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Começarei este artigo fazendo uma pergunta inicial ao leitor para evocar

algumas reflexões.

– Por que mantemos pessoas com deficiência intelectual ou com síndrome de


Down numa eterna infância?

Sabemos que ao aprisionarmos as pessoas com deficiência intelectual e ou


síndrome de Down numa identidade infantilizada estaremos limitando suas
potencialidades, sua dignidade e sua autoestima para o resto da vida.

Quando uma pessoa é impedida de crescer, ela estará sempre à mercê do


outro, não se individualiza, não assume responsabilidades. Este fato terá
consequências em todas as áreas de seu desenvolvimento futuro, mas
fundamentalmente na linguagem que permanecerá infantil e no ingresso no
mundo adulto, tornando-se uma pessoa dependente dos pais e da
comunidade.

Os esforços atuais buscam um olhar mais direcionado à pessoa do que à


deficiência, implicando maiores oportunidades e necessidades de participação
em diversos contextos sociais como família, escola, lazer, trabalho e outros.
Um marco na trajetória das representações sociais da pessoa com deficiência
é a mudança na conceituação. Concepções baseadas em concepções
funcionais. sendo substituídas por concepções funcionais.

Existem dois sinais claros dessa transição: o primeiro é a Classificação


Internacional de Funcionalidade (CIF 2001), que oferece mais oportunidades a
respeito da avaliação e da definição dos suportes necessários para obter
melhor qualidade de vida. O segundo é a aprovação da Convenção
Internacional de Direitos da Pessoa com Deficiência (em 13 de dezembro de
2006 pela Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas – ONU), que
em seu artigo I diz:

“Pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de natureza


física, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras,
podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade com as demais
pessoas”.

Para que qualquer ser humano construa sua autonomia precisará ter a
oportunidade de desenvolver plenamente às suas competências pessoais e
sociais dentro de um sistema inclusivo, que respeite suas dificuldades,
limitações, mas que potencialize sua capacidade.

A principal habilidade pessoal é a auto-estima, ou seja, o autoconhecimento, a


valorização pessoal, é conhecer e aceitar as nossas forças e as nossas
fraquezas e para isso precisamos construir a nossa identidade como indivíduo
único.

A construção da identidade é um fenômeno muito complexo que pode começar


a partir do nascimento do bebê ou anterior ao nascimento, será estruturada por
meio de suas próprias experiências com as pessoas, através da auto-imagem
percebida pelos outros. Um bebê ao nascer tem um projeto de vida e um lugar
imaginado e planejado na família pelos seus pais, que poderá estar consciente
ou inconsciente na mente dos seus genitores. Esta criança cresce em relação
às expectativas dos pais e das demais pessoas que cuidam dele. Desta
maneira, este lugar que foi considerado e criado expectativas ele se identifica
com a imagem que os outros têm dele; está será a primeira identificação que o
sustentará para o advento do seu “Eu” pessoal. À medida que cresce, a criança
se identifica com esta imagem que os pais e os outros ofereceram para ela, em
conjunto com a percepção interna de si, vai modelando sua própria identidade,
e será conhecido e reconhecido através desta identidade atribuída e
construída, que poderá ser fantasiosa, amorosa, real, idealizada, distorcida,
infantilizada, rejeitada, etc.

A criança vai percebendo se tem habilidades, se é desajeitada, simpática,


sensível, tímida, amorosa, agressiva, etc; assim irá construindo uma imagem
de si mesma, bem como sua autoestima, as quais irão servir como base para
enfrentar a vida, suas relações afetivas, no trabalho, e outras formas de
relacionamentos com a sua vida.

Quando a criança nasce com síndrome de Down, o conceito de deficiência


abrange a criança, cria estigmas e choque traumático do ideal do bebê normal
imaginado na fantasia dos pais.

A identidade é uma necessidade básica do ser humano. Poder responder à


pergunta “Quem sou eu?” é tão necessário como afeto ou comida. Como disse
Erich Fromm: “Essa necessidade de um sentimento de identidade é tão vital e
imperativa que o homem não poderia ser saudável se não encontrasse algum
modo de satisfazê-la”. A identidade é uma necessidade afetiva (sentimento),
cognitiva (consciência de si próprio e do outro como diferente) e ativa (o ser
humano tem de tomar decisões fazendo uso de sua liberdade de vontade).

A identidade é como um selo de personalidade. É evolutiva e está em continua


mudança. Não se trata de uma característica dada, mas que se desenvolve e
faz parte da historia de cada indivíduo.

Sabemos que muitas das limitações das pessoas com síndrome de Down não
são devidas apenas à anomalia cromossômica, mas podem estar relacionadas
com a forma como é percebida no seu contexto afetivo, familiar e social.
Independente, de um bebê ter sido acometido por uma síndrome ou uma
doença orgânica, é uma criança que está ali, e precisará que suas
necessidades afetivas sejam atendidas, como por exemplo, brincar, interagir,
estimular, cantar, etc., porque continuará sendo um sujeito psíquico, com suas
emoções, percepções, necessitando estabelecer um vínculo seguro com estes
pais e ou cuidadores.

Portanto, deficiência não significa incapacidade de demandar o seu próprio


desejo, de ter necessidades psicoafetivas ou de ter impedimento para ser
responsável e crescer.

Então teremos outra questão:


– E quando percebemos que este desenvolvimento acabou sendo capturado
pela infantilização?

Exatamente quando a pessoa com síndrome de Down ingressa na


adolescência, então a crise inicia-se, as demandas afetivas, sexuais, de ser um
ser humano produtivo, criativo, social, independente e com autonomia
começam a aparecer. O caus se estabelece, ou mantém-se na infantilização da
dependência dos pais ou seguirá o curso do desenvolvimento para ingressar
no mundo adulto, que é exatamente o mundo do trabalho.

Na adolescência, pessoas com síndrome de Down frequentemente


experimentam dificuldades em estabelecer e manter relações com amigos na
escola, bem como com figuras de autoridade, suas habilidades sociais
começam a falhar.
Poderíamos pensar que a suposta docilidade, afeição e cooperação
interpessoal atribuídas às pessoas com síndrome de Down, poderiam ser
consideradas como respostas de concordância e submissão às exigências e
solicitações do meio, moldadas por condições de aprendizagem específicas
apreendidas no contexto familiar, escolar e social.

Portanto, será imprescindível para que a pessoa com síndrome de Down tenha
desenvolvido suas habilidades pessoais para manter-se motivado numa tarefa,
querer crescer, ser responsável, desejar aprender e crescer, tendo seus
próprios sonhos de futuro.

As habilidades sociais são comportamentos específicos que resultam em


interações positivas e abrangem tanto comportamentos verbais, quanto não-
verbais, necessários para uma comunicação interpessoal efetiva. Estas
habilidades são comportamentos aprendidos e socialmente aceitáveis que
permitem a pessoa possa interagir com os outros, evitando ou fugindo de
comportamentos não aceitáveis como a agressividade, auto sabotagem e a
destrutividade, que resultem em interações sociais negativas. Tais habilidades,
se presentes no repertório de crianças e adolescentes, facilitam a iniciação e
manutenção de relações sociais positivas, contribuindo para a aceitação de
colegas, resultando, principalmente, em ajustamento escolar satisfatório.

As habilidades sociais também dependem das variáveis ambientais e do


aspecto cognitivo e, ainda, da interação entre esses dois aspectos.

Podemos encontrar em pessoas com síndrome de Down, déficits em


habilidades sociais que podem se expressar sob três formas: na aquisição,
quando a habilidade não ocorre; no desempenho, quando a habilidade é
apresentada em uma frequência inferior à esperada e, na fluência, quando a
habilidade é apresentada com proficiência inferior a esperada.
Alguns fatores pessoais e ambientais podem estar relacionados aos déficits de
habilidades sociais da criança, como: falta de conhecimento, restrição de
oportunidade e modelo, problemas de comportamento, ausência de feedback,
falhas de reforçamento, ansiedade interpessoal excessiva e dificuldade de
discriminação e processamento.
Citaremos algumas habilidades sociais principais que podem variar
dependendo do estilo social da pessoa com síndrome de Down. Tais
habilidades poderão apresentar-se através de comportamentos mais assertivo,
passivo ou agressivo:

Comunicação – Comportamentos de interatividade com os outros através do


diálogo, usar linguagem apropriada para idade, iniciar uma conversa, manter
contato visual, fazer perguntas, elogiar, sorrir, cantar, etc.

Cooperação – Comportamentos de colaborar, pró-atividade, executar tarefas


domésticas, manter o próprio quarto arrumado, guardar os brinquedos, enxugar
a louça, pendurar roupa no varal, etc.

Asserção Positiva – Comportamentos que geram a estima dos demais, como


aceitar idéias, pedir permissão, fazer e aceitar elogios, consolar, fazer e aceitar
carinho, dar um beijo, fazer um convite, ter iniciativa, etc.

Desenvoltura Social – Comportamentos apropriados de iniciar e manter


interações sociais para conversar, apresentar-se, fazer amigos, fazer convites,
pedir informações, juntar-se a grupos, pedir ajuda, dizer que está doente,
telefonar, usar ferramentas de comunicação da internet, etc.

Asserção de Enfrentamento – Comportamentos que expressam confiança em


lidar com estranhos e situações novas, questionar regras consideradas
injustas, relatar acidentes, pedir socorro, reconhecer seus erros, aceitar
criticas, sair de situações de risco, sair de situações abusivas, sair de situações
de brigas, sair de situações de abuso ou sedução sexual, etc.

Civilidade – Comportamentos que demonstram domínio sobre as próprias


emoções por meio de reações abertas tais como: usar “apropriadamente” o
tempo livre, responder “educadamente”, cumprimentar, agradecer, pedir
permissão, desculpar-se, despir-se em local apropriado, prestar atenção, evitar
atender pedidos abusivos, usar tom de voz apropriado, dividir seus pertences,
oferecer ajuda, etc.

Autocontrole – Comportamentos que demonstram domínio sobre as próprias


emoções, por meio principalmente de reações encobertas, tais como:
autocontrole de irritação ou raiva em situações de discussão, conflito, críticas,
discordâncias e cooperação.

Desta maneira, a construção da identidade adulta está intimamente ligada à


função de trabalhar, executar tarefas e se relacionar com pessoas, uma vez
que a entrada no mundo do trabalho representa a entrada no mundo adulto e
para tal este repertório de habilidades pessoais e sociais precisam ser
desenvolvidas nas pessoas com síndrome de Down.

Este processo é difícil para todos e ainda mais para as pessoas com síndrome
de Down. Para eles, como para todo trabalhador, como atividade humana,
trabalhar e ter um emprego significa ter uma forma de cobrir e atender as suas
necessidades pessoais, econômicas e relacionais.
O trabalho não é apenas sobre fazer um trabalho ou ter um emprego, mas
“internalizar” o papel do trabalhador como um ser humano adulto capaz,
reconhecendo o seu poder, seus valores, competências, assumindo as
responsabilidades, deveres e direitos envolvidos e, por esse papel, aceitando
os outros e fazendo parte da sociedade com um ser humano independente e
autônomo.

Portanto, precisamos considerar que há uma estreita relação de trabalho com a


identidade adulta, não basta somente olharmos para as atividades cotidianas,
mas é saber como foi transformada a identidade de “Eu” do sujeito humano,
que passará a ser “Eu sou”, o doutor, o jardineiro, o advogado, o professor, o
ajudante, a recepcionista, o garçon, etc.

Isto posto, então resta-nos outra questão:

– Qual o papel social, identidade profissional que uma comunidade, sociedade


é capaz de oferecer a uma pessoa com síndrome de Down?

Este é o desafio. Não temos. Está em construção do processo da inclusão


social, na desconstrução dos estigmas sociais, na mudança das posturas
atitudinais, na elaboração e enfrentamento dos nossos estereótipos
preconceitos e no nosso próprio narcisismo.

Por isso, é muito importante para os pais e profissionais ajudarmos as pessoas


com síndrome de Down na aquisição das habilidades pessoais e sociais,
desenvolvendo sua segurança pessoal e expressividade social, incentivando-
os no desenvolvimento de suas competências pessoais e profissionais, que
serão o caminho para ingressarem no mundo do trabalho e consequentemente
no mundo adulto.

O ser humano, à medida que cresce fisicamente e do ponto de vista


psicossocial, assume muitas e variadas habilidades para enfrentar e superar as
situações rotineiras, os conflitos, os desafios e as crises impostas pela vida, e
da mesma maneira as pessoas com síndrome de Down também irão enfrentar,
mas precisam de manejos funcionais para conseguirem êxito.

Pelo exposto, há necessidade urgente que pessoas com síndrome de Down


estejam inseridas num contexto familiar tendo um projeto de vida futura e
precisam que sua escolarização seja fundamentada num Currículo Funcional
Natural com um Plano Individual de Ensino. Estes enfoques contemplam as
habilidades pessoais e sociais da pessoa com síndrome de Down, desta
maneira poderão desenvolver suas competências e habilidades ingressando no
mundo adulto.

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