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Sonia B. Hoffmann
1. Introdução
A criança portadora de deficiência visual é, ainda hoje, normalmente apontada como um indivíduo
exclusivamente passivo e dependente, sendo fragmentado motora, cognitiva, afetiva e socialmente.
Além disto, sua individualidade e o direito à diferença nem sempre são por ela plenamente
vivenciados, pois o outro social geralmente toma para si a tarefa de enredá-la ainda mais no
desconhecimento de si mesma e do seu ambiente circundante: situação que provavelmente
aconteça devido uma possível falta de informação, deste outro social, das possibilidades desta
criança e das implicações da deficiência visual a ela trazidas no que diz respeito à necessidade de
adaptações e de utilização de vias alternativas desenvolvimentais para sua construção como sujeito.
O reconhecimento e o respeito pelo outro desta singularidade infantil consiste, contudo, uma tarefa
muitas vezes difícil porque este outro social, quando representado pela figura parental ou algum
familiar de apego, pode freqüentemente desorganizar-se e fragilizar-se diante da deficiência visual
da criança. Associado a este comportamento, o modo pelo qual a notícia sobre a permanência ou
transitoriedade deste comprometimento visual parece não ser oferecido adequadamente pela
maioria dos profissionais aos responsáveis pela criança, com informações reais de suas
possibilidades desenvolvimentais e edificantes como sujeito.
Assim, perdidos e cristalizados na espera de uma criança sonhada ou até então presente nas
expectativas de outro ciclo vital, os pais e demais figuras de apego precisam, talvez desde o ato
obstétrico desta criança, do suporte informativo e articulador do profissional habilitado para seu
desempenho e exercício na área da Intervenção Essencial.
Por outro lado, a troca de papéis e de funções entre os componentes do grupo familiar da criança
consiste igualmente um comportamento usualmente adotado e, segundo Alfónso Ronda e Vázquez
Palencia (1991), são impactos normalmente encontrados durante os conflitos emocionais nesta
unidade. A intensidade destes eventos depende do nível de relação e integração da família, da
personalidade dos seus componentes e da forma deles vivenciarem e enfrentarem os conflitos.
Assim, acreditamos que a qualidade da estrutura na qual está respaldada a formação da rede
familiar consiste o grande referencial e determinante para que comportamentos e posturas sejam
adotados diante de situações inesperadas e carentes de mudanças caso exista uma inadequação
comportamental naquele núcleo em relação à cegueira ou à baixa visão da criança. Neste aspecto,
Alfónso Ronda e Vázquez Palencia (1991) trazem com muita clareza que os novos hábitos de
autonomia, o direito ao erro-acerto e à realização de atividades dentro de um ritmo diferente não
serão conquistados pelo indivíduo com deficiência visual, se o comportamento familiar permanecer
não receptível às mudanças necessárias e aos entendimentos adequados de sua problemática.
Este entendimento e respeito pela criança tem seu início, de acordo com o pensamento de Damazio
(1994), no reconhecimento da sua autonomia traduzida por seus meios próprios de apreensão do
mundo e do conhecimento dos seus limites, potencialidades, fantasias e desejos.
Esta conduta, em nossa opinião, potencializa a posição de Ochaita (1993) quando a autora faz
referência às vias e processos alternativos para a evolução da criança cega ou com baixa visão e
indica à necessidade de prudência quanto ao estabelecimento de generalizações. Segundo esta
autora, há uma grande variabilidade interindividual no ritmo e qualidade deste desenvolvimento,
ocasionada por uma conjunção de fatores de caráter etiológico, familiar, cultural, educativo, social e
individual.
Neste sentido, consideramos como importante para a compreensão do desenrrolar deste processo o
entendimento basilar quanto ao próprio significado e lugar que damos à criança. Olhada e localizada
no imaginário e no contexto social nos parece, então, sensato incluir e relacionar o fenômeno
cegueira ao cotidiano da construção deste sujeito infantil e a forma como é negociado o seu estar
em um ambiente visual.
Nesta perspectiva, a emissão de qualquer valor relativamente à infância demanda um pensar que vai
para além da própria criança porque, em concordância com o pensamento de Rodulfo (1990, p.16),
criança decididamente não deve ser entendida por "algo quecomeça e termina nas fronteiras de seu
corpo" ou por uma entidadepsicofísica, pois diversos conceitos e valores são mobilizados para
designá-la. O seu entendimento vai para além da forma e da condição fisiológica do seu corpo e
ultrapassa a compreensão da sua história presente, mas envolve também o conhecimento e as
influências da sua pré-história, da história familiar, da cultura e dos acontecimentos ocorridos no seu
ambiente.
A construção psíquica pode ser um destes grandes indicativos e reitera a necessidade de um estudo
circular para a compreensão do desenvolvimento infantil, uma vez que este processo, dentro de
uma concepção freudiana, não acontece por via de uma herança orgânica, mas é construído a partir
das experiências dos primeiros anos infantis, tornando evidente que estas experiências individuais
"são produzidas de forma estreitamente determinadas a partir da história inconsciente dos que se
encarregam de cada uma delas" (Coriat, 1997, p.279).
No entanto, nem sempre esta criança tem efetivamente o seu lugar atribuído e ocupado: muitas são
as vezes e os motivos que a relegam para o vácuo, para o lugar do nada onde o nada a ela é
oferecido e desejado. Um nada que temporária ou permanentemente a preenche e é preenchido
por ela e por um discurso médico, diante da insuficiência dos seus pais ou tutores para lidar com a
diferença trazida pelo comprometimento visual e com os acidentes orgânicos e desenvolvimentais
desencadeados muitas vezes por este comprometimento.
Então, a deficiência visual em uma criança pode constituir, para o seu outro, a via conducente para
este espaço sem inscrições e sem desejos, ainda mais quando a relação parental e ambiental com
esta criança está fragilizada pelo desconhecimento, tabu e mito, acrescidos ao próprio sentimento
de medo ou decepção que o outro possa ter em si diante daquela criança não desejada com sua
cegueira ou com a baixa visão: potencializando este comprometimento visual ao nível de confundir-
se nos valores deficiência visual-criança e a esta reportar-se como se ela fosse exclusivamente a
própria deficiência visual.
No entanto, nem sempre o outro compreende que a criança com algum impedimento visual,
segundo Harrison e Crow (1993), não terá a mesma percepção do mundo que aquela que enxerga.
Embora seu potencial para a aprendizagem seja comparável, esta criança apresenta um método
diferenciado para a estabelecer, pois ela necessita explorar o detalhe antes de entender o todo:
situação que necessariamente na criança não portadora de deficiência visual entendemos que pode
deixar de acontecer nesta ordem.
O tempo demandado para a efetuação de todo este processo nem sempre é entendido pelo outro e,
muitas vezes, este outro chega a não considerar que a criança cega ou com visão subnormal esteja
percebendo o mundo em função do seu desconhecimento quanto aos mecanismos e procedimentos
que ela peculiarmente utiliza para o estabelecimento desta compreensão, diante da sua limitação
visual.
No entanto, esta criança precisa receber ajuda de pessoas que se disponibilizem, desde o seu
nascimento, a despertar nela o desejo de conhecer e aprender, explorar o mundo e elaborar de
forma própria as informações: auxílio este que pode em muito ser efetivado a partir de conversas
mais freqüentes com a criança deficiente visual do que com aquela que enxerga (Gil, 2000).
Todavia, Mosquera (2000) considera que o desenvolvimento do indivíduo cego é diferente daquele
normovisual: segundo este autor, existem teorias referenciando o desenvolvimento do indivíduo
com cegueira como igual ao daquele que enxerga, fato que, para ele, não representa uma verdade
porque os conceitos formados pelo portador de cegueira são diferentes daqueles das outras crianças
e, portanto, muitas atividades cognitivas são por elas interpretadas diferentemente, de acordo com
o receptor. Para o autor, outros fatores ainda podem interferir nesta organização e destaca o
preconceito, a desinformação e a limitação do espaço físico, entre outros.
... a criança cega ou com visão reduzida desde o nascimento não atinge as mesmas etapas do
desenvolvimento dentro da média de idades da criança que vê, por volta do início da idade adulta
ela apresenta níveis semelhantes aos dos normovisuais. Esta perspectiva levanta então a
possibilidade da alteração da relação entre a prestação da criança cega ou com visão reduzida e da
criança normovisual, através de uma estimulação adicional e/ou da criação de situações ambientais
que conduzem à criação dos contextos educativos favoráveis e, portanto, mais propícios para se
conseguir uma maior eficácia na apreeensão de estímulos no meio ambiente.
Para além da deficiência visual ou junto a ela, componentes culturalmente importantes para
determinadas unidades sociais, como o gênero, a cor, o planejamento familiar e a ordem filial
podem ser importantes construtos agregados à elaboração do desejo do outro quanto à vida ou à
morte desta criança, acentuando sua diferença e até mesmo a inviabilizando em sua edificação
como sujeito.
Por sua vez, a intensidade do desejo circulante será uma condição significativa e prioritária para o
desenvolvimento construtivo mútuo das vinculações e do próprio desenvolvimento infantil, pois a
conquista de oportunidades e experiências não se constituem geralmente para a criança cega da
mesma forma e pela mesma rota que para a criança visual ou com baixa visão, devido sua
impossibilidade de interação e exploração visual do ambiente.
A criança cega ou com visão subnormal, todavia, é uma realidade presente e ativa. Como qualquer
outra criança, ela precisa de cuidados e afeto inclusive para entender este novo meio que, sem
imagens, a envolve com sons, toques, palavras, reações, horários, roupas e alimentos.
3. Conclusão
A partir deste conjunto de informações e perspectivas, somos levados a pensar que o grande
motivador desenvolvimental ou edificante da criança com deficiência visual (congênita ou adquirida)
encontra-se e incide justamente na qualidade e diversidade dos cuidados e dos estímulos com ela
compartilhados e por ela vivenciados: os quais possibilitam, fazendo referência a Ochaita (1993), a
sua organização a partir de vias alternativas de desenvolvimento.
A disponibilidade do outro, para isto, torna-se imprescindível e ela não se limita, entretanto, às
informações teóricas, verbais e expositivas de uma determinada ação ou objeto, mas abrange,
sempre que possível e necessário, a permissão e oportunidade para a vivência pela exploração,
movimento e experiência desta informação pela criança cega ou com visão subnormal.
Claro está que a carência informativa, sintetizada e abrangente, obtida através do canal perceptivo
da visão pode trazer alguma restrição ou lentidão desenvolvimental para a criança, uma vez que
ajustes sensoriais e coordenativos em termos de função precisam ser realizados. Contudo, o que
vimos observando ao longo dos anos, no que diz respeito a um possível atraso do seu
desenvolvimento, não está unicamente relacionado ao tempo necessário para a estruturação, por
exemplo, da coordenação ouvido-mão da criança cega em lugar da coordenação olho-mão das
crianças normovisuais mencionada por Bruno (1993) e Lucerga Revuelta (s.d.).
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Sonia B. Hoffmann
2.Abr.2013
publicado porMJA