Federal, vigente logo em seguida à criação do ataque. O atentado à
secularização nacional é um desrespeito às comunidades não-teístas, aos ateus e
agnósticos singulares, às minorias religiosas, como as afro-brasileiras, e aos adeptos de
crenças não-monoteístas. Se o Estado fosse laico de fato e não apenas na teoria, como
estabeleceu a Carta Magna nos anos 1980  —  esta também constantemente violanda em
conjunto com a democracia  — , casos como esses seriam inaceitáveis e inconcebíveis. Por
isso que é fundamental a construção de um projeto nacional de secularização, visando a
defesa de um Estado, acima de tudo, laicista.

Desejo muito que um dia a laicidade do Estado seja respeitada e que tenhamos uma nação
e uma sociedade genuinamente secular. Até lá, é dever de todo ativista secularista defender
a neutralidade estatal no âmbito religioso, a secularização dos órgãos e das instituições da
esfera pública e a separação total e radical entre Igreja e Governo. Enquanto nada muda e
não há sinais de mobilizações que indiquem a eliminação dos feriados católicos e suas
substituições, a retirada de símbolos cristãos de locais públicos e a remoção das frases “sob
a proteção de Deus” e “Deus seja louvado” do preâmbulo constitucional e da moeda
nacional, respectivamente, que nós, membros da comunidade laicista, guardiões morais do
Estado laico, façamos o que estiver ao nosso alcance para introduzir ideais e conceitos que
transformem e edifiquem a democracia participativa, pluralista e inclusiva.

Aos defensores de um Estado verdadeiramente laico: apoiem a retirada da frase em alusão


ao mito cristão da Constituição Federal; sabotem os feriados religiosos, propondo a
eliminação e a substituição destes por datas que representam e visibilizam causas e ações
de grupos seculares do núcleo social; e lutem para que os símbolos do cristianismo sejam
removidos dos setores públicos da sociedade civil, bem como para que a mitologia cristã
seja invisibilizada perante o Estado brasileiro. Quanto a frase teísta na moeda nacional,
além de defender sua remoção, risque-a, preferencialmente com uma caneta de modo
permanente, secularizando sua circulação pela sociedade. É rasurando as notas e
boicotando as intervenções cristãs no Estado laico que, aos poucos, daremos os passos
iniciais para revolucionarmos o sistema teísta e constituirmos um modelo de nação ideal,
isento de influências vinculadas à moral e à ética religiosa.

Moeda nacional brasileira secularizada com sucesso.

O Estado laico não reconhece divindade alguma. Para esta estrutura, bem como para a
realidade natural e material, ou para qualquer livre pensador, deus não existe. Aquilo que é
invisível, imaginário e irreal não precisa, não pode e não merece ser privilegiado e/ou
louvado, assim como é incapaz de proteger, assegurar ou sustentar o que o ser humano,
por si só, foi capaz de idealizar e criar.

(08/02/2022)

SECULARIZANDO UM VOCABULÁRIO DOUTRINÁRIO

As mentes mais progressistas e, consequentemente, mais avançadas e menos retrógradas


da sociedade civil percebem que o nosso vocabulário social, além de colonizado, é
religiosamente doutrinado. Secularistas e livres pensadores devem problematizar
determinados vocábulos do cotidiano, buscando descolonizar e secularizar as linguagens
coloniais e catequizadas. É necessário desconstruir costumes ultrapassados que não
cabem nos tempos atuais.

Atualmente percebemos problemáticas sociais no uso comum e normalizado de termos


racistas, herdados de tempos escravistas. Palavras como “denegrir” (no sentido de tornar
negro, como sendo algo perjorativo), “criado-mudo” (onde “criado” remete aos negros
escravizados na época da escravidão) e “mulato” (que descende da palavra “mula”, ao se
referir a pessoas mestiças  —  os pardos) hoje são caracterizadas como termos provenientes
de uma cultura e de uma estrutura racista que deve ser desconstruída e erradicada do
vocabulário popular. O mesmo ocorre com expressões discriminatórias como, por exemplo,
“homossexualismo” (que atribui à homossexualidade um tom de ideologia ou doença, ao
invés do que é de fato: uma orientação sexual), “opção” ou “preferência sexual” (insinuando
que orientações sexuais são na verdade escolhas pessoais do indivíduos na sociedade),
“judiar” (que, de forma depreciativa, seria o mesmo que “tratar como judeu”, povo vítima das
atrocidades nazistas na Alemanha durante as décadas de 1930 e 1940) e “mulherzinha”
(quando dito a homens com a intenção de inferiorizá-los como sendo mulheres, estas que
são erroneamente consideradas como sendo parte do “sexo frágil” pela sociedade).

Outras palavras e expressões com o tempo também foram problematizadas e


desconstruídas socialmente, evitando-se as conotações impositivas e preconceituosas que
carregam em conceitos. O termo “escravo” para se referir aos negros, pardos, indígenas e
não brancos em geral que sofreram com trabalhos forçados no período da escravidão é algo
em desuso, a ser abolido do vocabulário coloquial. Tratar algum indivíduo por “escravo” é
algo que naturaliza a escravidão, como se esta fosse uma condição oriunda do estado de
natureza, quando na verdade trata-se de uma condição socialmente imposta por forças
maiores e repressoras  —  os escravistas e o Estado. Portanto, o termo correto,
descolonizado e antirracista a se utilizar ao se referir às vítimas da escravidão é:
escravizados.

O que pretendo com essa introdução desconstruída é indicar que as palavras não são
neutras, pois todas absorvem um significado a qual lhes são atribuídas socialmente. Há
costumes errados, assim como há expressões erradas e maneiras erradas de se expressar.
“Nortear”, dando a entender que o norte é sempre a direção correta e o caminho a ser
seguido (centrado no etnocentrismo norte-americano e europeu, que ocupam o hemistfério
norte do planeta), “bicha”, “viado” ou “gazela”, quando proferidos contra membros da
comunidade LGBTQIA+ em sentido perjorativo, ofensivo e depreciativo, “negrada”, quando
direcionado a indivíduos ou grupos pertencentes à comunidade negra, e “mendigo” ou
“pedinte”, ao se referir a pessoas em situação de rua, são alguns exemplos de palavras
depreciativas, agressivas e intolerantes que não podem mais ser proferidas, devendo ser
todas abolidas do vocabulário popular de imediato, com urgência.

Outro exemplo oportuno a se destacar é quanto ao uso da palavra “americano” para se


referir única e exclusivamente aos cidadãos nascidos e/ou residentes nos Estados Unidos
da América. Ora, americanos são todos aqueles pertencentes do continente americano,
desde o extremo norte do Canadá até o extremo sul do território, na Patagônia. Todo nativo
da América é americano, desde caribenhos, latinos, sul-americanos, norte-americanos e
anglo-saxões, bem como todo nativo da Europa é cidadão europeu. Essa imposição
imperialista ianque de que somente os cidadãos dos EUA são os americanos e o restante
do continente, com exceção dos canadenses, são apenas latinos ou hispânicos é uma
forma de dominação e colonização opressora e doutrinária, e isso nós não podemos aceitar
passivamente. Devemos descolonizar e desconstruir imposições dessa estirpe. Somos
latinos e sul-americanos, sim, mas também somos cidadãos americanos tanto quanto eles,
os estadunidenses norte-americanos. E o termo correto a se falar é justamente esse:
estadunidense.

Expressões e palavras alienantes, impositivas, opressoras, preconceituosas e


discriminatórias, constituídas a partir de concepções reacionárias que moldam a sociedade
conservadora, patriarcal, heteronormativa e supremacista branca, precisam ser
problematizadas, descolonizadas e descontruídas até que sejam eliminadas do vocabulário
cotidiano. É inaceitável que certos termos ainda sejam normalizados e proferidos sem
nenhum tipo de policiamento moral como censura, visando prevenir e coibir a intolerância, a
marginalização e a customização do passado errático e atrasado.

É preciso salientar que a liberdade de expressão não é ilimitada, nem pode ser confundida
com liberdade de opressão e permissão para propagação de discursos e falas de ódio ou
aversão às minorias.

Nesse sentido, o mesmo vale para expressões catequizadas, pelas igrejas e religiões, que
compõem o linguajar popular. A fé religiosa hegemônica e dominante na sociedade
ocidental  —  o cristianismo  —  instituiu termos que se tornaram comuns até mesmo para
quem não segue esta determinada fé ou sequer possui alguma crença religiosa. É natural
no convívio social proferirmos ditados e frases de cunho cristão/teísta, remetendo-se
sempre a um ser divino e supremo (judaico-cristão), mesmo que o sentido ao proferir tais
expressões, na maioria dos casos, não caracterize de fato crença ou devoção a este ou a
algum outro deus.

Os ateus e agnósticos singulares por vezes também costumam utilizar essas expressões
popularmente teístas. Não os julgo, afinal todas essas expressões são fruto de séculos de
colonização europeia e doutrinação religiosa por parte da Igreja Católica, por meio da
catequese e do Estado confessional monárquico. Eu mesmo, sendo ateu, muitas vezes me
deixei levar e, em momentos descontraídos e de impulsão, proferi palavras em vão, citando
o termo “deus”. Por vezes até tenho recaídas, me esqueço, e acabo proferindo tais frases
corriqueiras sem pensar, de forma irracional (como se baseia a fé e a espiritualidade), mas
que em nada muda ou abala as minhas convicções ateístas e céticas. Com o passar do
tempo, felizmente, pude desconstruir meu vocabulário, secularizá-lo, e, assim, abolir quase
por completo a palavra “deus” de todas as minhas falas, permitindo-me uma forma de
comunicação ideal e secular nas relações interpessoais. E é essa a minha proposta com
este artigo: transmitir a outros ateus, secularistas, agnósticos singulares e livres pensadores
maneiras alternativas e seculares de se falar e de se comunicar na vida social, eliminando
um vocabulário doutrinado pelo cristianismo e por sua cultura dogmática impositiva ao
Estado laico e à sociedade civil.

Primeiramente devo elucidar o que defino como sendo “expressões catequizadas e


doutrinadas pela fé religiosa”. Cito alguns exemplos que elucidam bem ao que me refiro: “ai,
meu deus”; “se deus quiser”; “vá com deus”, “fique com deus” ou “deus lhe acompanhe”;
“deus lhe pague”; “pelo amor de deus”; “graças a deus”, entre outros menos comuns. Essas
são algumas das expressões que livres pensadores, ateus, agnósticos singulares e
secularistas não devem proferir. Precisamos comunicar, conscientizar; precisamos
desconstruir e secularizar o vocabulário que o teísmo egocentrista nos impôs socialmente.
E, dando iniciativa a esse processo, irei demonstrar a forma simples de realizar esse modo
de desconstrução e secularização, alterando expressões confessionais por expressões
laicas. Veja só:

Você, livre pensador e descrente, pode substituir o “ai, meu deus” por “que droga”, “tá
louco”, “ah, não”, “poxa, vida”, “que merd*”, “não acredito”, “minha nossa” ou por qualquer
palavrão ou gíria regionalista (como o “bah”, para os gaúchos) que represente o sentido
frustrante, surpreso ou espantado que a expressão tende a remeter quando proferida.

O “se deus quiser” (ou “deus queira”) pode ser muito facilmente substituído pelo simples e
clássico “tomara”, mas também há alternativas como: “espero que sim”, “torço para que
aconteça”, “se tudo der certo” ou “se eu conseguir”, “se eu puder”. O mesmo pode ocorrer
com o verbo “rezar”, que pode ser substituído pelo verbo “torcer”. Ex.: uma alternativa
secular a frase “vou rezar por você” pode ser “vou torcer por você”, “torcerei para dar tudo
certo” ou “torço para que tudo fique bem”. Ateus não rezam; ateus torcem, desejam.

“Vá com deus”, “fique com deus” ou “deus lhe acompanhe” são expressões que podem ser
alteradas por “se cuida”, “vá em paz”, “fique bem” ou mesmo qualquer simples despedida,
como um mero e breve “tchau, até logo”, ou “até mais”, “até a próxima”. Quanto ao disparate
do “deus lhe pague”, além de uma possível resposta saliente ao crente que lhe proferir,
pode-se substituir por um tradicional “obrigado”, demonstrar gratidão de outra forma mais
convencional ou de fato pagar o sujeito sem transferir sua dívida a um ser invisível e
imaginário que jamais poderá quitá-la.

O famoso “pelo amor de deus” pode ser facilmente secularizado pelas expressões
alternativas que apresentei em relação ao “ai, meu deus”, ou então posso sugerir umas
adicionais, como “caramba”, “que absurdo”, “por favor” ou qualquer expressão secular que
expresse o mesmo sentido da expressão de caráter teísta.

Por fim, a expressão mais utilizada: “graças a deus”. Essa é bastante fácil, pode ser
substituída pelo tradicional “ainda bem”, ou então, “que maravilha”, “que ótimo”, “que bom
que deu tudo certo” ou qualquer exclamação que expresse entusiasmo, alívio ou satisfação.
Lembre-se: você não precisa agradecer a algo sobrenatural, dar “graças a deus”, por algo
bom que ocorreu contigo ou com algum ente querido  —  sem qualquer interferência mística
e espiritual, por óbvio —, mas sim demonstrar contentação com tal fator positivo. Isso por si
só já basta.

O ideal é que os próprios cristãos também evitem se expressar de maneiras não


convencionais em ambientes seculares, em respeito tanto aos ateus e agnósticos
singulares, quanto à laicidade do Estado. Parte do mesmo tom respeitoso de empatia e
compreensão que se cobra da sociedade para com a aceitação do uso de pronomes
neutros nas relações com indivíduos membros da comunidade LGBTQIA+. Não pega bem e
torna-se desrespeitoso quando um cristão, munido de sua posição social de privilégio por
pertencer a uma elite religiosa dominante e hegemônica, profere uma expressão de caráter
teísta  —  como alguma das citadas acima  —  a uma pessoa declaradamente ateia.

Depois não adianta reivindicar dos ateus respeito às suas crenças…

Esse recado é uma regra geral, que vale para todo mundo: você não precisa inserir o
substantivo comum “deus” em seu vocabulário para expressar positividade em suas
palavras, ou mesmo para lamentar ou reclamar de algo ou de alguém. Se deus não está
inserido na realidade natural e material, de nada adianta tentar inseri-lo, de forma estúpida,
no mundo social por intermédio de expressões coloniais e doutrinárias. Deus não vai passar
a existir e nem o rumo do universo será alterado por conta da inserção forçada da palavra
no vocábulo da população e, de modo geral, da nação. Assim como citar deus não
fundamenta ou embasa a crença neste ser mitológico, muito menos converte aqueles que
não o seguem ou reconhecem.

Como as expressões ditas em vão com o uso da palavra “deus” são fruto de séculos de
colonização e doutrinação religiosa, ou seja, de imposições sociais normalizadas e
cultivadas a partir de uma forte predominância da cultura cristã na sociedade ocidental, o
fato de um ateu por vezes expressá-las involuntariamente não modifica em nada suas
convicções, apesar deste ter de tentar evitar esses usos por coerência com o ateísmo que
absorve e defende. Quando um ateu, em vão, profere “ai, meu deus” ou “graças a deus”
sem pensar, ele não está se “rendendo a fé”, “aceitando Jesus” ou “passando a acreditar”,
mas sim expressando algo que por toda sua vida foi comum e que fora culturalmente
induzido a fazer. Não se trata de hipocrisia ou fragilidade ateísta, mas sim de vícios de
linguagem, como quando soltamos palavrões sem intenção ou por força do hábito, por mero
costume.

Apesar da importância de se secularizar o vocabulário, até que o faça, o ateu não será um
hipócrita ou um teísta enrustido só porque citou uma divindade da qual ele não acredita que
exista, em uma expressão que a cultura hegemônica imposta e a vida social e cotidiana lhe
introduziu. Nenhuma crença é estabelecida ao se proferir palavras vazias, sem atribuição de
significado e conotação no sentido em que são expostas. Apontar isso para atacar a
comunidade ateia é canalhice cristã, feita por quem se incomoda com o ateísmo mas é
incapaz de produzir argumentos sólidos para confrontá-lo e, por melhor, refutá-lo. Ateus
consomem músicas e filmes, por exemplo, com nomes teístas e/ou que citam deus (e não
me refiro a canções gospel e produções definitivamente religiosas, que de fato não cabem a
um ateu consumir), porém curtir o que a cultura pop alienada a partir da fé da maioria lhes
oferece de modo algum estabelece aceitação a esta fé ou conversão à religião. Uma
analogia a isso é que gays por vezes consomem conteúdos e professam expressões
héteros, conforme a cultura heteronormativa impõe e estabelece, mas isso não os torna
heterossexuais, hipócritas ou pessoas com sexualidade frágil (como ocorre com alguns
homens héteros, curiosamente, cristãos).

Há de se separar costumes, hábitos e vícios de convicções, crenças e opiniões, bem como


características.

E só mais um acréscimo importantíssimo: pela boa manutenção da laicidade, que se


secularize também a contagem histórica do tempo. Vamos passar a substituir a contagem
cristã “antes e depois de Cristo” (a.C. e d.C.) para “antes da Era Comum e Era Comum”
(a.E.C. e E.C.) e naturalizar essa posição. Secularizar o tempo histórico é mais oportuno,
democrático e de bom tom. Fica a dica.

Não é nada fácil desconstruir vícios de linguagens por tempos fomentados e já


consolidados. Muito menos abolir determinadas palavras e expressões, alterando-as por
outras mais politicamente corretas. E não será de imediato que iremos parar de proferir a
palavra “denegrir”, que substituiremos as palavras “escravos” e “americanos” por
“escravizados” e “estadunidenses”, respectivamente, que faremos a contagem do tempo
histórico do modo ideal, nem secularizaremos um vocabulário fortemente catequizado pela
cultura cristã que está impregnada há séculos em nossa sociedade. Isso parte de um
processo gradual que envolve problematizar os conceitos nos sujeitos para, assim, se
desconstruir os termos até, por fim, aboli-los da vida pública. As coisas se modificam com
conscientização e iniciativa, através de projetos educacionais e trabalhos de base que
visem subverter as concepções já estabelecidas pela ordem social e, dessa forma,
revolucionar o sistema então constituído e consolidado.

Se o objetivo é renegar a moral e a ética religiosa para derrubar a estrutura teísta agregada
ao Estado laico, laicizando-o factualmente, romper com tudo que provém da religião, desde
seus mitos até os vícios de linguagens alienantes por ela culturalmente impostos, torna-se
fundamental. Nós, livres pensadores em prol da ciência, da liberdade e da laicidade acima
de tudo, não podemos mais permitir que, além da estrutura estatal e social, o cristianismo
obscurantista e fundamentalista também nos domine e intervenha nas nossas falas, nas
nossas mentes e nos nossos corpos seculares. Por isso proponho e fomento um modelo
alternativo de comunicação social, secularizando um vocabulário doutrinário.

(16/03/2022)

ATEÍSMO PROVEDOR E LIBERTADOR

No capítulo anterior31, alertei que nós, livres pensadores ateístas, devemos problematizar e
desconstruir vícios de linguagens coloniais teístas da vida cotidiana, como o “deus me livre”,
e demonstrei como podemos substituir expressões como “graças a deus” por “coisa boa”,
por exemplo, secularizando nosso vocabulário e desdoutrinando-o. No artigo foram
expostas as formas como a fé religiosa hegemônica  —  no caso o cristianismo, no mundo
ocidental  —  doutrina e domina até as falas do povo e de uma nação, impondo sua

31 Ver Secularizando um vocabulário doutrinário.


supremacia sobre a sociedade plural e o Estado laico. Destacou-se, nesse caso, a
introdução cultural e social de termos religiosos, ou de alusão à fé, naturalizando-os desde
muito cedo até mesmo entre o vocábulo dos descrentes  —  o que não caracteriza,
definitivamente, uma crença no sobrenatural e/ou no divino, mas um costume instituído e
normalizado sistematicamente.

Mas não é apenas a linguagem colonizada e as expressões cotidianas que a religião


intervém e influencia. Além da dominação sobre a mente e os corpos, a fé religiosa objetiva,
impositivamente, moldar e comandar nossos hábitos, nossas posturas, nossos costumes e
nossas formas de viver e perceber a realidade. Autoritariamente, a religião dita o que todos
devem praticar e vivenciar, bem como as maneiras como devem agir e se portar. Assim, o
ser humano passa a ser adestrado e censurado por meio de um conjunto de regras
baseadas em conceitos dogmáticos que as mitologias supérfluas e surreais impõem social e
culturalmente, restringindo e controlando a liberdade individual dos seres humanos.

Assinala-se que, por liberdade individual, entende-se a liberdade absoluta de um ser


humano emancipado, capacitado, autônomo, consciente e responsável poder fazer tudo o
que quiser com a sua própria vida e com seu próprio corpo, desde que suas ações
particulares não interfiram na vida, no corpo e, consequentemente, na liberdade do coletivo,
da sociedade em geral. Ou seja, o indivíduo deve ser plenamente livre para se vestir da
forma como achar melhor, comer e beber o que bem entender, modificar, remover ou
acrescentar algo em seu corpo e decidir sobre sua vida, sem intervenções da lei e da
ordem, do Estado e da Igreja. Resumidamente, cada sujeito possui plenos poderes sobre si
próprio e, desde de que não interfira nas particularidades de outros, de nada pode ser
privado ou coibido no tocante à sua singularidade.

Porém, as religiões desprezam o conceito de liberdade e o respeito às particularidades.


Conservadoras e fundamentalistas por essência, as mitologias têm o costume de oprimir e
reprimir liberdades individuais, instituindo e impondo hábitos proibitivos e coercitivos. Para a
fé, o ser humano é um escravo que deve se subordinar a “mandamentos” e normas de um
suposto deus generoso e poderoso, por medo de sua fúria e de seus castigos impostos aos
“hereges” e “pecadores” (lê-se “insubordinados” ou “desobedientes”).

No cristianismo, em específico, a raíz dos conceitos dogmáticos, proibitivos e coercitivos se


origina nas fábulas bíblicas, bem como boa parte da podridão que fora introduzida neste
mundo injusto e imperfeito. É a Bíblia cristã que fomenta a censura através de ritos que
visam proibir e coibir ações de sujeitos independentes, emancipados, racionais e, segundo
as contradições da própria mitologia, possuidores do livre arbítrio “concedido por deus”.
Entretanto, basta analisar alguns versículos do livreto religioso que a ditadura do
cristianismo se revela e se torna perceptível perante mentes livres, racionais e
questionadoras.

Confira alguns trechos de Levítico, livro bíblico em que a fé cristã (ou o deus judaico-cristão,
se preferível) condena determinadas atitudes do cotidiano e estabelece e impõe proibições
à humanidade, coibindo a liberdade individual e contradizendo a narrativa do livre arbítrio:

Proibido comer carne de porco: “o porco, embora tenha casco fendido e dividido em duas
unhas, não rumina; considerem-no impuro. Vo-cês não comerão a carne desses animais
nem tocarão em seus cadáveres; considerem-nos impuros.” (Levítico 11:07–08)
Proibido comer alguns frutos do mar: “Tu-do o que vive na água e não possui barbatanas e
escamas será proibido para vocês.” (Levítico 11:12)

Proibido cruzar raças de animais, cultivar duas plantas diferentes num mesmo jardim e
vestir roupas tecidas com fios diferentes: “Guardareis os meus estatutos. Não permitirás que
se cruze o teu gado com o de espécie diversa; não semearás o teu campo com semente
diversa; nem vestirás roupa tecida de fios diversos.” (Levítico 19:19)

Proibido cortar o cabelo e raspar a barba: “Não cortareis o cabelo, arredondando os cantos
da vossa cabeça, nem danificareis as extremidades da tua barba.” (Levítico 19:27)

Proibido fazer tatuagens: “Não fareis incisões na vossa carne por um morto, nem fareis
figura alguma no vosso corpo. Eu sou o Senhor.” (Levítico 19:28)

Observe que, só em Levítico, há tanto hipocrisias, quanto contradições cristãs.

Curiosamente, o mesmo livro que condena a homossexualidade como sendo algo “impuro”,
“imoral” e “abominável” (Levítico 18:22) é o que condena diversas práticas e hábitos que os
cristãos fazem cotidianamente, como usar roupas feitas com tecidos diferentes e cortar o
cabelo. De forma hipócrita, os crentes, ao mesmo tempo em que criticam os costumes
alheios e os caracterizam como “pecados perante deus”, impondo padrões a serem
seguidos pelos outros com base nos princípios da sua religião, são os que contrariam o que
diz a própria Bíblia, praticam coisas que ela condena e só lembram e fazem o que lhes
convém, de modo oportuno e tendencioso. Mas seguir a fábula mitológica à risca ninguém
se arrisca, afinal, poderiam acabar presos caso cometessem as atrocidades que o conto
fantasioso incita.

Quanto ao último versículo aqui referenciado, este, em particular, é o que mais evidencia a
hipocrisia e a contradição cristã.

Discriminar e criticar quem faz tatuagem para os cristãos é fácil, pois, de acordo com a
teoria mística, pecadores são os que se tatuam, que marcam o corpo, “obra divina”, com
figuras e incisões. Entretanto, é comum religiosos fazerem tatuagens de crucifixos, terços,
imagens de santidades e até de versículos bíblicos. Nesse caso, o questionamento que fica
é: como podem cristãos fazerem tatuagens religiosas, ainda mais em alusão ao
cristianismo, se a própria Bíblia condena e proíbe tatuagens entre os estatutos divinos? Na
teoria, os religiosos irão para o tal “inferno” por estarem desobedecendo seu Senhor. Na
prática, provam, com ações, que nem eles levam o livro “sagrado” tão a sério ou que
desconhecem seu real conteúdo.

Mas voltando a abordar especificamente as censuras impostas pelos dogmas mitológicos às


liberdades individuais, ignorando momentaneamente a hipocrisia e a contradição cristã,
devo ressaltar que as proibições e coerções nem sempre se limitam às páginas da Bíblia.
Há os crentes alienados e uma maioria doutrinada social e culturalmente pela fé que se
deixa seduzir pelas imposições espirituais, se privando de viver e curtir a vida por conta do
que ordena a doutrina autoritária e os líderes e representantes dos templos. Com esse tipo
de gente não existe autonomia e consciência livre e lógica, mas apenas adoração e
devoção irracional, sustentada pela culpa e pelo medo introduzidos por intermédio dos
métodos de doutrinação religiosa.
As seitas evangelizadas (lê-se “doutrinadas”) fundamentalistas, por exemplo, repudiam o
álcool e o tabaco, proibindo que seus adeptos gozem dos prazeres da vida e usufruam
daquilo que, conscientemente, desejarem. Esses mesmos grupos cerceiam os direitos
sexuais e reprodutivos das mulheres, controlando seus úteros e restringindo suas
liberdades individuais sobre decidir sobre o próprio corpo. Além disso, religiosos amantes
das privações são fascinados por proibir determinados hábitos e comportamentos, por
silenciar opiniões e posicionamentos contrários à moral e à ética religiosa (lê-se “opiniões e
posicionamentos livres e racionais”) e por comandar corpos, falas, mentes e ações. A
religião tem o intuito de ditar o que se pode e o que se deve vestir, comer, beber, gostar,
usar, opinar e fazer. Seu método autocrático e etnocêntrico impõe o que sociedades que, no
imaginário democrático, deveriam ser plurais e seculares devem seguir e obedecer.

Pode-se apontar, inclusive, que uma imposição clássica do cristianismo é a que ocorre
anualmente na semana da qual os cristãos tratam como sendo “santa” (e que neste texto
proponho transformá-la em “Semana Secular”, ao problematizar e desconstruir seus
costumes). Essa dita semana “sagrada” e “milagrosa”, na qual estamos no momento em
que produzo este artigo, celebra seu ápice na sexta-feira, a qual eles, os cristãos, tratam
como sendo “santa” também (e que também proponho uma alteração em sua nomenclatura
para “Sexta-feira Secular”), e se encerra no “Domingo de Páscoa”, data em que, além de,
principalmente, se degustar delicisos chocolates (isto graças à significação secular e
capitalista que fora atribuída ao feriado, minimizando o simbolismo religioso), os crentes
comemoram o assassinato de seu ídolo, Jesus  —  também conhecido popularmente, entre
os ateus, como o mão furada (o que evidencia mais uma contradição cristã, o que não
surpreende vindo daqueles que adotam um instrumento de tortura que matou seu mártir
como emblema e representação).

O rito cristão proibitivo da “Semana Santa” é quanto ao consumo de carne na “Sexta-feira


Santa” por ser considerado “pecado” (a mesma lenga-lenga de sempre), aos moldes da
proibição de comer carne de porco em Levítico 11:07–08; porém, nesse exemplo, sem
restrições datadas. A alegação cristã é que o ato de comer carne na “Sexta-feira Santa” é
pecaminoso, assim como cultivar plantas diferentes, raspar a barba, fazer tatuagem, não
cobiçar a mulher do próximo (confesso que este, mais do que os outros, é um dos
mandamentos que mais sinto prazer em “desobedecer”) e tantos outros que eles, os
crentes, praticam frequentemente sem se importar ou fiscalizar.

Contudo, há uma regra que deve ser obedecida pelos adestrados da fé: não se pode comer
carne, mas deve-se comer peixe. Essa é a ordem da semana que fora imposta pela
mitologia cristã para relembrar que deus permitiu que matassem seu filho que na “verdade”
é ele próprio. Como se peixe não fosse carne (seguem as contradições)...

Faça um teste e ponha o rito à prova: pergunte a um vegano se ele come peixe tendo em
vista que, segundo o cristianismo, não é considerado carne. Se o vegano for crente, as
chances de haver uma disfunção cerebral do que restou do percentual racional do órgão
são altas. Portanto, cuidado para não ser acusado de “intolerância religiosa” (comum
quando a fé é questionada e confrontada pela lógica).

Aliás, recomendo que você, livre pensador, passe a fazer esse exercício: questione e
confronte ritos, dogmas e superstições impostos social e culturalmente pela fé, buscando
desmistificar e desconstruir o que a religião e o espiritualismo pregam. Desvirtue o que a
moral e a ética religiosa trata como sendo correto e normal, invertendo os valores cristãos
em direção à racionalidade e ao ceticismo e negando, acima de tudo, os seus princípios.
Assim os mitos, quando confrontados com a verdade e, principalmente, a realidade natural
e material, cairão por terra e, com o tempo, desaparecerão.

O que torna um dia como outro qualquer “santo”? Na “Sexta-feira Santa” não ocorrem
incidentes, tragédias, catástrofes e tantos infortúnios? O fato de não comer carne por um dia
vai mudar algo na vida de alguém? E se comer, o que ocorre? Alguém já morreu ou foi
punido por comer carne nesse dia? Se sim, onde fica o livre arbítrio e a bondade divina? Por
que deus se importa mais com alguém comendo carne por um dia do que com milhões
passando fome todos os dias? Afinal, comer carne nessa data é crime perante a lei? Se
uma pessoa em situação de insegurança alimentar comer carne na “Semana Santa” ela
será considerada pecadora? E se um cristão quiser comer seu peixe e não conseguir
comprá-lo ou prepará-lo, é pecador também? Pois, afinal, peixe não é carne animal?

Questionamentos…

Sabe o que difere o ateísmo da religião, fazendo com que este não possa ser considerado
uma doutrina religiosa? É que a religião tem como base o teísmo e a espiritualidade,
enquanto que o ateísmo, como o próprio nome atesta, é uma negação ao teísmo e se
concentra, em geral, no ceticismo e na racionalidade. A fé religiosa é constituída por mitos,
dogmas e ritos de passagem, enquanto que o ateísmo não estabelece crença em mitos, não
doutrina, não institui dogmas, não impõe conceitos e, principalmente, não proíbe, não coíbe
e não restringe as liberdades individuais. Um ateu, para ser o que é, não precisa seguir,
adorar e obedecer nada que seja místico ou sobrenatural. Para nós, não há mandamentos,
concepções, proibições, culpa, medo ou vigilância divina.

Fora a legislação vigente, a nossa educação adquirida e a nossa própria consciência moral
pura e autêntica, sem bases religiosas, nada nos comanda, nos priva ou nos restringe. Um
livre pensador é um indivíduo independente, consciente, racional e responsável por seus
atos e por suas atitudes, que preza pela laicidade e defende a secularização da sociedade e
a democracia. Têm-se a ciência de que o ser humano é centralizador no planeta, o que tudo
cria, o que tudo faz e o que arca com as obrigações e as consequências no mundo físico e
material. Sabe-se que não há deus algum e assume os compromissos sem terceirizar suas
responsabilidades e competências para seres invisíveis e imaginários, estes idealizados
pela mente humana.

O ateísmo preza pela liberdade plena, pelas particularidades, pela emancipação dos povos
e pela autonomia dos corpos, das mentes, dos hábitos, das falas e das ações. O ateísmo
não possui um conjunto de regras, como a Bíblia, que impõe e dita o que a sociedade deve
ou não fazer, como deve ou não agir. O ateísmo não manda e não instiga seus adeptos a
obedecer e a se curvar, quando, em sentido contrário, nos instiga a questionar e a levantar
a cabeça. O ateísmo não se submete a nada além da realidade, segue a lógica e busca o
conhecimento; o saber, não simplesmente acreditar. O ateísmo é autossuficiente e provém
a liberdade.
A canção composta por Caetano Veloso em 1968 como forma de luta e resistência à
ditadura civil-militar-religiosa no Brasil, “É proibido proibir”, pode ser interpretada como um
ato ateísta puro e simples. Nós ateus vivemos sob uma concepção de mundo extremamente
cética e realista, sem deus. Somos autossuficientes o suficiente e resistimos, não aceitando
imposições irracionais e privações ou coerções autoritárias sobre nossas vidas, nossas
mentes e nossos corpos. Nós, livres pensadores não regidos por “mandamentos divinos” e
por princípios cristãos, comemos peixe na Semana Secular se quisermos; se não
quisermos, comemos qualquer outra coisa que nos esteja ao alcance e que satisfaça as
nossas vontades. Não se trata de proibir ou condenar a carne ou o peixe, é sobre garantir
liberdade de escolha, poder de decisão e alternativas. Nenhuma mitologia sem o mínimo de
fundamento empírico, lógico e sem evidências científicas nos diz o que devemos ou não
comer, beber, vestir, usar, fazer, opinar ou gostar. E é por isso que muitos de nós, como é o
meu caso em particular, somos convictos e orgulhosos do nosso ateísmo provedor e
libertador. Não como religião, mas como filosofia de vida32.

Se a pior prisão é a da mente, e a religião é a cela do pensamento, o ateísmo é a chave de


sua libertação. O abandono da fé é a porta e o caminho para o desenvolvimento, para a
evolução e para o progresso do ser humano. Não permitindo perguntas e impedindo
respostas, a fé religiosa coíbe o avanço e oferta o atraso como alternativa e solução final.

Além de provedor e libertador, pode-se dizer que o ateísmo é também um ideal


transformador. São essas as essências do ateísmo progressista: prover a racionalidade,
libertar a mente e transformar o indivíduo e a sociedade. Como costumo dizer, e afirmo com
convicção: o ser humano é capaz de fazer coisas incríveis quando aceita que deus não
existe.

O ateísmo liberta!

(13/04/2022)

ESTADO LAICO ACIMA DE TUDO

A Constituição Federal brasileira, na forma da lei, institui os princípios da laicidade,


oficializando o Estado brasileiro, a partir da teoria legal, como laico. É através da Carta
Magna Cidadã de 1988 que o Brasil, a seguir exemplos republicanos e democráticos de
outras nações constitucionalmente plurais e livres, torna-se oficialmente um Estado secular,
diferindo-se de Pátrias confessionais e teocracias autoritárias e totalitárias.

O termo laico tem como significado mais formal “aquele que não pertence ao clero, nem a
uma ordem religiosa; aquele que é hostil à influência, ao controle da Igreja e do clero sobre
a vida intelectual e moral, sobre as instituições e os serviços públicos”. Segundo o dicionário
da língua portuguesa, o adjetivo laico significa, nos termos formais, leigo; aquele não
pertencente a igrejas; mundano; secular. Perante à Igreja, considera-se laico (ou laicista) o
herege, aquele que pratica heresia, ou o subversivo, aquele que promove subversão. De
acordo com as formalidades da linguística, especificamente, laico é, em suma, secular e

32 Ver Ateísmo como uma filosofia de vida.


anticlerical. Já ante o Poder Público, laico se refere à neutralidade estatal no tocante às
religiões (Estado neutro), à separação total e radical entre Igreja e Estado, entre religião,
política e governo, e à secularização das instituições e dos órgãos públicos.

Esse é o conceito central e definitivo da palavra laico, que, em princípios


constitucionalmente estabelecidos, faz de nosso país uma República laicista, ou seja, uma
nação não confessional. Isso, claro, limitando-se às entrelinhas tanto da atual Constituição
Cidadã de 1988, quanto das Constituições que sucederam o período monárquico  — 
advindas das bases republicanas —, decretando o fim do catolicismo imperial. Pois, ao
posicionarmos e analisarmos o sentido prático da política institucional brasileira, podemos
perceber, visivelmente, que em nada tem de laicidade nesse país tropical e multicultural
chamado Brasil.

Como apontei em capítulos anteriores, a laicidade do Estado brasileiro é constantemente


violada, ferida e atacada por setores religiosos (esses, especificamente, cristãos) que
possuem forte influência e poder de dominação sobre nossa sociedade. Indiquei esses
ataques e essas violações do Estado laico e da secularização em exemplos como a
existência de feriados cristãos/católicos no país33, a frase “deus seja louvado” estampada
oficialmente na moeda nacional, o preâmbulo constitucional introduzindo o trecho “sob a
proteção de Deus” e a presença de símbolos do cristianismo expostos em locais públicos,
bem como os privilégios por parte do Poder Público para com essa vertente mitológica em
específico, por esta ser a crença adotada pela maioria34. Tudo o que fora assinalado
demonstra que a laicidade do Estado no Brasil se limita às teorias constitucionais indiretas;
na prática efetiva, bem como na realidade político-social, vivemos sob um Estado
confessional cristão, estando mais próximos de uma teocracia fundamentalista do que de
uma nação factualmente secular.

Se o Estado brasileiro fosse verdadeiramente laico, como estabelece a Carta Magna


brasileira, uma mitologia específica  —  o cristianismo  —  não seria privilegiada pelo Poder
Público e reverenciada em grau e posto superior às demais. Se de fato houvesse laicidade,
teríamos separação entre Estado e Igreja e o Poder Público seria neutro, não tomando
posição e reconhecimento de questões religiosas, que são exclusivamente de foro privado.
Haveria sim liberdade de crença e de culto, que são direitos fundamentais, mas o Estado
não poderia beneficiar e/ou promover uma determinada fé, reconhecer e absorver tais
crenças e/ou ritos, nem seria permitido e normalizado atos intolerantes e discriminatórios
por motivações religiosas.

Seguindo a Constituição Federal à risca, assim como os princípios do secularismo que nela
constam, em hipótese alguma poderia haver uma frase em alusão a uma divindade de uma
determinada mitologia na moeda oficial do país, muito menos no preâmbulo da Carta Magna
da República. Do mesmo modo, também seria proibido por lei expor símbolos, objetos e
figuras que representem uma fé específica em repartições públicas, escolas e hospitais
públicos e em instituições e órgãos dos Poderes legislativo e judiciário  —  como é o caso de
crucifixos expostos em posição de destaque no plenário do Congresso Nacional e no
Supremo Tribunal Federal (STF), fornecendo caráter oficial, pelo Estado, à fé cristã. A

33 Ver O Natal e o Uruguai laico.


34 Ver “Deus seja louvado”? Uma ova!.
secularização dos espaços públicos deve ser veementemente garantida e preservada pelo
próprio Poder Público em todos os níveis da federação.

E não, não é porque o cristianismo é a fé seguida e praticada pela maioria da população


brasileira que essas violações à laicidade estatal podem ser permitidas e devem ser
toleradas e aceitas. O Estado laico serve para todos/as e deve atender a todos/as, não
estando a serviço dos interesses de um grupo majoritário a fim de agradá-lo e privilegiá-lo.
Bem como a democracia, a laicidade abrange maiorias e minorias, buscando-se estabelecer
a inclusão, a visibilidade e a representatividade geral, a partir de uma posição neutra do
Estado perante doutrinas espirituais e crenças religiosas. Nesse sentido, não cabe
privilégios para uns (católicos e evangélicos) e exclusão e invisibilidade para outros (grupos
minoritários, minorias religiosas, ateus e agnósticos singulares). Um Estado laico e
democrático deve equiparar direitos e deveres para minorias e maiorias, assegurando
respeito e liberdade de forma justa e igualitária, sem distinções.

Nesse sentido, podemos observar que o inciso I do artigo 19 da Constituição Federal (este
que institui os princípios bases da laicidade na Carta Magna) é objetivo quando estabelece
que “É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: estabelecer
cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, […] ou manter com eles ou seus
representantes relações de dependência ou aliança […]”. Ora, portanto não poderia o Poder
Público estabelecer e conservar essa aliança que mantém com o cristianismo e seu projeto
de dominação sócio-cultural por intermédio da doutrinação social. Não seria possível
decretar feriados nacionais e/ou regionais em celebração a datas e marcos de uma
determinada fé religiosa sobre as outras mitologias e acima do poder do Estado. Não
poderia também ser permitido e tolerado que templos, igrejas e centros religiosos tivessem
imunidade tributária, deixando estes espaços de contribuir com o país, firmando essa
posição de privilégio da mitologia cristã na sociedade e subvencionando essa ideologia
hegemônica no país. São posturas incompatíveis com o Estado laico.

Alguns poderão alegar, falaciosamente, que a Igreja, seus membros e líderes possuem
esses privilégios por realizarem “contribuições solidárias” e por fazerem caridade (com o
dinheiro dos outros), além de “tratarem dependentes químicos e ajudarem os mais pobres,
em especial pessoas em situação de rua”. O que os crentes ignoram, ou fingem ignorar a
fim de assegurar essa posição repleta de regalias, é que os templos e seus representantes,
além de se aproveitarem dos subsídios do Estado e de isenções fiscais para realizar
lavagem de dinheiro e enriquecer ilicitamente com a verba do dízimo explorado nos cultos
pela fé alheia  —  ao enganarem os doutrinados devotos —, se aproveitam da necessidade e
das carências da população para evangelizar/catequizar (lê-se “doutrinar”) ainda mais esse
povo sofrido e dependente que clama por uma vida digna e se submete ao que for por um
prato de comida e/ou um cobertor para se proteger do frio. Em troca de água, alimentos e
abrigo (bens básicos que o Estado deveria garantir à sociedade, sem comercializá-los), os
religiosos e as igrejas doutrinam aquela/e cidadã/o necessitada/o para que esta/e absorva
tal crença ou siga determinada corrente. Já em troca de eliminar o vício das drogas e
reabilitar dependentes químicos e alcoólicos (o que também é papel do Estado e de
profissionais especializados  —  estes os únicos capazes de realmente recuperar um
indivíduo com a vida arruinada por doenças ou vícios e seus efeitos nocivos), o que os
religiosos de fato fazem, na prática, é substituir um vício destrutivo por outro menos
prazeroso e estruturalmente mais prejudicial ao bem-estar coletivo (sai: drogas sintéticas e
semissintéticas; entra: a droga da religião, a qual, dentre seus efeitos mais nocivos, causa
alienação e controle da mente).

Portanto, digam os crentes o que quiserem para sustentar suas ideias e façam os
malabarismos argumentativos que forem para defender seus privilégios de imunidade
tributária, os favorecimentos à religião cristã pelo Estado brasileiro são explícitos e
incompatíveis com o Estado secular.

Nós, cidadãos pagadores de impostos (não sonegadores e aproveitadores de verbas


públicas como pastores e padres), não vemos hospitais, clínicas, creches, orfanatos e
escolas  —  estes espaços seculares que de fato contribuem com o país e ajudam a
população sem o interesse de conquistar adeptos para uma seita  —  receberem isenções ou
tão pouco imunidade total de tributos pela prestação que fazem de forma digna e honesta à
sociedade brasileira. Não vemos também cidadãos voluntários que, sem ganâncias
particulares e/ou busca por recompensas “divinas”, realizam ações de caridade e praticam
solidariedade com os mais carentes terem redução em suas taxas. Privilégios assim (a
chamada “mamata” como certos grupos, majoritariamente cristãos, têm o costume de dizer)
só são destinados às elites financeiras, aos bancos, aos militares, à classe política, e,
principalmente, aos setores religiosos, conservadores e fundamentalistas que implementam
e patrocinam o cristianismo no Brasil (nesse último caso, ferindo a laicidade do Estado).

Ora, atualmente uma das coisas mais fáceis e rápidas que se têm nesse país é abrir uma
Igreja. Para se ter uma noção, basta adquirir um espaço, reunir algumas cadeiras
enfileiradas, fixar símbolos e figuras religiosas em torno de um púlpito ou palco e se definir
como um centro religioso. Aí pronto: o Poder Público dará isenções e imunidades tributárias
ao local, com a justificativa de promover e preservar a “liberdade de culto”, que já está
garantida em lei. Depois é só reunir os crentes alienados e instigá-los, por meio da
exploração da fé e através do abuso de suas necessidades na vida, a contribuírem com
“ofertas” à Igreja como se fosse destinado a um suposto deus que irá recompensá-los após
a morte. O enriquecimento de líderes religiosos parte desse princípio, sem precisar de um
assalto a mão armada, somente comercializando a fé, convencendo os fiéis a “doar” parte
de seus ganhos para resolver seus problemas e não pagando um só centavo de imposto.

Enquanto isso, o Estado se afasta e se omite de suas obrigações, deixando que a religião
se prolifere e ocupe espaços vagos pelo Poder Público para aprofundar ainda mais as
desigualdades sociais, agravar a pobreza, minimizar a qualidade de vida da população e
prejudicar os índices educacionais. Percebe-se essa realidade, por exemplo, em regiões
periféricas bem distantes dos centro urbanos  —  estas predominantemente habitadas por
uma população que vive em extrema miséria  — , onde faltam creches, postos de saúde,
escolas, espaços de lazer e centros culturais e esportivos para os cidadãos  —  quando
estes locais não se encontram em péssimas condições estruturais, com falta de
investimentos e/ou recursos de agentes e materiais  — , mas há ao menos um templo
religioso, por menor que seja, em cada esquina. Trata-se, portanto, de um projeto, uma
política de sucateamento e abandono do povo pelo Estado, que deixa de cumprir seu papel
e passa a atender às demandas e interesses da religião a qual privilegia e financia às
custas da classe trabalhadora com verbas e incentivos, os quais deveriam ser destinados às
áreas da educação, da saúde, da cultura e do lazer.
Por isso que, em prol de um Estado verdadeiramente laico, igrejas, templos e centros
religiosos devem ser rigorosamente taxados. E digo mais: deve-se aplicar as maiores taxas
já impostas no país, visando reparar dívidas históricas da Igreja com o povo e recuperar os
anos de contribuição que os religiosos foram isentados, sonegando impostos com respaldo
de benefícios fornecidos por leis e decretos feitos por agentes violadores inimigos da
secularização. Não se pode mais tolerar que essa estrutura de comercialização da fé com
impunidade se mantenha intacta num país que, constitucionalmente, nenhuma fé religiosa
pode ser reconhecida oficialmente pelo Estado, devendo todas se limitarem ao âmbito
privado e à individualidade de cada cidadão no pleno exercício de seus direitos e liberdades
individuais, estes concentrados em campos específicos para o grupo.

A farra cristã deve ser expurgada do Brasil.

Do mesmo modo, não se pode mais permitir a implementação do ensino religioso nas
escolas, privilegiando e ensinando uma religião específica (que, no caso, é sempre, por
óbvio, o cristianismo). Escola é local para se ensinar e debater ciência e conhecimento e
para formar e preparar o indivíduo para a vida em sociedade, não para doutrinar crianças e
jovens para uma determinada fé. A escola deve ser secularizada, mantendo a religião em
foro exclusivamente privado, bem longe da educação e de suas instituições. O espaço
escolar não pode e não deve falar sobre religião, salvo em casos de análises
epistemológicas e estudos históricos e filosóficos. Que se aborde assuntos e temas de fato
importantes e que contribuam para a formação da identidade, da cidadania e do senso
crítico nas crianças e nos jovens, ao invés de imputar em suas mentes fantasias
mitológicas, teorias conspiratórias sem embasamento empírico e ideais pseudocientíficos
sem fundamento, como o criacionismo. E, no caso de as aulas de ensino religioso não
tratarem de religião  —  como felizmente ocorre em muitas das escolas, principalmente
públicas  — , que se altere e secularize o nome dessa disciplina para aulas de ética e
cidadania, por exemplo. A laicidade educacional não pode ser ferida e impregnada por esse
sistema confessional cristão que assola o Brasil.

Seria oportuno, por sinal, que os apoiadores do “Escola sem partido”, aqueles que
defendem censurar o ensino e amordaçar professores que transmitem conhecimentos
científicos sobre história, filosofia e sociologia, percebessem a real doutrinação infantil que
ocorre desde o princípio da infância (a doutrinação religiosa cristã), em casa e nas escolas,
e propusessem o projeto “Escola sem religião”, buscando afastar as mitologias torpes do
ensino de ciência e da educação brasileira, possibilitando maior desenvolvimento
educacional, como em nações factualmente laicas, e, de fato, pondo fim a doutrinação
ideológica em crianças e adolescentes. Mas tenho noção de que é falho cobrar consciência
de grupos reacionários alienados pela fé religiosa e/ou que se beneficiam através dela. Para
os crentes hipócritas e tendenciosos, a escola educar os jovens é doutrinação, mas
doutriná-los conforme a crendice deles impõe é algo normal. Enfim, deixemos essa pauta a
cargo dos livres pensadores secularistas que possuem capacidade de discernimento e
compreensão da realidade social.

Contudo, que fique sempre claro que, sem laicidade, não há liberdade, igualdade e
fraternidade, os pilares da democracia ocidental. Sem que haja separação total entre Igreja
e Estado, bem como neutralidade do Poder Público em relação à fé religiosa, não haverá
desenvolvimento, emancipação e autonomia da sociedade. A política religiosa do atraso35 já
impôs seu projeto contra o progresso, instalando-o em nosso frágil e falho sistema. Mas isso
nós, defensores do Estado laico, não podemos aceitar quietos.

Jamais nos calarão!

ESTADO LAICO ACIMA DE TUDO. LAICIDADE ACIMA DE TODOS.

(12/05/2022)

LAICIDADE ACIMA DE TODOS

No capítulo anterior, expressei uma posição secularista em defesa do Estado laico acima de
tudo, partindo de análises sobre práticas que ferem e violam a laicidade constitucional,
como a imunidade tributária concedida às igrejas e a implementação do ensino religioso
confessional nas escolas públicas. Em outro capítulo36, abordei também as citações ao mito
judaico-cristão na moeda nacional e no próprio preâmbulo da Constituição Federal de 1988,
os feriados do catolicismo adicionados ao calendário da nação e as exposições de símbolos
do cristianismo, como crucifixos, em órgãos e instituições públicas como sendo exemplos de
violações e ataques ao Estado secular e, consequentemente, à democracia plural, inclusiva
e participativa. Como conclusão, evidenciou-se que a laicidade do Estado brasileiro se limita
às teorias constitucionais  —  a partir de princípios laicistas introduzidos na Carta Magna do
Brasil  — , pois, na prática efetiva, somos regidos por um regime confessional cristão que
mais se aproxima de uma teocracia fundamentalista católico-evangélica do que de um
Estado laico factual.

Emendado à exposição anterior, e dando sequência direta aos ideais lá expressos,


proponho, neste artigo, apresentar e debater mais alguns exemplos de ataques e violações
à laicidade constitucional no Brasil. Mais objetivamente, três ações normalizadas que ferem
a separação entre Poder Público e político e religião: a legalidade de partidos religiosos
exclusivamente cristãos; a representação pública  —  parlamentar, executiva e ministerial  — 
de atores da Igreja no cenário político-partidário, como, por exemplo, o caso das bancadas
católicas e evangélicas; e a concessão de meios de comunicação por parte do Estado às
igrejas e aos templos para que estes vinculem suas propagandas e seus ideias mitológicos
na sociedade, difundindo-os com mais facilidade, potencializando o alcance de seus delírios
fantasiosos e doutrinando um percentual mais expressivo de cidadãos para sua seita
irracional.

Antes de tudo, é preciso indicar o ponto de partida da análise crítica sobre a conspiração
cristã contra o Estado laico. Ressalta-se que um dos princípios-bases que caracterizam a
laicidade do Estado é a separação total e radical entre Igreja e governo, bem como a
neutralidade do Estado em relação às crenças religiosas e espirituais. É fundamental que se
entenda que Estado laico é o mesmo que Estado neutro no âmbito religioso. Ou seja, um
Estado oficialmente laico, além de não possuir religião oficial, não pode induzir práticas

35 Ver A religião e a política do atraso.


36 Ver “Deus seja louvado”? Uma ova!
religiosas ou promover uma dessas mitologias sobre as demais crenças existentes,
privilegiando-a, por mais que conte com o agrado de uma parcela majoritária da população.

Estado laico é Estado laicista, não toma partido e reconhecimento de nenhuma fé religiosa,
nem pode posicionar a existência ou a inexistência de uma determinada divindade
hipotética de modo institucional. Portanto, perante o Estado secular, garante-se a liberdade
religiosa de credo e de culto, mas veda-se a sua associação ao Poder Público. A religião é
garantida como um direito de livre manifestação particular, uma liberdade individual que
deve se limitar ao foro privado do indivíduo e de seus grupos, estes concentrados em
campos específicos destinados ao exercício de ritos e devoções supersticiosas, como
igrejas, templos, mesquitas e sinagogas.

Mas é perceptível que, na prática, infelizmente, os princípios secularistas são


desrespeitados e as coisas não funcionam como de fato deveriam funcionar. A dominação
hegemônica do cristianismo na sociedade brasileira viola a oficialização laica que nossa
Constituição Cidadã estabelece a partir da caracterização secularista. Privilegiada e
promovida pelo próprio Estado brasileiro, a mitologia cristã usurpa espaços plurais e
democráticos, destruindo direitos e liberdades individuais e coletivas. Essa fé estimulada e
financiada pela máquina pública enfraquece o Estado Democrático de Direito ao romper
com um dos princípios básicos e essenciais que o sustenta: a laicidade.

E isso ocorre devido aos agentes religiosos que, a serviço do plano de circulação do
evangelho e representando única e exclusivamente os interesses da Igreja e de sua
mitologia irracional, se infiltram no Poder Público a fim de sustentar, reforçar e consolidar a
dominação hegemônica de sua fé, em divergência com o Estado constitucionalmente laico.

Ora, se um dos princípios-bases da laicidade é a separação entre Igreja e Estado, como


poderiam ser permitidos e tolerados tantos partidos vinculados ao cristianismo na política
institucional? No Brasil, nota-se alguns casos de legendas eleitorais abertamente
identificadas com a mitologia cristã e servas dessa ideologia. Republicanos, ligado à Igreja
Universal, Partido Social Cristão (PSC) e Democracia Cristã (DC) são exemplos
tradicionais. Essas siglas, alinhadas ao projeto cristão de dominação global, sustentam o
cristianismo cultural e social que está impregnado em nossa sociedade secular, coibindo
que nosso Estado-nação seja verdadeiramente laico.

Perceba que, enquanto há a permissão e a tolerância de partidos como PSC e DC, não há
siglas que representem outras mitologias e grupos religiosos. Não há partidos islâmicos,
budistas, hinduístas, umbandistas ou mesmo judeus; muito menos representações ateístas
e agnósticas. Essas perspectivas religiosas  —  e irreligiosas —, seguidas por muitos
membros da sociedade brasileira, não possuem representação e visibilidade política. Como
tudo nesse país desigual e dependente, a maioria hegemônica detém os privilégios, os
benefícios e as representações, enquanto as minorias sociais (e inclui-se minorias religiosas
e irreligiosas) são excluídas e segregadas da conjuntura político-social.

Não que o ideal secularista instigue a necessidade de mais partidos religiosos, fomentando
maior abertura para uma pluralidade religiosa na política. Como assinalei anteriormente,
neutralidade e separação do Estado em relação às mitologias religiosas são princípios
invioláveis e inconciliáveis. Entretanto, além de ser mais secularmente aceito um agregado
de todas as correntes religiosas e de oposição/negação à religião na política e na vida
pública do que uma posição exclusiva de privilégio a uma fé específica, é de se imaginar e
questionar o que os cristãos etnocêntricos diriam e como agiriam ao terem de dividir seu
espaço usurpado, na contramão da laicidade, com religiões de matriz africana, como a
umbanda e o candomblé. Analisar a reação e a recepção cristã a um outro grupo religioso
querendo usar de suas representações no Parlamento, por exemplo, para aprovar leis na
sociedade com base em seus ideais mitológicos, igual eles hoje fazem, seria um
experimento social um tanto interessante.

Sim, interessante nesse ponto de vista, porém não ideal. A ideia secularista é afastar as
religiões do debate público e das decisões políticas, não incluí-las. Partir por este caminho
seria aprofundar e agravar um problema social do país.

E a questão a ser debatida não é quanto à defesa da criação de um partido ateu que
represente a comunidade ateia. Por mais que o ateísmo não seja uma religião e, portanto,
essa proposta não viole a laicidade do Estado, o intuito aqui não é estabelecer um foco para
esse projeto ou para um desejo utópico da constituição de um Estado ateu. O objetivo
central é defender a verdadeira laicidade, com neutralidade estatal e separação da Igreja do
governo. E é claro que, enquanto partidos cristãos forem permitidos e obtiverem registros
oficiais em posição de privilégio e favorecimento deste ideal religioso sobre os demais  — 
apesar deste ser o ideal de uma maioria populacional —, a laicidade não será efetiva e
instituída além das entrelinhas subentendidas e teóricas do 19º artigo da Constituição
Federal.

É preciso avançar nesse aspecto.

Se a democracia é feita para todos/as, maiorias e minorias,como a laicidade, princípio-base


democrático, poderia privilegiar uma maioria e excluir as minorias discriminadas? O Estado
laico também é inclusivo e tem o dever de acolher a todos/as, prezando sempre por suas
essências neutras e, fundamentalmente, seculares.

Dessa forma, deve-se ressaltar mais um princípio da laicidade do Estado: a secularização


das instituições e dos órgãos públicos. Para além dos partidos religiosos, não se pode mais
tolerar candidaturas e representações religiosas na política institucional. Claro, nada contra
candidatos e políticos que sejam cristãos ou que possuam uma crença mitológica em uma
ou várias entidades invisíveis e imaginárias. Cada cidadão tem o direito e a liberdade
individual de crer no que quiser e seguir a religião que preferir, respaldado por sua livre e
emancipada consciência. A laicidade garante essa liberdade privada aos indivíduos, e,
como um bom secularista, também prezo por esses princípios e os respeito. Porém, em um
Estado laico a religião deve sempre se limitar ao âmbito privado, não podendo ser tolerado
o uso político do Estado para fins de interesses particulares, como são as questões
religiosas.

Um representante público, seja no Poder Executivo, Legislativo ou Judiciário, tem o dever


de prestar contas à população e atender aos interesses gerais da nação e de seu povo, não
aos interesses de grupos e setores específicos. É inaceitável que um parlamentar, por
exemplo, munido de seu cargo e de sua representação política, ocupe um espaço público
como membro do Estado para atender aos interesses da Igreja, os quais são também os
seus próprios interesses de causa. Chega a ser algo tão absurdo quanto um servidor
público atender unicamente aos interesses de uma empresa de capital privado, e/ou de
seus financiadores de campanha, ao invés de se atentar às demandas da classe
trabalhadora e de grupos que dependem de auxílio do Poder Público. Isso configura como
abuso de poder e desvio de função.

Aliás, para ser bem pragmático, isso é exatamente o que os religiosos que ocupam o
espaço político fazem: atender aos interesses seus e/ou de seus financiadores de
campanhas, pois sabe-se do financiamento e das propagandas eleitoreiras que igrejas e
templos religiosos promovem no Brasil, influenciando nas eleições e na vida pública a fim de
dominar e controlar as forças institucionais do Estado na intenção de proliferar suas
aberrações na cultura e na sociedade, deseducando cada vez mais nosso povo sofrido e
explorado por essas raízes opressoras. São os negócios comerciais da fé que consolidam
esse império e esse sistema confessional no país. E se engana quem nega ou finge não
perceber essas intenções que, como todo o restante, devem ser denunciadas em todos os
manifestos secularistas redigidos por livres pensadores que lutam em prol de um Estado
factualmente laico.

De modo geral, o que pretendo é alertar e conscientizar que não há nenhum problema de
um cristão se candidatar a um cargo público e assumir este cargo como representante do
Estado, desde que mantenha suas convicções religiosas fora do âmbito político e
reservadas à vida privada. Um agente do Estado como representante da nação deve servir
à Constituição Federal, não à Bíblia e seus contos mitológicos. É até aceitável que uma
pessoa que, em sua vida privada, possua crenças religiosas ocupe espaço na política, mas
não que um padre, um pastor ou qualquer líder e representante da Igreja, do cristianismo e
desses interesses tenham direito a ocupar esse espaço. A religião deve ser mantida privada
aos domicílios particulares de cada adepto e aos campos destinados à sua prática, como
templos e centros de devoção da fé (com estes, obviamente, sendo tributados como todos
os outros locais dentro do Estado). Na política, no governo e em ambientes públicos, a
moral e a ética religiosa deve ser suprimida e substituída por ideais progressistas,
democráticos e seculares.

Isso é um recado às Frentes Parlamentares católicas e evangélicas  —  as chamadas


bancadas da Bíblia  —  que violam os princípios secularistas de separação e neutralidade
que caracterizam a laicidade do Estado. Representantes das igrejas como os pastores
Everaldo, Marco Feliciano, Magno Malta, Otoni de Paula e Flordelis no Congresso Nacional,
como a crente lunática Damares Alves em um ministério de Estado, como José Maria
Eymael em candidaturas presidenciais e como o ministro “terrivelmente evangélico” André
Mendonça no Supremo Tribunal Federal (STF) são agentes violadores e opositores do
secularismo que devem ser combatidos em nome desta causa tão importante. Não se pode
mais cogitar que leis, projetos e emendas sejam redigidas com base em preceitos de um
ideal religioso, privilegiando um grupo barulhento  —  mesmo que majoritário devido à
doutrinação social e cultural  —  acima de uma nação. Assim como não se pode permitir que
as representações deixem de ser neutras no sentido de abrir caminho para que concepções
mitológicas de foro privado integrem o âmbito público e se misturem às partes do Estado,
sobressaindo-se sobre demandas e pautas de fato relevantes e necessárias para a
população (o que difere das questões religiosas e espirituais).

Se lugar de milico é no quartel, lugar de bispo é no templo. Simples assim.


A religião se instala na política para fomentar o atraso e coibir o progresso e o
desenvolvimento. Por meio de atores com posições conservadoras (lê-se reacionárias), a
mitologia pretende impor de forma autoritária, quase que ditatorial, através das forças do
Estado, o que cada cidadão deve usar, vestir, comer, fazer com seu próprio corpo e sua
própria vida, e como cada um deve se portar e agir em sociedade. Em sua essência, para
além da lei e da ordem jurídica, a fé religiosa, em especial o cristianismo, tem o controle, a
opressão, a repressão, a proibição e a privação das liberdades individuais como um fim em
si  —  o que já expus detalhadamente em outro capítulo37. Exemplo disso são os pastores e
padres da bancadas evangélicas e católicas, respectivamente, todos homens brancos e
héteros em posição de privilégio, barrando e combatendo pautas sociais em defesa dos
direitos da população LGBTQIA+, como a união civil homoafetiva e o direito à adoção por
essa comunidade, e das mulheres, como o direito ao aborto legal e ao uso de
contraceptivos, com base nos ideais fundamentalistas e retrógrados que a ideologia imunda
e atrasada deles prega em oposição à diversidade e ao bem-estar social.

Agora imagine uma bancada muçulmana no Congresso propondo, através de atividades


legislativas, proibir o consumo de carne de porco e impor o uso da burca às mulheres. Ou
então tente imaginar um grupo de parlamentares ditos satanistas querendo aprovar o
financiamento de uma passeata de sua seita, semelhante à Marcha para Jesus, com
recursos públicos, bloqueando avenidas públicas e impedindo a livre circulação dos
cidadãos. Pense no escândalo e na histeria cristã!

Nada disso seria muito diferente do que os crentes alienados fazem ao travar debates
plurais sobre igualdade e violência envolvendo gênero e sexualidade ou ao votar a um
projeto de lei para a saúde, a educação ou a cultura com base em convicções morais
mitológicas que deveriam ser reservadas ao âmbito privado.

É o que eles visam: controlar para governar e dominar. Enquanto a influência e a


supremacia cristã prevalecer sempre será assim. E a laicidade é o bloqueio a esse projeto
cristão no Brasil e em todo o mundo ocidental.

Até que tenhamos uma laicidade de fato, o sistema permanecerá estruturado sob a ordem
do cristianismo cultural. Com partidos religiosos legalizados e lideranças e representantes
da Igreja tolerados na política, as verbas da saúde, da cultura e da educação seguirão
sendo destinadas aos templos e aos eventos gospel, as igrejas seguirão sonegando
impostos e lavando dinheiro enquanto seus mandatários enriquecem por meio da
exploração da fé alheia, o ensino da fé cristã e do criacionismo seguirá doutrinando as
crianças e jovens nas escolas no lugar do ensino de ciência e teorias do conhecimento, o
calendário seguirá monopolizado por datas representativas em homenagem a estátuas de
gesso, enquanto marcos históricos seguirão sendo invisibilizados, e o governo seguirá
concedendo canais de comunicação e espaços no rádio e na TV para que os crentes
consolidem ainda mais seu império e influenciem cada vez mais na estrutura social e
política do nosso país “laico”.

Quanto a esse último ponto, inclusive, um destaque para mais um exemplo de ataque à
laicidade constitucional a partir de concessões ilegais que privilegiam, promovem e
financiam a fé cristã sobre as demais mitologias, fornecendo meios ampliados de

37 Ver Ateísmo provedor e libertador.


propagação dos retrocessos teístas. Na decadência da imprensa  —  esta também
manchada e corrompida pela fé  —  e na escassez de conteúdos educacionais, culturais e
instrutivos nas mídias sociais, cada vez mais as igrejas católicas e evangélicas ocupam e
monopolizam esses espaços para doutrinar a maior alcance e dominar a longo prazo. É a
religião, de forma contraditória, como de costume, se utilizando de meios científicos e dos
avanços tecnológicos para se proliferar como uma praga, um vírus, uma doença, a fim de
sepultar a ideia de um levante racionalista.

Para combater o câncer da humanidade, não há outra solução: é lutar e resistir. Luta em
prol do Estado laico, resistência a tudo e a todos que atentem contra o Estado laico.

Que se removam as frases teístas do preâmbulo constitucional e da moeda nacional. Que


se retire todas as simbologias e imagens religiosas das repartições públicas, bem como de
todos os locais governamentais. Que se eliminem os feriados religiosos e os substituam por
datas simbólicas que de fato sejam representativas e marcantes para a sociedade civil e
para a história do país, secularizando-o. Que seja abolido o ensino religioso confessional
nas escolas e se priorize o ensino de ciência, promovendo debates plurais que fomentem o
senso crítico e a identidade nos estudantes e aprendizes. Que se tribute todos os espaços e
centros religiosos, impondo as maiores taxas já aplicadas nesse país a fim de compensar o
tempo sem contribuição (e, caso os ambientes de fé não arquem com a carga tributária
como todo cidadão e toda instituição, que o Estado tome posse desses locais e os ocupe
com escolas, creches, hospitais, postos de saúde, centros culturais e de lazer, enfim,
unidades que prestem serviços de fato essenciais à sociedade). Que se acabe com o
financiamento público de eventos e shows religiosos, como de música gospel. Que se casse
o registro de todos os partidos políticos religiosos e os mandatos e cargos de todos os
líderes e representantes da Igreja, como padres e pastores, no Poder Público. E que se
revogue as concessões públicas concedidas aos setores religiosos nos meios de
comunicação, sem exceção.

O caminho para a secularização geral da nação parte de um projeto nacional radical que
tome os ideais secularistas como princípios-bases e a laicidade pura e verídica como uma
finalidade a ser alcançada.

ESTADO LAICO ACIMA DE TUDO. LAICIDADE ACIMA DE TODOS.

(12/06/2022)

CRISTÃOS CONTRA O FASCISMO? A DIFERENÇA ENTRE NÓS E ELES

Dia desses me deparei, nas redes sociais, com uma bizarrice descomunal para a história, a
lógica e, claro, a racionalidade. Me causou espanto a existência de um movimento dito
“progressista” que carrega, como principal bandeira, uma ideologia mitológica que não só
sustenta o conservadorismo social como também institui e absorve, por óbvio, conceitos e
concepções de mundo reacionárias e anti-científicas. E é natural um livre pensador sentir
estranheza em relação a algo tão esquisito e contraditório.
Me refiro, particularmente, como o próprio título deste artigo já entrega, ao coletivo (ou
movimento) Cristãos contra o fascismo, bem como a todos os progressistas que seguem o
cristianismo. Aliás, já havia ouvido falar de tal entidade e visto algo sobre ela em momentos
em que estive em militância, nas ruas, contra o fascismo e em defesa da democracia,
porém nunca prestei a devida atenção por nunca ter dado relevância ao grupo e não tê-lo
levado a sério. O motivo é meio óbvio, e creio que qualquer pessoa que tenha estudado o
básico de história e que seja um livre pensador secularista faria o mesmo. Basta reparar no
nome do grupo que já se percebe a razão da contradição e o porquê de ser algo tão bizarro,
uma piada.

Ao que parece, os ditos-cujos “antifascistas” crêem, entre seus inúmeros contos e suas
fábulas irracionais, que podem vincular uma causa necessária  —  que é o combate ao
fascismo  —  com o cristianismo, a ideologia que mais matou e promoveu o caos na história
da humanidade, inclusive fomentando e contribuindo com o próprio fascismo. E pior,
acreditam que podem reescrever a história para desvincular a mitologia cristã de seu
passado obscurantista e de sua posição ultraconservadora, atrelando sua fé ao campo
social progressista que luta por liberdade, democracia, direitos e, essencialmente, pela
laicidade do Estado.

É deplorável certas coisas que a esquerda política e os setores progressistas da sociedade


produzem e estimulam contra si próprios. A grande lição que fica é que alguns grupos
desconhecem a história do mundo, enquanto outros a desconsideram para acobertar o lado
sombrio de suas ideias e apenas reforçar suas teses como uma finalidade absoluta. No
fundo temem a reação dos setores religiosos por sua força numérica (e eleitoral), evitando
serem vistos como hostis à religião e suas ideias. Por isso insistem em invisibilizar a
militância ateísta e secularista de suas mobilizações em prol da inclusão e das minorias
sociais38, costumeiramente ignorando e desmantelando um debate e um engajamento
centralizado em ações seculares pró-Estado laico. E absorver a fé cristã internamente,
expressando devoção e adoração a ela, além de incluí-la nos movimentos sociais e
políticos, demonstra pouca coerência e uma fragilidade dentro do espectro e do campo,
corrompendo as causas, suas pautas e demandas.

Os cristãos autoproclamados “antifascistas” dirão que condenam o genocídio, o etnocídio e


o ecocídio, mas passarão um bom pano para as atrocidades cometidas pelo cristianismo ao
longo dos séculos, buscando, incessantemente, desvincular a mitologia de seus marcos
históricos. Esses servos da fé cristã tentarão de todas as formas, por meio de malabarismos
argumentativos, relativizar ou mesmo apagar da história do cristianismo as guerras santas  
—  que, por motivações religiosas, resultaram na morte de milhões de pessoas em todo o
mundo entre diferentes épocas e regiões  —  e a Santa Inquisição  —  a qual, entre os
séculos XII e VIII, matou pessoas torturadas e, principalmente, queimadas nas fogueiras
santas por atos considerados pela Igreja Católica como “crimes” e “perversões” passíveis de
punição. Dentre estas tais práticas à pena de morte, os cristãos enquadravam heresia,
blasfêmia, bruxaria e outros costumes e maneiras considerados como “imorais”,
“desviantes” e “subversivos” para os conservadores que sempre lideraram a Igreja e
promoveram o cristianismo cultural no planeta. Ou seja, mulheres, idosos e até crianças
foram brutalmente torturados, queimados e assassinados pela mitologia que, supostamente,
prega a “paz” e o “amor”.
38 Ver A invisibilidade do ativismo ateísta e secularista no campo social progressista.
Mas os tribunais religiosos da Inquisição e os horrores praticados pela Igreja durante a
Idade Média são apenas a ponta do iceberg cristão. Há muito mais sujeira e podridão por
debaixo do tapete do Vaticano, e as fogueiras santas representam somente o exemplo mais
tradicional do que de fato é o cristianismo, suas raízes e essências. A revolta hipócrita que
os crentes hoje têm dos absurdos promovidos pelos mulçumanos terroristas a partir do
Estado Islâmico e da Al-Qaeda no Oriente Médio ignora e desconsidera que o que os
alienados do Islã (outra ideologia genocida) promovem atualmente se assemelha ao que a
Igreja Católica instaurou no passado, inclusive com inspiração nos métodos de tortura e
repressão da Santa Inquisição cristã.

Aliás, ironicamente, o próprio emblema do cristianismo, o crucifixo, é um instrumento de


tortura utilizado nos séculos passados, tendo inclusive, segundo a mitologia, torturado o
personagem símbolo da religião. Mais uma estranheza que o cristianismo proporciona, além
de suas aberrações e atrocidades.

Dentre tudo que o cristianismo construiu e, principalmente, destruiu, pode-se citar, por
exemplo, o colonialismo na África e nas Américas como formas de massacre e dominação
cristã. Além da ocupação territorial e do domínio econômico, político e cultural sobre os
povos escravizados, os europeus, com incentivo e financiamento da Igreja, promoveram
também um controle religioso, por meio da força, em suas colônias. No Brasil, assim como
em outras terras latino-americanas, os colonizadores trouxeram, juntamente com as
doenças, vírus e bactérias, a sua fé etnocêntrica que consideravam como a única e
verdadeira, imperando acima dos rituais nativos.

Se bem que cristianismo, religião de modo geral, doença e vírus são sinônimos, mas opto
por separá-los aqui para possibilitar uma melhor compreensão dos fatos, principalmente por
parte dos crentes  —  mesmo os “antifascistas”  — , devido a suas limitações lógicas e
cognitivas (se isso for possível).

A questão central é que os colonizadores (tão cristãos quanto seus discípulos que hoje
“combatem” o fascismo), além de escravizar, dominar e massacrar os povos colonizados,
também doutrinaram religiosamente os nativos até os absorverem para sua seita. Assim, os
padres e bispos da Igreja Católica vindos da Europa catequizaram os povos indígenas e os
negros africanos, dizimando sua cultura, com a falácia de “salvá-los” de um inimigo invisível,
sem que estes tivessem solicitado ou possuíssem capacidade e consciência suficiente para
decidirem e recusarem.

Claro que os “hereges” que ainda resistiram ou tentaram resistir às pressões do padroado e
à opressão cristã foram torturados e mortos em nome de “deus” e da “salvação” do mal
invisível que o mito imaginário não pôde evitar ou eliminar. E assim se concretizou, além da
escravidão do povo afro e do genocídio indígena, o etnocídio de suas culturas que foram
usurpadas pelo cristianismo, que passou a vigorar hegemonicamente em terras ocidentais,
acima das demais crenças e costumes de matriz originária africana ou americana.

Essa é a bandeira ideológica que alguns setores do campo social progressista erguem no
momento de se opor ao fascismo, ao colonialismo e ao lutar pela democracia. E o que mais
impressiona é o fato disso ser totalmente naturalizado e aceito pelo restante do coletivo que
desconhece a história ou que ignora e/ou relativiza alguns fatos a fim de encobrir as crenças
que eles também absorvem e detêm contraditoriamente.
Inclusive, já que o tema é fascismo, a maior hipocrisia e contradição desses grupos é se
dizerem cristãos e antifascistas simultaneamente. São fórmulas que não se misturam, como
água e óleo: ou se enfrenta o fascismo e os ideais conservadores, ou se segue o
cristianismo. Pois, a partir de exemplos citados no capítulo em que falo sobre como o
mundo seria muito melhor se não existisse religião39, percebe-se que o fascismo e o
cristianismo são irmãos siameses, ou seja, que não há conflito entre as ideologias facínoras
e reacionárias. A mitologia cristã, além de ser a base moral e ética que sustenta a
sociedade conservadora ocidental e fortalece o patriarcado, é também a linha auxiliar e um
dos maiores suportes aos regimes fascistas, pois é o que sustenta os costumes e princípios
morais dessas sociedades autoritárias, eugenistas, intolerantes e totalitárias.

Observe, raciocine e perceba.

Primeiramente, não há fascista ou qualquer ditador eugenista, racista e/ou escravagista que
não seja cristão ou possua alguma fé religiosa. Da mesma forma como a maioria dos
terroristas e bandidos presos após terem cometido as maiores atrocidades  —  como
assassinato, sequestro e estupro  —  são religiosos e praticam suas ações a partir de
motivações de cunho religioso. O que mais se presencia nas sociedades ocidentais
impregnadas pelo cristianismo cultural são pastores ladrões que exploram e enriquecem a
partir da fé alheia, padres pedófilos e criminosos que matam em nome de um suposto deus
ou por intermédio de supostas ordens e/ou graças desse suposto mito. Raramente (e põe
raro nisso!) vemos ateus e agnósticos julgados e condenados por práticas assim. E, nesse
sentido, a moral religiosa já é posta em xeque em comparação e confronto com a nossa,
que é pura e verdadeira40.

O segundo ponto que assinalo é quanto à constituição do fascismo enquanto período


histórico e como ideologia sócio-política.

Tanto Hitler quanto Mussolini eram cristãos e, enquanto religiosos, apesar da forte e intensa
perseguição aos judeus  —  igualmente a Igreja Católica cometeu no passado, durante a
Santa Inquisição  — , os ditadores líderes do nazifascismo seguiam o catolicismo apostólico
romano, sendo que ambos aclamavam seus governos autocráticos com a bênção divina,
como os “escolhidos por deus” que faziam, através de suas ações segregatórias de
extermínio, a “vontade de deus” para a “salvação” e a “purificação” dos povos, fosse em prol
da raça e/ou da pátria. Não à toa que os discursos de Hitler, os lemas do nacional-
socialismo e a propaganda nazista ultranacionalista e ultraconservadora articulada por
Joseph Goebbels constantemente faziam alusão ao mito do cristianismo e pregavam os
valores e princípios morais do catolicismo como base da sociedade conservadora, patriarcal
e eugenista do Terceiro Reich.

Inclusive, esse próprio modelo conservador e opressor de sociedade dos regimes fascistas
se assemelha aos modelos de sociedade impostos nas teocracias fundamentalistas do
mundo árabe, ditadas pela xaria islâmica, no Estado sionista invadido pelos judeus que
massacra os povos palestinos, na autocracia do Talibã no Afeganistão e na Rússia czarista,
pré-Revolução de 1917, que fora governada pela Igreja Ortodoxa e por ideais ortodoxos.
São exemplos de governos baseados em princípios da fé religiosa, seja ela qual for, e da

39 Ver Imagine um mundo sem religião.


40 Ver A moral ateísta.
mistura de política com religião, a qual defendem os crentes inimigos do secularismo no
Brasil.

“Deus está conosco”, dizia Adolf Hitler, que escrevera, em sua autobiografia,
Mein Kampf, em 1924: “E, assim, eu creio, como sempre, que o meu
comportamento está de acordo com a vontade do Onipotente Criador.
Enquanto me mantiver de pé, serei contra o Judeu, defendendo a obra do
Senhor”, demonstando sua fé idêntica aos jovens inocentes que hoje dizem
combater o fascismo com suas mesmas armas que o constitui.

Hitler na porta da Igreja Santa Marina, Wilhelmshaven, Alemanha, em 1933.

Por fim, é bom refrescar a memória daqueles que ainda se autodenominam progressistas e
opositores do fascismo, mas que ao mesmo tempo insistem em seguir o cristianismo e seus
mandamentos ditatoriais. Lembro-lhes do papel fundamental da Igreja Católica na
consolidação do Reino fascista da Itália e do Reich nazista na Alemanha, do apoio crucial
do Papa Pio XI aos fachos e à sustentação dos Estados autocráticos na Europa ocidental,
do Tratado de Latrão (ou Tratado de Santa Sé) que alinhou a Itália fascista e a Igreja
Católica, atrelando a religião cristã ao regime e oficializando a fé oficial da nação  —  o que
possibilitou o surgimento do Vaticano  — , além do respaldo e da colaboração incondicional
da Igreja e de seus principais líderes na ascenção de Hitler e Benito Mussolini em seus
países. E aproveito, oportunamente, para recordar como a Igreja e seus representantes, em
nome do cristianismo e de seu mito invisível e imaginário, tiveram participação, através de
promoção e/ou financiamento, em ditaduras e golpes pelo mundo todo no decorrer do
século XX. Recordo-lhes os regimes de Franco e Salazar na Espanha e em Portugal,
respectivamente, a ditadura de Pinochet, no Chile, e, especialmente aos cristãos
antifascistas do Brasil, o golpe civil-militar-religioso de 1964, o qual instaurou, por 21 anos,
uma ditadura sanguinária e repressiva em nosso país, torturando e matando opositores,
cassando mandatos, retirando e violando direitos e censurando os meios de comunicação.
Tudo, obviamente, com a graça e a bênção divina, da Igreja e de suas representações à
extrema-direita e, sempre, ao fascismo, como na célebre Marcha da Família com Deus pela
Liberdade, que fora amplamente promovida e financiada pelos setores fundamentalistas
católicos a fim de destruir o Estado Democrático de Direito.

Mas estou ciente de que os cristãos “contra o fascismo” se empenharão, como de costume,
a desvincular o cristianismo de suas essências fascistas. Ou então o fascismo de suas
raízes cristãs. Aliás, esse é um papel que setores do campo social progressista e da
esquerda brasileira cumprem com maestria: desvincular os opositores extremistas da
ideologia que eles convergem e compactuam mutuamente. Fazem com Bolsonaro (sim, o
presidente alinhado às igrejas evangélicas, inimigo do Estado laico, que indicou um ministro
“terrivelmente evangélico” para o STF e que possui o lema “deus acima de todos”), fazem
com os pastores lobistas e estelionatários que sonegam impostos, lavam dinheiro e
enriquecem por meio do dízimo extraído dos crentes doutrinados e alienados, fazem com os
padres pedófilos da IC e fazem com os líderes políticos das bancadas da Bíblia que violam
a laicidade do Estado e atacam a diversidade social e os direitos humanos. Apesar da
imensa maioria da população brasileira (acima de 90%) se afirmar como cristã, parece que
no primeiro ato falho ou crime cometido todos deixam de ser teístas e passam a ser os
“falsos cristãos”, “charlatões da fé”, que não seguem os “reais mandamentos de Jesus”, o
que for possível para desvincular o cristianismo de seus males e blindar a mitologia como
uma perfeição na terra que ninguém segue ou pratica da forma correta, como manda a
cartilha. Até que um dia passarão a dizer que os neonazistas não seguem o nazismo de fato
ou que o bolsonarismo não representa os ideais da direita política, da mesma forma como a
extrema-direita realiza os mais mirabolantes malabarismos argumentativos para se
desvincular do nazifascismo, de seu passado obscuro e de suas raízes e essências
reacionárias e autoritárias.

Parece uma piada de mau gosto, um deboche com a cara de quem raciocina honestamente
nessa República de bananas. No fundo o que tentam é, de forma velada, estruturar uma
ateofobia gratuita contra uma minoria oprimida e excluída da sociedade que os tais “cristãos
contra o fascismo” ignoram, igualmente fazem em relação à defesa da laicidade. O que o
discurso negacionista prega é que, se os criminosos não são de fato cristãos, ou são “falsos
seguidores de Cristo”, ou então só podem ser ateus. Ou se não são ateus, são satanistas,
um Judas ou o próprio anti-cristo (o que dá no mesmo para os cristãos, visto que estes
desprezam a comunidade ateísta e instigam o ódio contra a nossa existência).

Uma ova! São todos cristãos, factualmente. Bolsonaro, os bolsonaristas, os nazifascistas,


os escravistas, os racistas, os pastores lobistas, os padres pedófilos e estupradores, todos
são muito e verdadeiramente cristãos. E todos, sem exceção, juntamente com o fascismo e
o cristianismo, devem ir para a lata do lixo da história.

Perceba que não há ateus nos presídios, nem ateus matando e roubando em nome do
ateísmo, nem ateus pregando uma “palavra” ateísta nos espaços públicos, nem ateus
propondo leis com base nos seus ideais descrentes, muito menos um cidadão que, após ter
cometido as maiores atrocidades, chegue em frente a um delegado ou juiz e afirme, com
plena consciência: “eu não acredito em deus!”. Todos acreditam, todos servem, todos
seguem. Muitos, inclusive, cometem os crimes em nome da fé e/ou do mito abraâmico,
quando não o fazem alegando bênção e proteção de seus ideais místicos e espirituais,
como “fiz a mando de deus” ou “deus abençoa minhas ações”.

E sabe como afirmo tudo isso, além de embasamento na realidade social? Porque essa é a
essência da Bíblia, raíz da mitologia cristã. É no livreto fantasioso do cristianismo que estão,
além das mais diversas fábulas irracionais sem embasamento empírico, como o
criacionismo, os mandamentos de ordem contínua mais podres e desprezíveis da
humanidade. Esse livro, considerado como base e referência ética e moral em diversas
sociedades ao redor do planeta, prega o machismo e a misoginia  —  a partir da submissão
da mulher perante o homem (Efésios 5:22–24) —, a LGBTfobia e a transfobia41  —  a partir
da concepção heteronormativa que condena relações homoafetivas (Levítico 20:13)  — , e o
apedrejamento de mulheres (Deuteronômio 22:20–21), além de fomentar a cultura do
estupro (Deuteronômio 22:23–24) e fazer apologia ao massacre, inclusive de mulheres,
crianças e animais, naturalizando-o e ralativizando-o (1 Samuel 15:2–3).

Não é do nada que os extremistas religiosos, devotos das religiões que “pregam e
promovem a paz”, são extremamente violentos e intolerantes, ao invés de serem
extremamente pacíficos e amorosos. Também não é à toa que líderes religiosos que
atendem às demandas da Igreja e servem aos seus interesses, ferindo a laicidade
constitucional, são inimigos dos direitos reprodutivos e sexuais das mulheres e das
liberdades individuais da população LGBTQIA+, se opondo ao aborto legal, ao uso de
contraceptivos, à adoção por casais homoafetivos e à sua união civil. Os mandamentos
bíblicos pregam esses conceitos, e é este livro que constitui os princípios do cristianismo e o
institui como ideologia genocida e, sem exageros, protofascista por natureza. Pois não

41 Ver O cristianismo e as raízes da LGBTfobia.


haveria fascismo sem cristianismo, justamente por este ser a base de sustentação moral de
todo ideal reacionário, intolerante e conservador.

E por mais que tenham alguns poucos grupos dentro das igrejas, dos templos e entre os
setores cristãos que defendem o Estado secular e que tentam resistir a essa ordem
estabelecida pela fé cristã, subvertendo os reais ensinamentos do cristianismo, estes são
minorias sem relevância, representação e poder nessa esfera. A imensa e esmagadora
maioria, e principalmente as lideranças com influência política e social que dominam o meio
religioso, são adeptas do cristianismo raíz: preconceituoso, intolerante, reacionário,
conspiratório e irracional. Os que de fato representam a mitologia cristã  —  os
conservadores fundamentalistas  —  dominam e carregam a ideologia por sua essência,
enquanto a minoria progressista que tenta, frustrantemente, ser revolucionária é composta
por insignificantes desvirtuados que, até o momento, não abraçaram o ateísmo, libertando
suas mentes e corpos das amarras do obscurantismo teísta.

É por isso que o campo progressista, bem como a esquerda revolucionária, por coerência e
compromisso com as lutas sociais, deve negar o cristianismo e rejeitar suas crenças e
ideais. Do mesmo modo, não se pode ser ateu conservador, cristão progressista, feminista
cristã42 ou cristão antifascista. São contradições em termos, incompatíveis com os princípios
teóricos, com a história da humanidade e com a realidade social.

Que se espelhem em nós, ateístas e, como tais, livres pensadores, democráticos e


legalistas, que absorvemos o ateísmo como uma concepção de mundo e uma filosofia de
vida43, rejeitamos a moral e a ética religiosa, detemos o racionalismo como uma dádiva e
somos mais evoluídos social e psicologicamente do que os crentes precursores do atraso e
prisioneiros dos preceitos retrógrados e fictícios da religião. Nós que cultivamos ódio e nojo
ao cristianismo cultural e sua dominação global  —  bem como à ditadura e ao fascismo  — ,
porém, em prol do Estado laico acima de tudo, uma virtude secularista, respeitamos e
defendemos o direito à liberdade de crença e culto  —  desde que mantida em foro
exclusivamente privado, afastada das políticas públicas e sociais e do âmbito público, bem
como dos órgãos e das instituições do Estado. Nós que preservamos os princípios-bases do
secularismo em consonância com a promoção de um ativismo ateísta que fomente o
progresso, o desenvolvimento social e o pensamento crítico e científico, em oposição aos
atrasos e retrocessos da fé religiosa44, a fim de impulsionar o avanço na sociedade e a
libertação das mentes aprisionadas pelas mitologias irracionais por meio de um ateísmo
provedor, libertador e transformador45.

Pois, que fique claro e ciente: nós defendemos a democracia, as liberdades individuais, os
direitos civis e sociais, a diversidade, a ciência, o ceticismo, a racionalidade e o secularismo;
eles defendem a teocracia, a ditadura, a dominação, a doutrinação, a repressão, a
intolerância e a discriminação, o preconceito, a escravidão e o fascismo. Essa é a diferença
entre nós e eles.

(17/07/2022)

42 Ver Não existe feminismo cristão.


43 Ver Ateísmo como uma filosofia de vida.
44 Ver A religião e a política do atraso.
45 Ver Ateísmo provedor e libertador.
ATEÍSMO: SATANISMO E PESSIMISMO?

Ao indagar “o que é, com efeito, um ateu?”, o filósofo materialista francês Barão d’Holbach,
proeminente do Iluminismo, responde, no livro O Sistema da Natureza ou das leis do mundo
físico e do mundo moral (1770), que o ateu:

É um homem que destrói algumas quimeras nocivas ao gênero humano para


reconduzir os homens à natureza, à experiência, à razão. É um pensador que,
tendo meditado sobre a matéria, sua energia, suas propriedades e suas
maneiras de agir, não tem necessidade, para explicar os fenômenos do
universo e as operações da natureza, de imaginar potências ideais,
inteligências imaginárias, seres de razão que, longe de fazerem conhecer
melhor essa natureza, nada mais fazem do que torná-la caprichosa,
inexplicável, irreconhecível e inútil à felicidade dos humanos. (HOLBACH, 2010,
p. 772)

Penso que o próprio Holbach, célebre crítico da religião e forte pensador ateísta do século
XVIII, não poderia ter se expressado melhor ao definir nós, ateus, como homens que
destroem “algumas quimeras nocivas ao gênero humano para reconduzir os homens à
natureza, à experiência, à razão”. As “quimeras nocivas ao gênero humano” apontadas pelo
filósofo são as religiões e seus mitos fictícios que, como mostrei em outro texto46, são
nocivas à humanidade e ao bem-estar social; portanto nós, livres pensadores ateístas e, por
isso, socialmente posicionados numa escala evolutiva superior aos crentes, ao romper com
essas quimeras (a moral e a ética religiosa), reconduzimos a humanidade ao estado de
natureza do universo e dos seres vivos, aos experimentos por meio do senso crítico e, por
fim, ao racionalismo como uma dádiva que detemos com brilhantismo. E é por meio desses
princípios e pontos de vistas que consolidamos o ateísmo como um ideal provedor da
liberdade, da transformação e da razão47, estabelecendo uma nova filosofia de vida e uma
concepção de mundo e da realidade natural, material e social48 que difere da perspectiva
cultural, hegemônica e dominante — esta amparada pela fé religiosa irracional e pelo
espiritualismo místico.

Utilizei dessa citação do filósofo Barão d’Holbach para introduzir este artigo, pois tenho
constantemente refletido sobre a realidade social vivenciada pela comunidade ateísta no
Brasil e no mundo, bem como a percepção que a sociedade majoritariamente religiosa tem
e difunde sobre nossa existência enquanto cidadãos de direitos e pertencentes a um grupo
socialmente oprimido e excluído. É sabido que somos uma população minoritária  —  social e
numericamente  —  que sofre com a discriminação, a intolerância e a invisibilidade na mídia,
nos espaços públicos e até mesmo dentro do campo social progressista  —  o qual deveria
nos acolher e incluir nossas demandas nas lutas e mobilizações por democracia e direitos,
assim como nos solidarizamos com suas pautas e as absorvemos em nosso meio ativista49.
Nesse sentido, a proposta deste texto está focada em abordar uma série de preconceitos

46 Ver Imagine um mundo sem religião.


47 Ver Ateísmo provedor e libertador.
48 Ver Ateísmo como uma filosofia de vida.
49 Ver A invisibilidade do ativismo ateísta e secularista no campo social progressista.
que nossa comunidade sofre, a partir da constituição de estereótipos que nos são
socialmente atribuídos e impostos pela sociedade impregnada pela religião, o que
caracteriza algumas formas do que definimos como “ateofobia”.

A ateofobia é uma palavra pouco conhecida popularmente e oficialmente ainda não


reconhecida, principalmente a partir de uma tipificação penal como crime para combater a
intolerância contra descrentes e irreligiosos. Ela deriva da palavra atheos (prefixo “a”,
indicando negação, somado a palavra “theos”, que significa “deus”), do grego  —  que
caracteriza indivíduos que não possuem nenhuma religião e não acreditam na existência de
deus(es), o que, segundo a filosofia, denominamos de ateísmo fraco, negativo, implícito ou
passivo, ou que acreditam na inexistência de deus(es), o que é denominado filosoficamente
como ateísmo forte, positivo, explícito ou ativo (o primeiro tipo de ateísmo sendo definido
como a forma mais comum, uma descrença, e o segundo sendo definido como a posição
menos comum  —  a qual é a minha posição enquanto ativista  — , um tipo de crença, porém
não uma religião) —, somada à palavra phóbos (fobia), também do grego, que significa
medo, rejeição, desprezo, aversão e/ou ódio. Nesse sentido, ateofobia siginifica rejeição,
desprezo, aversão e/ou ódio à comunidade ateia por meio de discriminações, práticas e
discursos de ódio, segregações e preconceitos contra indivíduos que assumam
publicamente não crer em deus(es) ou explicitem essa dúvida, algo semelhante ao racismo,
ao machismo, à misoginia, à homofobia, à transfobia e à xenofobia.

O preconceito contra ateus não é algo atual e persiste na sociedade há séculos, de formas
vezes explícitas, vezes veladas; vezes bem agressivas, vezes mais moderadas. Os ateus,
ao assumirem e explicitarem suas posições ateístas, são perseguidos e discriminados no
trabalho, sofrem bullying na escola, são isolados e excluídos do convívio social e até
mesmo expulsos de casa e rejeitados por familiares e “amigos”. Nossa comunidade, no
passado, durante a Santa Inquisição, sofreu com a opressão e a repressão do cristianismo
que, a partir da Igreja e seus líderes religiosos, queimaram ateus vivos com base em
acusações de “crimes” como “heresia” e “blasfêmia”. Até os judeus e outros grupos
religiosos minoritários na Idade Média foram queimados e perseguidos pelos cristãos com a
falsa acusação de ateísmo, e, atualmente em teocracias fundamentalistas islâmicas, os
terroristas do Islã replicam contra nosso grupo o que aprenderam com a mitologia cristã na
antiguidade.

A comunidade ateísta vive marginalizada, ou seja, à margem das sociedades religiosas.


Tentam nos calar, nos controlar, nos converter (doutrinar) e nos impôr suas aberrações
fantasiosas. Não é fácil ser ateu em um mundo dominado e controlado por valores e
princípios da fé, muito menos expressar o que pensamos e como vemos o mundo. Temos
de lidar com provocações, agressões, rejeições, distanciamento e até mesmo com a
violência, física e/ou verbal, por conta de nossa posição e de nossos ideais que contrariam
a ordem vigente estabelecida pelos que governam e dominam o sistema. E é o cristianismo
cultural o principal culpado por nossa vida marginalizada e oprimida nesse mundo ocidental
em que essa mitologia predomina e nos sufoca.

Para além do que já havia abordado em março de 2021 no capítulo Saindo do armário, onde
apresento dados da discriminação contra a comunidade ateísta, como pesquisas de opinião
pública que explicitam a rejeição da sociedade brasileira em relação aos ateus, e proponho
que “saíssemos de nossos armários” (fazendo uso da expressão popularmente utilizada
pela comunidade LGBTQIA+) e nos assumíssemos, nos expressássemos como ateus
perante a sociedade e o Estado, enfrentando o cristianismo cultural e unindo forças a fim de
construirmos uma luta por visibilidade à nossa existência, respeito à nossa presença e
nossa posições, garantia de direitos e defesa de um Estado verdadeiramente laico, em prol
do bem-estar social, o foco central aqui é tratar da ateofobia a partir de preconceitos e
estereótipos que nos rotulam de forma injusta e tendenciosa. Lendo o livro Ateufobia -
aversão, desprezo e ódio contra os descrentes, escrito pelo camarada Edmar Luz e o qual
contribuí com um relato sobre as formas de discriminação, por meio da exclusão social, que
sofri desde que me assumi ateu publicamente e expressei meu ateísmo em forma de
militância, a ideia de desmistificar esses estereótipos se solidificou e me impulsionou a
abordar ainda mais esse tema da discriminação contra a nossa comunidade (o que Edmar
propõe, validamente, chamar de ateufobia, com “u” ao invés do original com “o”,
abrasileirando a palavra e dando maior visibilidade a esse tipo de intolerância).

Quem é o ateu ou a ateia que, ao se assumir como tal perante a sociedade, nunca ouviu o
trocadilho “você é ateu ou à toa”? É bem difícil que não se tenha sido vítima desse afronte
que aparenta ser sutil e por vezes “cômico”, mas é nada mais do que uma forma de
deslegitimar a nossa posição ateísta, ignorá-la e/ou ridicularizá-la. A verdade é que os
cristãos, de modo geral, e principalmente os crentes fanáticos fundamentalistas, odeiam os
ateus. Os mais moderados, aqueles não tão crentes ou teístas sem religião, assim como
familiares, amigos e colegas com posições voltadas ao teísmo, apenas nos suportam e
tentam, de certo modo, nos respeitar enquanto cidadãos, porém desrespeitando e
invisibilizando a nossa existência enquanto indivíduos descrentes. Isso é dado talvez por um
sentimento de revolta ou mesmo uma vingança conosco pela forma como tratamos a fé
irracional e mitológica deles, assim como o mito invisível e imaginário que tanto idolatram. A
tática cristã, promovida a partir do cristianismo cultural, é de nos invisibilizar, nos excluir,
nos segregar do conjunto social, nos tornar “deuses visíveis” que a imensa maioria não
louva e rejeita. Isso sem considerar os crentes alienados e idólatras das igrejas e os líderes
religiosos que pregam o nosso extermínio e almejam nossa inexistência ao patamar divino.

Os cristãos não gostam dos ateus pois, como Holbach bem cita ao nos caracterizar, somos
homens que destroem “algumas quimeras nocivas ao gênero humano para reconduzir os
homens à natureza, à experiência, à razão”. Assim como o cristianismo e todas as religiões
detestam a ciência por esta destruir mitos e quebrar sua hegemonia e dominação por meio
de doutrinação sócio-cultural, os religiosos se opõem àqueles que ameaçam a posição de
sua fé irracional a partir da promoção do racionalismo. O ateísmo deturpa a religião,
subverte os conceitos da fé e nega a moral e a ética religiosa, o que nos torna, segundo os
crentes, seres “não confiáveis", "promíscuos", “imorais”, que tem “desvio de caráter”. E não
que esses estereótipos sejam constituídos por uma ausência moral dos ateísmo, que existe
e é pura e verdadeira50, mas porque as representações ateístas desacreditam tudo o que a
sociedade foi doutrinada e forçada a acreditar, ameaçando os privilégios e os interesses da
Igreja, que são também os interesses das classes dominantes que monopolizam o sistema.

Sabemos que a educação derruba mitos e desconstrói conceitos, e o que aparenta é que os
cristãos invejam a nossa posição racionalista e materialista. O ateísmo liberta as mentes
aprisionadas pela religião e nos retoma ao nosso estado de natureza puro, ao qual
nascemos seres descrentes, com base na razão e no pensamento empírico, e isso gera a
50 Ver A moral ateísta.
ira do sistema constituído para que fossemos escravos dos poderosos. Nossa ideologia,
progressista em sua essência, é genuinamente revolucionária. Por isso a discriminação, o
preconceito, a intolerância, o ódio e os estereótipos. Nós, ao nos libertamos da doutrinação
cultural, evoluímos socialmente e subvertemos a ordem pré-estabelecida. Enquanto eles
ajoelham perante estátuas inanimadas e rezam, nós nos levantamos e raciocinamos além
da bolha que eles cultivam e se cercam, furando-a através de questionamentos lógicos, do
senso-crítico e das obviedades que a realidade natural, material e social nos evidencia e
nos apresenta visualmente.

A partir daí surgem as narrativas e a constituição de estereótipos, como os de que os ateus


são satanistas. Para a Igreja e os religiosos, se nos opomos à sua mitologia irracional e
negamos seu mito fictício, então somos “adoradores e devotos” de Satanás, do demônio, do
diabo, de Judas, de Lúcifer, do bicho-papão, ou seja lá como chamam o outro mito folclórico
que fundamentam. Do ponto de vista dos crentes, não basta ter um amigo imaginário, é
preciso também ter um inimigo imaginário para que possam culpá-lo por seus infortúnios,
suas falhas e as injustiças e incoerências do mundo, bem como solucionar questões quanto
à ineficácia e as contradições de seu deus, sem ter de atribuir ao divino “altíssimo” a
existência do mal. O Satã nada mais é do que a solução fácil e mágica que a fé religiosa
encontrou para resolver as incógnitas e os empecilhos que ela (e deus) não foi capaz de
solucionar. Por essa ótica sobrenatural, tudo de bom que ocorre no planeta é atribuído ao
mito “bom”, enquanto tudo de ruim que acontece deve ser atribuído ao mito considerado
“ruim”.

Internamente na mitologia, relacionem como bem quiserem, mas jamais atribuam isso aos
ateus e ao ateísmo. Nós livres pensadores não terceirizamos a culpa ao sobrenatural, nem
responsabilizamos, para o bem ou para o mal, seres místicos pelo que acontece no mundo
e em nossas vidas. Somos pensadores humanistas, assumimos as responsabilidades por
nossos atos, culpabilizamos as ações humanas pelo caos e damos créditos a elas pelas
glórias. Acreditamos que apenas a humanidade é capaz, sozinha, de prosperar e evoluir por
meio de colaboração coletiva, sendo a única espécie racional e com capacidade de
desenvolvimento na Terra, estando acima das demais. Deus, diabo, fadas, gnomos,
duendes, unicórnios, todos esses mitos, para nós, estão no mesmo patamar de
comparação, sendo todos invisíveis, imaginários e sem evidências ou sequer indícios de
existência. Não colocamos deus e diabo em em uma posição privilegiada em relação às
outras hipóteses místicas, quando apenas as negamos com maior veemência devido ao
consenso quase que totalizante por parte das sociedade sobre tais teorias. Quem acredita
em Satanás são os religiosos que o combatem, que o culpabilizam, que o repreendem. Nós
ateus não reconhecemos mitos, sejam bons ou maus, e vemos o satanismo que nos
atribuem apenas como uma religião semelhante ao cristianismo e ao islamismo: inútil e, a
partir das garantias secularistas, com liberdade de culto e manifestação, porém com menos
adeptos, poder e influência que as mitologias hegemônicas do globo terrestre  —  ou seja,
uma quimera menos nociva para a humanidade, para o bem-estar social e para a laicidade
do Estado.

Contudo, penso que o pior está nos estereótipos sobre como somos individualmente, em
nossa personalidade. Se o preconceito de que somos “satanistas adoradores do diabo” é
algo por vezes banal e até cômico, o de que somos “pessimistas” por natureza escancara a
discriminação contra a nossa comunidade. Para os religiosos, os ateus não tem
pensamentos positivos e não podem ver e viver a vida com positividade, visto que vivemos
sob uma concepção de mundo sem um deus que, segundo eles, seria a razão, o sentido da
vida e o único caminho para a felicidade.

De acordo com os cristãos preconceituosos, não é possível alguém que não acredite em
deus ser feliz. Uma pessoas sem deus, segundo eles, não é nada, é um ser fracassado,
sem perspectivas e sofredor. Desse modo, os ateus seriam seres infelizes por sua natureza
descrente. Porém não há absolutamente nada que comprove e sustente essas afirmações
empiricamente, bem como tudo o que os religiosos pregam e que a religião fundamenta.

Os ateus podem sim viver muito felizes, tendo muitas conquistas e realizações em suas
vidas, mais até do que os próprios religiosos, por mais fé que tenham e demonstrem. Não
há relação entre religião e felicidade, nem que acreditar em mitos faz de alguém uma
pessoa feliz. Há muitos ateus que são felizes, há muitos que não são; há muitos religiosos
infelizes, há muitos que não. Assim como a fé não define caráter, ela também não é
garantia de felicidade e realização pessoal. Afinal, o sentido de nossa vida somos nós que
atribuímos, não sendo algo predestinado em estado de natureza como uma “missão” na
Terra, segundo os espiritualistas afirmam.

Essa narrativa de que ateus não podem ser pessoas boas, felizes e confiáveis é pura e
mera falácia religiosa, além de um preconceito nojento. Existem médicos, comunicadores,
empresários, artistas, celebridades, doutores e cientistas ateus que são muito felizes,
realizados, satisfeitos com os sentidos que atribuíram às suas vidas e com suas conquistas
e que também são ótimas pessoas, solidárias, generosas, caridosas e compreensivas, mais
do que muitos religiosos hipócritas, em especial os idólatras das igrejas, pastores, padres e
bispos, que mais buscam doutrinar para conquistar e dominar do que ajudar o próximo sem
interesses. É uma calúnia imoral acusar a comunidade ateísta e nos tachar do que fazem e
o que são.

Do mesmo modo, é mentiroso e canalha a falsa acusação de que os ateus são pessoas
revoltadas, depressivas e pessimistas, relacionando o ateísmo à depressão, uma doença
séria e grave, considerada pela OMS como o “mal do século XXI”, que atinge milhares de
pessoas, independente da crença, da religiosidade, das posições ideológicas e políticas, da
raça, da etnia, da nacionalidade, do sexo e do gênero. Para os alienados da fé, nós não
podemos simplesmente ser ateus e não acreditar, nossas convicções ateístas devem ser
fruto de transtornos ou traumas que nos geraram “revoltas” com a vida, com o mundo ou
com o mito imaginário que só existe na mente deturpada deles. Somos vistos socialmente
como seres abjetos que precisam ser “salvos” e “convertidos” (domados, domesticados e
doutrinados) pela fé que nos traria “paz”, “harmonia” e “felicidade”. É um discurso
semelhante ao que os colonizadores europeus destilavam aos povos nativos, considerados
“primitivos”, dos territórios por eles colonizados.

Como apontei anteriormente, há ateus felizes e contentes com suas vidas, ao mesmo tempo
em que há muitos religiosos que vão à igreja todos os domingos (ou diariamente) e têm
quadros de depressão e ansiedade mascarados pela mitologia. Não existe relação entre
ateísmo e depressão, nem mesmo que a religião seja um fator que inibe sintomas
depressivos e evite a doença, comprovado cientificamente. A fé religiosa é nada mais do
que uma alienação, uma falsa ideia de conforto que faz com que os doutrinados pensem
que necessitam dela em suas vidas e transmite a ilusão de um mundo melhor que
mantenha veladas as injustiças e desigualdades na realidade em que vivemos. A religião
introduz nas mentes dos aprisionados por ela um contentamento com a vida na Terra, a
partir da promessa de recompensas divinas e de algo benéfico após a morte. Como bem
disse Karl Marx, é o ópio do povo.

E a maior hipocrisia, o que nos deixa de fato revoltados, é quanto às contradições nas
imposições que os crentes nos rotulam. Pessoas religiosas, com fé e tementes a deus, têm
problemas e dificuldades na vida como todo mundo, mas a religião jamais soluciona por si
só esses infortúnios e nunca é culpabilizada pelos males e empecilhos que ocorrem no
cotidiano dos cegos por essas mitologias. Já soube de casos de pessoas muitos crentes,
que frequentam a igreja para rezar e pedir bênçãos e favores ao seu mito, que tiveram
sérios problemas de saúde, que foram vitimados em tragédias, que vêem seus entes
queridos com graves adversidades, que perderam bens, como casas e carros, e que vivem
uma vida miserável e infeliz. Porém a religião jamais é culpabilizada, questionada e
desacreditada nesses casos. A rota de escape argumentativa é responsabilizar um mito
bom pelas coisas boas e um mito ruim pelas coisas ruins, mas jamais duvidar da fé e muito
menos culpá-la. Enquanto que o ateísmo não, esse é sempre considerado como a causa de
todos os males que um ateu pode ter em sua vida, quando nunca será reconhecido e
considerado nos momentos benéficos, que para nossos carrascos não existem, visto que
não tem, segundo eles, como um descrente que não teme a deus obter vitórias durante sua
vida.

Portanto, nós ateus não somos, devido às nossas posições e convicções, depressivos,
revoltados, pessimistas e infelizes. A depressão, a infelicidade e o pessimismo não são
características provenientes do ateísmo e podem se fazer presentes na vida de qualquer
pessoa. Se há ateus assim, o que é natural e pode ocorrer com todo mundo, inclusive os
religiosos, o ateísmo não é um fator definidor. A realidade social, as desigualdades, as
injustiças, as cobranças, as pressões, a violência, a miséria, enfim, a vida difícil e precária
que nosso povo sofre no dia a dia, em especial numa sociedade capitalista, se encarrega de
inspirar e instigar esses sentimentos na realidade de todos, sem exceção ou distinção, e as
mitologias religiosas são incapazes de efetivamente evitar essas condições e prosperar as
perspectivas de vida dos indivíduos, elevando sua autoestima, quando somente iludem e
acobertam os problemas e os fatores reais com mentiras e fantasias mitológicas.

Quem infelizmente sofre de depressão, ansiedade ou algum problema que gere infelicidade,
desânimo e descontentamento com a vida deve procurar ajuda de profissionais
especializados em psicologia ou uma terapia para resolver, através de métodos clínicos e
científicos, seus problemas. A religião deve ser completa e radicalmente afastada de casos
assim, pois estes requerem tratamentos eficazes que de fato funcionem, ao invés de vender
falsas esperanças e ideias ilusórias de melhorias. A fé jamais foi capaz de recuperar
efetivamente quadros graves de depressão, evitar suicídios e promover um verdadeiro bem-
estar aos desamparados. A religião não trata e não cura, pois religiosos não são
especialistas em saúde, nem igrejas ou templos são ambientes propícios a isso. Basta ver
que nenhum religioso, por mais crente que seja, quando está doente, opta por ir se tratar na
igreja por meio da oração e dispensa um hospital e os métodos hospitalares, bem como
remédios. Pelo contrário, os idólatras se utilizam da ciência para se recuperarem e depois
“testemunharem” falsamente, por óbvio, supostas “ações divinas” que, curiosamente, só são
“perceptíveis” quando a ciência intervém, mas nunca com advento exclusivo da fé e da
oração. Na verdade, as conquistas da religião partem de um projeto de poder, de
doutrinação e alienação dos povos, vendendo-se como a solução para problemas que ela
mesma criou e finge combater e consertar, usurpando um mérito que não lhe corresponde.

Os alienados teístas podem alegar, falaciosamente, que a depressão é causada pela “falta
de deus no coração”, uma afirmação sem respaldo científico e que corrobora com a
ateofobia presente e sustentada na sociedade fundamentada no cristianismo cultural.
Porém há registros de cristãos, com “deus no coração”, com diagnósticos de depressão,
ansiedade e pensamentos suicidas. Onde está deus quando um religioso se sente
deprimido? Por que deus não evita que a depressão ocorra, em todos os indivíduos, e a
elimina por completo? Por que deus não impede suicídios, principalmente daqueles que
nele creem? A fé não é suficiente? Qual seria o ponto exato de suficiência teísta para
“convencer” o tal deus? E por que um suposto deus de máxima grandeza, onipresente,
onisciente, onibenevolente e onipotente, necessitaria de uma comprovação de devoção e
adoração se ele possui capacidade de estar presente em todos os lugares ao mesmo
tempo, tem ciência das necessidades e da fidelidade de seus fiéis e detém poder ilimitado
para solucionar todos os problemas e complicações da humanidade? Seria ele não tão
bondoso? Seria ele não tão poderoso? Seria, então, não tão justo? Um ditador sádico,
talvez? Ou na verdade um mito inexistente e imaginário, conforme a realidade e a lógica nos
induz a pensar?

São essas contradições nas teorias pregadas pelas mitologias e questionamentos assim
sobre suas falhas e hipocrisias que nos levam à libertação, ao ateísmo. O senso crítico e o
livre pensamento é o que nos emancipa e nos torna diferente dos crentes doutrinados e
alienados por essas aberrações sociais. Por isso somos os únicos capazes de destruir
essas “quimeras nocivas ao gênero humano”, como Holbach formula sabiamente.

Nós, ateus, somos livres pensadores, com pensamentos positivos, porém com os pés muito
firmes no chão, sem grandes sonhos e ilusões que ultrapassem as barreiras da
probabilidade e do realismo. Não somos “pessimistas” (termo pejorativo), somos realistas,
questionadores, empiristas, racionalistas. Não alimentamos ideias ilusórias e desejos
improváveis ou ambicionamos coisas inalcançáveis. Não vivemos fora da ciência e não
abraçamos o senso comum e as utopias, como faz a religião. Não buscamos acreditar, mas
o saber; almejamos o conhecimento e não cremos em nada sem evidências ou mínimos
indícios que corroborem com hipóteses e teorias. Basicamente acreditamos em nós
mesmos, em nosso potencial (condicionado às limitações humanas), em nossa
autossuficiência e nas potencialidades e probabilidades do mundo físico, natural e material.
Baseamos nossa vida e nossas percepções no ceticismo, que se opõe às concepções do
misticismo religioso, e duvidamos até de nossa própria sombra. Por vezes somos um tanto
niilistas (como procuro ser e pela maior parte do tempo sou), com base muito na filosofia de
Nietzsche, pois o próprio niilismo é uma perspectiva que, por vezes, nos remete aos
princípios do ateísmo, da nossa posição enquanto céticos e à nossa essência, pela
negação, pela dúvida, pela ausência, pela desconfiança, pelo afastamento, pela descrença,
pelo vazio.

Essa é a nossa filosofia de vida.


(16/08/2022)

O ATEÍSMO NA QUEDA DO AVIÃO

“Quero ver ser ateu na hora da morte”, diz o católico. “Ser ateu é só uma fase, tá na moda,
depois passa”, diz o protestante. “Ninguém é ateu quando o avião está caindo”, diz o
evangélico.

Perante à religião e, em especial, ao cristianismo cultural no mundo ocidental, o ateísmo é


uma posição frequentemente deslegitimada e passível de desconfiança, não sendo
devidamente reconhecida. Para os religiosos, o ideal ateísta é visto como uma “modinha” da
época, da “geração desvirtuada e perdida”, como se ser uma minoria representativa social e
numericamente no mundo todo fosse um estilo cult e a sensação do momento. Pior ainda
quando esse grupo minoritário é segregado, oprimido, marginalizado e perseguido por
diversas sociedades em diferentes períodos e territórios ao longo da história da
humanidade, tendo seus direitos violados e interferidos, suas liberdades reprimidas e sua
visibilidade ofuscada e desmantelada. É desta forma, solidificando a ateofobia e instituindo
preconceitos para com os ateus, que a fé religiosa, em sua posição de privilégio e
supremacia, provoca o afastamento entre sociedade e ciência e racionalismo, mantendo
sua dominação hegemônica sobre os povos e nações do mundo todo.

No capítulo anterior51, apresentei algumas formas de discriminação e preconceitos


constituídos contra a comunidade ateia. A intolerância oriunda das mitologias religiosas e de
seus líderes e fiéis fundamentalistas e extremistas difunde o ódio, o desprezo e a aversão
aos ateus de modo sistemático, tornando-nos invisíveis, excluídos do convívio social e das
relações coletivas e vítimas de um sistema estruturado à base de doutrinação alienante. E
por ser, por essência, intolerante e irracional, a religião contribui e compactua com a política
odiosa que, no Ocidente, os cristãos colaboram em consonância mútua contra grupos
sociais em posição de desvantagem, como é o caso dos ateus, seus principais alvos.

A proposta deste artigo, portanto, é, como no capítulo antecedente, desmistificar alguns


argumentos preconceituosos que a comunidade cristã alienada e doutrinada prega contra a
nossa existência enquanto livres pensadores emancipados do aprisionamento mental da fé.
Após ter refutado a falácia de que nós ateus somos satanistas e pessimistas por princípios
ideológicos e morais, o intuito agora é desconstruir uma afirmação rasa e superficial que os
crentes usam para nos atacar, mostrando as incoerências e contradições dessa alegação
falsa e, como tudo o que a fé religiosa produz, irracional. Tão ou mais absurdo do que o
argumento simplório e fútil do “você vê o vento?”  —  na tentativa de “comprovar” a
existência do mito cristão invisível e imaginário (diferente do oxigênio, que é uma obviedade
científica) —, a premissa de que não há ateus no momento em que o avião está em queda
(situação de risco) e em outros momentos próximos à morte (doenças, acidentes)
demonstra o quão frágil é a fé religiosa e corrobora com o quanto o ateísmo, enquanto ideal
transformador e libertador52, é forte e resistente.

51 Ver Ateísmo: satanismo e pessimismo?.


52 Ver Ateísmo provedor e libertador.
Conceitualmente, o ateísmo torna-se irreversível pois, após libertar a mente humana da
prisão obscurantista da fé, negando a moral e a ética religiosa em sua totalidade, não
permite, a partir da razão e da lógica, suas virtudes centralizadas, que o indivíduo desvirtue-
se do ciclo racionalista e secularista que compõe o livre-pensamento, corrompendo-se em
regresso ao seu estágio de prisioneiro, anterior ao grau de evolução social que lhe foi
provido pelos princípios ceticistas. Por isso é factualmente possível a existência de ex-
religiosos, libertos e emancipados, quando não de “ex-ateus”, involuídos e novamente
reclusos. Se o ser humano, em sua condição de indivíduo puro e inocente, alheio aos males
da humanidade, ao nascer, vem ao mundo sob a posse da descrença, sem deus, e é
corrompido social e culturalmente pela religião, através da doutrinação, após conquistar sua
independência e readquirir sua essência proveniente do estado de natureza, com convicção
e em plenitude, jamais estará sujeito a retroceder aos estágios sombrios da evolução
humana, seja pelo que for ou por quem for, perdendo o maior privilégio que lhe foi
concedido: o rompimento das amarras da fé religiosa e mística. Basicamente, contrapondo
o pensamento clássico do filósofo Jean-Jacques Rousseau, o homem nasce bom, a religião
que o corrompe. Ou seja, nascemos ateus, puros e inocentes, alheios às crenças religiosas
e ao conhecimento de um divino, até que a fé religiosa, a partir de seu sistema de
doutrinação sócio-cultural, nos corrompe, instituindo seus conceitos, seus dogmas, seus
medos, suas punições e suas crendices em nossas mentes ingênuas, deturpando nossa
inocência, nossa essência ao racionalismo. Então o ateísmo nos liberta, nos emancipa, nos
guia aos caminhos da racionalidade, pelo ceticismo e pelo secularismo. E após evoluirmos
como indivíduos sociais ao ponto de adotarmos e absorvermos uma concepção de mundo e
uma filosofia de vida humanista e sem deus53 (o que denominamos de existencialismo
ateísta, a partir do pensamento do filósofo Jean-Paul Sartre), nada nem ninguém é capaz de
nos fazer regressar aos atrasos e retrocessos que caracterizam as mitologias espirituais
teístas. Nem mesmo a estrutura religiosa pode conter nossa evolução libertadora; a menos
que faça o que, por princípios estruturantes, é incapaz de praticar: questionar e evidenciar
suas alegações empiricamente.

Vamos partir então da clássica premissa falaciosa de que “não há ateu quando o avião está
caindo”. Primeiramente, essa alegação é, por óbvio para os padrões teístas, infundada.
Quem disse que ateus que foram vitimados em acidentes de avião abandonaram suas
convicções ateístas e aceitaram a fé religiosa ou algum deus? Quais dados se levantou
referente a isso? Levando em consideração a baixa quantidade de ateus declarados no
mundo e as chances mínimas de se sobreviver a uma queda de avião, é muito pouco
provável que se encontre um ateu sobrevivente de um acidente aéreo que corrobore com
esta hipótese, o que já constata sua falseabilidade. Mas caso haja um ateu nesta situação
que possa sustentar esse argumento, 1) este não seria um ateu convicto de seu ateísmo e
liberto da fé por completo, mas um entre vários descrentes que infelizmente ainda
compactua com o cristianismo cultural, não sendo emancipado o suficiente, e, 2) até os dias
atuais, nenhuma pesquisa científica foi realizada mostrando esses ateus e seus casos raros
como objetos de estudo e evidenciando empiricamente essa possibilidade de regresso ao
estágio irracional da evolução social, bem como vemos o frequente abandono da fé por
vários ex-crentes que questionam suas fábulas e buscam a razão e o conhecimento,
libertando-se. Portanto, a premissa em si é uma entre tantas que não possuem base lógica
por parte do teísmo.

53 Ver Ateísmo como uma filosofia de vida.


O segundo ponto que abordo é quanto a uma possível inversão dessa alegação, a qual os
religiosos, em sua posição involutiva e irracional, abrem brechas para a descrença e
acabam construindo, sem intenção, um argumento pró-ateísmo. Se a maioria da população
mundial é religiosa/teísta (boa parte cristã) e as chances de uma fatalidade ocorrer durante
uma queda de avião são altas (sendo que a probabilidade desse acontecimento correr é
estatisticamente muito baixo, devido ao nível de segurança e preparo das aeronaves
modernas), a fé e as orações de nada serviram se todos os tripulantes e passageiros do voo
morreram. Ora, se um ateu e um religioso estiverem em posições semelhantes em uma
mesma aviação em declínio, suas chances de escaparem da morte são tecnicamente as
mesmas (baixíssimas). Caso os teístas abracem sua fé, clamem por ajuda ao seu deus e
rezem com toda sua convicção, então não poderia haver cristãos vitimados em acidentes
aéreos. E se algum ateu por acaso romper com a racionalidade e abraçar a fé, o misticismo
e o espiritualismo religioso, aceitando deus, ele deveria ser perdoado, salvo, e também não
poderia ser vítima do acidente, conforme a crendice estipula.

Mas quantos registros de aviões que deixaram de cair devido a orações se têm? Em qual
caso rezar para deus e aceitar Jesus fez com que uma aeronave em queda livre de repente,
por milagre, não tenha atingido o solo, poupando vidas? Ao menos há indícios disso ou é
apenas uma hipótese com base apenas em fé? Pois mortes de pessoas tementes a deus,
frequentadores da igreja e religiosos fervorosos em acidentes de avião se têm registros ao
montes.

Raciocine e repare um fato curioso: nós seres humanos, de modo geral, somos fisicamente
semelhantes em nosso estado de natureza, para não dizer iguais. Temos algumas
diferenças como traços físicos, cor de pele, tamanhos dos órgãos e membros, mas somos
compostos de músculos, nervos, ossos e sangue, respiramos, crescemos, reproduzimos e
também morremos, sendo esta última uma das únicas certezas que temos na vida. Assim
como religião não define o caráter bom de uma pessoa (quando muito pelo contrário), não
sendo uma garantia de honestidade e decência, como observamos em casos de
extremistas e fundamentalistas religiosos, ela também não é capaz de intervir na realidade
física e natural do universo da forma como intervém diretamente na realidade sócio-cultural.
Se um indivíduo for diabético, por exemplo, mesmo sendo ateu, católico, evangélico,
espírita, umbandista, mulçumano, hinduísta, agnóstico singular, seja lá a crença ou a
posição que tiver em relação ao âmbito espiritual, se não tomar a insulina, necessária para
o tratamento de diabetes, ele não terá a mínima chance de sobreviver. O mesmo ocorre
quando o avião está caindo: pode rezar, aceitar Jesus, pregar, espernear, fazer o que for,
mas nada disso, infelizmente, evitará a queda iminente da aeronave. Quando o veículo
aéreo colidir com o solo, restarão apenas cadáveres de pessoas que foram ou não
religiosas, teístas ou ateístas, tendo rezado ou não para um mito, e com a certeza de que as
orações de muitos  —  dentro e/ou fora do avião  —  falharam mais uma vez, como é o
habitual se tratando dos componentes da religião.

Mas há outro argumento que considera a baixa probabilidade de haver sobrevivente(s) na


queda de um avião e de o personagem deus ser supostamente o responsável pela salvação
deste(s). Será que os poucos (ou talvez o único) sobreviventes de um acidente dessa
magnitude, com baixíssimas chances de sobrevivência, foram salvos pela fé, pelas orações
e/ou por um mito divino como a teoria teísta prega? A resposta é bem clara e objetiva: não.
1) A probabilidade de sobrevivência durante uma queda de avião é mínima, mas não é zero,
portanto é humanamente e estatisticamente possível que alguém sobreviva a um acidente
destes, a depender de diversos fatores que interferem na gravidade da tragédia, como o tipo
e o tamanho da aeronave, a distância para o solo, o trajeto do voo, a localidade onde o
veículo colidiu e os equipamentos de segurança disponíveis internamente para a proteção
pessoal. Isso os laudos da perícia e a ciência irão explicar posteriormente, fornecendo uma
conclusão racional para o fenômeno raro e excepcional. Além disso, 2) a probabilidade de
haver religiosos (ou simplesmente teístas) no voo é dez vezes maior do que a de haver
ateus, portanto há muito mais chances de o(s) sobrevivente(s) ser(em) religioso(s)/teísta(s).
Devido à doutrinação sócio-cultural que corrompe nosso estado de natureza descrente,
levando-nos a crer desde muito cedo em um deus supremo e criador  —  o que resulta na
baixa quantidade numérica de ateus no mundo todo  — , estatisticamente falando, é bem
mais provável que o(s) sortudo(s) da vez seja(m) crente(s) do que descrente(s), não tendo a
fé ou as orações necessariamente interferido no ocorrido. A população ateísta é
mundialmente inferior à população que acredita em algum deus ou em vários deuses, o que
já impossibilita que, proporcionalmente, se faça esse tipo de comparação incompatível.
Esse é o ponto de vista racional com que temos de analisar a realidade e avaliar os
cenários estabelecidos.

Além disso, podemos partir desse parâmetro argumentativo para uma série de questões à
fé: se deus e as orações foram responsáveis pela salvação de uma, duas, três pessoas
entre 200 que embarcaram em um voo, então com a imensa maioria tudo isso falhou,
surtindo efeito apenas com uma única pessoa ou algumas delas? Os vitimados crentes em
deus não teriam rezado e clamado pela salvação igual o(s) sobrevivente(s)? Deus escolheu
alguém em específico ou um grupo pequeno de pessoas para salvar em detrimento de
outras inúmeras vidas cristãs por não possuir poder suficiente para salvá-las ou
simplesmente porque não quis? As rezas dos vitimados não foram suficientes quanto a(às)
do(s) sobrevivente(s)? Qual seria a intensidade de fé e oração suficiente para atingir deus
ao ponto deste ser tão grandioso ouvir e atender os pedidos? Se deus é um ser onisciente,
onipresente, justo e bondoso, por que ele precisaria que seus devotos suplicassem por sua
ajuda se este personagem já saberia antecipadamente o que iria ocorrer, estava
supostamente presente no momento do ocorrido e está a todo o momento protegendo seus
“filhos”, segundo prega a crença? Será que só o(s) sobrevivente(s) era(m) temente(s) a
deus e o restante do voo era composto exclusivamente por ateus? Muito pouco provável.
Mas caso fossem, então seria falso que ateus aceitam deus e rezam durante a queda do
avião? E se aceitam e rezam, deus os pune do mesmo modo por seus posicionamentos
passados? Mas ele não é um ser justo e bondoso, que perdoa os “pecadores”? E onde fica
o lívre arbítrio humano na queda do avião? Se deus pode intervir num acidente desses, por
que não os impede de acontecer e interfere em tantos outros casos, como estupros dentro
das igrejas? Ele não é tão poderoso assim? Deus tem seus preferidos, seus privilegiados?
Seriam os ateus do voo ou os demônios e os pecados os responsáveis pela tragédia? Mas
e a justiça neste caso? O mal foi tão poderoso que deus foi incapaz de evitar e sucumbiu
aos seus inimigos? O acidente e as mortes resultantes estariam nos planos de um deus
justo e extremamente amoroso, igual o dilúvio bíblico? Ou deus de fato não existe, tudo isso
são fantasias mitológicas e o caso extraordinário de haver sobrevivente(s) não passou de
pura e simples sorte, algo do acaso?

São questionamentos assim que nos fazem migrar para o racionalismo, o livre-pensamento,
a emancipação mental e, consequentemente, o ateísmo e o ceticismo.
O terceiro e último apontamento que faço sobre este argumento ridículo que tenta
determinar uma fragilidade do ateísmo, buscando deslegitimá-lo, parte de uma incoerência
profunda da fé religiosa, que possibilita mais uma vez que se inverta o raciocínio por meio
das brechas concedidas pelos apologistas da religião. Na tentativa de deslegitimar o
ateísmo e torná-lo frágil e falho, o teísmo constrói um argumento no sentido oposto,
presenteando nós, livres pensadores, com essa pérola que solidifica ainda mais nosso ideal
racional e superior. Se um ateu abandonaria seu ideal racionalista, aceitando deus e se
rendendo à religião durante um avião em queda ou qualquer outra situação de risco de vida,
como doenças terminais e outros acidentes, isso só comprova o quanto a fé é
genuinamente irracional. Observe que, em casos extremos, em que estamos próximos à
morte, correndo perigo, somos dominados pelo medo da perda, do fim. Essa sensação de
pavor estimula nossos instintos mais primitivos, nos fazendo perder o senso de noção e a
racionalidade em busca da sobrevivência do modo que for possível. Caso estejamos sem
muitas possibilidades ou recursos, com poucas chances de passar ilesos pela situação e
seguir vivos, o pânico extirpa nossa razão e inibe nossa consciência, o que induz a nos
agarrarmos no que for a fim de obter uma solução mágica, quando não há mais soluções
plausíveis, para escapar do destino iminente. Nossas convicções, nossos ideais, nossas
posições, tudo deixa de importar, passando a imperar o medo, sentimento que anula nossos
pontos racionais do cérebro e é o principal motivador da fé. Por isso, por conta desse
desespero, do pavor, do pânico, da perda da racionalidade, que alguns ateus podem
ocasionalmente se deixar levar e se agarrar na fé, no misticismo, no sobrenatural, mesmo
sem acreditar factualmente nisso tudo, pois a ocasião extrema bloqueará o discernimento
do certo e o errado, do possível e do impossível, fazendo com que não estejamos sob
plenas capacidades cognitivas. Não há ateísmo sem percepção da realidade, sem a lógica,
sem análises racionais, e situações de risco como essas inibem tudo o que constitui nossa
ideologia e a liberdade que ela nos proveu. A fé, por ser essencialmente irracional, só pode
ser aceita em momentos assim, na ausência da racionalidade, e a religião nada mais é do
que um estado prolongado da ausência de raciocínio lógico.

Quando a doutrinação religiosa, desde os primórdios infância, no conjunto familiar, na


escola, na sociedade ou perante o Estado, institui o medo das punições e dos castigos
divinos ao formar e fundamentar a crença e a adoração a um deus, nosso senso crítico é
reprimido juntamente com o racionalismo, por isso a fé passa a ser natural e facilmente
aceita. A fé religiosa é imposta como algo que deve ser aceito incondicionalmente, sem
questionamentos ou dúvidas, apenas por viés de confirmação e uma passividade que nos
impede de raciocinar fora da bolha mitológica. O cristianismo cultural nada mais faz do que
promover situações constantes de aviões em queda livre para conquistar mais adeptos e
dominar o mundo, violando a pureza e a inocência das crianças nascidas descrentes e
ferindo a laicidade constitucional. É assim que as mitologias religiosas hegemônicas, no
mundo todo, impõem seus conceitos conservadores e retrógrados, formam suas identidades
reacionárias, fundamentam seus princípios intolerantes e preconceituosos, constituem suas
essências obscurantistas e instituem suas normas, regras e seus valores morais torpes e
alienantes. Enquanto a queda do avião se mostra inevitável, o declínio da fé religiosa
demonstra ser imprescindível para o bem-estar da humanidade.

Portanto, pode-se dizer que os religiosos nos deram um argumento que corrobora ainda
mais com o pensamento e a posição ateísta, fortalecendo nossa ideologia. Como ateu
convicto e orgulhoso que sou, capto o presente como algo cômico e oportuno, o qual
possamos aproveitá-lo para teorizar ainda mais a magnitude que é o ideal libertador ateísta,
enfatizando que, particularmente, jamais cederia minha posição cética, seja na ocasião que
fosse, com exceção de uma prova empírica que me apresentasse um conhecimento distinto
que me fosse relevante e que pudesse revolucionar o atual sistema e a ordem vigente.
Durante a queda de um avião, rezar e clamar por um mito imaginário e invisível não iria
mudar absolutamente nada no rumo do universo e alterar a realidade cósmica, física e
natural do planeta, muito menos impedir que a tragédia iminente ocorra. E a possibilidade
de algum livre pensador ceder ao misticismo infundado ao longo de uma situação de alto
risco como essa, afastando-se de suas premissas racionalistas básicas, só poderia ocorrer
caso não estivesse mais sob posse de seu livre-pensamento, quando o medo geraria a
irracionalidade, a impulsão, o desespero e a tomada errada de decisão, abrindo caminhos
que permitissem a busca pela fé. Um ser pensante, possuidor da razão, é um ótimo
observador e costuma analisar os cenários e as probabilidades, pensando muito bem antes
de falar e agir, ao menos até que sua capacidade racional esteja comprometida, o que
permite a ocorrência de fatos extraordinários em situações extraordinárias.

Por fim, faço eu aqui algumas afirmações, tendo em vista que os cristãos adoram rotular os
ateus e o ateísmo tendenciosamente. Não há oração que impeça o avião de cair. Não há
deus durante um avião em turbulência. Não há religioso que acredite factualmente nas
crendices que tanto prega e prolifera. Não há cristão no momento em que a namorada,
ainda virgem, alega estar grávida do espírito santo. Em casos de doenças, acidentes,
fatalidades ou ferimentos, os religiosos procuram sempre a ciência, a medicina, os médicos,
os hospitais, as farmácias, os medicamentos, os tratamentos e procedimentos clínicos, mas
nunca a igreja, o padre ou o pastor. Não se presencia religiosos recusando a medicina,
métodos hospitalares ou atendimentos com profissionais da área da saúde e indo tratar uma
doença grave, como um câncer, por exemplo, no templo, com o líder religioso, à base de
orações e leitura da Bíblia. Muito menos há registros de casos de cura nesses locais e a
partir desses métodos, bem como de “milagres” nos tempos contemporâneos (ao menos
não do ponto de vista racional e efetivo). Curiosamente, as recuperações só ocorrem
quando há interferência da ciência, da própria humanidade, do Estado, mas nunca de forma
orgânica pela fé, pela espiritualidade ou por deus.

Os religiosos não confiam de fato no poder de seu mito, pois sempre buscam uma garantia
humanista, através de recursos humanos, científicos, a fim de solucionar seus problemas.
Se deus de fato existisse e a fé fosse a resposta para tudo, os cristãos adoecidos ou com
alguma complicação buscariam ajuda e tratamento exclusivamente espiritual para se
curarem, porém sempre recorrem ao que a ciência proporciona sem qualquer vínculo com a
fé ou o espiritualismo. Isso difere muito de nós, livres pensadores ateístas, que, estando
plenamente conscientes e racionais, jamais tendemos a procurar tratamentos espirituais e
nos sujeitar ao misticismo nestes momentos, partindo sempre em busca de métodos de fato
eficazes, seguros e com comprovação científica. Um simbólico exemplo disso é o caso do
ateu Christopher Hitchens, autor do livro Deus não é grande - como a religião envenena
tudo e falecido em 2011, vitimado por um câncer, que jamais cedeu às suas convicções e à
sua posição irreligiosa enquanto ativista e militante ateísta, mesmo em estado terminal. O
caso de Hitchens, um dos pais fundadores do neoateísmo, é um modelo de refutação da
teoria teísta de conversão e aceitação divina em situações à beira da morte.
Os crentes alienados poderão alegar que “deus deu sabedoria aos homens e capacidade
para estes tratarem e cuidarem uns dos outros, agindo por detrás das atividades humanas”
e que “a ciência é parte de deus e anda junto com a fé”, com o objetivo de, em um certo
malabarismo argumentativo, fundamentar suas crenças absurdas e irrisórias. Mas se deus e
a fé religiosa possuem esse alcance, por que há tantas doenças ainda sem descoberta de
cura? Por que deus só dá sabedoria e capacidade a quem cursa áreas da saúde durante
anos para se especializar, ao invés de proporcionar o saber coletivo para potencializar as
curas e ampliar os milagres? Deus não é tão justo e bondoso como dizem? Por que há
tantas mortes em hospitais e centros cirúrgicos se deus age a partir dos médicos? Deus só
age por meio desses profissionais quando há recuperação, não sendo também responsável
quando tudo dá errado? Aí é responsabilidade do diabo que superou os poderes de deus?
Se a fé salva e o poder de deus é supremo, por que o mito não consegue curar doenças
sem a intervenção da ciência, somente através da fé e da oração, como Jesus
supostamente fez? Se os pastores e padres detém a graça divina, por que os fiéis optam
pelos profissionais da saúde ao invés de tratarem suas doenças e complicações com os
líderes religiosos, missionários, que proliferam o evangelho, dentro das igrejas e dos
templos? E por que os cristãos temem tanto a morte? Não querem eles se encontrar com
seu mito tão adorado o quanto antes? Estariam contrariando os planos divinos? A fé é
realmente a resposta e a salvação para tudo? Quais os limites da fé?

Os questionamentos, possibilitados e potencializados por um nível de senso crítico que só


livres pensadores são capazes de deter, apontam a religião como sendo o câncer da
humanidade e desmistificam narrativas impostas pela fé, como a que diz respeito ao
ateísmo na queda do avião.

(18/09/2022)

POR QUE REJEITAMOS A MORAL E A ÉTICA RELIGIOSA?

“A religião é perigosa porque ela justifica e torna legítimos ou louváveis as paixões e os


crimes dos quais ela colhe os frutos. Segundo os seus ministros, tudo é permitido para
vingar o altíssimo; sendo assim, a divindade não parece feita senão para autorizar e
desculpar os delitos mais nocivos. O ateu, quando comete crimes, não pode ao menos
pretender que foi o seu deus que o ordena e que o aprova. É a desculpa que, todos os dias,
o supersticioso dá para a sua maldade, o tirano para as suas perseguições, o sacerdote
para a sua crueldade e para a sua sedição, o fanático para os seus excessos e o penitente
para a sua inutilidade” (HOLBACH, 2010, p. 797).

Por que nós, livres pensadores ateístas, negamos e rejeitamos a moral e a ética religiosa?

A partir de concepções filosóficas como o existencialismo ateísta e o materialismo,


estrutura-se a concepção de mundo ateia. Desde as bases marxistas de nossa ideologia,
concebemos a religião como sendo o ópio do povo, em acordo com o que escreveu o
filósofo Karl Marx em 1843, no livro Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. Mas para além
da filosofia marxista constituída nas figuras de Marx e Engels na Europa do século XIX, a
crítica à religião e à moral religiosa, bem como uma relação mais direta e aberta com o
ateísmo, só se notorizou e tornou-se mais efetiva por meio da corrente leninista, entre o pré
e o pós-Revolução Russa de 1917 e o Grande Estado Socialista Soviético  —  o qual
institucionalizou o ateísmo como política de Estado oficial, rompendo com a velha
dominação da Igreja Ortodoxa  — , já no início da século XX.

Vladimir Lênin, líder revolucionário russo, em discurso proferido na primeira sessão do


Terceiro Congresso das Juventudes Comunistas  —  sobre a “moral comunista” —, em 02 de
outubro de 1920, enfatizou em que momento os comunistas rejeitam a moral e a ética:

“No sentido em que pregava a burguesia, que deduzia esta ética de


mandamentos divinos. A este respeito dizemos, naturalmente, que não
acreditamos em Deus. Sabemos muito bem que em nome de Deus falava o
clero, falavam os latifundiários, falava a burguesia, para fazer passar os seus
interesses de exploradores. Ou então, em vez de deduzir essa moral dos
mandamentos da ética, dos mandamentos divinos, deduziam-na de frases
idealistas ou semi-idealistas que, decididamente, se pareciam muito com os
mandamentos divinos.

Rejeitamos toda esta moralidade tomada de conceitos extra-humanos, fora das


classes. Dizemos que isso é enganar, iludir e embrutecer a inteligência dos
operários e camponeses no interesse dos latifundiários e capitalistas.

Dizemos que a nossa ética está por completo subordinada aos interesses da
luta de classe do proletariado; ela deriva dos interesses da luta de classe do
proletariado.

A velha sociedade baseava-se na opressão de todos os operários e


camponeses pelos latifundiários e capitalistas. Precisávamos destruí-la,
precisávamos derrubar esses opressores, mas para isso era necessário criar a
união. E não era Deus que podia criá-la”.

Ao professar ensinamentos à juventude comunista, a fim de constituir a moral comunista


(que subverte e se opõe à moral religiosa/cristã, aos mandamentos e aos princípios
bíblicos), Lênin justifica a rejeição marxista à religião por esta representar a moralidade
dominante da burguesia, isto é, a moralidade instituída pela classe dominante e à serviço
dos interesses das classes dominantes, com o intuito de enganar, iludir e embrutecer o
proletariado. O marxismo promove a ideia de libertação, e se a pior prisão que há é a da
mente  —  com a fé religiosa estabelecendo esse controle mental por meio de seus conceitos
e ritos retrógrados  — , o ateísmo enquanto um ideal provedor da liberdade e da
transformação54 é um instrumento que a filosofia marxista se absorve para desconstruir e
destruir umas das “quimeras nocivas ao gênero humano”, como bem aponta o filósofo
materialista francês Barão d’Holbach, e uma forma de dominação do homem pelo homem,
no intuito de revolucionar a velha sociedade tradicional.

Em relação à ideia de emancipação proposta pela filosofia marxista, no livro Sobre a


Questão Judaica (1843), Marx se refere ao desaparecimento da religião como sendo um
fator para a emancipação humana completa e relaciona a emancipação do Estado da
religião (Estado laico) com a emancipação política do povo:

54 Ver Ateísmo provedor e libertador.


A emancipação política do judeu, do cristão, do homem religioso de modo geral
consiste na emancipação do Estado em relação ao judaísmo, ao cristianismo, à
religião como tal [o homem se emancipa politicamente da religião, banindo-a do
direito público para o direito privado]. Na sua forma de Estado, no modo
apropriado à sua essência, o Estado se emancipa da religião, emancipando-se
da religião do Estado, isto é, quando o Estado como Estado não professa
nenhuma religião, mas, ao contrário, professa-se Estado [o Estado se liberta de
uma limitação sem que o homem realmente fique livre dela, tornando-se o
Estado em um Estado livre sem que o homem seja um homem livre]. A
emancipação política em relação à religião não é a emancipação já efetuada,
isenta de contradições, em relação à religião, porque a emancipação política
ainda não constitui o modo já efetuado, isento de contradições, da emancipação
humana.

A religião, enquanto ópio do povo, é um instrumento de alienação apropriado pelas classes


dominantes para controlar e dominar o povo, a classe trabalhadora. A fé religiosa detém o
poder de tornar o ser humano um cidadão conformista, ou seja, um cidadão conformado
com as injustiças do mundo devido às falsas promessas e esperanças de uma justiça
póstuma num paraíso divino. Uma nação, uma sociedade fundada por valores religiosos
está aprisionada, constituída sobre uma ótica reacionária e obscura, sem respeito à
diversidade, sem garantia de direitos e sem liberdades factuais. Somente o afastamento de
tudo o que as mitologias religiosas pregam e impõem pode de fato nos guiar à libertação
total, à emancipação humana.

A moral religiosa, portanto, é uma moral falsa e hipócrita, diferindo-se da moral ateísta, que
é pura e verdadeira55. A moral hegemônica e dominante que conhecemos, aceitamos e
naturalizamos é fruto e reflexo do que induzem e pensam as classes dominantes, nas
igrejas, nos templos, em diversos setores confessionais da sociedade civil. Essa moral
confessional é sustentada por interesses particulares e pelo medo em estado puro e
simples, desvinculado da livre consciência, do senso crítico e dos ideais humanistas. Um
religioso não é bom, não faz o bem (como caridades) e não evita praticar o mal contra o
próximo simplesmente porque foi educado, bem criado ou porque sua consciência e as
reflexões sobre a vida e a realidade natural, material e social o induziram a ser assim, mas
porque foi doutrinado desde muito cedo a seguir os mandamentos de um livro mítico e
fictício que prega, relativamente, o que seria o certo e o errado. Essa moral variante e
inconsistente se baseia no interesse pessoal que o teísta possui de “comprar” um lugar no
céu e uma “vida espiritual” benéfica ao lado de seu deus no pós-morte e/ou no medo das
punições e dos castigos (físicos e/ou espirituais) que esse suposto mito fiscalizador
onisciente e onipresente pode impor caso o fiel não obedeça, não siga as ordens que lhe
foram impostas durante o processo de doutrinação sócio-cultural. Em contrapartida, o ateu
faz o bem e evita praticar o mal sem culpa, sem remorsos, sem doutrinas. Para nós, nem
tudo é permitido, porém nada nos é imposto por meio da fé e fora da razão. Quando
fazemos alguma caridade ou ajudamos um semelhante, fazemos por nossa consciência
pura, por nossos próprios valores e princípios humanistas, sem precisar de mandamentos
míticos e de um deus controlador, com características de um ditador, para nos vigiar. Nada
do que fazemos ou deixamos de fazer se relaciona com a intenção de obter recompensas e
vantagens particulares para quando morrermos perante um mito que sequer acreditamos na
55 Ver A moral ateísta.
existência, nem mesmo por temer uma repressão de um ser divino por não seguirmos
mandamentos de uma doutrinação que estamos libertos. Para dizer a verdade, em nossa
totalidade, nem em vida após a morte acreditamos realmente para almejar um benefício
espiritual futuro ou por precaver um possível infortúnio num tal “inferno” do qual os religiosos
(de todas as religiões) afirmam que vamos um dia. Conhecemos as leis humanas, a ética
jurídica, os limites constitucionais; temos ciência de que não há deuses e que apenas
pessoas podem ajudar outras pessoas e contribuir para a prosperidade e o bem-estar
social. Para além de nossa própria consciência e nossos princípios humanistas, nada
restringe, limita ou impede o livre exercício de livres pensadores autossuficientes, nem
institui regras morais que hipócrita e interesseiramente deveríamos seguir, a partir de uma
moral contraditória mascarada de sincera e benevolente.

Se a moral religiosa fosse de fato uma constatação de bondade e caráter do indivíduo,


todos os religiosos (especialmente os mais extremistas e fundamentalistas) praticariam
essencialmente o bem, enquanto que todos aqueles irreligiosos não poderiam praticá-lo.
Por mais que a bondade em si seja relativa e varie como e conforme a moralidade religiosa
imposta, é fato que há religiosos maus-caracteres e ateus de boa índole, visto que ninguém
é totalmente bom ou mau. Portanto, a moral religiosa não pode ser um atestado, uma
garantia de caráter idôneo. Não que o ateísmo, o agnosticismo e o apateísmo sejam
imorais, conforme os religiosos pregam, ou amorais, como é a ciência, mas que a moral
cristã é, dentre outras coisas, uma moral decadente e ultrapassada.

O materialismo marxista, apesar de ser apenas uma das variadas vertentes da corrente
ateísta, é a filosofia que melhor nos apresenta um ideal emancipatório  —  principalmente
quando se posiciona em defesa da laicidade como motor da emancipação política  — ,
embasando e mesclando outras vertentes como o ateísmo feminista e o ateísmo
secularista. O marxismo-leninista tem um papel fundamental na institucionalização do
ateísmo, em especial como política de Estado  —  à exemplo das repúblicas socialistas pelo
globo —, e no combate ao cristianismo cultural no mundo ocidental. E esse uso instrumental
da ideologia ateísta em prol da libertação do ser humano das formas de dominação que lhe
são impostas é um marco para o nosso próprio ativismo ateu.

Porém o ateísmo é o ideal que os comunistas devem absorver para si após os próprios
rejeitarem a moral religiosa e se emanciparem humanamente por completo, constituindo a
própria moral comunista, a qual se vincula com a moralidade secular. Contudo, é preciso ir
além e fundamentar ainda mais, partindo direto às nossas formas e exigências particulares
enquanto grupo. Mais do que compreender a razão de determinadas comunidades
rejeitarem a moralidade confessional, é preciso firmar o nosso dever, enquanto livres
pensadores, de subverter essa ordem.

Nesse sentido, por que nós, livres pensadores ateístas, devemos negar e rejeitar a moral e
a ética religiosa?

A resposta é simples: porque a moral religiosa é reacionária, sendo o pilar que sustenta o
conservadorismo e o patriarcalismo, enquanto o ateísmo é um ideal genuinamente
progressista e racionalista. Todas as sociedades conservadoras e patriarcais são
constituídas a partir da moralidade religiosa e dos princípios da fé de culto à tradição e
oposição à modernidade. A “moral e os bons costumes”, a ideia de “família tradicional” e a
figura do homem como “provedor do lar”, enquanto a mulher deve se manter “recatada e
submissa”, são aspectos do tradicionalismo patriarcalista que a mitologia constitui e institui
socialmente nos povos de todo o planeta. Todas as pautas atrasadas de família e costumes
têm como fundamento moral a religião e sua política do atraso e do retrocesso, e temos
esses princípios-bases do ideário conservador de modo essencial nas religiões
hegemônicas que controlam o mundo por meio de seus planos sócio-culturais de
dominação global: o cristianismo cultural, no Ocidente, e o islamismo cultural, no Oriente.

Sem a religião, não haveria o modo tradicional de vida conservador que impõe papéis de
gênero, divisão da humanidade em classes e raças e hierarquização do coletivo,
confrontando o pensamento científico, o humanismo e o secularismo. É a moral e a ética
pautada em valores religiosos que sustenta essas concepções de mundo retrógradas e
ultrapassadas, as quais se opõem à diversidade e ao modo de vida moderno e avançado. E
por entre esse obscurantismo todo, explica-se o porquê dos reacionários conservas serem,
de modo geral, crentes, seguirem um fundamentalismo religioso doentio e com tendências
teocráticas e estabelecerem a religião e os mandamentos divinos como sendo a “base
moral” do tipo de velha sociedade que eles objetivam consolidar.

Por meio do progressismo que caracteriza o ideal ateísta, o qual, por subverter a ordem
religiosa e a concepção de mundo teísta comumentemente aceita, também é um ideal
revolucionário, devemos negar e rejeitar a moral e a ética religiosa, suporte do
conservadorismo e das tradições do passado. Através das bases do humanismo,
romperemos com a moralidade confessional e construiremos a moralidade secular, esta
pautada na livre consciência, no senso crítico, no raciocínio lógico, no ceticismo e no
racionalismo, uma virtude que monopolizamos enquanto livres pensadores emancipados da
fé e do misticismo. Nossa moral genuína e verídica, sem interesses ou hipocrisias,
consolida nossa visão de mundo sem deus  —  subvertendo a concepção geral da sociedade
e a ordem vigente  — , que nada mais é do que o que centraliza o existencialismo ateísta,
nossa filosofia de vida56.

(20/10/2022)

DO CRENTE AO ATEU, NINGUÉM ENXERGA DEUS

Deus existe?

Para que possamos responder a essa pergunta, devemos, primeiramente, estabelecer uma
definição de deus.

O que é deus?

Existem diversas definições de deus no mundo todo, bem como deuses específicos para
cada religião ou doutrina espiritual, a depender da concepção monoteísta ou politeísta que
analisarmos. De todo modo, podemos considerar a definição geral teísta de deus, a qual
caracteriza um ser supostamente imutável, criador do universo e dos seres vivos que nele

56 Ver Ateísmo como uma filosofia de vida.


habitam e interventor na realidade natural, material e social do planeta, desconsiderando
algumas posições do deísmo.

Partindo desse ponto, é possível afirmar que a hipótese divina se confirma ao ser submetida
a testes lógicos?

De uma maneira bem simples e superficial, poderíamos concluir que não. Não há
evidências ou mínimos indícios da existência de um deus criador e provedor do universo,
nada que seja comprovado cientificamente, de forma empírica. Nesse sentido, é possível
afirmar que a falta de evidências da existência é por si só evidência da inexistência, o que
corrobora com as hipóteses ateístas, visto que o ônus da prova é e sempre será teísta.

Entretanto, apesar de uma maneira muito lógica de se concluir a inexistência de deus, o


meio de se atestar algo pela falta de elementos que sustentem uma afirmação parece ser,
além de uma premissa rasa, uma certa pobreza intelectual que nós, livres pensadores,
devemos evitar a nos limitar e não tratar como uma finalidade argumentativa. Temos ciência
de que o nosso dever enquanto ateus, isto é, indivíduos que negam e rejeitam tal crença e
afirmação, não é provar que o mito divino dos teístas não é real  —  visto que não nos cabe o
ônus da prova nesse quesito  — , mas fundamentar a improbabilidade de deus de fato existir,
embasando o ponto de vista ateísta sobre a realidade. Não se pode simplesmente provar
que algo que não há indícios de que exista não seja verídico, até porque nenhum
pesquisador iria promover um estudo com financiamento e empenho metodológico para
comprovar que algo não existe sem que se tenha algum embasamento consistente que
justifique e induza tal ação. Portanto, no caso da hipótese divina, podemos testá-la a partir
de análises lógicas e racionais, em consonância com a realidade em que estamos inseridos,
e fazendo uso das contradições e incoerências da própria fé, a fim de se chegar à
conclusão mais óbvia para este caso.

De início, podemos avaliar os sentidos da crença e a relação de um deus supostamente


“perfeito” com suas criaturas. Haveria de fato uma lógica por trás disso?

De imediato, é preciso enfatizar que nada nem ninguém no universo é perfeito ou imperfeito.
A perfeição e a imperfeição, no sentido de totalidade e unanimidade, se relacionam com
utopias e distopias do imaginário social, respectivamente. O ser perfeito é aquele sem
defeitos, que não erra, não sente medo, tristeza, dor, rancor, cansaço, enfim, que não
possui limitações e dificuldades, enquanto o ser imperfeito seria aquele nulo de qualidades
e habilidades. Como é da natureza existencial humana os defeitos, os limites, as
adversidades, as qualidades e as habilidades, a idealização utópica da perfeição, ou
distópica da imperfeição, fica a cargo das lendas, do folclore, dos mitos, daqueles que não
pertencem à realidade social e ao mundo real. Em resumo, o perfeito e o imperfeito não
existem.

Segundo a lenda, deus estaria num patamar sobre-humano, sobrenatural, além e acima de
nossa natureza carnal. Dessa forma, o mito divino seria capaz de atingir um grau máximo
de perfeição. Porém, há uma incoerência entre a narrativa contada pelos religiosos sobre a
composição de deus e as características de um ser perfeito que este deveria possuir. Se
deus possui desejos, sente tristeza em relação aos humanos e por vezes desperta sua ira
contra a humanidade (através de um dilúvio, por exemplo), então este mito seria um ser
com defeitos, de moralidade duvidosa e bondade limitada, o que anularia a construção de
sua imagem mistificada em perfeição e absolutismo. Nesse caso, percebe-se uma
contradição entre a mitologia, o mito e a realidade.

Por outro lado, se deus de fato existisse, ninguém precisaria ter fé em sua existência,
acreditar que ele é de fato real. Caso esse mito existisse factualmente, nós, que
supostamente somos suas criaturas, teríamos contato direto com ele, que deveria ser um
ser de fácil e livre acesso. Se deus fosse realmente verdadeiro, todos teriam conhecimento
de sua existência, saberiam de sua presença com a mais absoluta certeza, sem mistérios
ou dúvidas. Nesse contexto, não haveria razão de existir teístas e ateístas, pois não faria
sentido crer ou não em um deus que todos teriam a ciência comprovada de sua existência.
Se poderia gostar ou não deste ser, mas a gnose (conhecimento) sobre a realidade divina
inibiria a necessidade de crença, de fé, que é o que move todas as condições e relações
religiosas no mundo.

Um exemplo disso é o sol. Nos primórdios da humanidade, com a origem da fala no ser
humano, os primeiros ancestrais atribuíam a um mito por eles inventado todos os
fenômenos presentes na natureza. Como não se tinha nenhum conhecimento acerca da
realidade natural e tudo era um mistério do universo, a crença em um deus criador e
provedor se fazia necessária para dar uma explicação, mesmo que irracional, ao que se
percebia no mundo e não se tinha como explicar de maneira lógica. Dessa forma, o sol e o
dia eram representações de um deus bondoso, enquanto que a noite era a representação
das trevas, do mal. As chuvas, os ventos, os raios e outros fenômenos da natureza eram
concebidos como ações divinas fruto de sua ira contra o ser humano ou de recompensas, o
que fez com que se estabelecesse o conceito de deus, suas formas e características, e,
posteriormente, se constituíssem as mais variadas religiões que temos atualmente no
planeta  —  estas divididas em vertentes de uma mesma origem irracionalista.

Porém, a partir dos avanços científicos e tecnológicos, hoje sabemos o que é o sol, como se
forma a chuva e quais as causas das tempestades. A ciência, através da biologia, nos
trouxe explicações racionais para compreendermos a realidade natural do universo e de
todos os seres vivos, o que desfez a necessidade da explicação divina, por se tratar de algo
primitivo, irracional e ultrapassado. Utilizar deus como a resposta para tudo não cabe mais
no mundo avançado e desenvolvido em que vivemos atualmente, em pleno século XXI. A
ideia de que a vida só poderia ser fruto de uma mente inteligente que, do nada, num passe
de mágica, criou tudo é a representação do atraso, um retrocesso perante o quanto a
humanidade já se desenvolveu e evoluiu.

Apesar de nem sempre explicar e comprovar tudo, a ciência se questiona, testa e busca
novos caminhos na direção de se obter o conhecimento. O pensamento científico refuta a
fé, que não se questiona, não testa, não almeja o conhecimento e apenas prega falácias e
fantasias sem fundamento ou embasamento empírico para sustentar suas alegações. Foi
assim que Darwin, em seu livro A Origem das Espécies por Meio da Seleção Natural, base
da biologia evolutiva, refutou a teoria criacionista (pseudociência) através do evolucionismo.
A religião, na verdade, apenas se utiliza de pressupostos e se aproveita de lacunas
científicas, ou seja, daquilo que a ciência ainda não pôde desvendar, para alocar a hipótese
divina e sustentá-la como a solução final e resposta definitiva para tudo. Contudo, podemos
pensar que se deus, antes mesmo de ser fundamentado e comprovado, pode ser
considerado uma resposta universal para a vida e a existência, outras hipóteses em um
mesmo patamar folclórico, como fadas, duendes e gnomos, também poderiam ser
estabelecidas como preenchimentos possíveis para o que não entendemos e não podemos
explicar de forma racional.

Enfim, retomando o raciocínio da crença e da descrença, todos sabemos que o sol existe.
Podemos ver o sol, sentir seus efeitos e sua presença, e há provas factuais de sua
existência por meio da astronomia. Portanto, não precisamos acreditar que a estrela solar
existe, nós sabemos de sua existência, detemos esse conhecimento como uma certeza
absoluta, assim como o formato esférico da Terra. No caso de deus, porém, apenas
acreditamos ou deixamos de acreditar (do ponto de vista ateísta, cremos na ausência ou
duvidamos da existência), mas não sabemos de fato se esse ser existe, pois não há nada
que corrobore efetivamente com essa afirmação além da fé e das pregações nos centros
religiosos. E por mais que alguém diga, através de um “testemunho”, que sabe com certeza
que deus existe e que possui provas disso, com possíveis experiências, trata-se de um
delírio fanático fruto de alienação religiosa ou de uma evidência anedótica, a qual possa ser
algo que convença suficientemente essa pessoa em particular de que seu tão adorado mito
é real, mas que ela não pode apresentar ao coletivo, atestando sua afirmação, o que cativa
única e exclusivamente a própria pessoa e não os demais.

Dito isso, podemos avaliar também a relação desse suposto deus com suas supostas
criaturas. É possível partir de pressupostos básicos, como questionamentos aos teístas
quanto aos seus relacionamentos com o tal deus e quais experiências eles teriam com esse
mito, apesar de não terem como demonstrá-las publicamente ao ponto de convencer e
comprovar o que alegam.

De início, questiona-se o contato dos fiéis com seu mito e vice-versa: alguém já viu, tocou
ou sentiu deus?

Claro que muitos poderão alegar falsamente que, sim, já viram deus (evidência anedótica)  
—  porém, por óbvio, não podem comprovar isso nem com uma simples fotografia. Por outro
lado, outros irão apelar para os clássicos contra-argumentos incompetentes do “você vê o
vento?” ou que a existência do universo e o fato de estarmos vivos é a prova de que deus é
real, a fim de tentar destruir os consistentes e válidos questionamentos ateístas. Pois
respondemos que sim, é possível ver o “vento” (oxigênio) em diversas formas e
substâncias, inclusive líquidas, e a ciência comprova sua existência. Mas poderia um teísta
encher um balão com seu deus? Já sobre o universo, a alegação parte de uma suposição
sobre uma lacuna referente à origem do cosmo, mas nada comprova a existência divina.
Para se afirmar que deus existe porque o universo existe e ele supostamente o criou, antes
deve-se partir da fundamentação do que seria deus, de onde ele surgiu, quem o criou e
onde ele está, além de posteriormente relacionar, com fatos, a sua relação com a origem do
universo. Não se pode teorizar a hipótese divina como uma resposta concreta para a vida e
a realidade sem antes embasá-la e comprová-la. O universo está aí para quem quiser ver,
assim como nossas vidas, mas e deus onde está que não o vemos? O que evidencia, de
forma empírica, que o universo, a natureza e os seres vivos foram criados por algo ou
alguém e que esse alguém foi o deus do qual acreditam? Na biologia, na astronomia e na
cosmologia não identificamos esse dado. E como acreditar em um ser supostamente tão
grandioso que sequer é possível visualizar? Há uma complexidade enorme em torno desse
debate teológico, mas essa suposição divina é incompatível com nossa realidade.
Perceba que nós seres humanos temos cinco sentidos (visão, olfato, audição, tato e
paladar)  —  apesar de alguns espiritualistas alegarem que possuem um tal “sexto sentido”
que parece mais coisa de filme de terror do que algo compatível com a realidade que
conhecemos e estamos acostumados. A partir do uso máximo desses sentidos, não somos
capazes de ver deus com nossos olhos, de ouvir deus com nossos ouvidos, de sentir o
cheiro de deus com nossos narizes, de provar o gosto de deus com nossa boca ou de tocar
deus com nossas mãos e outras partes do corpo. Quer dizer então que deus supostamente
nos deu todos esses membros com vários sentidos apurados, mas não permite que, através
deles, possamos ter um contato direto consigo? Sendo assim, como poderemos saber se
deus existe de fato?

Como é a imagem de deus? Como é o cheiro de deus? Como é a voz de deus? Qual sabor
tem deus? São questionamentos e dúvidas que, na falta de uma explicação lógica, racional
e empírica, nos migram ao ateísmo libertador e transformador.

Os teístas podem alegar que deus está em todas as coisas, em todas as formas e em todos
os sentidos. Os mesmos também afirmam que deus nada mais é que uma força superior,
um bem-estar de nossa consciência e uma “paz de espírito”. Mas há muitas contradições e
incoerências nessas afirmações frágeis. Primeiro que se deus é tudo e está presente em
tudo, então podemos concluir que deus também se materializa nas doenças, nas
dificuldades, na dor, e não somente nos bons momentos como a fé, de forma hipócrita e
tendenciosa, supõe. Portanto, deus não representaria apenas bondade e fraternidade. Além
disso, soa muito pouco concreto o argumento que relativiza e desmaterializa deus,
tornando-o uma “força do universo” ou uma paz interior que sentimos em momentos bons
da vida. O fato é que os crédulos denominam as suas próprias consciências e o seu bem-
estar de vida como sendo deus, mas isso não atesta a realidade divina. Poderíamos chamar
os sentimentos bons e os momentos de tranquilidade de fadas madrinhas e imputar a essas
lendas a origem de tudo que o sentido seria igual ao da hipótese teísta.

Repare que apenas por meio de raciocínios e análises lógicas simples podemos concluir
que deus de fato não existe e que a concepção de mundo ateia é muito mais fundamentada
do que a das mitologias religiosas de modo geral. Não há no mundo um teísta, um teólogo
que seja capaz de responder de maneira racional e fundamentada, sem devaneios,
relativismos e malabarismos argumentativos, os questionamentos dos ateus, refutando
nossa posição e comprovando empiricamente a existência de seu mito. Na verdade, todos
sempre confessam que tudo se resume a uma pura e simples fé, uma necessidade de crer,
fruto de doutrinação sócio-cultural religiosa, mas nada concreto e evidente. Nesse sentido,
crer em deus e crer em fadas, duendes ou gnomos, como citei anteriormente, teria o mesmo
efeito prático. Por isso o ateísmo, como forma de oposição a esse sistema teísta, não se
constitui enquanto uma escolha, mas sim enquanto uma conclusão lógica e racional da
realidade.

Contudo, para além da fé e dos questionamentos lógicos que a contrapõem, podemos


atestar a improbabilidade de deus existir por meio de contradições e incoerências do
misticismo criado sobre sua natureza e essência. Não que possamos provar empiricamente
a inexistência divina, o que não nos cabe e não é objetivo nosso enquanto ateus, mas sim
demonstrar, através de um raciocínio que confronte o teísmo, porque deus não poderia
existir, expondo argumentos favoráveis ao ateísmo de forma mais consistente e
fundamentada. Para isso, devemos partir de análises da ateologia  —  também chamada de
teologia reversa ou contra-apologética  —  sobre a ontologia divina. O centro analítico parte
do que seria deus e como ele deveria ser constituído para existir e ser caracterizado
conforme a mitologia afirma que ele é.

De acordo com o que as religiões monoteístas  —  em especial as mais hegemônicas, como
o cristianismo, o islamismo e o judaísmo —  pregam e instituem, o deus supostamente único
e verdadeiro conforme o ponto de vista etnocêntrico de cada mitologia é um ser omni, isto é,
um ser onisciente, onipotente, onipresente e onibenevolente ao mesmo tempo. Ou seja,
deus seria um ser de máxima grandeza, a única forma possível para um criador de
fenômenos tão complexos e grandiosos como o universo, a natureza e os seres vivos. Este
ser, portanto, seria todo-poderoso, estaria presente em todos os lugares ao mesmo tempo,
saberia de tudo o que ocorre antes mesmo de ocorrer e deteria uma bondade extrema
superior a qualquer outro ser, além de se constituir como justo, perfeito e de poder supremo
acima dos demais mitos.

Entretanto, apesar da tentativa por parte de alguns de relativizar e minimizar a definição de


um ser omni, as contradições e incoerências se tornam explicitamente notáveis. Para além
da ideia de perfeição já contraposta anteriormente, não há a possibilidade de ser onipotente
porém não tanto poderoso, ou ser onibenevolente mas com respeito ao livre arbítrio. Da
mesma forma, não seria possível ser todo-poderoso, justo e extremamente bondoso ao
mesmo tempo, pois há contradições que se confrontariam de maneira constante. Esses
malabarismo argumentativos que os teístas criam ao fundamentar a existência de seu deus
apenas minimizam a sua grandiosidade, contrariam seu próprio misticismo e corroboram
com sua inutilidade ou inexistência, pois um deus como é idealizado e idolatrado só poderia
existir sendo um ser de grandeza unânime e absoluta.

Deus não poderia ter desejos ou se limitar às ações humanas, suas supostas criaturas, se
colocando em posição de dependência da humanidade. O mito deveria existir em torno de si
próprio, independente das vontades e dos atos carnais e dos eventos da natureza. Se um
deus espera algo do ser humano, seja uma adoração, uma comprovação ou um clamor,
então ele não seria um ser omni capaz de tudo e autossuficiente, consequentemente não
sendo um ser de máxima grandeza e, portanto, improvável de existir. Um mito da forma
como a fé o caracteriza e o constitui não poderia ficar à mercê de uma oração para atender
a uma necessidade de um fiel, visto que ele é um ser onisciente, que tem ciência de todas
as coisas, e onipresente, que está em todos os lugares em todos os momentos, “no meio de
nós”. Se esse ser possui tal necessidade, então ele não seria onisciente e talvez nem
onipresente; ou então não seria tão justo e bondoso como dizem. Nesse sentido, deus não
seria um ser omni, não havendo a sua máxima grandeza, e, consequentemente, não tendo
razão dele existir fora do mundo das ideias.

Todavia, entre as tantas contradições e incoerências envolvendo a ontologia de deus, a


maior está na existência do mal, uma problemática ainda não solucionada e que assombra
a tentativa teísta de fundamentar a crença no mito divino. Esse argumento, que pode ser
tratado como um “xeque-mate” ateu e um “game over” para a teologia, é uma das bases das
teorias contra-apologéticas em confronto ao teísmo. De maneira geral, analisando o que
podemos considerar como sendo o mal, é possível relativizar a caracterização do maléfico,
porém há aspectos gerais, de origens seculares, que exemplificam e apontam sua presença
na realidade natural e social.

Primeiramente, questiona-se: o mal existe?

Bom, há fome, há catástrofes naturais, há doenças, há vírus, há crimes, há violência, há


vários exemplos e formas de se perceber e caracterizar o mal no mundo em que vivemos.
Portanto a resposta é sim, o mal existe. Partindo então dessa premissa, surge outro
questionamento: por que e como o mal existe em um mundo criado por um deus
supostamente onipotente, onibenevolente e justo? Uns podem alegar que são resultados
das ações humanas, consequências do livre arbítrio “concedido” por esse mito, ou mesmo
obra do demônio, o inimigo divino. Mas levando em consideração esses aspectos, deus
poderia intervir em tudo isso e acabar com o mal? Se este ser não é capaz de inibir ações
humanas maléficas, como evitar um estupro dentro da igreja ou um assassinato de uma
criança, em respeito ao livre arbítrio do indivíduo que comete o mal, então deus não é
onibenevolente e justo, não sendo então um ser omni, de máxima grandeza. Por outro lado,
se deus não pode acabar com o mal, intervir no mundo e nas criaturas que ele próprio criou
e derrotar o diabo  —  o qual, portanto, teria poder superior ao divino e capacidade de
influenciar no universo pensado por esse mito e em suas criaturas “protegidas” por suas
forças divinas  — , então ele não é um ser onipotente, consequentemente não sendo um ser
omni, de máxima grandeza.

Em paralelo a tudo isso, questiona-se: deus, enquanto um ser onisciente e onipresente,


sabe que o mal irá ocorrer e presencia o mal ocorrendo? Se a resposta for sim e mesmo
assim ele não impede que o mal ocorra, apesar de possuir poder suficiente para tal, então
conclui-se que ele não é um ser extremamente justo e bondoso. Se a resposta for não,
então ele não é um ser onisciente e onipresente, conforme prega a crença. Em resumo,
tudo nos leva a conclusão de que deus não é um ser omni, portanto não seria um ser de
máxima grandeza capaz de criar o universo, a natureza, os astros, os seres vivos e tudo o
que observamos em nossa realidade. Dessa forma, não haveria justificativa e possibilidade
desse deus existir, o que atesta, por uma obviedade, sua inexistência. Do mesmo modo,
não haveria razão de adorar inquestionavelmente um mito sem poder de influência e
intervenção em seu próprio mundo ou caracteristicamente mal, sádico e com aspectos de
um ditador totalitário.

Em resumo, e de forma bem mais didática, o que exponho aqui é o dilema lógico que o
filósofo grego Epicuro apontou em seu paradoxo sobre o problema do mal, relacionando-o
com a suposta existência de deus e sua essência mística. Nesse impasse, há três
alternativas que se contrapõem em um ciclo que confronta, de modo constante, o misticismo
imposto sobre o teísmo:

1. Deus é onisciente, onipresente e onipotente: o mito divino sabe que o mal existe,
presencia o mal ocorrer e possui poder suficiente para evitar o mal e com ele acabar.
Porém o mal segue existindo e deus não o elimina. Logo, deus não é onibenevolente
e justo.
2. Deus é onibenevolente e onipotente: o mito divino possui poder para eliminar o
mal e, por sua bondade extrema, o extinguiria do mundo que ele próprio criou.
Porém o mal persiste pois deus não tem ciência deste mal e não presencia onde,
como e quando ele ocorre. Logo, deus não é onisciente e onipresente.
3. Deus é onisciente, onipresente e onibenevolente: o mito divino tem ciência da
existência do mal, presencia o mal ocorrer e, por sua bondade extrema, tem o desejo
de eliminar esse mal. Porém deus não tem capacidade de acabar com o mal, que
permanece existindo. Logo, deus não é onipotente.

Conclusão: em todos os cenários, deus não seria um ser omni, isto é, de máxima grandeza.
E para existir da forma como alegam que ele se caracteriza, com potencial grandioso capaz
de criar um universo, a natureza e os seres vivos, esse mito necessariamente precisaria ser
um ser de grandeza unânime a absoluta, sem limites e restrições, o que também justificaria
sua adoração. Não sendo um ser absoluto, não haveria possibilidade e coerência em deus
existir. Somando esse dado à falta de evidências e indícios de sua existência, mais os
raciocínios lógicos sobre uma realidade em que o tal mito não é percebido e alcançado
pelos sentidos humanos, conclui-se que deus não é real.

A proposta deste artigo é abordar esses questionamentos e raciocínios lógicos quanto à


ontologia divina que nós, livres pensadores ateístas, fazemos e que exatamente por isso
nos emancipamos da fé, por intermédio do uso da razão. A religião, além de não dar
respostas e impedir perguntas, inibe o senso crítico no indivíduo para que ela não seja
questionada racionalmente e contraposta empiricamente. Quando confrontamos esse
sistema vicioso que só prega mas que nada prova ou apresenta embasamentos para suas
alegações, tendemos a nos libertar da prisão mental instituída pela fé por meio de
doutrinação sócio-cultural. Dessa forma, evoluímos social e psicologicamente, rompendo
com a bolha mitológica que enclausura os pensamentos e os limita a essas fantasias
irracionais sem lógica.

Não faz sentido existir um ser da forma como é caracterizado pelo teísmo e, ainda assim,
haver tanta maldade e tantas injustiças num mundo tão desigual e imperfeito. Se existisse
de fato esse deus tão grandioso e perfeito, o mundo que supostamente ele mesmo criou
seria um lugar bom de se viver, justo e perfeito, sem desigualdade, tragédias e demais
infortúnios. As contradições e incoerências posicionadas entre a crença e a realidade
mostram que não há razão desse deus existir e que há uma improbabilidade enorme do tal
mito supremo ser real. E com isso, detendo o racionalismo, a ideologia ateísta e essa
concepção de mundo cética impera acima das demais posições místicas e espirituais que
não absorvem o empirismo e a racionalidade.

Contudo, ressalto que nós, ateus, não odiamos um ser que não acreditamos na existência e
que é logicamente improvável de existir. Particularmente, avaliando um cenário bem
hipotético em que os teístas estariam certos e que fosse comprovada empiricamente e
apresentada aos nossos olhos a existência divina, a) eu seria indiferente em relação a um
deus que em nada contribui para mudar a realidade como ela é atualmente e o ignoraria, ou
b) eu detestaria um deus que, percebendo e presenciando o mal em seu mundo, não teria
poder suficiente para modificar a realidade ou nada faria por não se tratar de um ser de fato
bondoso, justo e generoso. Na verdade, nós ateístas não devemos nos preocupar com uma
possível existência divina, mas evitar perder tempo com argumentações óbvias sobre um
assunto que não mudaria em nada a realidade em que vivemos. Os teístas que devem
provar suas afirmações a partir do ônus da prova que lhes é de responsabilidade, caso
contrário, é inútil sustentar um velho e cansativo debate que no fundo se resume a uma
pura e simples vontade e/ou necessidade de crer, em torno de um ciclo vicioso que em
nada nos acrescenta. Devemos sim direcionar nossos esforços a um ativismo ateísta que
agregue valor e revolucione o sistema, enfrentando a ordem sócio-cultural religiosa,
defendendo um Estado verdadeiramente laico e lutando por inclusão, visibilidade e
representatividade ateia na sociedade, bem como combatendo a ateofobia e reforçando a
reivindicação por respeito e reconhecimento à nossa existência factual enquanto cidadãos.
A crença na existência de um deus em si é o que menos deve nos importar.

Como a realidade não é o mundo paralelo de fantasias e contos de fadas que os religiosos
alienados vivem, o fato é que deus é mero fruto da imaginação humana. Não foi um suposto
deus que criou o ser humano, mas o próprio ser humano que criou o mito em sua cabeça,
desde os primórdios da humanidade, lá na origem da fala, a fim de dar uma explicação
irracional ao que até então era inexplicável. A mente humana, em seu estágio primitivo de
total irracionalidade, produziu um deus surreal, impossível de existir da forma como foi
constituído no universo em que vivemos. No mundo real, não há deuses aqui ou acolá, mas
apenas nós, seres humanos, os únicos capazes de intervir na realidade e modificá-la, para
melhor ou pior, e essa exposição reforça e consolida os argumentos pró-ateísmo e nossa
concepção de mundo humanista, materialista, secular e racionalista.

Viva a vida e seja livre. Ame, evolua, cresça, reproduza, se divirta, aproveite a sua própria
existência como se no mundo não houvesse um deus (que de fato não há). Siga a razão e
não se prenda e se limite aos preceitos da fé, pois se há uma semelhança entre o crente e o
ateu é que nenhum de nós enxerga esse tal deus. E a partir de tudo o que vemos e
percebemos no mundo físico, natural e material, conclui-se uma obviedade da realidade:

Deus não existe!

(15/11/2022)

ADEUS ANTES DE TUDO. DEUS NEM EXISTE.

Que Jair Messias Bolsonaro é neofascista, racista, machista, misógino, xenofóbico,


homofóbico, transfóbico e antidemocrático muitos sabem  —  enquanto uma minoria
derrotada nas urnas finge não saber ou acoberta esse fato por compactuar com o caráter
autoritário e fascínora daquele que é popularmente considerado um miliciano genocida  — ,
mas não somente de ataques à democracia brasileira, às instituições da República e ao
sistema eleitoral se resume o movimento bolsonarista. Além de ser inimigo veemente do
Estado Democrático de Direito, o bolsonarismo é um movimento reacionário de massa  — 
definição geral de fascismo de acordo com Armando Boito Jr. (2020)  —  de extrema-direita e
ultraconservador que se opõe a um conjunto de aspectos, como a diversidade, a igualdade
e a justiça social, o progressismo, a modernidade, a ciência, o intelectualismo e os
princípios humanistas e secularistas. De modo geral, o movimento neofascista bolsonarista
absorve uma série de características típicas do fascismo original apontadas por Jason
Stanley (2019) (referência a um passado mítico, valorizado em função da família patriarcal e
de seus valores, como a autoridade do pai; anti-intelectualismo; defesa da lei e da ordem;
desarticulação do bem-estar público; ansiedade sexual; exclusão de grupos sociais
minoritários e sua desumanização e/ou extermínio; divisão da população entre “nós e eles”;
e ultranacionalismo), bem como 14 atributos que Umberto Eco (2018) define como sendo os
componentes do chamado “fascismo eterno”, ou “ur-fascismo” (culto à tradição; rejeição à
modernidade; culto à ação pela ação, negando a reflexão; rejeição ao senso crítico; aversão
às diferenças e à diversidade; apelo às classes médias frustradas por alguma crise
econômica; nacionalismo e xenofobia; negação da paz; elitismo aristocrático e militarista;
culto a um herói; culto à morte; projeção da vontade de poder a questões sexuais;
populismo qualitativo; e novilíngua de Orwell).

Mas não apenas de um patriotismo exagerado, de um nacionalismo exacerbado, de um


militarismo e armamentismo doentio e de um forte negacionismo científico se resume a seita
bolsonarista — esta centrada na figura do atual ex-Presidente da República. A milícia
bolsonarista também é composta por um extremo e radical fundamentalismo religioso
cristão (em especial evangélico) que atua como inimigo da laicidade do Estado e dos
princípios laicistas presentes na Constituição Cidadã de 1988. E em meio a mais um projeto
de poder de raízes fascistas, como é habitual em movimentos e regimes desta natureza57,
há, por intermédio dos ideais do bolsonarismo, implementar uma ditadura teocrática no
Brasil, com leis e normas de acordo com conceitos bíblicos, a fim de transformar nosso país
em um “evangelistão”, aos moldes do Afeganistão, da Arábia Saudita e de outros regimes
neoconservadores pelo mundo que também são pautados e sustentados com base na
moral e na ética religiosa e em temas ultrapassados, como de família e costumes.

É ciente entre a comunidade de livres pensadores humanistas e secularistas que o Estado


laico constitucional é ferido e violado desde quando a laicidade foi promulgada no Brasil
(através da primeira Constituição Federal, em 1891, marcando o fim do catolicismo
enquanto religião oficial decretada pelo Império brasileiro), assim como a forte influência e o
enorme domínio da Igreja (em especial a Católica) no país. Os próprios poucos governos de
esquerda e progressistas que estiveram no poder no país (como é o caso, em especial, dos
lulopetistas, entre 2003 e 2016) ampliaram isenções tributárias às igrejas, perdoaram
dívidas de templos com a União, fortaleceram a imunidade de centros religiosos e
impulsionaram o crescimento do cristianismo cultural no país com uma série de regalias,
contribuindo muito para sua consolidação e seu imperialismo. As igrejas, em particular,
muito ganharam e foram indevidamente beneficiadas por governos declarados progressistas
(de esquerda ou mesmo de direita), os quais deveriam combatê-las, minimizando seu poder
de atuação em todas as áreas da vida pública. Portanto, é de natureza institucionalizada de
todos os governos brasileiros  —  sejam de direita ou de esquerda  —  atacar a laicidade
constitucional, esta que deve sempre ser defendida, independentemente da governança em
exercício, por todos(as) os(as) militantes secularistas que prezam por este que é um dos
pilares da democracia e garantidor das liberdades democráticas  —  individuais e coletivas.

Contudo, apesar dos ataques de costume que historicamente ocorrem, e que infelizmente
deverão ocorrer no futuro novo governo Lula  —  este que já está alinhado e comprometido
com os interesses das igrejas e em acordo com a manutenção e efetivação do cristianismo
cultural (estejamos atentos e vigilantes)  — , nada em mais de 130 anos de República se
compara com as violações ao Estado laico promovidas pelo conservadorismo e
fundamentalismo bolsonarista nos últimos 4 anos. Enquanto um movimento fanático
religioso, extremista e completamente retrógrado, o bolsonarismo acumula o que há de pior
57 Ver Cristãos contra o fascismo? A diferença entre nós e eles.
e mais podre na política brasileira e em toda a humanidade, não estando apenas à serviço
dos interesses das igrejas, como todos estiveram até aqui, mas sendo um representante
ativo da mitologia cristã em sua essência, tal como um verdadeiro fascista. Por conta disso,
e tendo em vista que esse desgoverno desumano e corrupto está com seus dias contados e
com data e hora marcada para o fim, a proposta deste artigo é apresentar e registrar para a
história desse país as vezes em que Bolsonaro e sua gestão desastrosa (a pior e mais
rejeitada da República brasileira) feriram o Estado laico e atacaram minorias religiosas  — 
em especial a comunidade ateísta  — , se afirmando como oposição ferrenha à laicidade
constitucional e aos ateus enquanto grupo social.

Fake news e ateofobia contra adversários na campanha de 201858

Se aproveitando de pesquisas de opinião pública que mostram a rejeição e aversão à


comunidade ateia pela sociedade brasileira, principalmente em relação a candidaturas à
Presidência da República59, e usando da forte influência das igrejas como cabo eleitoral nos
pleitos, a campanha da chapa Bolsonaro-Mourão, em 2018, utilizou fake news contra a
chapa adversária (Haddad-Manuela) em propagandas veiculadas no rádio e na televisão.
Em publicidade transmitida nacionalmente no dia 25 de outubro de 2018, véspera do
segundo turno das eleições presidenciais, a campanha do candidato do PSL usou trechos
de vídeos cortados e retirados de contexto para afirmar, de forma depreciativa e caluniosa,
que Fernando Haddad e Manuela d’Ávila são na verdade ateus, estando eles
“desrespeitando” a fé cristã ao frequentarem cultos religiosos para, supostamente, enganar
os eleitores e angariar votos.

O uso em destaque da palavra “ateus”, em tom pejorativo e de alerta, na propaganda,


somado aos trechos de vídeos editados com falas dos presidenciáveis, serviu para
desmoralizar a imagem das figuras políticas junto à população brasileira. Bolsonaro, nesse
episódio, além de propagar fake news (crime eleitoral)  —  visto que tanto Haddad, quanto
Manuela são declaradamente cristãos  — , promoveu ateofobia ao proferir falsas acusações
de ateísmo contra opositores, aos moldes como a Santa Inquisição fez na Idade Média,
expondo e reforçando o desprezo da sociedade brasileira contra a comunidade ateia.

Se a tática bolsonarista foi usar o ateísmo como ofensa e demérito para “queimar o filme”
dos adversários, nessa ele conseguiu o que queria.

Perdão de dívidas bilionárias das igrejas com a União

Em março de 2021, bolsonaristas no Congresso Nacional se uniram favoravelmente em


votação em prol da anistia de dívidas de em torno de R$ 1,4 bilhão das igrejas com a União,
o que resultou em definição pela isenção de pagamento e suas respectivas multas por
atraso. Na sessão comandada pelo líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (PP), e
contando, inclusive, com votos favoráveis de alguns partidos da oposição, como o PCdoB, o

58 Propaganda de Bolsonaro classifica Haddad e Manuela como ateus. Viva Bem  —  Uol, 2018.
Disponível em: <https://www.uol.com.br/vivabem/videos/?id=propaganda-de-bolsonoaro-classifica-
haddad-e-manuela-como-ateus-04024D1C3162D8A96326>. Acesso em: 25 dez. 2022
59 PETRY, André. Como a fé resiste à descrença. Veja, 2007. Disponível em:

<https://web.archive.org/web/20111228214309/http://veja.abril.com.br/261207/p_070.shtml>. Acesso
em: 25 dez. 2022
perdão pró-privilégios religiosos passou quase que por unanimidade pelo Parlamento
alinhado aos interesses da Igreja, mas não do Estado laico.

Para não correr risco de impeachment por crime de responsabilidade, Bolsonaro, então
Presidente à época, vetou o dispositivo que anistiava as igrejas, mas já negociando com
sua base governista no Congresso a derrubada do veto. E de fato foi o que ocorreu. Com a
derrubada do veto pela maioria dos parlamentares, principalmente da situação, Bolsonaro
“voltou atrás” em sua oportuna decisão e sancionou a anistia das dívidas de igrejas e
templos religiosos com o Estado brasileiro60.

A política bolsonarista sempre foi a de retirar direitos do povo, dos estudantes, dos
trabalhadores e dos aposentados, mas garantir benefícios e privilégios aos irmãos de fé e
comparsas do crime.

Nomeações terrivelmente “técnicas”

Desde o início de seu mandato, em 2019, Bolsonaro já ameaçava o povo brasileiro e a


laicidade do Estado com a nomeação de um ministro por critério de ser “terrivelmente
evangélico” para o Supremo Tribunal Federal (STF)61. O que causou muito estranhamento
nessa obsessão do então Presidente com a condicional de pré-requisito religioso é a
contradição quanto aos seus discursos e promessas de campanha em nomear apenas
pessoas com perfil técnico e competentes para cargos públicos, “sem viés ideológico”.

Mas se o viés for de acordo com a doutrina cristã e quiser fazer da Bíblia a nova
Constituição Federal não há problemas para o bolsonarismo. Desde a nomeação de uma
pastora evangélica, Damares Alves, para assumir o Ministério da Mulher, da Família e dos
Direitos Humanos, e de um pastor presbiteriano e teólogo, Milton Ribeiro (investigado e
preso pelo envolvimento no esquema de corrupção que desviava verbas da educação
pública, chamado de “Bolsolão do MEC”), para um Ministério tão importante e estratégico
como o da Educação, ficou evidente que a separação entre Igreja e Estado (princípio-base
da laicidade) não é nem um pouco apreciada por Bolsonaro e seu clã. E tanto o caso da
lunática da goiabeira e do ex-presidiário inimigo do ensino público, quanto do ministro
“terrivelmente evangélico” André Mendonça, indicado à Suprema Corte em 2021, são
apenas os exemplos mais notórios do aparelhamento estatal religioso que o governo
neofascista promoveu em suas nomeações “técnicas”, atacando o Estado laico ao privilegiar
um grupo religioso específico e adotar uma fé religiosa acima das demais crenças e
posições presentes no país como critério para distribuir e lotear cargos.

“Pai nosso” é a Constituição Federal e o Estado é terrivelmente laico, Bolsonaro!

Espaços públicos para cultos religiosos

60 Bolsonaro volta atrás e perdoa dívida de R$ 1,4 bilhão de igrejas. Estado de Minas, 2021.
Disponível em:
<https://www.em.com.br/app/noticia/politica/2021/03/18/interna_politica,1248010/bolsonaro-volta-
atras-e-perdoa-divida-de-r-1-4-bilhao-de-igrejas.shtml>. Acesso em: 25 dez. 2022
61 CALGARO, Fernanda e MAZUI, Guilherme. Bolsonaro diz que vai indicar ministro

‘terrivelmente evangélico’ para o STF. G1, 2019. Disponível em:


<https://g1.globo.com/politica/noticia/2019/07/10/bolsonaro-diz-que-vai-indicar-ministro-terrivelmente-
evangelico-para-o-stf.ghtml>. Acesso em: 25 dez. 2022
Não só para campanhas eleitorais (inclusive antecipadas) Bolsonaro utilizou patrimônios
públicos ao invés de estar trabalhando pelo Brasil. Por inúmeras vezes, o então Presidente
e sua esposa, a então Primeira-Dama Michelle, usaram os Palácios do Planalto e do
Alvorada para promover cultos religiosos com seus aliados e financiadores de campanha62.
Já houve missas, rodas de oração, leituras da Bíblia, tudo durante a agenda presidencial e
em ambientes pertencentes ao Estado brasileiro, a fim de promover única e exclusivamente
uma fé religiosa específica: a cristã.

Além disso, não esqueçamos que as campanhas bolsonaristas de 2018 e 2022 foram
impulsionadas por comícios dentro de igrejas, contando com a ajuda de líderes religiosos
que cometeram crimes eleitorais ao aliciar os fiéis a partir de compra de votos e/ou
difamando os adversários políticos do candidato da extrema-direita publicamente com o uso
de fake news. Até os populares “santinhos” de campanha e folhetos “informativos” com
colinhas eleitorais foram distribuídos em templos religiosos aos devotos que frequentavam
os espaços durante a corrida presidencial que, pela primeira vez desde a aprovação da
reeleição, não reelegeu um chefe de Estado ao cargo que até então ocupava.

A estrutura fundamentalista para interferir nos resultados eleitorais e moldar a política


nacional que articula, financia e movimenta o bolsonarismo é o mecanismo da velha política
do atraso.

Conchavo com o sistema religioso

Não há perdão de dívidas para igrejas de graça. Não há ampliação de isenção de impostos
para pastores evangélicos em ano eleitoral por nada63. Não há financiamento público para
cultos religiosos e shows gospel à toa. Tudo é uma via de mão dupla: a mão que dá
também cobra e recebe.

Para se vender aos interesses da Igreja e se afirmar como um representante do cristianismo


cultural, inimigo do Estado laico, Bolsonaro recebe apoio eleitoral e político da Bancada
fundamentalista e de figuras religiosas, como os pastores Silas Malafaia, Edir Macedo,
Marco Feliciano, Everaldo (preso por corrupção), Gilmar dos Santos (favorecido no
esquema do MEC), Magno Malta, Valdemiro Santiago e Flordelis (condenada e presa pelo
homicídio de seu marido), o “Padre” Kelmon e alguns tantos bispos do Brasil. Além disso, o
ex-presidente também recebe financiamento privado de campanha de núcleos de pastores
e outros líderes religiosos64, bem como uma “mãozinha amiga” de igrejas como a Universal
do Reino de Deus, a Assembléia de Deus e a Mundial do Poder de Deus para se eleger.
Neste caso, instituições religiosas denunciadas por estelionato e lavagem de dinheiro, que
enriquecem através da exploração da fé alheia, com o dízimo, além da imunidade tributária
indevidamente concedida sobre as premissas constitucionais.

62 Michelle Bolsonaro lidera culto evangélico no Palácio do Planalto. Estadão, 2022. Disponível
em: <https://www.estadao.com.br/politica/michelle-bolsonaro-lidera-culto-evangelico-no-palacio-do-
planalto-veja-video/>. Acesso em: 25 dez. 2022
63 Mirando eleitorado evangélico, Bolsonaro amplia isenção a pastores. iG, 2022. Disponível

em: <https://economia.ig.com.br/2022-08-18/bolsonaro-pastores-isencao-impostos-eleicoes.html>.
Acesso em: 25 dez. 2022
64 Pastores e empresários ajudam Bolsonaro com ‘campanha paralela’; grupo responde.

Correio Braziliense, 2022. Disponível em:


<https://www.correiobraziliense.com.br/politica/2022/09/5039954-pastores-e-empresarios-ajudam-
bolsonaro-com-campanha-paralela.html>. Acesso em: 25 dez. 2022
Portanto, não, não é do nada que as dívidas de igrejas com a União dobraram nos últimos
anos, ao mesmo tempo em que houve anistia de débito e aumento de isenções tributárias.
Não é por acaso que eventos de cunho confessional são tão promovidos com alto
financiamento estatal, inclusive na área da cultura. Como uma mão lava a outra, tem a que
usa de seu poder e influência por cima da laicidade para eleger o político que, com sua
caneta, irá ferir o Estado laico no compromisso que tem de cumprir com seus amiguinhos de
pacto. Esse é o ciclo que por décadas perdura nessa pátria decadente chamada Brasil.

O sistema é mesmo foda!

Aquisição de novelas bíblicas por TV estatal

Você sabe quanto de dinheiro público a Rede Record, pertencente ao bispo Edir Macedo,
líder da Igreja Universal, recebeu pela compra da novela Os Dez Mandamentos? R$ 3,2
milhões65. Isso mesmo: o Governo Federal, por meio da Empresa Brasileira de
Comunicação (EBC), adquiriu os direitos de transmissão de um conteúdo religioso por
milhões dos cofres públicos para exibir na TV Brasil, uma emissora estatal. E essa foi
apenas uma das dramaturgias bíblicas compradas pela gestão Bolsonaro.

Já é um escárnio com o povo brasileiro a concessão pública dos meios de comunicação às


igrejas para canais religiosos. Bolsonaro inclusive é muito favorável à prática, tendo
concedido e renovado em casos aqui e ali. Todos os espaços em diversos setores da
sociedade civil que o cristianismo quiser e puder ocupar, o Estado brasileiro sempre tratou
de conceder com a maior facilidade e sem qualquer cobrança por retorno. Porém, usar
dinheiro público para adquirir telenovela de imprensa aliada supera o limite do absurdo e do
descompromisso e irresponsabilidade com os gastos públicos por parte desta
administração.

Para as igrejas tudo, para o povo nada: esse é o lema do bolsonarismo raiz.

Relação com a comunidade ateísta

Para muitos, a mão que bate é a mesma que afaga. No caso da relação de Bolsonaro com
os ateus, sempre foi assim.

Bolsonaro até tenta, mas não engana a todos. Como o fundamentalista ultraconservador
que é, nunca escondeu seu preconceito contra a comunidade ateísta. Nas poucas vezes em
que citou ateus e ateias, ou fez para angariar votos dessa minoria social66, ou fez para
discriminar os descrentes e atacar seus adversários com falsas acusações de ateísmo.

Em discurso às vésperas do primeiro turno das eleições de 2018, o candidato do PSL bem
que tentou nos usar como massa de manobra, buscando enganar os desavisados e
ingênuos com uma fala moderada que contraria suas reais posições e intenções:

65 RODRIGUES, Henrique. Governo Bolsonaro paga R$ 3,2 milhões à Record por novela
bíblica. Revista Fórum, 2021. Disponível em: <https://revistaforum.com.br/news/2021/4/3/governo-
bolsonaro-paga-r-32-milhes-record-por-novela-biblica-94572.html>. Acesso em: 25 dez. 2022
66 MAIA, Gustavo e Adorno, Luis. Em última fala antes de votação, Bolsonaro faz aceno para

ateus e gays. UOL, 2018. Disponível em:


<https://noticias.uol.com.br/politica/eleicoes/2018/noticias/2018/10/06/em-ultima-fala-antes-de-
votacao-bolsonaro-faz-aceno-para-ateus-e-gays.htm>. Acesso em: 26 dez. 2022
“Nós vamos fazer um governo para todos, independente de religião. Até quem é
ateu. Nós temos quase por volta de 5% de ateus no Brasil, e vocês têm as
mesmas necessidades que os demais têm”, declarou Bolsonaro.

Pouco mais de um mês depois, já no segundo turno, o candidato voltou a citar os ateus em
falsa acusação contra seus concorrentes durante propaganda eleitoral, a fim de difamá-los e
ganhar a eleição, como já fora mostrado aqui anteriormente. Uma hipocrisia vinda de um
canalha cínico que pouco tempo antes estava querendo votos do público ateísta e de
defensores da laicidade para, no poder, violar ainda mais o nosso frágil Estado secular.

Já em 2020, enquanto presidente, Bolsonaro citou os ateus novamente, dessa vez em tom
provocativo e demasiadamente preconceituoso, utilizando da velha falácia argumentativa do
ateu durante uma queda de avião67  —  já refutada em outro artigo68  —  ao fazer uma
comparação descabida e sem a mínima lógica com a cloroquina, medicamento
comprovadamente ineficaz contra COVID-19 que o governante insistiu em recomendar
durante a pandemia, mesmo sem competência, contrariando cientistas do mundo todo:

“A cloroquina é igual a ateu quando o avião começa a cair, daí lembra de Deus.
“Ai, meu Deus do céu, o avião tá caindo”. A cloroquina é a mesma coisa. O que
tem pra tomar?”

É por esse histórico fundamentalista religioso, inimigo da laicidade e ateofóbico que


Bolsonaro foi rejeitado pela maioria da comunidade ateísta nos dois últimos pleitos. Como
ateu não gosta de ser enganado e não acredita em qualquer discurso sem evidências ou
bases racionais e fundamentadas, digamos que a resposta veio nas urnas com “louvor” e
quem caiu foi seu governo, já condenado ao fracasso, para a lata de lixo da história.

Inimigo da laicidade e da diversidade

Em diversas lives com religiosos, motociatas com apoiadores ou mesmo em participações


na Marcha para Jesus durante agenda presidencial, Bolsonaro já declarou que seu governo
era cristão e até que o próprio Estado brasileiro é cristão, contrariando os princípios
secularistas presentes nos artigos 5º e 19 da Carta Magna de 1988. Para um político
fundamentalista que tem como seu slogan de campanha a frase “deus acima de todos”,
além de outros lemas de cunho fascista, desrespeitar a laicidade estatal e a separação
entre Estado e Igreja, bem como a secularização de instituições e órgãos públicos, é algo
visto por ele como natural e positivo para a democracia, estando dentro das tais “4 linhas da
Constituição”.

67 CAIXETA, Fernanda. Bolsonaro: “Cloroquina é como ateu quando avião vai cair e lembra de
Deus”. Metrópoles, 2020. Disponível em: <https://www.metropoles.com/brasil/politica-
brasil/bolsonaro-cloroquina-e-como-ateu-quando-aviao-vai-cair-e-lembra-de-deus>. Acesso em: 26
dez. 2022
68 Ver O ateísmo na queda do avião.
Durante discurso para apoiadores na Paraíba, em 2017, Bolsonaro mostrou a sua real face
de inimigo da laicidade e da diversidade ao defender Estado cristão (teocracia
fundamentalista)69 acima dos direitos civis e sociais e das liberdades das minorias:

“Como somos um país cristão, deus acima de tudo! Não tem essa história, essa
historinha de Estado laico, não. É Estado cristão! E quem for contra que se
mude. Vamos fazer o Brasil para as maiorias. As minorias têm que se curvar às
maiorias. As leis devem existir para defender as maiorias. As minorias se
adequam ou simplesmente desapareçam”, disse Bolsonaro às massas
paraibanas.

Esse é o Bolsonaro factual: fundamentalista, inimigo do Estado laico, ateofóbico,


preconceituoso, intolerante e autoritário. Por isso é inconcebível e inaceitável existir ateus e
secularistas declarados conservadores e bolsonaristas. Ateístas, secularistas, humanistas,
racionalistas, positivistas e toda a comunidade vinculada a correntes de livre-pensamento,
progressistas por essência, formada por ativistas que defendem a laicidade constitucional,
combatem o cristianismo enquanto dominação sócio-cultural e lutam em prol de um Estado
verdadeiramente laico devem rejeitar Bolsonaro e o movimento obscurantista bolsonarista
neofascista, fundamentalista e ultraconservador. Quem absorve o ateísmo enquanto
concepção de mundo e filosofia de vida, em prol de visibilidade e representatividade ateia,
não pode, de modo algum, compactuar com posições que seguem e vão de acordo com o
sistema religioso e com a ordem social imposta, através de doutrinação, pela mitologia
cristã no mundo ocidental.

E não há problema algum, perante a visão institucional, de Bolsonaro, Lula ou qualquer


governante ou parlamentar ser teísta e cristão. Na vida privada, no âmbito pessoal, cada um
tem o direito legal de crer no que quiser  —  assim como de não crer  —  e seguir a doutrina
que preferir, pois nossa laicidade, mesmo que fragilizada, nos fornece essa garantia. O que
não pode é misturar política e religião, usurpar o poder do Estado a fim de promover e
defender interesses exclusivos de uma mitologia específica, acima da Constituição e das
estruturas democráticas, ou assumir cargos públicos na posição de representante de
núcleos estritamente confessionais, como fazem pastores e padres nos Poderes Executivo,
Legislativo e até Judiciário. Representantes do povo devem servir unicamente ao povo de
modo geral e seguir as leis e normas constitucionais, não bíblicas. O Estado oficialmente
laico, não ateu, de forma alguma cobrará ou irá impôr a irreligiosidade, de maneira ditatorial
e por ideologia, mas deve ser respeitada e assegurada a sua neutralidade no âmbito
religioso para a manutenção da ordem social e do bom convívio de todos e todas na
democracia.

A laicidade, perante o Poder Público, é que deve estar acima de tudo e de todos, garantindo
oportunidades e acessos para as classes populares. O Estado, neutro em relação às
religiões, não pode favorecer ou promover ideal e posição A ou B acima do restante, da
pluralidade de pensamento, devendo se limitar somente em garantir a liberdade de crença e
culto, sendo esta mantida e concentrada em foro exclusivamente privado, fora da vida
pública. Essa garantia de neutralidade estatal é o que sustenta, consolida e fortalece o
69MULLER, Valéria. DISCURSO DE ÓDIO | Bolsonaro defende Estado cristão, que as minorias
desapareçam e fuzil contra os sem-terra. Esquerda Diário, 2017. Disponível em:
<https://www.esquerdadiario.com.br/Bolsonaro-defende-Estado-cristao-que-as-minorias-
desaparecam-e-fuzil-contra-os-sem-terra>. Acesso em: 26 dez. 2022
Estado Democrático, o livre exercício dos Poderes da República, e assegura o cumprimento
da Constituição. Por isso é importante enfrentar tudo e todos que atentam contra a laicidade
e lutar ativamente, em resistência, pela regulamentação do que prevê a Carta Magna de
1988, por meio de um projeto nacional de secularização total e radical.

Pelo bem-estar da nação e em prol do Estado laico sempre, está na hora de Jair embora. E
se for por falta de adeus, então que esse adeus esteja acima de tudo, pois deus sequer
existe.

(27/12/2022)

Por Guilherme Natividade

Você também pode gostar