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Universidade do Estado do Rio Grande do Norte

Campus Avançado de Pau dos Ferros

Neurolinguística

Disciplina: Psicolinguística
Prof.ª Dr.ª Geise Teixeira
O que é Neurolinguística?

● Estudo das relações entre cérebro e linguagem, com enfoque no campo das
patologias cerebrais, relacionando determinadas estruturas do cérebro com distúrbios
ou aspectos específicos da linguagem (Caplan, 1987);
● Tem como objetivo teorizar sobre “como” a linguagem é processada no cérebro
(Menn & Obler, 1990).
● O problema cérebro-linguagem toma forma no início do século XIX.
Afasia e Neurolinguística

● Desde a Antiguidade focalizava-se o cérebro


como órgão da sensação e da inteligência;
● Apenas no século XIX surge o estudo
“científico” do cérebro;
● Descoberta das localizações cerebrais;
● Interesse pela cognição, quando a psique
(personificação da alma) passa a ser vista
como um atributo propriamente humano (e não
mais divino, como o era para os antigos).

Escultura de António Canova (1757-1822)


Teoria dos Ventrículos
(Galeno)
“De acordo com essa teoria, apenas algumas
faculdades mentais (senso comum, razão e
memória) teriam uma realização cerebral mais ou
menos circunscrita a determinadas regiões: a
linguagem não tinha uma realidade nosológica
(isto é, não fazia parte das evidências de sequelas
de distúrbios cerebrais) simplesmente porque não
existia para os estudiosos (Marx, 1966). Ou seja,
ela era ‘invisível‘ porque não se considerava até
então que estava localizada no cérebro” (p. 149).
● 1861 - Paul Broca descreveu os primeiros
casos de afasia motora, que afetaria
basicamente o aspecto expressivo da
linguagem;
● Gall introduziu a linguagem entre as faculdades
mentais e morais (37) que estariam localizadas
no cérebro;
● Sua doutrina recebeu o nome de Frenologia;
Assim, o lugar ontológico da alma desviou-se
para o cérebro;
Sobre as
Afasias
Sobre as Afasias

● Segundo Coudry (1988), a afasia é uma perturbação da linguagem em que há


alterações de mecanimos linguísticos em todos os níveis, tanto do seu aspecto
produtivo (relacionado com a produção da fala), quanto interpretativo (relacionado com
a compreensão e com o reconhecimento dos sentidos);
● Causada por lesão estrutural adquira no Sistema Nervoso Central, em virtude de
acidentes vasculares cerebrais (AVCs), traumatismos crânio-encefálicos (TCEs) ou
tumores;
● O sujeito que tem afasia tem também uma lesão no cérebro, causando perturbação de
outros processos cognitivos.
Primeiras teorizações

● Médicos e neuroplatologistas - primeiros a diagnosticar e classificar as afasias;


● A institucionalização inicial do estudo das afasias no terreno da Neurologia fez com que
fosse afastado tudo aquilo que envolvia seus aspectos socioculturais, ideológicos,
afetivos;
● “A fala, em seu contexto fonético fonológico, ficou de fora dos problemas afásicos
(como estava, no início, de fora da própria linguística), já que era considerada uma
realização simplesmente motora (o que equivale dizer não-simbólica, ou
não-linguística, e sim meramente fisiológica)” (MORATO, 2004, p. 151).
● A afasia é acompanhada de alterações de outros processos cognitivos e sinais
neurológicos:

○ hemiplegia: paralisia de um dos lados do corpo;


○ apraxia: distúrbio da gestualidade;
○ agnosia: distúrbio do reconhecimento;
○ anosognosia: falta de consciência do problema por parte do sujeito
cérebro-lesado.

“Não se trata de afasia a alteração de linguagem que se manifesta nas psicopatologias (como
a esquizofrenia ou o autismo), nas deficiências mentais e auditivas ou nas demências, ou
mesmo nas amnésias” (MORATO, 2004, p. 154).
Tipos de Afasia

● Afasia de Wernicke (receptiva): as pessoas têm dificuldade em compreender a


linguagem e a escrita. Costumam falar fluentemente e com um ritmo natural, mas as
frases saem formuladas com palavras confusas (por vezes referida como salada de
palavras). Podem não saber que estão falando coisas sem sentido.
● Afasia de Broca (expressiva): as pessoas têm dificuldade em encontrar as palavras ao
falar. Articulam as palavras lentamente e com grande esforço. Também não há ritmo e
ênfase normais da fala. Elas têm dificuldade em repetir frases. A maioria das pessoas
afetadas também são incapazes de escrever palavras.
A afasia também pode envolver:

● A perda da capacidade de compreender as palavras escritas (alexia);


● A perda da capacidade de recordar ou dizer os nomes dos objetos (anomia):
algumas pessoas com anomia não conseguem lembrar nem parte da palavra. Outras
têm uma palavra em mente, mas não conseguem pronunciá-la;
● Perda da capacidade de repetir palavras, frases ou orações (afasia de condução):
as pessoas com afasia de condução não conseguem repetir o que ouvem. Costumam
utilizar a palavra errada ou utilizar combinações de palavras que não fazem sentido;
● Perda de quase toda a capacidade de compreender, falar ou escrever a linguagem
(afasia global): o indivíduo talvez possa verbalizar imprecações, pois o lado direito do
cérebro, que controla as emoções, não está lesionado.
Qual é o impacto da afasia sobre as possibilidades
interativas dos sujeitos cérebro-lesado?
“Do ponto de linguístico (língua oral e escrita), podem faltar-lhe as palavras de maneira
importante (anomias, dificuldades de selecionar ou evocar palavras), o que resulta muitas
vezes em substituições ou trocas inesperadas e incompreensíveis de palavras inteiras
ou de partes delas (são as parafrasias, que têm diversas naturezas: fonético fonológicas,
semânticas, morfológicas), longas pausas ou hesitações, muitas vezes seguidas de
desalentado abandono do turno de fala ou do tópico conversacional, e, como da perda do
“fio da meada”; pode também acontecer de sua fala resultar muito laboriosa (alterações
apráxicas, fono-articulatórias) ou ter um aspecto ‘telegráfico’, em função de dificuldades de
ordem sintática (como o agramatismo) ou semântico-lexical (como as dificuldades de encontrar
palavras)” (MORATO, 2004, p. 155).
● Dificuldades para objetivar ou “controlar” os sentidos e a forma de expressá-los tendo em
vista os contextos e as regras (pragmáticas e socioculturais) que presidem a utilização
da linguagem:

○ confabular: criar falsas informações ou falsas memórias;


○ produzir circunlóquios;
○ apresentar fala jargonafásica: fala permeada de abundantes parafasias de
diversas naturezas, de modo a parecer ininteligível para o interlocutor;
○ atuar de maneira irrelevante com relação à atividade inferencial
(subentendidos, implícitos, pressupostos, etc.).
Estudo das afasias no âmbito da linguística

● Jakobson – primeiro linguista a se dedicar sistematicamente aos estudos das afasias;


● Baseou-se na classificação neuropsicológica de Luria, que estipulou 6 formas de
afasia (eferente, aferente, sensorial, dinâmica, semântica e amnésia);
● Para Luria, as afasias afetam distintamente os aspectos motores e sensoriais
(expressivos e receptivos), voltados para as tarefas de articular e compreender a
linguagem, que pode ser alterada em suas diferentes modalidades (fala, audição, leitura
e escrita), ainda que de maneira seletiva;
● Jakobson estava interessado em construir uma teoria geral da linguagem, uma teoria
que explicasse no seu todo: aquisição, funcionamento, estrutura, alterações, etc.
Jakobson ampliou, tendo como pano de fundo o estruturalismo e o funcionalismo linguístico,
algumas ideias de Saussure, trabalhando teórica e metodologicamente com dicotomias
clássicas:

- sintagmático/metonímico: responsável pela combinação de unidades.


- paradigmático/metafórico: responsável pela seleção de unidades.
Sintagma

● Relações associativas simultâneas, “in praesentia”.


● São relações que dão coesão aos elementos linguísticos.

Exemplo:

ficar com
fiquei com sua caneta
sua caneta ficou comigo
Paradigma

● Relações associativas “in absentia”, que permitem comparar elementos presentes com
aqueles ausentes.

Exemplo: fato – pato – tato – cato – bato

● Nas afasias, segundo Jakobson, “um ou outro desses dois processos é reduzido ou
totalmente bloqueado” (1954).
Exemplos de quadros afásicos

Afasia motora - comprometem aspectos basicamente linguísticos (alterações


fonético-fonológicas e sintáticas.

Sujeito 1:
- apresenta inúmeros problemas fonéticos (articulatórios);
- implementação fonética (gerando produções como [‘pow.tsu.,go] por “pêssego”);
- fonológicos (tanto na fala quanto na escrita), com produção parafásica do tipo “ceolho”
por “coelho”;
- apraxia buco-facial grave (alteração na programação de gestos essenciais à linguagem
oral), fazia com que ele produzisse segmentos não encontrados no inventário fonológico
do português.
Sujeito 2:

- apraxia buco-facial menos grave, não afetando o inventário fonológico do português;


- falta de iniciativa verbal acentuada: impedia de iniciar espontaneamente sua produção (a não
ser séries de números ou formas como “Santa Maria!, por exemplo);
- capaz de cantar músicas já memorizadas sem as ocorrências de alterações fonéticas (o que
mostra que era capaz de articular sequências de gestos articulatórios sem problemas)

Os sujeitos que apresentavam alterações fonoarticulatórias indicam alguma alteração tanto na


ativação da representação léxico-fonológica das palavras (“perdífia” por “perfídia”, por exemplo),
quanto na “leitura do endereçamento fonológico” (o sujeito não acessa a palavra-alvo e a substitui,
como em “gelatina” por “geleia”, ou “selo” por “gelo”).
Exemplo de perturbações de aspectos semântico-discursivos (problemas gnósicos, de
compreensão)

Afasia do tipo posterior

Sujeito 3:

- Apresentava problemas de compreensão;


- problemas fonéticos e fonológicos, com produção verbal repleta de parafasias;
- produzia sequências sonoras que não constituem propriamente palavras da língua.
Agramatismo

● Distúrbio sintático que afeta a linguagem do sujeito afásico:


○ apagamento de palavras funcionais (conjunções, preposições, artigos, pronomes,
etc.);
○ perda de flexão verbal (substituída pela forma nominal do verbo);
○ perda da concordância de pessoa, número e gênero.
Exemplo:
Inv. “A carta estava cheia de erros” (sentença gramatical, bem formada).
P. Ruim.
Inv. Por que está ruim?
P. Carta, erros, não pode, né?
Outro exemplo usando provérbios

O seguinte provérbio foi apresentado a sujeitos afásicos para que fosse interpretado ou
incluído em alguma situação de uso:

“Feliz foi Adão que não teve sogra”


Sujeito 1: É um provérbio conhecido, né? É muito usado, que é falar mal da sogra,
então eu não falo mal da sogra, eu gosto da sogra, eu tive três sogras, né? Então,
dá para perceber, eu tive sorte com sogras, é grande amiga, uma morreu, outra tá
viva, e a terceira mora perto de casa. Me dou bem com as sogras, esse ditado não
é para mim.
Sujeito 2: “Feliz foi Adão que não teve sogra”, eu, eu, eu eu da minha sogra eu
falo, porque ela era uma mulher, é, é distinta que ela, ela foi uma herína, eu falava
da minha sogra, eu não posso falar da minha sogra, não é, é teve dez filhos e a
mulher que casou, casaram né, e também não posso falar da minha sogra porque
ela fez também uma, ela, ela fez a mulher que eu tenho, ela um, ela uma
batalhadora, eu não posso falar da sogra. (...) É que Adão não teve sogra porque
ele, ele, ele, Deus não deu sogra pra ele, ele. Adão foi Deus que a mulher pra ele,
mas porque ele não teve sogra, porque ele foi o homem que Deus mandou a
mulher que deu pra ele. Ele não teve sogra.
Sujeito 3: (após ouvir o provérbio, indagando à investigadora):

Ah é, ele não se casou?


Para ser interpretado, esse provérbio exige:

● conhecimento enciclopédico acerca de quem foi Adão


● conhecimento discursivo em torno do qual circula o conceito de sogra em nossa
sociedade

“(...) não basta o conhecimento semântico-linguístico para atuar com a produção e a


interpretação de sentido” (MORATO, 2004, p. 167)
“(...) o estudo da afasia é fundamental para o conhecimento da linguagem, visto que as
dissociações e seletividades que ele explica ou indica permitem a elaboração de hipóteses que
a observação do processamento normal não faz mais que apenas sugerir. Que numerosos
modelos estejam aptos a descrever a linguagem não implica forçosamente que possam
explicá-la. Além disso, o interesse precípuo da Neurolinguística no ambiente clínico não é
exatamente medir ou diagnosticar a produção afásica, procurando revelar as diferenças
entre o normal e o patológico. Seu trabalho, antes, é destacar o que está implicado no
funcionamento patológico, muitas vezes ocultado pelo fato clínico. Nesse caso, é preciso
‘ver o invisível’, como diz Foucault (1977)” (MORATO, 2004, p. 162).
Bibliografia

MORATO, E. Neurolinguística. In: MUSSALIM, Fernanda; BENTES, Anna Christina (Orgs.). Introdução à
linguística: domínios e fronteiras. Vol. 2. 4.ª. ed. São Paulo: Cortez, 2004, pp. 143-170.
Exercícios
1. Considerando o impacto das afasias na produção e compreensão da linguagem, discuta
como o conhecimento sobre as patologias da linguagem pode auxiliar os professores no
ensino da língua portuguesa para alunos com dificuldades de comunicação. Quais estratégias
pedagógicas podem ser adotadas para promover a inclusão e o desenvolvimento linguístico
desses alunos?

2. As afasias podem afetar diferentes aspectos da linguagem, como a sintaxe, o léxico e a


semântica. Explique como o entendimento dessas alterações linguísticas pode influenciar o
ensino da língua portuguesa, especialmente no que diz respeito à compreensão de textos, à
produção escrita e à interpretação oral. Como os professores podem adaptar suas práticas de
ensino para atender às necessidades específicas dos alunos afásicos?

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