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Capítulo 4. Cinco Lugares Do Impacto de Exclusão Social (2005)
Capítulo 4. Cinco Lugares Do Impacto de Exclusão Social (2005)
Magalhães
Stephen R. Stoer
Edições Afrontamento
Título «A Diferença Somos Nós»
A Gestão da Mudança Social e as Políticas Educativas e Sociais
Autor António M. Magalhães; Stephen R. Stoer
© 2005, Autores e Edições Afrontamento
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Edição Edições Afrontamento/ Rua Costa Cabral, 859/ 4200-225 Porto/ www.edicoesafrontamento.pt
Colecção Biblioteca das Ciências Socias/ Ciências da Educação/ 21
Nº de edição ???
ISBN 972-36-0761-1
Depósito legal 225805/ 05
Impressão e acabamento Rainho & Neves Lda./ Santa Maria da Feira
Setembro de 2005
C ÍNDICE
APÍTULO
165 Conclusão
169 Bibliografia
C A PINTRODUÇÃO
ÍTULO
O discurso científico
e a relação com a diferença
Não é possível afirmar que exista um padrão único através do qual a Europa, desde a
antiguidade grega, tenha determinado a sua relação práxica e intelectual com o mundo.
Não é possível também afirmar que as narrativas que legitimaram a relação de poder face
às diferenças sociais e culturais, com que interna e externamente nos fomos confrontando,
sejam de uma só natureza e de um só tipo. Ao longo da história das sociedades ocidentais
foram-se desenvolvendo e implementando diferentes matizes e padrões de relação com as
mencionadas diferenças, consoante não só a episteme dominante – medieval, renascentista,
moderna… – mas também consoante as conjunturas. Por exemplo, o modo de pensar as
relações sociais durante o século XIX foi objecto não só da perspectiva iluminista, e da sua
mais ou menos dominante deriva positivista, mas também da «rebelião romântica», para
nos exprimirmos como Shweder (1997). É, porém, inegável que foi a matriz racional-cien-
tífica que se tornou dominante como modo de apreensão do mundo, da vida e das socieda-
des. Muitas vezes, até, as rebeliões, umas mais românticas do que outras, aconteceram no
âmbito e sob a égide de um quadro epistemológico hegemónico perante o qual elas sempre
tiveram que se justificar e legitimar. Neste sentido, a explicação e a compreensão do mundo,
das diferentes formas de vida e das diferentes sociedades, sobretudo na Idade Moderna,
foram substancialmente marcadas pelo modelo «científico» de explicar e compreender.
No fundo, o «objecto» da atenção deste tipo de conhecimento foi sempre a alteridade
que, pelo saber, se pretende delimitar, categorizar e, em última instância, governar. A
antropologia cultural e a psiquiatria, para mencionarmos apenas estes dois «olhares»,
ecoaram no seu próprio corpus não só a deriva racionalista-funcionalista, como também
alguma deriva romântica, dado que a diferença externa (sobretudo objecto da antropolo-
gia cultural) e a interna (cerne da preocupação da psiquiatria e da medicina em geral) sur-
giram, enquanto incomensurabilidade, tantas vezes sob o apelo da diferença exótica, à la
Gaugin, como desafios ao(s) quadro(s) epistemológicos e socioculturais.
O que parece ser actualmente incontestado é o facto de haver uma estreita consonân-
cia paradigmática entre o saber científico acerca das coisas/ diferenças e a necessidade de
8 «A Diferença Somos Nós»
A palavra de ordem de Lugard Find the chief!, retomada por Malinowski e seus dis-
cípulos, estará frequentemente na origem de numerosas pesquisas de campo, consagra-
das àquilo a que mais tarde se denominará de «antropologia política». Porque a própria
(1) «Tendência mais conservadora do europeu, campo de acção e de pesquisas maiores, devido às pos-
sessões africanas e asiáticas (…). Assim, houve lugar a uma manifesta conservação do termo Etnologia,
sem que, por outro lado, se não aceitasse a expressão Antropologia Cultural (…)» (Lima, Martinez e Filho,
1982: 28).
Introdução 9
É paradoxal que numa altura em que toda a ênfase parece ser colocada na questão da
inclusão, na educação inclusiva e na chamada «sociedade inclusiva», a exclusão surja como
sendo a norma. E isto parece ser verdade, a menos que se assuma como ponto de partida
a ideia de que o mercado é a instância que, na emergente ontologia social2, define a inclu-
(2) Por ontologia social entendemos o modo como, nos diferentes contextos temporais, as relações
sociais são vividas, concebidas e explicadas/ compreendidas. Desde o senso comum às ciências sociais que
um dado tipo de ontologia social preside à organização dessas relações, ora como «facto social», ora como
ordem social desejável (ver também capítulo 4), quer dizer, em todos os casos se identifica o que é uma
relação social e a sua legitimidade.
Introdução 11
(3) Por «localismo globalizado», Santos (1995) entende a redimensionação de um fenómeno local para
um nível global, sem que, com isso, os actores sociais nele envolvidos sejam integrados. O exemplo do
samba, nascido nas favelas brasileiras, é ilustrativo de um «localismo globalizado», ou o do Vinho do Porto
que, circulando como mercadoria, só em negativo evidencia as condições difíceis dos camponeses do
Douro. Como «globalismo localizado» o autor refere fenómenos de circulação global de capital que arti-
culam os locais. Como exemplo, pode adiantar-se as empresas transnacionais da indústria do turismo que
transformam pela sua acção o «local» numa mercadoria (as pirâmides do Egipto, Pisa…)
12 «A Diferença Somos Nós»
O que é que significa este reposicionamento do mercado no que diz respeito à redefi-
nição da elaboração das políticas educativas tendo como objectivo a inclusão? O que pre-
tendemos com o nosso argumento ao longo deste livro é pôr em causa a ideia segundo a
qual a inclusão se deve desenvolver com base na lógica de que quem não é consumidor é
excluído. Como adiante defenderemos, a reconfiguração da esfera pública poderá assumir-
-se como um espaço de regulação, um espaço em que a justiça redistributiva esteja ligada
ao reconhecimento das diferenças. Para designar esta possibilidade, utilizaremos a metá-
fora, que fomos colher a Geertz, do Bazar de Kuwait (ver capítulo 5).
ORGANIZAÇÃO DO LIVRO
O livro está organizado em três partes. A Parte I aborda a questão da elaboração das
políticas, sociais e educativas, numa época de globalização, quer em termos da recompo-
sição dos próprios campos social e educativo, quer no que diz respeito aos actores sociais
mais envolvidos nesse processo de elaboração – sobretudo os actores que designamos
como a nova classe média nova. Trata-se, no essencial, de uma reconfiguração do triplo
mandato constituído, nas palavras do sociólogo de educação R. Dale (1989), pelas tarefas
principais de um moderno sistema educativo, nomeadamente o desenvolvimento indivi-
dual, a formação de cidadãos e a preparação para o trabalho. Quais os efeitos do capita-
lismo informático e da sociedade organizada em rede, por um lado, e da centralidade do
conhecimento nos processos de produção, distribuição e consumo, por outro, sobre essas
três componentes do mandato educativo? Eis a questão que constitui o eixo principal da
primeira parte deste livro.
Uma vez estabelecido o contexto, a Parte II do livro direcciona o seu olhar para a ques-
tão da diferença, no sentido em que ela é acima, na primeira parte desta introdução, teo-
rizada. Trata-se de uma tentativa de levar a sério a diferença, adoptando a já mencionada
estratégia da sua incomensuralibilidade. Esta estratégia desenvolve-se, por um lado, atra-
vés da abordagem do fenómeno de exclusão/inclusão social, uma problemática que resulta
dos processos analisados na Parte I do livro, que se manifesta nos lugares do corpo, do tra-
balho, da cidadania, da identidade e do território. Por outro lado, a mesma estratégia da
incomensurabilidade da diferença também se desenvolve através da abordagem das novas
cidadanias que, com base em projectos de identidade, reclamam o que constitui para todos
os efeitos um repensar do conceito de cidadania, não a partir do território nacional ou da
ancestralidade dos seus habitantes, mas, antes (e como acima se disse), a partir daquilo
que os indivíduos e grupos têm de diferente, isto é, a base política a que já nos referimos
como «a diferença somos nós».
A Parte III do livro explora um dos novos terrenos dessa cidadania «reclamada», cen-
trando o seu olhar no processo de construção europeia. Aqui, a assunção de «a diferença
somos nós» transforma-se numa outra: «a Europa somos nós». Heuristicamente, quatro
metáforas são apresentadas para repensar a construção europeia, quer como projecto polí-
14 «A Diferença Somos Nós»
Vejo o trabalho dos cientistas sociais como uma tarefa de desmontagem. Vejo o tra-
balho dos políticos e dos administradores como a reconstituição daquilo que foi des-
montado. Os cientistas sociais devem detectar as ambiguidades e a multiplicadade de dis-
putas, impactos, valores e estruturas. Na verdade, podem ir ainda mais além, ao mostrar
o que poderiam ser as consequências da construção de sistemas alternativos ou da manu-
tenção daqueles existentes. São negociantes de ambiguidades. Os administradores não
podem ignorar estas ambiguidades; em vez disso, têm de as pôr a funcionar. Manter as
opções em aberto é, de facto, uma utilização construtiva de ambiguidade, mas, em última
análise, os adminstradores têm de tomar decisões e a palavra decidir significa, literal-
mente, cortar com as opções. Enquanto o cientista social pode preocupar-se com o estudo
Mapeando decisões no campo da educação numa época de globalização 21
das coisas em si, o lema do administrador tem de ser «Eu devo agir, por isso penso». Não
pode ser o contrário. (Kogan, 1979, citado em Dale, 1986: 47)
O que é de enfatizar é que, seja qual for o projecto, a decisão política é um texto dentro
de um (con)texto, sem determinação directa entre um e outro. Os anglo-saxónicos pos-
suem um recurso linguístico que permite distinguir entre a concepção ampla de uma polí-
tica – politics – e as políticas concretas que a materializam – policies. A primeira é a con-
cepção orientadora da mudança social a implementar, as segundas são elaboradas a partir
da primeira enquanto seu enquadramento orientador1. Os trabalhos sobre a decisão e o
seu processo assumem aparentemente esta partição e instalam-se essencialmente nas
segundas, nas policies, nas políticas concretas e, frequentemente, no carácter técnico e
pragmático da sua implementação ou na sua justificação e legitimação no quadro das
metas estabelecidas como quadro político (politics). Ver Quadro 1, a coluna referente à
análise das políticas.
Temos, assim, três níveis de análise que não só se articulam entre si como cada um
possui características e espessura políticas que os tornam de per se susceptíveis de mapea-
mento. No campo das políticas educativas, estes níves poderão ser representados da
seguinte formas:
Figura 1
}
Nível 1 POLÍTICA
Comunidade académica
Partidos Políticos
Empresários Autores e decisores
Sindicatos
Ass. Profissionais
Etc.
Nível 3 Interpretação/Implementação
Burocratas/Professores/Pais
(1) De facto, não é possível traçar uma ligação directa entre o quadro amplo da política e as políticas
concretas. Primeiro porque a sua mediação é feita por «tradutores», como os burocratas (recorde-se o
papel de Sir Humphrey na famosa série televisiva Yes Minister!), técnicos da função pública, que frequen-
temente refractam a intencionalidade do quadro amplo; em segundo lugar, porque muitas políticas têm a
sua inspiração em contextos e pressões meramente pragmáticos provenientes de lobbies, da influência de
actores-chave, etc. Contudo, a distinção/ conexão entre o quadro amplo da política e as políticas elas pró-
prias parece ser produtiva em termos heurísticos.
Mapeando decisões no campo da educação numa época de globalização 23
Por exemplo, não é raro ouvir-se determinados actores políticos defenderem o carácter
emancipatório das alternativas curriculares (Nível 2) pela concepção política que teria
estado na sua origem (Nível 1), visando a integração daqueles de quem a escola eventual-
mente já teria desistido.
As potencialidades heurísticas desta perspectiva, que recusa o limbo (no sentido de
«não-lugar» ou de «lugar branco», cf. Magalhães e Stoer, 2002) a qualquer dos níveis de
acção política, parecem ser:
No processo, o que parece ter surgido são lugares ambíguos e híbridos onde as similitudes
com as performances das instituições em ambiente de mercado e o reforço do peso e do
papel da comunidade educativa convivem lado a lado.
O segundo ponto de partida da nossa análise – o fim da legitimação das políticas por
uma narrativa fundadora – imbrica-se com o primeiro. A narrativa da modernidade, nos
seus diversos cambiantes, tinha como centro uma personagem triúnica: Homem, Razão e
História. A humanidade, instrumento e agente, depois de dominar a natureza e os seus
processos, dominaria, pelo conhecimento das suas leis, a sociedade e conduziria a histó-
ria, isto é, a mudança social, no sentido necessário, «correcto» e desejado. Esta matriz
moderna tornou a política, enquanto acção dos governos, o reino do «domínio» da
mudança. É esta matriz que se adivinha por detrás quer do sonho positivista de uma socie-
dade cientificamente organizada, quer da realização «científica» do «socialismo cientí-
fico», para só mencionar dois exemplos.
Como se sabe, com o esboroar tanto da narrativa da modernidade como da nossa crença
nela as propostas de mudança social já não são susceptíveis de se legitimarem por narra-
ções quer filosóficas, quer científicas (Lyotard, 1989). Primeiro, porque os processos de
legitimação se pulverizaram: está-se longe de contemporaneamente se poder destacar um
actor central e privilegiado dos processos de mudança social (sejam os trabalhadores, as
mulheres, as etnias, as minorias sexuais, etc.). Os ideais emancipatórios surgem como hete-
rogéneos e, por vezes, mesmo conflituantes entre si (e.g., ser mulher e assumir os direitos
de cidadania e ser simultaneamente muçulmana tradicionalista emigrada numa sociedade
como a francesa). Não é, assim, possível estabelecer um quadro que seja ao mesmo tempo
suficientemente amplo e suficientemente específico para que o «desejável» congregue os
incomensuravelmente diferentes projectos dos múltiplos actores em presença (os anseios
de dada minoria étnica, a afirmação política de um determinado movimento social, as
reinvindicações de uma dada minoria sexual, etc.). Segundo, o aumento do conhecimento
sobre os processos de mudança social não se traduz imediatamente em domínio do social,
como bem enfatizou Giddens em As Consequências da Modernidade (1992).
Todavia, a decisão acontece sempre no interior de uma narrativa. Lyotard define a actual
condição do pensamento e da vida como sendo a do fim das grandes narrativas, condição
essa a que ele chama pós-modernidade. O Papa e os príncipes da Igreja decidiam fundados
na centralidade de Deus, nos dogmas teológicos e nos cânones eclesiáticos. Decidir era acti-
var a grande narrativa teológica. A partir do século XVIII é a Razão que irá assumir o papel
da personagem principal no âmbito da grande narrativa da modernidade. Esta possuía,
contudo, duas faces: o Estado e a Humanidade. Hegel preconizou no seu sistema filosófico
a união fundamental do Estado, do Homem e da Razão. Decidir era veicular a mudança no
sentido das leis que a regulavam (as leis da história). Na sua matriz mais hegeliana, o mar-
xismo prometia também dar um sentido à história, e, neste sentido, decidir era promover
o andamento da roda da história e assumir colectiva e individualmente essa direcção.
Com o fim das grandes narrativas foi como se a mudança tivesse enlouquecido, rebe-
lando-se contra as leis com que o historicismo a pretendia dominar, contra a sua raciona-
Mapeando decisões no campo da educação numa época de globalização 25
lidade interna. Invalidará isto a afirmação segundo o qual a decisão só acontece no seio de
uma narrativa? Não, porque o que se perdeu foi o poder fundador nas metanarrativas, das
grandes narrativas. As «pequenas» narrativas permanecem no seu papel central de identi-
ficar e dar sentido. No dizer de Somers e Gibson, os conceitos de narrativa e narratividade
são conceitos de epistemologia social e ontologia social que «estabelecem que é através da
narratividade que podemos saber e dar sentido ao mundo social, e é através das narrativas
e da narratividade que construímos as nossas identidades sociais» (Somers e Gibson, 1996:
58-59).
REFLEXIVIDADE E LOUCURA
No trabalho acima referido (cf. Stoer, Cortesão e Magalhães, 1998), sugeríamos que à
matriz da concepção da política como domínio da mudança se parece substituir uma outra
em que a mudança surge como susceptível de ser gerida, pilotada ou surfada:
(2) Embora tenha que ser dito que a extraordinária desigualdade da capacidade para utilizar este
espaço mundial levanta dúvidas acerca do adjectivo «mundial».
(3) Para uma tentativa de mapear o espaço sobre o qual assentam as decisões em educação, ver
Cortesão e Stoer (2001), que fornecem uma cartografia da transnacionalização do campo da educação em
Portugal. Ver também a caracterização elaborada por J. A. Correia das ideologias educativas dos últimos
25 anos em Portugal (cf. Correia, 1999).
28 «A Diferença Somos Nós»
de sucessivas traduções, isto é, quando passam pelos três níveis de decisão a que acima
nos referimos.
Com isto em mente, e no sentido de proporcionar a descodificação das características
estruturantes (frequentemente não explícitas) de diferentes tipos de decisão em educação,
criou-se um dispositivo para analisar as decisões em educação. Este procura fornecer uma
caracterização genérica destas num contínuo que se distende entre um topos emancipa-
tório e um topos regulatório. Para começar, talvez seja útil explicar a estrutura deste ins-
trumento e tornar explícito como é que ele pode fornecer a caracterização das decisões em
educação.
O «surfar», o «pilotar» e o «gerir» deste tipo de decisões podem ser considerados como
sendo três tipos-ideais. Estes podem ser assumidos colectivamente pelas instituições ou
individualmente pelos actores sociais no contexto de uma agenda que se estabelece no
quadro em que a decisão é tomada. Como acima se disse, é este quadro que determina que
questões podem efectivamente surgir na agenda do processo de tomada de decisão4. Os
parâmetros constituídos para a análise dos três tipos-ideais da tomada de decisão são os
seguintes:
Quando estes parâmetros são colocados num eixo e as formas de lidar com a mudança
social através da tomada de decisão são colocadas noutro, o resultado é aquele que pode
ser visto no quadro seguinte:
(4) Como argumentámos noutro lugar (e.g. Stoer e Cortesão, 1999; 2001), a pobreza ou riqueza deste
espaço dependerá em grande parte do grau do desenvolvimento do que Bernstein chama o campo de
recontextualização pedagógica (1990).
(5) Utilizamos aqui a designação de Dale para os projectos de estudo da política educativa. Reconhe-
cemos que se trata de uma utilização que extrapola a intenção quer de Dale, quer daquilo que cada um dos
projectos se propõe. Todavia, o nosso propósito de construir um dispositivo heurístico encorajou-nos a
esta utilização algo transgressora dos conceitos.
Mapeando decisões no campo da educação numa época de globalização 29
Pensamos ser possível com este dispositivo caracterizar uma decisão como sendo do
primeiro tipo (surfar) quando esta se situa dentro de um quadro operacional de adminis-
tração social, visando a melhoria e o aperfeiçoamento sociais, realizados, frequentemente,
através de processos de engenharia social. Este tipo de decisão consiste na tomada de
medidas, sobretudo de curto prazo, medidas estas que são consideradas válidas sem tomar
em conta o contexto mais amplo em que ocorrem, recorrendo a múltiplas tácticas no sen-
tido, sobretudo, de eliminar os sintomas percebidos como sendo indesejáveis. Pilotar sig-
nifica uma decisão que procura caminhos para assegurar a implementação eficiente e eficaz
de políticas sociais, independentemente do seu conteúdo. Com este tipo de decisão, apesar
de um reconhecimento inicial das características do contexto, o conhecimento acerca desse
contexto não é determinante para as opções que são tomadas com base na escolha táctica
das estratégias. O terceiro tipo de decisão representa um exercício de gestão da mudança
social no sentido em que é uma decisão informada pelas preocupações das Ciências
Sociais. Neste caso, estamos perante decisões que são tomadas com o olhar posto no longo
prazo e fundadas numa consideração sistemática do contexto e em que, predominante-
mente, se recorre a estratégias para confrontar problemas que, dessa forma, deixam de ser
sociais para passarem a ser sociológicos.
Em suma, trata-se de uma caracterização de três tipos-ideais de tomada de decisão no
actual contexto socioeconómico e político que, como se sabe, encerra uma série de cons-
trangimentos e limitações dentro dos quais os actores sociais e as institutições se movem
com maior ou menor facilidade. Quando se analisa uma decisão concreta através desta
grelha de análise, provavelmente verificar-se-á que essa decisão não revela exclusivamente
as características atribuídas apenas a «surfar», a «pilotar» ou a «gerir», isoladamente con-
30 «A Diferença Somos Nós»
siderados. É, por isso, importante enfatizar que nenhum dos parâmetros indicados é exclu-
sivamente marcado por apenas um destes tipos-ideais. Assim como também é improvável
que eles estejam, em todas as suas características, presentes no decurso de uma dada
tomada de decisão em todos os três tipos de decisão. Por exemplo, uma decisão pode ser
tomada sob pressão da urgência das circunstâncias no sentido de obstar a certos sintomas,
mas ser estruturada com base nas características do contexto. Outra decisão pode ser
informada pelas características do pensamento científico, visando por isso ir até às raízes
do problema a ser confrontado, mas ser obrigada a responder no médio prazo. É muito
possível, portanto, que em cada processo de tomada de decisão concreto se possa identifi-
car uma mistura de características que no Quadro 2 são atribuídas selectivamente a cada
um dos tipos de decisão per se.
CONCLUSÃO
No sentido de dar conteúdo à redefinição da gestão política dos sistemas sociais, parece-
-nos importante referir a reconfiguração do mandato endereçado ao sistema educativo por
parte da «nova classe média nova». De facto, a classe média, quer a «antiga», quer a «nova»
(Bernstein, 1978), que foi o sustentáculo sociológico do fordismo, do keynesianismo e do
Estado-Providência, tem vindo a apresentar importantes alterações nas suas estratégias
políticas. Neste capítulo, argumentaremos que as alterações introduzidas pela emergência
de novas formas de produção, distribuição e consumo, e pelas novas formas de circulação
do capital, volatizaram o mercado de trabalho.
(1) Por exemplo, Filomena Mónica (2001), José Manuel Fernandes (2001), Mário Pinto (2001a; 2001b),
Vital Moreira (2001), António Barreto (2001a; 2001b), Santana Castilho (2001), Guilherme Valente (2001a;
2001b) para citar apenas estes.
(2) O conhecimento reflexivamente aplicado às condições de reprodução do sistema altera as circuns-
tâncias a que primeiramente se reportava, circulando, assim, o saber sob a forma de uma dupla herme-
nêutica (Giddens, 1992: 41-42).
A «Nova Classe Média Nova» e a reconfiguração do mandato endereçado ao sistema educativo 33
Como já se sugeriu, entre os anos 1950 e 1970 a classe média nova investiu, pelo menos
nos países do centro, numa entente social que alegadamente lhe permitia consolidar e
desenvolver os seus «lugares» de classe, sobretudo em torno do capital social e cultural. O
mercado de trabalho com o qual articulava as suas estratégias era-lhe dócil, por assim
dizer, no sentido em que as carreiras familiares e escolares (dos «herdeiros») lhes garan-
tiam aí, à partida, lugares confortáveis e seguros.
O capitalismo flexível (Harvey, 1989) introduziu a partir da década de 1980 um mer-
cado de trabalho fundado na dissolução das profissões3 em competências. Só as compe-
tências são realmente susceptíveis de um uso flexível. As profissões são insustentavel-
mente «pesadas» com a sua carga grupal (sobretudo sindical) e moral (o percurso do
aprendiz ao profissional é um percurso fortemente normativo quer em termos das activi-
dades e gestos próprios das tarefas que constituem a profissão, quer em termos das condi-
ções éticas da sua execução).
Esta reestruturação do mercado de trabalho em termos de competências e a emergên-
cia de novos estilos de vida estão a reconfigurar as estratégias políticas da classe média
nova. O capital cultural e escolar, sendo ainda brandidos como arma essencial desta classe
na sua procura de assegurar os seus privilégios tradicionais no mercado de trabalho, e na
estrutura social no seu conjunto, são ressignificados no novo contexto. A diferença parece
residir no facto de que presentemente estas estratégias se articulam preferencialmente
com a flexibilidade, com a aceleração da circulação dos capitais, com a transformação do
conhecimento – e a sua circulação sob a forma de bytes – em factor central de produção e
com o mercado de trabalho assim reestruturado. Neste sentido, e tomando como referên-
cia a distinção de Castells (1996) entre «trabalho programável» e «trabalho genérico»,
pode argumentar-se que o novo mandato da classe média nova para a educação tem como
objectivo o dominar o mercado do primeiro tipo. Esta renovação do mandato endereçado
ao sistema educativo é o que transforma a classe média nova a que se referia Bernstein (ver
acima) em «nova classe média nova».
Efectivamente, Castells defende que no modelo de produção emergente,
(3) A categoria social de «profissão» surge historicamente ligada àqueles que professam uma activi-
dade nobre como o direito e a medicina, mas à medida que o capitalismo foi alargando o processo de mer-
cadorização das coisas para as pessoas essa categoria foi-se ampliando a cada vez mais áreas de actividade,
falando-se cada vez mais dos antigos ofícios como profissões. É neste sentido amplo que aqui usaremos o
termo «profissão».
34 «A Diferença Somos Nós»
Se é verdade que o mandato da classe média nova para o sistema educativo sempre
visou a solidificação das suas posições na estrutura social, o que parece distinguir a reno-
vação deste mandato é a ressignificação daquilo que por «educação» se parece entender.
Esta ressignificação parece ser modelada, por um lado, pelas dificuldades trazidas à estra-
tégia do investimento em capital escolar pela massificação da escolarização e, por outro,
pela transformação do papel do conhecimento no processo educativo. Tendo como pano de
fundo o mercado de trabalho dual4 e o facto de as escolas secundárias públicas já não
serem as «passarelles» seguras para a universidade e para os cursos de «distinção», torna-
-se mais compreensível o «arrepio» da nova classe média nova perante a perspectiva de que
às escolas do estado só vá parar, citando Filomena Mónica, o «lixo social» (1997: 19). O
processo de massificação do ensino (alunos a mais e recursos a menos), em Portugal, ou
em qualquer outro país do mundo, resolve-se através da sua democratização (mais recursos
para tornar possível o acesso para todos), mas o que parece perpassar nos discursos neo-
meritocráticos é uma implícita sugestão de que os males gerados pelo efeito combinado
entre massificação e meritocracia (fundada apenas na igualdade de oportunidades de
acesso) se resolvem apenas com mais meritocracia.
Por outro lado, é o próprio conhecimento e o seu papel educacional que está a ser
revisto. Na próxima secção debruçar-nos-emos sobre esta questão em particular; por ora
gostaríamos apenas de remeter esta transformação do papel do conhecimento para a já
referida dualização do mercado de trabalho.
«Flexibilidade» parece ser a palavra-chave na mais recente literatura desde a teoria das
organizações às teorias do management. É a capacidade de adaptação às inesperadas
mudanças nos ambientes organizacionais e a capacidade de resposta aos desafios que estas
colocam à produção e à distribuição que estão na base da exigência de se ser flexível. A
categoria social de profissão/ ocupação, definida a partir de um conjunto articulado de
gestos técnicos (fazer), respectivo saber (saber fazer) e atitudes e valores (definidos as mais
(4) Thompson defende que nos sectores económicos com maior proporção de investimento em capi-
tal do que em trabalho existe um «mercado de trabalho dual para trabalho qualificado e desqualificado no
interior da tendência mais ampla para a desqualificação» (1989: 83).
A «Nova Classe Média Nova» e a reconfiguração do mandato endereçado ao sistema educativo 35
(5) Boaventura S. Santos diz que durante este período «o pilar da emancipação torna-se cada vez mais
semelhante ao pilar da regulação. A emancipação torna-se verdadeiramente no lado cultural da regulação
[...] (Santos, 1994: 78).
(6) Veja-se, a este propósito, as entrevistas que Ball realizou a empresários britânicos (1990).
36 «A Diferença Somos Nós»
[...] ninguém se atreve – presumo que por humanidade – a rejeitar a raiz filosófica da
«integração» universal. Lindos sentimentos com certeza. Só que não estabelecer estritos
critérios de comportamento e trabalho e não excluir equivale a transformar a escola
numa espécie de extensão da rua e das famílias menos responsáveis.
A avaliação é o antídoto da aparência. É por isso que a ciência, que exige, exercita
e promove uma permanente avaliação, é uma ameaça para a velha cultura nacional. É
talvez por isso que a ciência e a cultura científica têm tanta dificuldade em emergir na
sociedade portuguesa.
38 «A Diferença Somos Nós»
Na sociedade em que vivemos exige-se que se aprenda ao longo da vida, e é bom que
todos estejamos preparados para ser avaliados em permanência: para podermos evoluir,
para que haja justiça nas relações de trabalho, para sermos uma meritocracia e não uma
sociedade clientelar, onde uma boa cunha vale mais do que uma competência compro-
vada (Público, 28 de Dezembro de 2000).
Não se trata de opor os desempenhos da escola que temos àqueles que poderíamos ter
se ela fosse mais eficiente, mas antes de reconfigurar a própria instituição escolar e, em
lugar da formação de indivíduos, esta cuidar sobretudo da sua contínua formação enquanto
trabalhador flexível.
A ideia da escola e da instituição escolar tal como a conhecemos hoje são modernas por
excelência. Elas são o produto do cruzamento do projecto do Iluminismo com o do estado-
-nação e de ambos com o capitalismo enquanto forma de organização da produção. O
Iluminismo atribuiu à instituição escolar eventualmente a função mais nobre e central do
projecto da modernidade: a formação do homem novo. Este não é já pensado como o súb-
dito de Deus e do suserano, ou aquele que rege as suas escolhas pela tradição, mas o cida-
dão-indivíduo. Acreditava-se que este, deixado aos cuidados da razão, da ciência e do saber
técnico, se erigiria como senhor da natureza, da sociedade e, logo, de si mesmo. Por seu
turno, o projecto de consolidação dos estados-nação endereçava à escola um mandato
muito forte: caber-lhe-ia a difusão da cultura, da língua e da ciência nacionais e a forma-
ção dos respectivos cidadãos.
Com a integração política pelo estado (Archer, 1979), a educação passa a estar, em
última análise, ao serviço da formação da nova forma de conceber os indivíduos: cidadãos
unidos pela língua, território, cultura, etc. Atribuía-se ao conhecimento, recontextuali-
zado pedagogicamente, uma função emancipadora. O que parece acontecer ao conheci-
mento quando recontextualizado como competência e como performance é que este deixa
de estar ao serviço da formação do indivíduo enquanto tal, e surge como algo que flui atra-
vés dele, monindo-o com capacidade de resposta a situações mais ou menos restritas e
mais ou menos complexas, mas não interferindo com a sua formação enquanto tal. Parece-
-nos ser isto que Bernstein quer dizer quando se refere a
(…) um novo conceito quer de conhecimento, quer da sua relação com aqueles que
o criam [...] O conhecimento deve fluir como dinheiro para onde quer que possa criar
vantagens e lucro. De facto, o conhecimento não é apenas como o dinheiro: é dinheiro.
[...]. O conhecimento, depois de quase dois séculos, divorciou-se da interioridade e lite-
ralmente desumanizou-se. Uma vez separado o conhecimento da interioridade, do com-
prometimento e da dedicação pessoal, então as pessoas podem ser levadas de um lado
para o outro, substituídas umas por outras e excluídas do mercado (1990: 155).
A «Nova Classe Média Nova» e a reconfiguração do mandato endereçado ao sistema educativo 39
Para escapar às armadilhas que a noção de competência parece trazer consigo, temos
vindo a analisar o debate sobre políticas educativas em Portugal (Magalhães e Stoer, 2002)
evitando entrar na discussão acerca do carácter mais ou menos amplo ou mais ou menos
restrito das competências a criar pelo processo de formação escolar. O preço a pagar
parece-nos ser o fechamento da discussão em torno do dilema das «boas» competências –
que servem a formação integral do indivíduo – e das «más» competências – aquelas que,
cativas do curto prazo, apenas capacitam para lidar com situações, frequentemente em
contexto de empresa, pouco complexas e com necessidade de baixa qualificação. Em alter-
nativa, temos procurado construir um continuum heurístico em que pedagogia e perfor-
mance (ver Magalhães e Stoer, ibidem) constituem os extremos. Ao colocarmos aí as dife-
rentes propostas de mandato para o sistema educativo, a natureza política destas parece
melhor explicitada. Dado que não se pode ser idealista em relação aos efeitos exponencial-
(7) Veja-se, a este propósito, a lapidar afirmação de Medina Carreira numa entrevista conduzida por
Paulo Emerenciano, do jornal O Expresso, publicada no «Dossier Economia» de Dezembro de 2001: «(...)
A falta de qualidade da nossa educação é altamente preocupante. (...) Tem de se começar simultaneamente
em vários sítios, mas o primeiro é a educação onde nunca se começou satisfatoriamente. (...) Tem de se
começar por rever os manuais, os métodos, a preparação e exigência dos professores e a disciplina (uma
escola não é produtiva quando andam todos a agredir os outros sem preservar os docentes). A escola é
essencial para todos e também para muitos empresários. O Marquês de Pombal tinha um vizinho francês,
empresário, Jacome Ratton, que lhe sugeriu a criação de uma escola para essa gente que era toda analfa-
beta e chamamos hoje empresários. E o Marquês mandou abrir a Aula do Comércio, uma escola onde se
aprendia os juros, os créditos, os pesos e as medidas. Acho que, em Portugal, deveríamos pensar numa
actualizada Aula do Comércio. Na minha opinião, a base essencial é, de facto, a preparação (...)».
40 «A Diferença Somos Nós»
CONCLUSÃO
(…) como qualquer sociólogo das classes sabe, uma capacidade aprendida que depende
das origens sociais e familiares especiais. A conduta reflexiva da vida, o planeamento que
A «Nova Classe Média Nova» e a reconfiguração do mandato endereçado ao sistema educativo 41
cada um faz da sua biografia e das relações sociais, dá origem a uma nova desigualdade,
a desigualdade no lidar com a insegurança e a reflexividade (Beck, 1992: 98).
Neste capítulo, centramos a nossa atenção numa das dimensões daquilo que R. Dale
designa como o mandato para o sistema educativo. Este mandato sofreu transformações
que não se limitam à formação para a cidadania e à preparação para o trabalho, implicando
também mudanças no âmbito da dimensão referente ao desenvolvimento de capacida-
des individuais. O nosso intuito aqui é o de mapear os efeitos da simultânea pressão
«de cima para baixo» e de «baixo para cima» a que quer o estado-nação quer o sistema
educativo têm vindo a estar sujeitos. Quanto à primeira, pode defender-se (cf. Bernstein,
1996) que o que está em causa é a transformação do próprio conhecimento em «moeda»
(isto é, em performatividade pura); quanto à segunda, parece haver em curso uma des-
locação do conhecimento da escola (nacional) para a comunidade (local) em que esta
última é interpretada como «a cidade educativa» (onde aparentemente prevalece um
projecto pedagógico e uma pedagogia comunicacional que se assumem como transpa-
rentes). Este capítulo pretende precisamente pôr em causa a dicotomia construída por
meio da análise das implicações, para a pedagogia e para o desenvolvimento de capacida-
des individuais, do desenvolvimento e da consolidação de um estado (e sociedade) em rede
(Castells, 1996).
De facto, da mesma forma que o conhecimento, como apropriação intelectual das forças
e das leis que regem a natureza e a sociedade, permitiria às sociedades humanas um cres-
cente domínio sobre os processos naturais e sociais, conduzindo mesmo à possibilidade de
direcionar a história (como se torna particularmente evidente, por exemplo, em algumas
perspectivas marxistas da acção política), também o indivíduo no seu desenvolvimento
veria o mundo e a sua acção sobre ele «limpo» de forças mágicas, ocultas e impossíveis de
manipular. O conhecimento racional forneceria aos indivíduos um potencial de consciên-
cia, de acção sobre o mundo e de cidadania que como que o tornaria em senhor do seu pró-
prio destino. Este optimismo surge particularmente evidente em Hegel, que assume que
a própria liberdade individual encontra a sua realização máxima na figura do cidadão, isto
é, no indivíduo enquadrado pelo estado, dado que é aí «onde a liberdade adquire a sua
objectividade e vive a sua própria realização» (1965: 11). Em última análise, do conheci-
mento do qual se esperava que emancipasse a humanidade, organizada em estados-nação,
a modernidade também esperava que tornasse os indivíduos emancipados. O conhecimento
era assumido, efectivamente, neste domínio, como o meio privilegiado por intermédio do
qual os indivíduos se reencontrariam consigo próprios, desalojando o desconhecido de
medos e de superstições por meio da assunção da sua cidadania. Desenhou-se, assim, uma
função formativa do conhecimento que conduzia o indivíduo num processo de desaliena-
ção até ao cidadão.
É neste sentido que a modernidade assume a escola – mais precisamente o sistema
escolar – como um dos instrumentos centrais da sua realização. Se vistas sob este ângulo,
as fundações dos sistemas educativos nos diferentes países europeus ganham uma consis-
tência e coerência notáveis: a produção de cidadãos por meio da educação dos indivíduos.
Os sistemas escolares foram eleitos como a forma privilegiada de construção e de consoli-
dação dos estados-nação (ver Nóvoa, 1998; Candeias, 2002).
O conhecimento surge, neste contexto, ao mesmo tempo como o mediador entre a
ignorância e o saber e como o organizador da relação entre a natureza e a humanidade. A
socialização escolar surge como o modo a partir do qual a natureza natural dos homens se
transforma em natureza social. É neste ponto que a pedagogia – como agenciadora dessa
relação – e o contrato social moderno convergem. A «viragem rousseauniana» da pedagogia
(Magalhães e Stoer, 1998) ganha, a partir deste ponto de vista, uma interessante dimensão:
ao postular que o centro do ensino/ aprendizagem não é o corpus do saber, mas a pessoa
daquele que aprende, isto é, o sujeito da aprendizagem com as respectivas características,
o que se enfatiza é a importância da mediação da pedagogia entre o natural e o social.
Por outro lado, quando a modernidade se combina com o capitalismo, o mandato diri-
gido ao sistema escolar complexifica-se e a socialização escolar assume a função algo
ambígua entre o conduzir às «luzes» e à emancipação dos indivíduos e o transformar o
Educação, sociedade em rede e redefinição do conhecimento 45
cidadão num trabalhador disciplinado. Procurando traçar a evolução histórica das relações
entre formação e emprego, Alaluf (1993) diz que, num primeiro momento, à escola com-
petiria formar «bons operários», quer dizer, competir-lhe-ia combater a «vagabundagem»,
desenvolver a disciplina, a pontualidade e a «honestidade» dos trabalhadores, pois impor-
tava criar não só operários bons, mas sobretudo importava criar bons operários.
O conhecimento assumido pelo paradigma sociocultural da modernidade como poten-
ciador da emancipação dos indivíduos surge simultaneamente como uma poderosa forma
de regulação social. Efectivamente, o conhecimento das leis da natureza e da sociedade
tornou-se um meio de domínio dessa mesma natureza e sociedade. Entre o saber e o poder
constituiu-se um laço sem precedentes na história. O capitalismo, por um lado, e os apa-
relhos de regulação social, por outro, incorporaram o conhecimento nos seus próprios
processos, racionalizando-os, quer dizer, a racionalização foi incorporada nos processos
produtivos e na organização social.
No que diz respeito ao modo de produção, o conhecimento foi integrado como factor
produtivo (como ciência e tecnologia) e no nível da própria organização do trabalho (por
exemplo, o taylorismo). No que diz respeito à organização social, o conhecimento foi inte-
grado também de duas formas: primeiro como factor de legitimação que surge o mais das
vezes com toda a evidência nas narrativas do estado-nação ou nas sagas nacionais; depois,
como elemento organizador da própria vida social, eventualmente cristalizada nas organi-
zações burocráticas do estado e da vida civil em geral. A metáfora weberiana da «gaiola de
ferro» surge, neste contexto, como bastante apropriada.
Assim, o capitalismo imbricou a sua lógica de maximização da obtenção de mais-valia
com a racionalidade cognitiva e instrumental do paradigma sociocultural da modernidade,
originando aquilo a que Santos chama a hiper-racionalização do pilar da emancipação,
que, a par do pilar da regulação, escorava narrativamente o referido paradigma. Diz Sousa
Santos que as concentrações e reduções que a modernidade fez acontecer resultam na
hipercientifização do pilar da emancipação que «desequilibrou as relações de vinculação
recíproca entre este e o pilar da regulação» (Santos, 1991: 24), no estrutural esvaziamento
do princípio da comunidade pelo do mercado e na colonização por parte deste do próprio
princípio do estado.
Esta combinação da racionalidade moderna com a lógica do capitalismo e com a da
organização estatal teve amplas consequências nos mandatos dirigidos à socialização esco-
lar, não só visível na já mencionada formação de «bons operários», mas também na pró-
pria concepção do papel do conhecimento no desenvolvimento individual. O conhecimento,
de condutor iluminado, reconfigurou-se, em três grandes etapas, como instrumento que
confere competências ao serviço dos indivíduos, sobretudo ao serviço do posicionamento
destes no mercado de trabalho. É o que, noutro trabalho (Magalhães e Stoer, 2003), desig-
námos como o processo de transformação do conhecimento em throughput (o conheci-
mento funciona como se fosse «moeda», passando pelos indivíduos sem os alterar – ver
Bernstein, 1996). A primeira fase é aquela a que já nos referimos, seguindo Alaluf, que cor-
responde à exigência sobre o sistema escolar de formação de trabalhadores «disciplinados»
46 «A Diferença Somos Nós»
e «honestos». A segunda foi a fase em que a adequação do ensino ao posto de trabalho pro-
gressivamente tomou o lugar central, num modo keynesiano de regulação em que os pro-
gressos da educação se procuravam ajustar aos da produção. A terceira, em consequência
do desemprego, sobretudo do desemprego de possuidores de diplomas, e dada a incapaci-
dade de previsão dos decisores acerca dos perfis profissionais necessários, foi delineada a
partir do contexto em que
(…) são novamente critérios de conformidade individual que são valorizados. Não é
o conteúdo de ensino que interessa ao empregador, diz-se, mas a aptidão das pessoas para
sobreviverem num meio de concorrência encarniçada. É necessário desenvolver «com-
petências de processos», ligadas mais ao «estilo de ensino» do que ao conteúdo. (Alaluf,
1993: 14-15)
a formação do critical self e a do corporate self, para utilizar os termos de Barnett (1997),
a oposição pode surgir como algo artificial, como se fosse possível desenvolver qualquer
destes selves num vácuo social e pedagógico.
O conceito de «competência» não pode ser, de facto, reduzido à sua função de articu-
lação da educação com as exigências do mercado de trabalho. Fazê-lo seria cair na oposi-
ção simplista que reedita aquela outra entre pedagogia e performance e, em termos da
concepção do desenvolvimento individual, opor de uma forma idealista (Stoer, 1994) o
processo de individuação ao de individualização (um processo em que, segundo Beck
[1992], o indivíduo reflexivo se torna senhor das suas próprias escolhas no sentido em que
assume o limite das suas possibilidades de escolha). A análise mais cuidada do conceito
permite, por um lado, uma ênfase na autonomia do campo educativo que seria grosseiro
descurar e, por outro, permite a confirmação de uma forma sustentada da tese de Harvey
(1989) da «determinação em primeira instância» da cultura pelo capitalismo flexível.
Matizando a assunção de Bernstein, segundo a qual uma determinação desse tipo anularia
a autonomia do campo pedagógico (ver 1990: 198 e 202), sugerimos que esta não se dilui
na indeterminação de possibilidades que caracteriza os actuais contextos. Os pedagogos,
que vêem na performance apenas a materialização da determinação em primeira instân-
cia pela economia, pugnam por um afastamento das práticas e dos discursos educativos
das posturas que articulam as demandas do mercado de trabalho, aprofundando dessa
forma o fosso entre pedagogia e performance (ver Magalhães e Stoer, 2002). Como se refe-
riu no capítulo anterior, será que faz sentido discutir o conceito de competência no intuito
de saber quais são as «boas» competências e quais são as «más»? Quais são as competên-
cias que estão ao serviço dos indivíduos independentemente da necessidade de estes se
posicionarem no mercado de trabalho? Não será o conceito do papel do conhecimento na
formação do indivíduo que está aqui em causa e não o de competência? Por outras pala-
vras, se o conceito de competência é um conceito de mediação, ele não pode ser esgotado
por apenas um dos campos entre os quais faz essa mediação. Do mesmo modo, não pode
ser apropriado apenas por um desses lados, quer dizer, pelo lado da pedagogia ou pelo lado
do mercado de trabalho. No primeiro caso, tratar-se-ia de uma intencional não-articulação
com as instâncias económicas; no segundo, tratar-se-ia de uma articulação funcional entre
os dois campos.
Num documento oficial, o Ministério da Educação, em 2001, procurou lidar com a
tarefa da definição do conceito de competências:
O termo «competência» pode assumir diferentes significados, pelo que importa deixar
claro em que sentido é usado no presente documento. Adopta-se aqui uma noção ampla
de competência, que integra conhecimentos, capacidades e atitudes e que pode ser
entendida como saber em acção ou em uso. Deste modo, não se trata de adicionar a um
conjunto de conhecimentos um certo número de capacidades e atitudes, mas, sim, de
promover o desenvolvimento integrado de capacidades e atitudes que viabilizam a utili-
zação dos conhecimentos em situações diversas, mais familiares ou menos familiares ao
aluno. (Ministério da Educação, 2001: 9)
48 «A Diferença Somos Nós»
(…) construção de uma nova cultura de currículo e práticas mais autónomas e flexí-
veis de gestão curricular (...). Por um lado, trata-se de um trabalho que contraria a forte tra-
dição de produção de orientações programáticas baseadas em tópicos específicos e disper-
sas pelas disciplinas e anos de escolaridade. Por outro lado, a natureza do trabalho torna-o
sempre inacabado e susceptível de melhoramentos de diversos tipos. (Abrantes, 2001, p. 3)
promove uma lógica baseada na homogeneização das diferenças (de género, de etnia, de
idade, de estilos de vida, de classe social, etc.), reduzindo as diferenças destas ao estatuto
de consumidor. Neste sentido, o conhecimento perde a sua forma e o seu conteúdo e, desse
modo, já não parece deter o potencial de promover um processo de ensino/ aprendizagem
reflexivo. Mais adiante, procuremos identificar os contornos de um novo mandato para a
política educativa europeia, tentando, precisamente, mapear algumas das implicações para
a educação das transformações que estão a acontecer no âmbito do mercado de trabalho.
Também apresentaremos, no capítulo 6, um modelo relacional de compreensão da dife-
rença no que à educação e à cidadania diz respeito, pensadas estas a partir da heteroge-
neidade das próprias diferenças.
Neste mesmo sentido de formação articulada essencialmente com o mercado, em geral,
e com o mercado de trabalho, em particular, parece ir o documento da Comissão Europeia,
de 1998 (portanto anterior ao que acima nos referimos), Ensinar e aprender: rumo à socie-
dade cognitiva. Aí, parte-se do princípio de que há «três choques motores» que estariam a
transformar de modo profundo e duradouro o contexto da actividade económica e o fun-
cionamento das nossas sociedades.
si próprio na sua colocação no mercado de trabalho – quer dizer, o da rede (Castells, 1996)
– como o coloca na responsabilidade dos seus próprios desaires. Esta forma de centração
no indivíduo do processo de formação é, no fundo, e como já se disse, uma condenação: ao
ser treinado para ser indivíduo, a individualidade transforma-se no ónus de si própria.
Esta crítica da redução do processo de formação à individualização e da educação à
articulação com a actividade económica tem sido levantada por alguns pedagogos que,
também como já se disse, clamam pela formação como forma de não-articulação com o
mercado de trabalho e com as novas exigências do tecido económico e da nova economia.
Tudo se passando, neste campo, como se o fito do processo educativo fosse o da entrega
emancipatória do indivíduo a si mesmo, visando apenas a sua formação integral, isto é, a
individuação, no sentido de emancipação.
Neste sentido, a oposição entre a educação como articulação das exigências do mercado
de trabalho e a educação como formação integral do indivíduo, independentemente dessas
exigências, surge como insustentável. Por um lado, porque os projectos dos indivíduos são
indeslindáveis das possibilidades efectivamente disponíveis, as quais, no caso, são as ofe-
recidas por um mercado de trabalho capitalista que, actualmente, se expande de uma
forma global e assume características específicas. As consequências desta expansão ainda
estão por determinar na sua totalidade, estando abertas muitas possibilidades, algumas
Educação, sociedade em rede e redefinição do conhecimento 51
destas, como pretendemos argumentar mais adiante, relacionadas com o que Castells deno-
mina a sociedade em rede (1996). Por outro lado, o trabalho, mesmo na sua forma mais
mercadorizada, e apesar da determinação em primeira instância a que nos temos referido,
não é a única e a total determinação. Reside, aliás, aí um peculiar paradoxo: ao mesmo
tempo que o capitalismo se apresenta como a «única» solução da história, mesmo o seu
fim (Fukuyama, 1992), torna-se mais volátil, alargando as suas malhas de determinação e
abrindo amplas possibilidades para aquilo que noutros trabalhos temos, inspirados em
diversas pesquisas, chamado novas formas de acção social e cultural (Stoer, Magalhães e
Rodrigues, 2004).
O conhecimento, como veículo de formação, e neste contexto, configura-se de uma
forma dúplice: como competências, como competências essenciais que dão azo, pelo menos
em parte, a iniciativas como a da «gestão flexível do currículo»; e como formação integral
do indivíduo que está longe de se esgotar na sua relação com o trabalho. Com o surgi-
mento da sociedade em rede esta duplicidade parece esbater-se, dado que a oposição entre
o conhecimento como competência e o conhecimento como formação, ela própria se
reconfigura, dadas as transformações da natureza do trabalho, do mercado de trabalho, da
vivência da cidadania e da afirmação sem precedentes das identidades pessoais e grupais.
nova classe desenvolve-se através dos novos lugares ocupacionais que resultaram deste
novo princípio da acumulação. Mas agora a classe média já não é uma «classe de servi-
ços», isto é, uma classe ao serviço das necessidades reprodutivas do capital manufactu-
reiro. Na sua forma expandida, torna-se mais uma classe «servida» do que uma classe que
presta serviços, na medida em que o seu trabalho, principalmente de processamento de
informação, já não se encontra subsumido às exigências da acumulação manufactureira.
(…) A questão-chave é que a acumulação da informação (e do capital) nas estruturas de
I&C (informação e comunicação) torna-se a força motriz da modernidade reflexiva; da
mesma forma que a acumulação do capital manufactureiro e as estruturas sociais a ele
associadas o tinham sido numa fase anterior da modernidade. (In Beck, Giddens e Lash,
1994: 129-130)
(1) Embora tomando alguma distância a um determinismo tecnológico de Manuel Castells, assumi-
mos em termos operacionais, na economia deste trabalho, a definição que ele dá de sociedade em rede: «As
redes constituem a nova morfologia das nossas sociedades, e a difusão da lógica da rede modifica subs-
tancialmente a operação e os produtos nos processos de produção, experiência, poder e cultura. Enquanto
que a forma de rede de organização social existiu noutros tempos e noutros espaços, o paradigma da nova
tecnologia de informação fornece o material de base para sua expansão hegemónica por toda a estrutura
social. Mais, defendo que esta lógica da rede induz uma determinação social de um nível mais elevado do
que aquela dos interesses sociais específicos expressos através das redes: o poder dos fluxos assume supre-
macia sobre os fluxos de poder. (...) As redes são estruturas abertas, com o potencial de se expandirem sem
limites, integrando novos nós desde que sejam capazes de comunicar dentro da rede, nomeadamente desde
que partilhem os mesmos códigos de comunicação (por exemplo, valores ou objectivos de desempenho).
Uma estrutura social com base na rede é um sistema altamente dinâmico e aberto, susceptível de inovar
sem ameaçar o seu próprio equilíbrio» (Castells, 1996: 469-70).
Educação, sociedade em rede e redefinição do conhecimento 53
Por outro lado, o conhecimento, sobretudo na sua versão científica, está a ser reconfi-
gurado pela reflexividade. Beck (1992) diz a este propósito, que estamos a lidar com uma
segunda cientifização que nos confronta com os resultados da primeira, isto é, a cientifi-
zação do real natural e social. A segunda cientifização é, por excelência, reflexiva: ninguém
está hoje em posição de dizer «Eu não sabia». O conhecimento sobre o mundo social e
natural já tem de estar ciente das suas consequências sobre esses mesmos mundos. Como
diz Giddens (1990), depois de Chernobyl não há outros. Beck (1992) diria que depois desse
acidente nuclear a ciência já não pode ser a mesma.
Assim, o conhecimento susceptível de ser traduzido e de circular sob a forma de bytes
parece ser aquele que mais enforma o conceito de competências, e o conhecimento enfor-
mado pela reflexividade parece surgir como sendo aquele que se articula com novas formas
de cidadania e de afirmação identitária. É neste último sentido que podemos falar de um
movimento do conhecimento da escola do nível nacional para o nível «local». Todavia,
convém não sobrestimar esta oposição entre o conhecimento fundado em bytes e o conhe-
cimento enformado pela reflexividade, porque o que ocorre é um imbricamento entre os
níveis local e supranacional. Precise-se que, quando se fala aqui de «local», o que se pre-
tende referir não é apenas o local territorializado, frequentemente ligado a fenómenos de
reinvenção da tradição (por exemplo, o caso de Barrancos e as touradas de morte em Por-
tugal) (ver Stoer, Magalhães e Rodrigues, 2004), uma espécie de recontextualização, para
falar como Giddens. O local surge como uma reivindicação plural que comporta o territó-
rio, mas não se esgota nele. O «local», tal como utilizamos aqui em conceito, é plural e
pluralizado. É plural porque integra dimensões identitárias subjectivas e colectivas múlti-
plas (por exemplo, o «samba» que, sendo globalizado, tem uma matriz local muito forte),
que não se esgotam no território nem na comunidade local. É pluralizado porque é sujeito
a múltiplas interpretações ou apropriações (para manter o registo musical nos exemplos,
considere-se a reinvenção da música «tradicional» cubana por Ry Cooder como ícone de
esquerda e como mercadoria).
Assim, quando se fala de um movimento do conhecimento da escola do nível nacional
para o nível «local», está-se a querer significar que o conhecimento, como factor essencial
de formação, está a escapar da escola para se relocalizar em vários contextos e em vários
lugares da própria comunidade local. Por um lado, este conhecimento formativo e emo-
cional desenvolve-se por intermédio das estratégias do que temos chamado «nova classe
média nova», que se materializam no recurso a «apoios» educacionais extra-escolares
como as explicações, visitas e férias culturais, disponibilidade de equipamentos informáti-
cos e perícia na utilização do computador que permite uma atitude pró-activa em relação
à «net», «docentização dos pais» (Correia e Matos, 2001), etc. As consequências disso são
tais que aquilo que antes era próprio das funções normais da escola parece agora aconte-
cer noutros espaços, como a família, com base em recursos eventualmente menos sujeitos
ao controlo democrático e evidenciando dessa forma uma activação considerável dos pro-
cessos ligados à posse de capital cultural e social (nos termos de Bourdieu). Por outro lado,
para utilizar uma metáfora da investigadora norte-americana Linda McNeill, se a ênfase
54 «A Diferença Somos Nós»
nas competências essenciais e sua avaliação faz com que os jovens antes de entrar na sala
de aula depositem no vestíbulo os seus conhecimentos de marca local, como os cowboys
faziam com as armas à entrada dos saloons no mítico far-west, a relocalização a que nos
estamos a referir parece ter implícita uma interpretação da relação da escola com a comu-
nidade, assumindo esta como sensível e porosa a conhecimentos e sociabilidades locais,
numa espécie de reinvenção da «cidade educativa».
Esta última interpretação surge, precisamente, como interpretação, frequentemente
como proposta alternativa à escola nacional, definida como social e cognitivamente injusta
e incapaz de veicular o conhecimento como instância de formação integral do indivíduo.
Essas propostas têm assumido diversas formas, que vão desde as críticas ao «escolocen-
trismo» (Correia e Matos, 2002) até à promoção das escolas rurais como reduto da educa-
ção como acção contra-hegemónica, passando por propostas de educação comunitária,
educação de adultos, de grupos que resistem à integração, etc., com forte ênfase nas socia-
bilidades de marca local. A comunidade surge, nessas propostas, como uma espécie de
«lugar branco» que é ao mesmo tempo anticapitalista e antimercado, em oposição à socie-
dade do trabalho, à imagem de Huck Finn e Tom Sawyer a flutuar numa jangada no
Mississippi, gozando plena felicidade e autenticidade.
Da mesma forma, a rede não nos deve surgir nos mesmos termos. A tentação de alguns
dos entusiastas da sociedade em rede pode ser a de assumir que a informação se substituiu
definitivamente ao conhecimento, e que está para além da necessidade de legitimação epis-
temológica e sociológica. Castells já foi interpelado neste sentido. Veja-se a seguinte crí-
tica de Visvanathan:
as uniões comerciais, mas sim a rede» [2001: 35]) dá ênfase à necessidade de criar mode-
los alternativos de desenvolvimento fora da rede. A rede («um fragmento da imaginação
democrática») ao desenvolver a sua própria lógica torna-se numa nova forma de totalita-
rismo, fixando as regras de jogo de tal modo que todos os outros jogadores estão condena-
dos a jogar de acordo com essas regras, eliminando assim a possibilidade de desenvolvi-
mento de outros paradigmas que não sejam baseados no «informacionalismo».
Uma questão que aqui se poderia levantar – mas que não iremos desenvolver – é que
se a rede se tornou coincidente com o «sistema», ou seja, com a nova economia global,
será que é possível falar de um lugar que seja exterior a ela? Por outras palavras, pode ser
inventado um novo jogo, uma nova rede? A preocupação com a inclusão e com a emanci-
pação humanas parece tornar o conhecimento e as práticas inerentes mais legítimas. É
como se Visvanathan estivesse a falar a partir de um lugar transparente, tão transparente
que se torna invisível mesmo para aqueles que nele habitam. Tal transparência permite
uma inquestionável liberdade de falar de alternativas, alternativas que se tornam meca-
nismos essenciais de análise sociológica, mas que conduzem a um lugar absolutamente
exterior ao chamado «sistema» («rede») dentro do qual encontrariam a sua origem. Neste
sentido, pode-se argumentar que é necessário desmistificar e desvendar o lugar a partir do
qual se deseja propor as alternativas.
Mas a nossa preocupação aqui é, antes, a de questionar quais as implicações da socie-
dade em rede para o desenvolvimento das capacidades individuais, nomeadamente em con-
texto educativo. Participar plenamente na rede traz vantagens importantes que se relacio-
nam não só com a acumulação de capital social e comunicacional, mas também com a pos-
sibilidade de serem produzidas competências pelos próprios utilizadores da rede, na qua-
lidade de agentes na rede e de não meros utentes. Como já sugerimos, a lógica da rede é
da mesma ordem do tipo de conhecimento, fundado na informação, que nela circula. A crí-
tica de Visvanathan opõe conhecimento a esta informacionalização. Mas será que o conhe-
cimento informacional é susceptível de ser reduzido a meros pacotes de competências que
as instituições e os actores educativos accionariam e produziriam? Será que a «morte do
professor» (Nuyen, 1992) às mãos das competências «bytificadas» é um facto consumado
ou um dos aspectos do campo de batalha ideológico cujo desenlace ainda está por deter-
minar? A oposição do conhecimento como formação ao conhecimento como competência
pode reduzir o debate educacional de uma forma dramática, tudo se parecendo passar
como se, paralelamente à redução do conhecimento a bytes, a reflexividade social e pes-
soal não reconfigurasse o campo de agência dos diversos actores envolvidos. A oposição de
Visvanathan parece reproduzir outras como emancipação versus regulação e pedagogia
versus performance, assumindo muitos pedagogos, de uma forma assaz paradoxal, as com-
petências como as inimigas da pedagogia, quando elas constituem precisamente o input
pedagógico neste processo, quer dizer, o espaço de agência dos pedagogos. Afirma, por
exemplo, Perrenoud (2001: 12-13): «A competência é uma mais-valia acrescentada aos
saberes: a capacidade de a utilizar para resolver problemas, construir estratégias, tomar
decisões, actuar no sentido mais vasto da expressão» (itálico no original). O processo peda-
56 «A Diferença Somos Nós»
gógico, assim, surge como enformado pela preocupação central com o incremento da
reflexividade como processo individual, no sentido de as competências estarem ao serviço
dos indivíduos. O inverso, por exemplo no âmbito da gestão flexível do currículo, corres-
ponderia ao facto de o aluno ser «objecto» dessa gestão e não «sujeito» dela; por outras
palavras, a própria gestão flexível do currículo só o é se for capaz de promover a reflexivi-
dade e não apenas as competências em que esta se materializa. Assim, se não sustentamos
a oposição que vimos analisando, insistimos que a concepção do conhecimento como for-
mação e factor de reflexividade deve assumir um papel de conceito organizador em con-
texto educativo.
O que parece estar a acontecer é que, com o movimento que já mencionámos da escola
do nacional para o local, a redução do processo de aprendizagem dentro da escola à aqui-
sição de competências torna-se dominante. Neste sentido, e utilizando os conceitos de
gestão política desenvolvidos no primeiro capítulo, a «gestão» flexível do currículo torna-
-se na «pilotagem» ou até na «surfagem» flexível desse mesmo currículo.
CONCLUSÃO
desenvolvimento dos indivíduos não pode ser reduzido nem às determinações económicas,
nem, à maneira idealista, às determinações de tipo cultural. Esta perspectiva permite efec-
tivamente complexificar a relação entre os diferentes tipos de competências e de formação.
Por exemplo, a construção europeia e a europeização da educação parecem implicar novas
formas de cidadania que assumem diferentes formas de localização (localização «gay»,
localização «Barrancos», localização «Europeia», etc.) e que são indeslindáveis da recon-
figuração do próprio mercado de trabalho no espaço europeu (a dissolução das profissões
e das ocupações em competências combina-se simultaneamente com a construção e afir-
mação de identidades múltiplas e diversificadas – por exemplo, o empresário «verde» que
assume as suas preocupações com o ambiente ao mesmo tempo que procura o lucro; as
lojas de «comércio justo» que se regem pelas leis do mercado capitalista, etc.).
Em contrapartida, e assumida a perspectiva da pressão «de baixo para cima», o movi-
mento do conhecimento para o local, para a comunidade, constitui, em primeiro lugar,
uma reconfiguração das estratégias sociais da nova classe média nova no sentido de garan-
tir uma sólida formação o mais facilmente traduzível em capital cultural e social; em
segundo lugar, constitui um apelo da comunidade para a reconfiguração do conhecimento
em termos locais, isto é, se em termos da escola moderna o «local» nunca esteve lá muito
presente, a reivindicação actual das comunidades parece ser a da valorização do conheci-
mento produzido localmente (para retomar a metáfora de McNeill, o conhecimento de
marca local já não é deixado no vestíbulo da escola).
Pensamos, todavia, que este último tipo de reconfiguração do conhecimento é condi-
cionado pelo facto de ele ser simultaneamente local e global, isto é, o conhecimento pro-
duzido localmente, dado que não existe independentemente da estrutura capitalista glo-
balizada, tem uma dimensão global. Por outras palavras, em razão do desenvolvimento da
rede, a produção local do conhecimento é, ao mesmo tempo, a sua produção global e vice-
-versa. Contudo, os efeitos da rede sobre o conhecimento não deveriam ser, como Visva-
nathan enfatiza, ignorados. Os chiapas, por exemplo, quando dimensionam a sua acção
política por meio da rede proporcionam «informação» sobre a sua causa, mas não obriga-
toriamente «conhecimento». Contudo, a clivagem informação/ conhecimento não deve ser
tomada como um absoluto, mas como um campo de batalha ideológico, onde a agência
dos investigadores, dos professores e dos movimentos sociais se activa. Assumir o carácter
absoluto da distinção é, a nosso ver, cair novamente nos braços de atávicas dicotomias
como performance-pedagogia; conhecimento como competências-conhecimento como
formação ou, em termos mais estritamente políticos, entre acção crítica no sistema e
acção crítica fora do sistema. É neste sentido que deve ser interpretada a afirmação de
Carnoy, segundo a qual «a produção de conhecimento desempenha um papel crucial (no
Estado em rede) [...] na gestão e compensação dos efeitos produtores de desigualdade da
globalização em nível local» (2001: 31).
Se se admitir que se desenha, em termos globais, um novo mandato para a educação
no que diz respeito ao desenvolvimento das capacidades individuais, qual o «lugar» que
a nossa posição de recusa da dicotomização do debate educacional ocupa entre aqueles
58 «A Diferença Somos Nós»
pólos? Aquilo que é, para utilizar os termos de Dale (1989), desejável e possível realizar
por intermédio do sistema educativo, num contexto de sociedade e de estado em rede, não
nos surge como se tivéssemos de escolher entre um corpus de conhecimento capaz de pro-
porcionar a «verdade» acerca da natureza, das sociedades e das relações sociais e huma-
nas, e a sua natureza esclarecedora, capaz, por si, de induzir a liberdade individual e grupal.
O que aqui está em causa é, antes, uma reconfiguração dos limites e das potencialidades
do próprio conceito de «mandato». A educação dificilmente surge hoje, nas investigações
de ciências sociais e humanas, como um campo privilegiado de condução da mudança
social, nem o seu conteúdo se apresenta como universal e definitivo. A fragilidade episte-
mológica do conhecimento não dilui o seu carácter formativo e ao mesmo tempo o infor-
macionalismo, em si mesmo, não esvazia o conhecimento do seu potencial de intervenção
política e social. A questão que surge como central não é tanto a dos termos «informação»
e «conhecimento», mas a da sua relação nos contextos de agência social.
PA R T E I I
O Impacto da Globalização
nos Processos de Inclusão/ Exclusão
Social e a «Diferença Somos Nós»
INTRODUÇÃO
Depois de, na primeira parte deste livro, termos tentado mapear o campo em
que actualmente se desenvolvem os processos de elaboração e de decisão política,
nomeadamente em educação, e de termos identificado os principais actores e pro-
tagonistas destes processos, parece-nos importante nesta segunda parte explorar
os impactos dos processos descritos como delimitando as actuais transformações
sociais sobre a inclusão/ exclusão social. Em primeiro lugar, porque a inclusão tem
sido um dos objectivos centrais da política social dos estados europeus e da pró-
pria Comissão Europeia. Em segundo lugar, porque a diferença, temática central
deste livro, foi o objecto preferencial dessas políticas, quer sob a forma de assimi-
lação, quer sob a forma de integração ou, mais recentemente, sob a forma de inclu-
são propriamente dita. Os modelos políticos de assimilação, integração e inclusão
reflectem concepções – que procuraremos identificar – sobre a diferença e sobre a
relação do «nós» com os «diferentes». Finalmente, porque a inclusão surge como
uma problemática central no contexto de sociedades marcadas pelo processo
desencadeado pela volatilização do mercado de trabalho e pela assunção reflexiva
das identidades dos indivíduos e dos grupos. Estes dois processos sociais produ-
zem formas de exclusão distintas. A primeira é caracterizada pela individualização
das necessidades dos indivíduos; a segunda pelo protagonismo dos indivíduos e
dos grupos no âmbito da sua própria definição como actores sociais face ao pro-
cesso da sua própria exclusão («Include me out!» dizem alguns grupos étnicos ou
de estilos de vida/ identidade minoritários nas nossas sociedades europeias).
A exclusão social e a «invisibilidade» dos grupos ignorados, ou marginais, nos dife-
rentes países europeus tornaram-se uma questão central cujas causas e implicações são
amplamente discutidas. Alguns modelos teóricos – dimanados de diferentes discipli-
nas como a medicina, a psicologia, a sociologia, a economia – procuram «explicar» as
razões da exclusão social; outros centram-se em saber como é que os sistemas produ-
zem exclusão através da normalização de certas características dos indivíduos. Recen-
temente, a questão da exclusão social tem sido o objecto de investigação levado a
cabo pelos próprios «excluídos» sobre a sua situação. Diferentemente destas pers-
pectivas, aqui pretende-se abordar a problemática da inclusão/ exclusão social atra-
vés da análise desse par simbiótico. A sua preocupação central é a da problematiza-
ção destes termos nos diferentes contextos (quer sociais e culturais, quer educacio-
nais aos níveis local, nacional e supranacional) através da análise de cinco dos Luga-
res – o corpo, o trabalho, a cidadania, a identidade e o território – onde a inclusão/
exclusão social produz o seu impacto. Nesta abordagem, assumir-se-á como referên-
cia os três paradigmas socioculturais, isto é, aqueles que enquadram as sociedades
tradicionais, as sociedades modernas e as emergentes sociedades pós-modernas.
4
CAPÍTULO
Após termos analisado aquelas que nos parecem ser as questões estruturantes da actual
gestão política da educação, surge como essencial identificar o pano de fundo epistemólo-
gico e sociológico em que aquelas questões se desenvolvem. Se, por um lado, o conheci-
mento reconfigurado como informação parece estar a enquadrar a problemática da edu-
cação, por outro lado as instituições educativas e o conhecimento sobre a educação reper-
cutem, crescentemente, as reivindações das diferenças que assumem, com um protago-
nismo sem precedentes, uma espécie de «rebeliões das diferenças», como adiante se dirá.
De acordo com Ulrich Beck, o conceito de «sociedade de risco» designa «uma fase de
desenvolvimento da sociedade moderna na qual os riscos sociais, políticos, económicos e
individuais cada vez mais tendem a escapar às instituições de monitorização e protecção
na sociedade industrial» (Beck, 1994: 5). Neste sentido, Beck defende que:
A «sociedade de risco» não é uma opção que alguém possa escolher ou rejeitar no
decurso de disputas políticas. Surge na continuidade dos processos de modernização
autonomizados que são cegos e surdos aos seus próprios efeitos e ameaças. Cumulativa
e latentemente, este último produz ameaças que põem em questão e eventualmente des-
troem as bases da sociedade industrial. (1994: 5-6)
Deste modo, o conceito de «sociedade de risco», «no sentido de uma teoria social e de
um diagnóstico da cultura (...) designa um estado de modernidade no qual as ameaças pro-
duzidas até aqui, no âmbito da sociedade industrial, começam a predominar» (ibidem, 1994:
6). A este respeito, Beck refere o que ele próprio designa como «crise ecológica actual»,
definida como «a metamorfose de efeitos secundários invisíveis da produção industrial em
64 «A Diferença Somos Nós»
foci de crises ecológicas globais». Esta «crise ecológica» já não surge como um problema
do mundo que nos rodeia – o chamado «problema ambiental» – mas como «uma profunda
crise institucional da própria sociedade industrial» (ibidem, 1994: 8). Em resumo, a
«sociedade de risco» implica o «retorno da incerteza à sociedade» o que, por sua vez, como
sublinha Beck, significa:
Cada vez mais os conflitos sociais não são tratados como problemas de ordem (que
por definição são orientados para a clareza e para a capacidade de decisão) mas como pro-
blemas de risco. Estes problemas de risco são caracterizados por terem soluções ambí-
guas (...). Face a uma crescente falta de clareza (...) a crença na viabilidade técnica da
sociedade desaparece quase por necessidade. (ibidem, 1994: 8-9)
Pode afirmar-se que, para nos protegermos da perda de confiança nos sistemas periciais
(isto é, sistemas de viabilidade técnica sofisticada), se exige o desenvolvimento daquilo que
Lash (ver acima) designa «identidade reflexiva» e «cidadania cultural» e, nas palavras de
Giddens, um «projecto para o self reflexivo». De facto, a sociedade de risco, para além dos
«riscos globalizados» que afectam todos os indivíduos e todas as sociedades, torna os indi-
víduos vulneráveis a uma forma de exclusão social que tem como veículo a invasão das
sociedades e dos «eus» por relações sociais globalizadas e baseadas na distribuição dife-
renciada do poder. Como acima se disse (ver nota 3 da Introdução), Santos (1995: 263)
referiu-se a estes últimos como uma regulação transnacional promovida por dois modos
de globalização: «os localismos globalizados» («o processo através do qual um determi-
nado fenómeno local é globalizado com sucesso») e os «globalismos localizados» (que
consistem «no impacto específico das práticas transnacionais e os seus imperativos em
condições locais»). Giddens capta bem os dois tipos de «riscos globalizados» no texto que
se segue:
A exclusão só pode ser pensada como um fenómeno multidimensional não apenas por
causa das múltiplas orientações teóricas que inspira, mas também pela forma «como des-
creve a natureza multifactual da privação social nas sociedades avançadas, assim como a
forma como os processos de negligência e marginalização crónicos (...) se tornaram sin-
tomas de injustiça social» (Bowring, 2000). Deste modo, a sua natureza multidimensional
refere-se tanto às múltiplas causas como às múltiplas consequências da exclusão social nas
sociedades da modernidade tardia.
Quando nos referimos à exclusão social como campo de debate e discussão surgem-nos
duas concepções. A primeira é de natureza mais histórica e relaciona-se com a literatura
identificada com a sociologia do desvio e com a sociologia dos indivíduos e grupos margi-
nalizados (incluindo clássicos da «Escola de Chicago» como Delinquent Boys de Cohen
[1955], Outsiders de Becker [1963] e Delinquency and Drift de Matza [1964]; também tra-
balhos de Goffman como Asylums [1961] e Stigma [1963]). No Reino Unido encontramos
obras como Deviance and Society de Taylor (1971) e The Drugtakers de Young (1972). A
segunda relaciona-se com a época actual e o que tem sido designado por «pós-fordismo»
(Harvey, 1999; Amin, 1994). Aqui, a exclusão social ganha um novo significado resultante
do desemprego a longo termo, desemprego de jovens, formas de emprego precário e daquilo
que Paugam designou como «desqualificação social» (1991). Para além disto, o que Castells
(1998) chama «informacionismo», no contexto da reestruturação capitalista, produziu
novas formas de desigualdade e diferenciação social que resultaram não só em exclusão
social nas sociedades ocidentais, mas também na exclusão social de países inteiros e partes
de continentes (a Africa subsariana, por exemplo). Castells define a exclusão social como:
(…) o processo pelo qual certos indivíduos e grupos são sistematicamente impedi-
dos de aceder a posições que lhes permitiriam uma forma de vida autónoma dentro das
normas sociais, enquadrados por instituições e valores, num determinado contexto. Em
circunstâncias normais, no capitalismo informacional esta posição é comummente
66 «A Diferença Somos Nós»
Nesta citação de Castells o que está em jogo é a distribuição diferencial de poder nos
«novos tempos» das relações sociais globalizadas.
da pobreza» (Levitas, 1998: 188, citado em Bowring, ibidem). Contudo, Paugam (s/d) res-
ponde a esta posição argumentando que embora a pobreza em França não tenha aumen-
tado nos últimos 10 anos, a exclusão social aumentou, o que significa que a desqualificação
social resultante do emprego precário é agora prevalecente na sociedade francesa. Em jogo
neste debate estão, em larga medida, o peso atribuído, por um lado, às políticas de redis-
tribuição e, por outro, às políticas relacionadas com o reconhecimento da diferença.
A referência a esta distinção é feita em vários dos Lugares discutidos adiante. O debate
também precisa de ser contextualizado, pois varia de conforme os espaços territoriais. Nos
Estados Unidos, por exemplo, o filósofo americano R. Rorty foi ao ponto de acusar a
esquerda de ter deixado de ser esquerda porque «permitiu que as políticas culturais
suplantassem as políticas reais e colaborou com a direita para colocar os assuntos cultu-
rais no centro do debate público» (1988: 50). No contexto muito diferente que é o da União
Europeia, pode-se, contudo, argumentar que se tem passado o oposto, pois só muito
recentemente a «diferença» começou a ocupar um lugar central, tanto como uma exigên-
cia de identidade, como enquanto uma exigência de cidadania. Na verdade, só recente-
mente a construção europeia começou a encarar seriamente o desafio da cidadania euro-
peia (que primeiramente surgiu no Tratado de Maastricht de 1992) e a até agora altamente
enigmática «dimensão europeia da educação» (Stoer e Cortesão, 2000).
O LUGAR DO CORPO
«(...)
«O Século do Corpo»
Nas sociedades ocidentais, o século XX foi apelidado «o século do corpo» (cf. Ribeiro,
2003). Na história conhecida da humanidade, sempre houve diferentes valores, práticas,
ciências e técnicas corporais que se desenvolveram nas várias civilizações e que, apesar de
espelharem valores sociais, estabeleceram um diversificado diálogo com as condições do
envolvimento. Mas se sempre existiu este acervo de culturas do corpo, por que é que,
então, o século XX é chamado «o século do corpo»?
Antes de mais, cabe dizer que o século XX não foi só apelidado o século do corpo, nele
tendo desabrochado e fortalecido outras realidades, fazendo com que viesse a ser chamado,
também, por exemplo, «o século da mulher» ou «o século da criança».
A expressão «século do corpo» pode ser vista em duas dimensões: pela importância que
o corpo assume enquanto objecto de estudo, e pela assunção da consciência da importância
dos valores e práticas corporais. O corpo revelou-se um objecto de estudo surpreendentemente
rico tanto ao nível disciplinar como ao nível multidisciplinar e transdisciplinar. Inicialmente
objecto exclusivo da Medicina o corpo foi, ao longo do século XX, estudado pela Antropolo-
gia, pela Filosofia, pela Sociologia, pela Educação e por muitas outras áreas científicas.
Os valores e práticas do corpo viveram também no século XX, sobretudo na Europa e
nos Estados Unidos, uma intensa proliferação que se verificou sobretudo ao nível da «inte-
gração» de práticas e valores oriundos de outras culturas (por exemplo o Kung-Fu, o Judo,
a Capoeira, o Karaté mas também a Acupunctura, o Shiatsu, o Ioga...) e na criação de sis-
temas novos tais como a Educação Física, o Desporto e toda uma multiplicidade de novas
«culturas corporais» ou de novos entendimentos sobre culturas antigas como a massa-
gem, o exercício, a ginástica, a aeróbica, etc.
Cinco lugares do impacto de exclusão social 69
O século do corpo deu, pois, a este um valor de estudo «em si» – mesmo com a cons-
ciência da sua realidade multidisciplinar – valor que hoje se ampliou muito para além da
sua dimensão puramente funcional. Esse estudo dos significados e das influências do
corpo tem vindo a ser designado por «corporeidade». Tomamos, assim, consciência da
dimensão do estudo do corpo, um corpo que é simultaneamente complexo, fonte inesgo-
tável de sofisticados mistérios, visto como a «suprema máquina» que engloba e resume
todas as outras, mas, também, limitado e tornado insuficiente para fazer frente às exigên-
cias que o quotidiano das sociedades industrializadas lhe exige. É este, sem dúvida, um dos
paradoxos do corpo – por um lado, a sua complexidade e dimensão ontológica, por outro,
os seus limites e insuficiências. Podemos, nesta matéria, entender o desenvolvimento de
toda a tecnologia como uma superação do corpo e, consequentemente, um reconheci-
mento da sua insuficiência em resistência, força, capacidade de armazenar informação,
etc. A tecnologia cria, assim, verdadeiras «próteses corporais», que expandem as funções
de um corpo encarado como insuficiente e incapaz de desempenhar as funções para que
as novas exigências sociais o desafiam.
Visto com esta latitude, seria impossível que o corpo se mantivesse à margem dos pro-
cessos de inclusão/ exclusão que tão fortemente se têm feito sentir nas sociedades euro-
peias (por exemplo: será que todos têm necessidade de próteses corporais? E será que todos
têm direito a elas?). Pelo corpo passaram, e passam, as marcas que determinaram a cate-
gorização e a valorização desigual das pessoas. No corpo não só seguiram e se reproduzi-
ram os caminhos da exclusão, mas também foram criadas formas particulares, por vezes
discretas e capciosas, de exclusão. Há, assim, tipos de exclusão que encontram a sua razão
principal no corpo. Por exemplo (e isto será explorado em mais pormenor adiante), a pre-
sença corporal de um filho de um trabalhador rural aparecerá na escola como «fora de
lugar» no que diz respeito às normas que se relacionam com a postura do corpo, os gestos,
as atitudes do corpo, etc.
No ponto que segue, vamos levantar algumas das questões que nos parecem propor-
cionar um contributo mais estimulante para entender as formas como, através das cultu-
ras e práticas corporais, se manifesta a inclusão ou exclusão (na verdade, a exclusão e a
inclusão são como a parte de dentro e de fora de uma mesma linha que forma a espiral da
identidade). Estas formas são extremamente diversas e a sua análise revela-se complexa.
Talvez porque, citando o filósofo fenomenologista François Chipraz: «O espírito não está
atrás do corpo, ele habita-o; o corpo não serve o espírito: exprime-o, insere-o no mundo e
fá-lo comunicar com este» (1969: 33). Haverá maior complexidade para estudar?
Está fora do âmbito deste texto traçar, mesmo em linhas gerais, uma história do corpo.
Este campo, aliciante e complexo, pode ser estudado em múltiplas obras que descrevem e
que interpretam os entendimentos, significações, controlos e regulações impostos ao corpo
70 «A Diferença Somos Nós»
nas diferentes civilizações e culturas. Uma destas contribuições que se assume como incon-
tornável é a de Michel Foucault, em particular nos seus ensaios História da loucura, O
nascimento da clínica, e Vigiar e punir. Foucault apresenta uma concepção sócio-histó-
rica do corpo em que este se apresenta «totalmente influenciado pela história» e determi-
nado pelos valores sociais e modo de organização económica de cada sociedade. Em parti-
cular, no ensaio Vigiar e punir este autor apresenta em detalhe a emergência histórica de
práticas sociais complexas que influenciam a conduta humana, moldando-a e forçando o
portador dessas condutas a assumir responsabilidade por elas. Na perspectiva de David
Levin (1989: 123), Foucault vê o corpo como um receptáculo passivo de forças históricas
e políticas quando afirma, por exemplo, que «o corpo é moldado por um grande número
de regimes distintos».
A perspectiva de Foucault é muitas vezes colocada em confronto com a posição de
Maurice Merleau-Ponty. Analisando estas duas perspectivas, Crossley (1996) afirma que se
está a gerar uma divisão nas teorias sociais sobre o corpo alicerçadas nestes dois autores.
Por um lado, um corpo historicamente «inscrito» a partir do exterior, que consubstancia-
ria a posição de Foucault; por outro, uma concepção de corpo veiculada por Merleau-
-Ponty, em que o corpo é apresentado como tendo uma certa autonomia, como corpo
«vivido» e activo. Na verdade, para Merleau-Ponty, o corpo está em permanente e activa
relação com o seu envolvimento e cria um «espaço funcional» à sua volta. O corpo é visto
como uma entidade activa que usa os esquemas e hábitos que adquiriu para lidar e nego-
ciar com o mundo que habita, constituindo uma unidade de sentido indissociável que se
designou por fenomenológica. Um bom exemplo das diferenças de perspectiva das con-
cepções destes dois autores poderia ser encontrado na forma como é pensado o espaço.
Para Merleau-Ponty, o espaço é uma construção que o indivíduo faz a partir da sua expe-
riência e da acção no seu envolvimento, isto é, o corpo constrói o espaço à sua volta; para
Foucault, diferentemente, o corpo é posicionado no espaço e não torna o espaço funcio-
nal, pelo contrário, a função do corpo depende e é condicionada pelas propriedades do
espaço em que está («enformado», por exemplo, pelas regras e valores que são dominan-
tes nas prisões, escolas, fábricas, etc.).
Talvez, como nos alerta Crossley (1996), não exista uma verdadeira oposição entre estes
dois autores ou, dito de outra forma, entre uma perspectiva mais fenomenológica ou mais
centrada no que se designa construcionismo social. Por um lado, Foucault alerta-nos
para a significação social das culturas corporais e para uma causalidade que, sem o enten-
dimento mais profundo dos valores das sociedades em que elas se verificam, nos escapa-
riam. Por outro lado, Merleau-Ponty, sem rejeitar a grande influência que os valores
sociais exercem sobre as culturas do corpo (e dá como exemplo a aquisição dos hábitos
motores e da sua determinação social), outorga ao corpo uma propriedade que poderíamos
comparar ao conceito de «autonomia relativa» de Gramsci. Na verdade, o corpo «escapa»,
muitas vezes, a estritas determinações sociais e apresenta manifestações autonómicas.
Radley (1995) dá como exemplo desta autonomia do corpo o jogo infantil, que considera
como irredutível a relações de poder e controlo. O jogo testa as possibilidades do jogador,
Cinco lugares do impacto de exclusão social 71
fazendo-o ir mais além, levando-o a assumir riscos tornando o seu corpo um desafio não
redutível à obediência a normas sociais e em frequente divergência com códigos morais
estruturados.
Outros exemplos dessa «autonomia» do corpo poderiam ser usados. As manifestações
populares, como o Carnaval, as manifestações religiosas, a dança, etc., desenvolvem-se
muitas vezes nas margens da sociedade, no «claro-escuro» do que é permitido ou proibido
e por isso nos mostram exemplos de como o corpo se pode assumir como portador de códi-
gos próprios que lhe dão um carácter de «fora do poder» e mesmo de «contrapoder». São
práticas em que o corpo desafia, pela sua negligência, caricatura, distorção, manifestação
de sexualidade, criação de novos significados, etc., uma não aceitação, uma não confor-
mação com os valores que dele seriam esperados. O corpo é, assim, não só a sede da expe-
riência no mundo, mas muitas vezes o lugar da resistência a uma ordem social que a pes-
soa ou os grupos não querem aceitar. O que distingue a actual centralidade do corpo como
«resistência» identitária, do corpo transgressor de Sade, é, por assim dizer, a sua descri-
minalização, isto é, o corpo já não é locus do pecado a perseguir, nem a simples emanação
de um determinismo social, mas sim o locus do desejo pluralizado e mesmo uma mani-
festação de autonomia, de que falaremos mais adiante.
Corpo e comunicação
As imagens corporais
Cada pessoa tem um conceito e uma percepção do seu corpo. Durante muitos anos,
usou-se para designar esse conceito e percepção o termo «imagem corporal», que procu-
rava fazer uma distinção entre uma noção mais cognitiva sobre o corpo designada por
esquema corporal e o nível de satisfação no âmbito afectivo e emocional com o seu corpo:
a imagem corporal. Mais recentemente, tem vindo a ser usado o termo «imagens corpo-
rais», designação que procura precisar que não existe uma imagem corporal única e cons-
tante em todos os momentos e envolvimentos, mas que, dependendo de vários factores,
poderemos constatar a existência de várias imagens. Assim, a noção e o sentimento que
temos sobre a aparência e a competência do nosso corpo pode ser completamente distinta
em contextos diferentes (cf.: Clash e Puzinsky, 1990).
74 «A Diferença Somos Nós»
Moda/ vestuário
Pela sua natureza a moda é instável, efémera e superficial: sendo exactamente estas
as características das relações nas democracias políticas contemporâneas. Tal não surge
como motivo para grande preocupação, na opinião de [Gilles] Lipovetsky. Quanto menor
Cinco lugares do impacto de exclusão social 75
for o cuidado ou os sentimentos que dedicarmos uns aos outros, melhor nos relaciona-
remos. Uma estrutura social impessoal é um dispositivo ideal para a tolerância mútua e
para a redução do conflito. Um brilhantemente original argumento torna-se deslum-
brante quando os princípios da moda – obsolescência, sedução, diversificação – são alar-
gados para analisar a sociedade de consumo onde a inovação é central, e a identidade
dilacerada em fragmentos. Longe de nos homogeneizar, como muitos autores inicial-
mente profetizaram, a cultura de massas acelerou o processo de individualização. E isso
pode ter aumentado a capacidade para a integração social.
New Statesman & Society (http://pup.princeton.edu/quotes/q5535.html)
Outro factor de inclusão/ exclusão social são as Identidades Corporais Impressas (ICI).
Designamos por ICI as modificações relativamente estáveis que se operam no corpo sem
significado funcional óbvio. Existem múltiplos exemplos: a cirurgia plástica com intuitos
puramente estéticos (e não de remediação) (as lipoaspirações, os implantes de silicone nos
lábios ou nos seios, etc.), os piercings, as tatuagens, etc.
Eu sou mãe de dois filhos, divorciada de 27 anos e tenho andado a pensar em colo-
car um piercing na língua desde que a minha grande amiga Lori colocou um em 1997.
[...] Acabei por colocá-lo. Depois tive que tornar a aprender a falar outra vez. Deram-me
uma solução oral chamada Tech 2000 para usar. Algumas pessoas sobre quem li usam sal
marinho e água. Até agora não tive problemas e parece que a ferida está a cicatrizar rapi-
damente. Mostrei o meu piercing à minha melhor amiga, que pensa que eu estou com-
pletamente doida, mas ficou bastante intrigada. A minha filha de 7 anos pensa que é
«muit’a fixe!». Ela reagiu exactamente assim: «Meu Deus!! Fixe Mãe!! Meteste um pier-
cing na língua!». O meu filho de 3 anos quer saber como é que a coisa foi lá parar. E eu?
Eu adoro! Acabei por o colocar em dois dias. O incómodo foi mínimo. Ouvi dizer que
todos têm experiências diferentes no processo de cicatrização. Eu não tive problemas.
Quase não se sente dor, o pior foi quando hoje comi comida sólida e mordi o piercing.
Aiii! Forçou um bocado, mas vi depois que não tinha sangrado nem nada. Já tive a expe-
riência daquele esgar embaraçoso que, pelos vistos, faço enquanto durmo. Mas se tudo
correr bem vou acabar por rapidamente corrigir isso. Penso que só preciso de me habi-
tuar a tê-lo. Lavar os dentes e a boca não oferece qualquer problema. Contudo, quando
tenho que dizer um preço, tenho de facto algumas dificuldades a dizer «Three» ou «Six»
(«Six» soa como se eu dissesse SEXO. Os homens ficam sempre surpreendidos com isso).
A maior parte das pessoas com quem trabalho acham graça à ideia de eu ter um piercing.
O meu patrão acha giro. (GRAÇAS A DEUS). Se está a pensar em colocar um piercing,
deve fazê-lo. Eu gosto da ideia de me saber diferente dos outros, porque tenho os meus
dois piercings e tatuagens, e que posso expressar a minha individualidade através de
jogos de arte/ corpo.
(http://www.bmezine.com/pierce/02tongue/A30104/tngohmyg.html)
Cinco lugares do impacto de exclusão social 77
A deficiência
«O meu corpo», como diria François Chipraz (op. cit.), «sou eu no mundo». Esta pers-
pectiva de totalidade e permanência é particularmente útil para analisarmos a «exclusão/
inclusão» social de uma pessoa com uma condição de deficiência.
As marcas da deficiência encontram-se presentes no corpo. É o corpo que, pela sua imo-
bilidade, tipo de mobilidade, assimetria, rigidez, tremor, controlo, descontrolo, integridade,
amputação, forma, expressão não-verbal, etc. anuncia o que podíamos designar como uma
deficiência. A definição de deficiência disponível (Who, 2001) menciona explicitamente que
esta é uma alteração nas funções e estruturas do corpo, ainda que encarada na relação que
essas funções ou estruturas do corpo estabelecem com as actividades e com a participação
social. Essa visibilidade da deficiência proporciona um imediatismo de identificação que con-
trasta com a «invisibilidade social» que as pessoas com condições de deficiência têm tido.
O corpo é, assim, um lugar primordial da deficiência, e é nele que se alicerça a avalia-
ção que conduz à exclusão. A exclusão de pessoas com condições de deficiência radica em
três razões principais. Em primeiro lugar, por se considerar que a deficiência é uma con-
dição imutável e uma «tragédia pessoal» que não é possível melhorar. A visibilidade da defi-
ciência origina também uma ingenuidade de análise que leva as pessoas a crer que, pelo
facto de a deficiência não se poder «curar», ela resulta numa condição inalterável e solici-
tando uma intervenção de tipo assistencial, caritativo ou ocupacional. O chamado modelo
médico da deficiência, na verdade, via a deficiência como um defeito da própria pessoa
situando nela todos os esforços de «recuperação» ou «reabilitação». Actualmente, analisa-
-se a deficiência com base num modelo social que, ao contrário do modelo médico, reco-
nhece que a deficiência é causada pelas barreiras sociais e estruturais criadas pela socie-
dade e sabe da necessidade de participação das pessoas com deficiência na tomada de deci-
sões sobre si próprias (Johnstone, 2001). Este modelo social da deficiência encontra-se
muitas vezes articulado, na acção e na teorização, com o modelo afirmativo. O modelo afir-
mativo, segundo Swain e French (2002), enfatiza uma perspectiva não dramática da defi-
ciência, realçando as identidades sociais positivas tanto individuais como colectivas, basea-
das em eventuais benefícios do estilo e da experiência de vida de ser deficiente.
Em segundo lugar, radica no facto de não se reconhecer às pessoas com deficiência
autonomia e cidadania. Contra esta perspectiva paternalista, desenvolveu-se o chamado
modelo de direitos que, ao consagrar na legislação os direitos da pessoa com condições de
deficiência e ao prever sanções para qualquer acto discriminatório, muda o eixo da relação
Cinco lugares do impacto de exclusão social 79
do nível da «boa-vontade» do estado para o nível das suas obrigações constitucionais e legais.
A pessoa com condições de deficiência é assim reconhecida como uma pessoa com autonomia,
com direito a participar nas decisões e políticas e cujos direitos de cidadania são invioláveis.
A terceira razão para a exclusão de pessoas com deficiência relaciona-se com atitudes
em que se encaram as pessoas com condições de deficiência como improdutivas e perma-
nentemente devedoras à sociedade. O desenvolvimento de programas de formação e inte-
gração profissional, a utilização sistemática de tecnologias de apoio e o inerente sucesso
de processos de autonomia profissional são a comprovação de que é um erro perspectivar
quem tem condições de deficiência como um eterno devedor, como consumidor de subsí-
dios ou como cidadão improdutivo.
A exclusão social com base no «corpo deficiente» é assim uma forma ingénua e pouco
sociológica de considerar a deficiência imutável e as pessoas com condições de deficiência
permanentemente dependentes e improdutivas. Como veremos mais adiante, em tempos
recentes, a deficiência tem-se relacionado mais com a construção de identidades e com
novas formas de cidadania baseadas na diferença. Como resultado, quer a exclusão quer a
inclusão são reconfiguradas na sua relação com a deficiência.
A idade
O que é «ageism»? O termo «ageism» foi criado em 1969 por Robert Butler, o pri-
meiro director do National Institute on Aging. Ele ligou o termo a outras formas de
estreiteza de espírito como o racismo e o sexismo, definindo-o como um processo de
estereotipização e de discriminação contra pessoas porque estas são velhas. Hoje, é mais
amplamente definido como qualquer preconceito ou discriminação em favor de ou con-
tra um grupo de idade.
(http://istsocrates.berkeley.edu/~aging/ModuleAgeism.html#anchor)
O corpo, como vimos, é valorizado nas sociedades de economia de mercado pelo seu
desempenho, pela sua eficiência e pela posse das suas plenas capacidades. É a apologia de
um corpo «eternamente jovem», saudável e capaz de resistir mesmo às mais duras condi-
ções de trabalho e stress. Não é assim de estranhar que seja o arquétipo do corpo adulto o
mais valorizado em face de outras idades e períodos da vida, tais como a infância e a velhice.
Na infância, o corpo anuncia uma imaturidade e uma «incompletude» que conduz à rejei-
ção produtiva, e a uma desvalorização da sua voz (Prout, 2000). Na velhice, pelo facto de
o corpo ser julgado como menos produtivo ou improdutivo, as pessoas são conduzidas
para ilhas segregadas, como, por exemplo, lares de idosos, e o seu estatuto de participação
e actividades sociais é depreciado e grandemente diminuído.
A tentativa de escapar à segregação provocada pelas marcas da idade no corpo alimenta
prósperas indústrias e comércios de medicamentos, estética, vestuário, manutenção física,
etc. Não basta só ser jovem, é preciso parecê-lo...
80 «A Diferença Somos Nós»
Crash é uma adaptação do livro com o mesmo nome de J. G. Ballard, e tem a ver com
uma seita secreta de vítimas de acidentes automóveis que obtêm prazer sexual do facto
de testemunharem e de se envolverem em intensos desastres com carros.
O filme é marcado por um conjunto de cenas de sexo em cenários onde os automó-
veis são motivo central. Muitas das cenas são de sexo explícito, sendo algumas delas de
tipo homossexual. O filme foi considerado bastante controverso quando foi publicitado.
A seguir encontra-se um excerto de uma entrevista feita ao realizador, o canadiano David
Cronenberg.
Bem, o outro lado de «Crash» – o que é que pode haver de erótico em cicatrizes,
intervenções médicas, ou ferimentos?
[...]
Quando olho para a personagem de Rosanna Arquette, é-me muito mais fácil pensar
nisso, porque me recorda o tempo em que eu era um adolescente e trabalhava numa loja
de fotocópias e um tipo levou para fotocopiar uma revista artesanal com pequenos dese-
nhos de mulheres amputadas ou de desastres, e por aí adiante, com pouca história acerca
desses desenhos, acerca de como é que ele as salvava e depois as «comia». E a sua vul-
nerabilidade e a sua fraqueza têm esse intenso erotismo, assim como a sua timidez com-
binada com o couro preto ou seja lá o que for que ela usava.
Trata-se de uma coisa do género, mas que é também bastante agressiva. Em
Inglaterra, onde a cobertura do Crash pela imprensa escrita foi completamente louca –
mas, bem sabe, é uma doença inglesa – um crítico escreveu: «Entre as coisas mais nojen-
tas, repugnantes que acontecem neste filme é um homem a manter relações sexuais com
uma aleijada». E eu pensei, espera lá, significa isto que se o teu marido ou a tua mulher
forem ou se tornarem aleijados deixas de ter sexo com ele ou com ela? Por que é que nos
havemos de des-sexuar apenas porque somos aleijados?
Realmente, este é o filme do ano sobre os direitos dos aleijados.
Absolutamente. Quer dizer, neste ponto tornei-me de forma acidental politicamente
correcto – embora não o tivesse pretendido. Mas parte do filme diz que todos se preten-
dem transformar de uma forma ou de outra. Uma mulher que foi transformada por um
acidente, que diz «vou incorporar o meu novo corpo na minha sexualidade», e efectiva-
mente tudo o que ela tem a fazer é encontrar um amante que lide com isso, porque ela
não vai esconder partes suas que estão deformadas ou aleijadas. Ela diz: «Não, tudo isto
sou eu, este é o meu novo eu, isto é o que eu realmente sou. Queres “comer-me”? “Come”
isto, sou eu que sou isto». É assim basicamente que eu vejo a personagem e penso que
foi assim que Rosanna a desempenhou.
(http://www.salon.com/march97/interview970321.html)
tra a tirania da alma e da razão, para aludir ao poema de Natália Correia no início deste
capítulo. Como parte da rebelião do corpo, é crucial a recusa deste em ver o seu desejo nor-
malizado e predefinido. Pelo contrário, não só o desejo se tornou múltiplo como também
os objectos de desejo se tornaram pluralizados. Assim, o corpo desejável não pode ser pre-
determinado, nos moldes do concurso «Miss América» nos anos 1950 e 1960.
De facto, até recentemente, nas sociedades ocidentais, o corpo era definido pelas iden-
tidades sociais que lhe eram atribuídas. Por exemplo, o corpo do advogado era o corpo do
advogado. O advogado andava como um advogado, fumava como um advogado, adoptava
a postura de um advogado e amava como advogado. O corpo era a extensão pública do self.
O que parece acontecer hoje em dia é que a distinção entre o self (selves) público(s) e o
self (selves) privado(s) encontra-se cada vez mais difusa. O corpo, neste sentido, exprime
cada vez mais, em todos os domínios – quer públicos, quer privados – o projecto reflexivo
de que faz parte. Assim, o advogado gay deixa cada vez menos partes do seu self dentro do
armário; em vez disso, desenvolve estratégias em função do seu projecto de identidade em
que o corpo representa um papel central. Nesse sentido, o corpo exprime agência, isto é,
não é um mero anexo do self, mas, antes, um dos ingredientes principais do self.
Conclusão
O que nos parece importante reter é que o corpo, pelas suas características, é um Lugar
de exclusão e de inclusão. Pela intensidade e visibilidade das marcas da sua origem social,
estatuto económico, integridade, pertença a uma subcultura e idade é como que um portal
de entrada, uma anunciação da identidade da pessoa. E a questão é que este imediatismo,
esta «primeira impressão» frequentemente não proporciona uma segunda oportunidade
de apreciação. As pessoas são sumariamente julgadas e identificadas por características
corporais eivadas de pressupostos de lugares comuns, de ideias ultrapassadas e de concep-
ções sociais elitistas, hierarquizadas e reprodutoras de valores sociais competitivos e eli-
tistas (Rodrigues, 1998).
Os modelos de inclusão social exigem outra visão sobre o corpo e sobre a sua diversi-
dade e identidade. Perspectivas em que exibição da diferença do corpo, a diferença visível,
não seja encarada como uma categorização, como uma normalização ou um rotular, mas
em que, pelo contrário, os diferentes corpos e as diferentes imagens corporais constituam
um convite para iniciar um puzzle de conhecimento das capacidades da pessoa, das suas
identidades e valores de vida e trabalho. Diz-se que a primeira impressão das imagens pro-
porcionadas pelo corpo pode enganar e, assim, pode ser reducionista se for imediatamente
aceite. Contudo, pensar o corpo como uma identidade significa descobrir e compreender
os valores que tornaram possível tal primeira impressão. Pode ser verdade dizer que «ao
ver o corpo dos outros, também vemos o nosso», que o corpo constitui um facto que
obriga a um certo grau de auto-reflexão, mas mesmo o nosso próprio corpo não é mais o
instrumento dócil dos nossos próprios desejos.
82 «A Diferença Somos Nós»
Na verdade, e para levar o argumento mais longe, o corpo, ele próprio, rebelou-se contra
estas categorizações mais ou menos sábias. Não só recusa ser o «outro» das nossas identi-
dades pessoais e colectivas, como também aparece, cada vez mais, como e com agência
(ver acima). Por outras palavras, o corpo começou a exigir, em nome de si próprio, um
lugar importante nas narrativas identitárias (ver adiante «O Lugar da identidade») e no
que diz respeito à cidadania (ver «O Lugar da cidadania»). Já não aparece como um mero
reflexo do self pessoal, cognitivo, assumindo a racionalidade da norma, nem aparece como
o self do cidadão, higiénico, são, fisicamente em forma, mas, antes, como o projecto plás-
tico da reflexividade. No seu limite, esta rebelião do corpo em relação à sua concepção de
corpo invisível, pecador ou disciplinado (concepções que historicamente foi assumindo),
parece apontar na direcção da sua reconceptualização como qualquer coisa «para além» da
humanidade (tal como foi concebida até agora). A transplantação de órgãos e doutras partes
do corpo, a manipulação genética, a transfiguração plástica dos corpos, a introdução de
elementos estranhos no corpo com o fim da sua reconstrução, etc., aparecem como indi-
cadores da eventual transformação daquilo convencionalmente designado como humano,
como o corpo inclusivo, no sentido de um modelo que se anuncia como, nalgum sentido,
pós-humano.
A modernidade, embora tivesse trazido o corpo para o centro da cena, concebeu o corpo
na base, sobretudo, de biologia, medicina e saúde. Na verdade, o corpo era o objecto dos
discursos e das manipulações de um estado educador, um corpo dócil perante os olhos e
as actividades das ciências e das mais variadas técnicas. O que aparentemente aparece
agora como novo é a recusa pelo corpo ele próprio deste estatuto de «corpo dócil». Sendo
integrado cada vez mais nas estratégias da identidade e da cidadania, o corpo constitui-se
não só um lugar de agência, mas sobretudo um Lugar da sua própria afirmação.
O imediatismo das imagens proporcionadas pelo corpo não deve, assim, ser julgado em
termos de uma localização, mas em termos da sugestão de uma identidade que não deve-
mos apreciar fora de uma reflexividade sobre os valores próprios que conduziram à cria-
ção destas imagens. É que ver o corpo dos outros é também ver o nosso…
Esta transformação parece ser plena de consequências para a questão da exclusão e
inclusão social. No modelo de modernidade, o corpo era o objecto de estratégias que pre-
tendiam (de uma maneira mais ou menos generosa) produzir a inclusão, erradicando,
assim, a exclusão. O sistema educativo, o sistema de saúde, o sistema de segurança social
tinham como objectivo central cuidar e proteger, no sentido de garantir que os corpos dos
cidadãos reflectissem o zelo e a preocupação do estado (providência) que os queria bem e
em boa forma. No modelo de pós-modernidade, ainda emergente, a inclusão/ exclusão
depende de estratégias que já não têm o Estado e as instituições que promoveram a enge-
nharia social da modernidade no seu centro, mas, em vez disso, baseiam-se nos guiões dos
próprios indivíduos e grupos. O corpo aparece, portanto, com as características de sujeito
da sua própria enunciação. Assim, a inclusão social e a exclusão social articulam-se com o
corpo na construção de identidades e na reivindicação de novas formas de cidadania. Os
Lugares do trabalho, da cidadania, da identidade e de território convergem no lugar do
Cinco lugares do impacto de exclusão social 83
corpo, não como um Lugar privilegiado, mas como um espaço em que a inclusão e a exclu-
são são, de uma forma cada vez mais concreta, o projecto do próprio self.
O LUGAR DO TRABALHO
(Lenhardt e Offe, 1984). Em alguns países europeus, no início do século XX, o direito de
votar estava ainda condicionado à obrigatoriedade de ter um rendimento fixo.
O trabalho era definido, até há bem pouco tempo, como estando intimamente ligado à
categoria social de profissão ou à ocupação1. O trabalho era um conjunto de gestos técni-
cos e atitudes individuais e grupais normalmente desenvolvidas no âmbito de uma insti-
tuição (empresa de negócios, companhia, etc.), na qual estas actividades de trabalho têm
lugar. Unificado sob o rótulo de uma ocupação, o trabalho mostrou-se também central
para a construção da identidade dos indivíduos. Os tempos modernos sob o capitalismo
aumentaram essa tendência de identificar os indivíduos pela sua profissão/ ocupação (por
exemplo, quando se pergunta a uma pessoa «Quem és?», a resposta é dada frequentemente
em forma de uma identidade ocupacional: «Sou padeiro») e o trabalho encontra-se pro-
fundamente ligado a estratégias de classe.
Hoje reconhece-se que a natureza do trabalho está a mudar, e este, no sentido de pro-
fissão, parece dissolver-se:
1. como consequência dos efeitos da crescente «leveza» das empresas (isto é, quanto
maiores são mais parecem tender para a dissolução nos paraísos fiscais off shore);
2. como consequência da crescente fragilidade das relações salariais; e
3. como consequência da sua dissolução em competências.
(1) Inicialmente o conceito de «profissão» só se aplicava ao que hoje se designa «profissões liberais».
Todavia, ao longo do tempo o conceito alargou-se, incluindo conhecimentos e aptidões relativas a áreas
especializadas, como construção civil, electricidade, panificação, etc.
Cinco lugares do impacto de exclusão social 85
De acordo com esta perspectiva, não nos encontramos perante uma recomposição do
trabalho na qual este pudesse ser reapropriado pelos trabalhadores (a desalienação do tra-
balho, portanto), mas, antes, perante um desenvolvimento da tendência para a desqualifi-
cação. Contudo, Thompson reconhece que a realidade é mais complexa e afirma que, nos
sectores económicos com uma maior proporção de investimento em capital do que em tra-
balho, existe um «mercado de trabalho dual para trabalho qualificado e desqualificado no
interior da tendência mais ampla para a desqualificação» (ibidem: 83). Pensamos que é
para este mercado de trabalho dual que as estratégias educacionais das classes médias se
dirigem e que é dentro deste quadro que a ênfase nas noções de «qualificações», «compe-
tências» e «excelência académica» pode ser melhor compreendida. É interessante subli-
nhar, a este propósito, o argumento de Castells segundo o qual,
(…) um novo conceito quer de conhecimento, quer da sua relação com aqueles que
o criam. [...] O conhecimento deve fluir como dinheiro para onde quer que possa criar
vantagens e lucro. De facto, o conhecimento não é apenas como o dinheiro: é dinheiro.
[...] O conhecimento, depois de quase dois séculos, divorciou-se da interioridade e lite-
ralmente desumanizou-se. Uma vez separado o conhecimento da interioridade, do com-
prometimento e da dedicação pessoal, então as pessoas podem ser levadas de um lado
para o outro, substituídas umas por outras e excluídas do mercado. (1990: 155)
forma de regulação global no sentido que frequentemente assume o carácter político das
corporações transnacionais. Na verdade, pode-se afirmar que as organizações internacio-
nais, que actuam maioritariamente como «veículos» da política económica hegemónica,
se implicaram numa nova forma de governação a nível mundial (ver, por exemplo, Bonal
[2002]; Dale [2000]; Samoff [1996]; Santos [2000]).
No que respeita à exclusão social, o Lugar do trabalho pode ser pensado enquanto
ponto de convergência de riscos globalizados, que afectam todos por igual, e os riscos glo-
balizados, que expressam uma distribuição diferente de poder. A citação de Santos, acima,
realça esta última, na forma de um «modelo de desenvolvimento orientado para o mer-
cado» que promove a inclusão na base do consumo e exclui todos aqueles que ou têm
um fraco acesso ao mercado, ou se encontram desapetrechados para tirar o melhor par-
tido dele. As relações globais de mercado tendem, então, a desvincular, tal como Castells
diz, tanto as pessoas como os espaços geográficos, ao mesmo tempo que produzem ou
demasiado pouco, ou o tipo errado de trabalho necessário para a integração no capitalismo
global.
Castells realça ambos os tipos de risco, ao mesmo tempo que sublinha que o desenvol-
vimento da sociedade em rede pode proporcionar integração nesta sociedade e constitui,
assim, uma forma de luta contra a exclusão social. A rede torna-se, nesse sentido, um sis-
tema uniforme fora do qual todas as formas alternativas de desenvolvimento se tornam
impossíveis. Daí que Castells tenha saudado o movimento «zapatista» como o «primeiro
movimento de guerrilha informatizado» capaz de captar a imaginação do povo e dos inte-
lectuais através do mundo, catapultando «um grupo insurreccional local e fraco para a
linha da frente da política mundial» (1997: 79). A oposição à nova ordem mundial só pode
tomar lugar numa rede em que, por um lado, as consequências de exclusão da moderni-
zação económica sejam desafiadas e, por outro, a inevitabilidade da nova ordem geopolí-
tica, sob a qual o capitalismo é universalmente aceite, seja questionada. Pode-se discutir
se a visão algo optimista de Castells sobre a sociedade em rede e o capitalismo da infor-
mação, apesar do seu conhecimento rigoroso dos desequilíbrios do mundo que podem
fazer gorar a sua realização, são capazes de providenciar o que é necessário para transfor-
mar riscos diferenciais numa forma de luta contra os riscos globalizantes que ameaçam
todos por igual.
Conclusão
surge como necessário proporcionar aos indivíduos uma educação não assente em apti-
dões fortemente estruturadas, mas sobretudo em competências que os tornem flexíveis. A
flexibilidade torna-se sinónimo de empregabilidade (muitas vezes expressa sob a forma de
uma lista de competências instrumentais e mesmo... emocionais!). A ocupação baseava-se
em competências organizadas em conjuntos de gestos técnicos e cimentadas por atitudes
(portanto, de forte teor «formativo»), enquanto a emergência da empregabilidade parece
basear-se na (insustentável) fragilidade das competências organizadas frequentemente em
termos do curto e médio prazo (portanto, sem forte teor «formativo») (ver Stoer e Maga-
lhães, 2003). Ser flexível é uma condição para ter sucesso no mercado de trabalho emer-
gente. Ser «inflexível» é quase sinónimo de ser excluído/ a.
O LUGAR DA CIDADANIA
rativos como a ciência, a filosofia, a arte, as instituições sociais e o estado. A Razão arti-
cula as narrativas da ciência, da filosofia e da arte que, assim, surgem como os dispositi-
vos discursivos, que, no projecto da modernidade, enquadram a formação da subjectivi-
dade/ individualidade. Quer dizer, a modernidade faz assentar o seu projecto de racionali-
dade no facto de a razão, à maneira cartesiana, ser a coisa mais bem distribuída no mundo.
Esta universalidade da capacidade de distinguir o verdadeiro do falso faz da ciência um
empreendimento ao mesmo tempo dos indivíduos enquanto subjectividades e, por maio-
ria de razão, da humanidade. A expressão das idiossincrasias pessoais encontrará, even-
tualmente, mais espaço nas artes; todavia, no projecto da modernidade – e não cabe no
objectivo deste trabalho uma discussão mais aprofundada dessa questão – não parece
haver contradição paradigmática entre a deriva romântica e a corrente do Iluminismo
eventualmente mais racionalista. A História, com letra maiúscula, desenvolve-se como o
processo cuja finalidade (no sentido de telos) surge como o palco em que a máxima auto-
consciência do indivíduo no Homem, ele próprio Razão, deve acontecer ao realizar-se no
Estado. É em Hegel que esta identificação (Homem [indivíduo/ subjectividade] = Razão =
Estado) parece ter atingido quer o máximo de consciência possível, quer a melhor cons-
ciência possível. A humanidade e o indivíduo, e este enquanto sujeito/ subjectividade, reú-
nem-se e realizam-se no Estado, «onde a liberdade (individual) adquire a sua objectividade
e vive na fruição de si mesma» (Hegel, 1965: 11)2 a partir da crítica à Razão feita com base
em valores (Nietzsche, 1976), isto é, a partir de uma instância (a moral) exterior à razão.
Tal permitiu desalojá-la da sua centralidade e desvelá-la enquanto discurso não universal,
mascarado pela abstracção e universalidade.
Quadro 1
(2) Foi talvez Nietzsche quem pela primeira vez, de uma forma radical, questionou a modernidade.
Cinco lugares do impacto de exclusão social 91
O que o homem perde pelo contrato social é a sua liberdade natural e um direito ili-
mitado a tudo o que tenta alcançar; o que ganha é a liberdade civil e a propriedade de
tudo o que possui. Para não haver enganos sobre estas compensações, é preciso distin-
guir a liberdade natural, que só tem por fronteiras as forças do indivíduo, da liberdade
civil, que está limitada pela vontade geral, e a posse, que é apenas o efeito da força do
primeiro ocupante, da propriedade, que apenas se pode fundar num título positivo.
(Rousseau, 1981: 26)
mente em harmonia. Esta «escola da sociedade» (Touraine, 1997) tem o seu auge, no pós-
-guerra, no processo de realização da «escola para todos».
Veja-se, por exemplo, o caso de dois países que conheço bem, França e Espanha: 80
por cento da legislação em França e em Espanha tem de ir para aprovação da União
Europeia. Nesse sentido, elas não são Estados soberanos. (2001: 121)
Por outro lado, o local, os modos de vida alternativos e o factor étnico parecem estar a
emergir como importantes estruturadores da cidadania: em nome do local e da pertença
étnica ou a partir de dadas escolhas de estilo de vida ou outras, os indivíduos reivindicam
formas renovadas de cidadania, a qual, então, passa a ser pensada a partir das diferenças,
isto é, daquilo que distingue e não através das características comuns.
Sobretudo este último aspecto configura uma ressignificação da cidadania activa, como
se os indivíduos e os grupos reivindicassem de volta a soberania individual e colectiva de
que haviam prescindido pelo contrato social moderno. Esta transformação, como acima
referimos, é notável em comparação com as formas de cidadania resultantes desse mesmo
contrato que se fundavam precisamente no património comum. A atribuição de cidadania,
pelo contrato social moderno, era um acto fundado na legitimidade dos aparelhos do
estado enquanto guardião da nação. Esta, em termos básicos, era assumida como uma
comunidade de língua, território e/ ou religião. Essa «comunidade imaginada» (Anderson,
1983) outorgava ao estado o poder legítimo de, em nome daquilo que a todos era
«comum», atribuir direitos e deveres. Para se ser cidadão bastaria nascer no âmbito desta
comunidade3. As implicações da nova forma multicultural de cidadania só agora começam
a tornar-se visíveis e induzem a uma urgente reconceptualização do conceito de cidadania,
dos direitos e dos deveres dos actores sociais.
O contrato social da modernidade que exprime a troca acima referida (da pertença local
pela lealdade nacional) parece estar, pois, em via de reconfiguração. Esta está a ser levada
(3) Reconhecemos que nem todas as «comunidades» são do mesmo tipo. Morris (1994), por exemplo,
faz a distinção entre «comunidades de consentimento» (uma espécie de associação voluntária) e «comu-
nidades descendentes» (baseadas, por exemplo, na descendência matrilinear).
Cinco lugares do impacto de exclusão social 95
As implicações deste processo também podem ser vistas pela evolução do «individua-
lismo possessivo» para «um individualismo de despossessão» (Santos, 1995b). Como já se
disse acima, no contrato social moderno a essência da liberdade do homem encontra-se na
sua capacidade de procurar satisfações. Defende McPherson que,
(e)sta liberdade é devidamente limitada apenas por um princípio de utilidade [...] que
proíbe a violência contra os outros. A liberdade é, portanto, restrita à, e identificada com,
dominação das coisas, e não a dominação dos homens. A forma mais clara de dominação
das coisas é a relação de propriedade ou posse. A liberdade é, portanto, posse. Toda a
gente é livre, porque todos possuem pelo menos as suas capacidades. (1973: 199)
(4) Robert Castel (1995) referiu-se a este fenómeno como «a nova questão social» no âmbito da qual
os excluídos já não são aqueles que, sendo explorados, são indispensáveis, mas, antes, aqueles que estão
em excesso, a mais. Neste sentido, ser explorado torna-se quase um privilégio.
Cinco lugares do impacto de exclusão social 97
sárias para um mercado de trabalho volátil (sobretudo, ao nível do trabalho genérico, cf.
Castells, citado em Magalhães e Stoer, 2001) baseado no curto prazo, e sabendo que
«nunca saberá o suficiente e jamais desenvolverá todas as capacidades e competências
necessárias» (Bernstein, citado em Bonal, 2002). Assim, o indivíduo torna-se vulnerável a
uma injustiça social que condiciona a sua própria cidadania.
A conclusão principal que se pode tirar desta análise é a necessidade de pensar as polí-
ticas de redistribuição na base não só dos «novos» territórios (local, regional, supranacio-
nal), mas também com base nos territórios desterritorializados. Isto é, pode defender-se,
na sequência do nosso argumento, que a cidadania social depende da regulação política de
todos os territórios, sem excepção. Mesmo os territórios desterritorializados (aqueles em
que, por exemplo, e como acima se disse, flui o capital financeiro) são politicamente mar-
cados e, como tal, exigem regulação. Na verdade, o facto de a cidadania social requerer
regulação política dos territórios sugere que a regulação pode ser também pensada como
emancipação (e não simplesmente como o seu pólo oposto). Nesse sentido, é interessante
o trabalho de M. Kaldor (1995), que tem proposto um modelo de construção europeia
baseado em temas (tais como direitos humanos, segurança, ambiente, gestão económica
e financeira) e não em território, e o de J. Habermas que, no seu apelo para a elaboração
de uma Constituição Europeia, defende que é necessário «encurralar os mercados»,
«enfrentar a tendência do capitalismo para produzir o caos ecológico» (Habermas, 1999,
2001). A proposta de Sousa Santos para uma globalização «de baixo para cima», com base
no «cosmopolitismo» (como alternativo aos «localismos globalizados») e no «patrimó-
nio comum da humanidade» (como alternativo aos «globalismos localizados»), também
vai nesse sentido. Assim como na mesma direcção parece apontar o conceito de «relação
de extraterritorialidade recíproca» proposta por Giorgio Agamben (1993). Em vez de
conceber a construção europeia como «uma impossível “Europa das Nações”», propõe o
espaço europeu como não coincidindo com os territórios nacionais homogéneos, nem
com a sua soma topográfica, mas como «a redescoberta da ancestral vocação das cida-
des europeias» organizadas no âmbito de «uma relação de extraterritorialidade recíproca»
(1993: 24-5).
cido como «deficiência» (por exemplo, a surdez) seja reconfigurado como diferença e, por-
tanto, como identidade (diz uma mulher, surda e lésbica, empenhada no processo de ter
um filho surdo através de inseminação artificial, «para mim a surdez é uma identidade e
não uma deficiência», Público, 14 de Abril de 2002).
O contrato social moderno legitimava-se, diga-se mais uma vez, na pertença comuni-
tária e na imaginação daquilo que de comum unia os indivíduos e grupos nacionais. Numa
primeira fase, a saga nacional não só dava centralidade ao estado como regulador, mas
também colocava a nação e os nacionais num etnocentrismo legítimo: eram os nacionais,
a partir da sua indiscutível ontologia, quem determinava quem eram os seus «outros». Os
«outros» externos e os «outros» internos. Por exemplo, os «outros» externos dos portu-
gueses foram os espanhóis, os franceses e os ingleses, ora como inimigos fundadores, ora
como aliados incontornáveis. Os «outros» internos foram, por exemplo, os ciganos, que
desde o século XVI pontuam no território nacional, e os povos «descobertos», para falar
apenas destes. O discurso da modernização económica encontrará, porventura, outros
«outros» (por exemplo, o chamado «homem tradicional»), cuja diferença cultural os tor-
nava um obstáculo ao processo de «civilização» interna. Todavia, é sempre através do
estado-nação ou em torno dos seus motivos que os «outros», os «eles», são delimitados.
A metanarrativa da modernidade, por seu turno, baseada na Razão, na Humanidade e
na História, fundava, como acima se disse, a própria narrativa nacional. O que teve como
consequência que os «eles», os «outros», fossem também delimitados pelas formas domi-
nantes de racionalidade, de organização social e de representação do passado e do futuro,
pelo menos tal como as sociedades ocidentais as desenvolveram. Esta grande narrativa da
modernidade, portanto, legitimava, por um lado, a acção dos estados nacionais na sua cen-
tralidade; por outro, a determinação de quem são os «eles», de quem são os «outros».
Actualmente, mesmo os discursos e as práticas mais envolvidos com o respeito pela dife-
rença, pela alteridade, são frequentemente vítimas da matriz moderna de que partem.
Continuam a ser estes discursos o locus em que se determina o que é a diferença, o que é
a diferença aceitável (tolerada) e quem é verdadeiramente o Outro e o eventual «bom»
interlocutor. Com quem é que se deve dialogar? Será Le Pen um interlocutor menos válido
do que Malcolm X? Será que é possível distinguir entre a prática cultural da excisão e a
decisão de ter um filho surdo (ver acima)?
Com a emergência da «cidadania reclamada», e dado que esta dimana, em última ins-
tância, do carácter incompleto da «cidadania atribuída» do contrato social moderno, o
locus de determinação de quem é a diferença pluralizou-se de tal forma que já não há, apa-
rentemente, modo de recompor um acordo «nacional» ou mesmo «inter-nacional» sobre
esta questão. A incompletude da cidadania atribuída deriva do facto de ser intrinsecamente
incapaz de traduzir o reconhecimento em cidadania participada. Os ciganos, por exemplo,
se forem reconhecidos como cidadãos no sentido universal, vêem a sua participação limi-
tada pela ignorância da sua diferença cigana. Ao pluralizarem-se as vozes dos indivíduos e
dos grupos fazem com que a diferença surja reivindicada nas primeiras pessoas do singu-
lar e do plural: «a diferença somos nós»; a «diferença sou eu».
Cinco lugares do impacto de exclusão social 99
Conclusão
mais com aquilo que (diriam eles) não existe, por exemplo, a disciplina, o esforço, a ava-
liação selectiva, etc.
Tudo se parece, então, passar como se os «outros» já não tolerassem sequer a «tole-
rância» e a generosidade de que são objecto, precisamente por se recusarem como objecto
e pretenderem assumir a voz de sujeitos de si. Há nessa atitude uma evidente ligação com
a revolta de grupos sociais que, no passado, punham em causa o desenvolvimento da eco-
nomia capitalista e que reclamavam políticas de redistribuição baseadas, sobretudo (e
como acima já se afirmou) no princípio da igualdade de oportunidades. Como vimos, a res-
posta (ainda hoje não só muito incompleta como ameaçada de novo por um capitalismo
de casino individualista e imprevisível) desenvolveu-se através da atribuição, pelo estado-
-nação, de uma cidadania que era sobretudo social. Mas o que é de sublinhar aqui é a recla-
mação agora baseada numa política de reconhecimento da diferença, na reivindicação de
uma justiça que não seja simplesmente socioeconómica, mas também cultural. Esta recla-
mação, elaborada com base na(s) identidade(s), repõe uma exigência local que, na recusa
de ser identificada com o território nacional, se assume como identificável com múltiplos
locais estendidos pelo mundo fora.
Apanhados entre o olhar generoso e aparentemente descentrado face ao «outro» e a
recusa deste em ser alvo dessa preocupação, os políticos e os educadores parecem algo
desarmados e desorientados. Desarmados porque o sistema de ideias que suportava a sua
intenção e as suas acções parece abater-se sob o seu próprio peso; desorientados porque no
terreno confrontam-se com um sistema educativo cheio de «outros» e de «outras» apa-
rentemente surdos e indiferentes à generosidade das finalidades da educação.
As eventuais saídas dessa situação parecem passar por três considerações. Em primeiro
lugar, a «cidadania reclamada» só se pode sustentar sobre a consolidação da cidadania
moderna ou «atribuída». Isto é, as condições da realização das reivindicações de soberania
inerentes à «cidadania reclamada» dependem (e são simultâneas) de políticas de redistri-
buição: a razão é que não há «qualidade» sem que as questões de «quantidade» sejam
minimamente resolvidas. Em segundo lugar, o próprio «outro» tem de reconhecer a
«nossa» alteridade, pois neste conflito (diálogo) a diferença também somos nós. Todos nos
encontramos num lugar simultaneamente público e privado de transacções comerciais, de
lazer, de prazer, pleno de cores, de odores e de ruídos insubmissos (Stoer e Magalhães, 2000),
pelas mais variadas razões, como diferentes, e é enquanto tal que lá nos encontramos (ver
adiante, «O Lugar do território» e a discussão da metáfora do bazar). A «cidadania atri-
buída» não pode ofuscar este facto, o que tende a fazer quando as questões de «quanti-
dade» não são minimamente resolvidas, isto é, quando não há efectivas políticas de redis-
tribuição. Em terceiro lugar, a educação escolar tem que ser colocada nos guiões dos acto-
res sociais e culturais e não o contrário. Isto significa que a escola, ela própria, também
tem que se tornar «reclamada» e não simplesmente «atribuída». Por outras palavras, a
escola como meritocracia constitui talvez a mais importante política redistributiva da
sociedade democrática. Mas como política redistributiva, há já algum tempo parece ter
ficado enleada nas suas próprias malhas e ter estancado o seu desenvolvimento. A sua
Cinco lugares do impacto de exclusão social 101
O LUGAR DA IDENTIDADE
Introdução
Danilo é cantoneiro. Falamos com ele enquanto, com a sachola, vai rapando as ervas
daninhas nas bermas ao longo do macadame: «[...] não cheguei a acabar a terceira
102 «A Diferença Somos Nós»
classe... Não tinha capacidade... para a escola... O professor embicava comigo... E eu com
ele... Não tinha capacidade... Mas também trabalhava mais que ele... Desde moço
pequeno que o meu pai me punha ao serviço... Ele era com ovelhas, ele era dar o penso
aos coelhos. Carregar o carro com o milho... Fazer as mêdas... Trabalhava mais que o pro-
fessor... Se – sei lá? – tivesse tido outra vida...». (Entrevista com Danilo realizada pelos
autores)
Danilo, por um lado, assume que «não era nada bom na escola», um «facto» que ele
utiliza para justificar a sua vida de trabalho árduo desde tenra idade. Por outro lado,
levanta a possibilidade de que, se tivesse tido oportunidade de escolher, a sua vida teria sido
outra... Como desenvolveremos a seguir, a história que conta sobre si mesmo transporta
frequentemente a sua história em negativo, a sua anti-história, a que inclui as possibilida-
des impossíveis de surgir como tal.
Os «Lugares», por sua vez, dado que são abstracções das possibilidades enquadradas
pelo tempo e pelo espaço, só ganham vida, enquanto tal, em contextos concretos. Estes
contextos incluem, como dissemos na introdução a este capítulo, a família, a escola, o hos-
pital, a prisão, o tribunal, a vizinhança, etc. É nestes contextos que as possibilidades e as
impossibilidades, traduzidas por «Lugares», são activadas ou desactivadas. Este processo
implica a gestão das escolhas disponíveis para os indivíduos e grupos e as estratégias para
assumir que algumas das escolhas se encontram para lá das nossas possibilidades. Cabe,
neste âmbito, recordar o caso do cantor Michael Jackson, que parece ter feito todo o
possível para se tornar «branco», o que teve, aliás, como efeito realçar a sua «negri-
tude». Outro exemplo, numa direcção oposta, refere-se àqueles que, recusando a genero-
sidade dos que lhes oferecem acesso à sociedade branca, proclamam que são «negros por
escolha».
Os «contextos» que activam os «Lugares» e que, por sua vez, activam os «espaços
estruturais», são, como dissemos antes, configurações espácio-temporais que apresentam
possibilidades que fazem nascer escolhas, tanto para o indivíduo como para os grupos. O
contexto da escola é um excelente exemplo deste processo: ao mesmo tempo que delimita
possibilidades, estas encontram-se, elas próprias, limitadas tanto em natureza como em
número. Por exemplo, um estudante que herdou um capital cultural apreciável (para usar
a expressão de Pierre Bourdieu) não só tem maior gama de oportunidades à sua frente,
mas também, como resultado destas oportunidades, um número mais elevado de escolhas
reais.
Os estados-nação modernos atribuíram a este contexto – a escola – um lugar privile-
giado na concretização do processo de formação da identidade. Como vimos em «O Lugar
da cidadania», espera-se da escola que produza indivíduos com uma ligação forte ao grupo
nacional identificado como sendo os cidadãos de um estado-nação. Este processo de acul-
turação, com as suas componentes diferenciadas – o processo de aprendizagem para ser
um bom trabalhador, um bom pai, um bom cidadão, aprender a ser disciplinado, a ser cos-
mopolita – fizeram da escola um contexto central para a unificação de todas as lógicas ine-
Cinco lugares do impacto de exclusão social 103
rentes aos «espaços estruturais». Neste sentido, a escola tornou-se o contexto privilegiado
da inclusão, o que levou certos autores, à luz da realidade da tendência para a exclusão ine-
rente à escola de massas – ligando ainda esta tendência à reprodução de desigualdades
sociais e culturais –, a falar em «ideologia da inclusão» que, apesar de surgir aparente-
mente fundamentada na promoção da igualdade, serve, de facto, às finalidades do mercado
(Correia, 2001).
dade ocupacional («sou um electricista», «sou um padeiro», etc. – ver «O Lugar do traba-
lho»). Cada indivíduo e as suas estratégias de vida desenvolvem-se progressivamente
na base de uma identidade criada dentro e através da actividade laboral e no lugar que
cada qual ocupa no mundo da produção como se este último moldasse as características
de cada um.
No romance Mulheres Apaixonadas, de D. H. Lawrence, a personagem Birkin afirma
que mesmo os desejos dos indivíduos se expressam na base da sua situação de classe:
[...] temos o ideal dum mundo perfeito, correcto, eficaz e decente. Mas, em seguida,
cobrimos a terra de imundíces; a vida é um pântano de insectos debatendo-nos
no charco, a fim de que o mineiro tenha um piano na sala e você um mordomo e um
automóvel na sua casa modernizada; e todos, como nação, podemos divertir-nos no
Ritz ou no Empire, com a Gaby Deslys e com os jornais de domingo. É lúgubre, meu
amigo!
[...]
– Não considera você o piano do mineiro (segundo a sua expressão) como o sím-
bolo de uma ambição verdadeira, o desejo de qualquer coisa mais alta na vida do ope-
rário?
– Mais alta? Sim. Perturbadoras alturas da grandeza absoluta! Eleva-o bastante aos
olhos do mineiro seu vizinho. Vê-se refractado no conceito deste último, como que
aumentado através da neblina... umas poucas de vezes o comprimento do piano... e fica
satisfeito. Vive para manter essa ilusão, que é a sua própria imagem reflectida na opinião
pública. Você não faz diferença. Se, aos olhos dos seus semelhantes é pessoa de impor-
tância, não é de menor importância com relação a si mesmo. Eis a razão pela qual tra-
balha tão afincadamente nas minas. Se for capaz de extrair carvão suficiente para cozi-
nhar cinco mil jantares por dia, é cinco vezes mais notável do que se produzisse apenas
para o seu próprio jantar. (Lawrence, 1970: 63-4)
vos de legitimação dos seus aparentemente gloriosos feitos, mas que foram, muitas vezes,
e na prática, pouco mais do que a justificação da escravatura, da colonização, da explora-
ção capitalista, etc. Em resultado disto, o estado-nação enquanto mecanismo discursivo
capaz de reorganizar todos à volta da sua bandeira, começou a perceber a sua crescente
fragilidade. Em segundo lugar, como foi dito antes em «O Lugar da cidadania», as próprias
«diferenças» começaram a rebelar-se contra os ditames epistemológicos, sociológicos e
políticos do estado-nação. Com base na localidade e na diferença, as narrativas nacionais
foram desafiadas por outras narrativas, sendo elas ecológicas, feministas, referentes a iden-
tidades sexuais, estilos de vida, populações indígenas, etc. O resultado da confluência
destas duas razões foi um processo de enfraquecimento da narrativa nacional como ins-
trumento de legitimação para actos de violência, redistribuição da riqueza e de poder. Por
outras palavras, a pluralização das narrativas no interior do estado-nação teve lugar sem
ter desaparecido a própria narrativa do estado-nação.
A autonarração sentiu, por outro lado, o processo de pluralização dos espaços estrutu-
rais onde se forma a identidade. Neste sentido, cada lugar é mais heterogéneo e eventual-
mente fragmentado. Como dissemos antes em «O Lugar da cidadania», o espaço estrutural
delimitado pela acção do Estado está a ser reconfigurado pelo que nós designámos «a cida-
dania reclamada», isto é, a cidadania cujos contornos se desenvolvem com base na dife-
rença (por isso, a cidadania pode ser reclamada não só pela afirmação «sou francês», mas
também pela afirmação «sou homossexual») (ver também Magalhães e Stoer, 2003). Este
processo de reconfiguração apresenta claras implicações para o processo de pluralização
dos indivíduos: por exemplo, é mais ou menos importante para a estruturação do self ser
francês ou ser homossexual?
Como vimos em «O Lugar do trabalho», o trabalho, tal como é conceptualizado no
capitalismo moderno, é um processo que se está a reconfigurar. Ao tornarem-se flexíveis e
imprevisíveis, as carreiras profissionais já não constituem, como anteriormente, uma base
sólida sobre a qual a identidade se possa construir. As profissões articulam-se com trajec-
tórias de vida, mas não definem os indivíduos. No espaço doméstico, criam-se também
condições para a pluralização dos selves. Isto acontece, por exemplo, das seguintes formas:
desafios à «estrutura feudal» (Beck, 1992) da família; crescente complexidade do que é
considerado família; diferenças que invadem a família.
É ainda crucial para a formação de identidades a crescente importância daquilo que nós
referimos (na linha de Santos, 1995) como o lugar mundial. Por um lado, as identidades
do estado-nação são aspiradas para cima (sem necessariamente perderem a sua soberania)
por grandes identidades regionais em formação (tais como a União Europeia); por outro
lado, ao mesmo tempo que isto acontece, as identidades locais são também afectadas e
recompõem-se em relação às identidades mais amplas (frequentemente «a favor» ou «con-
tra»). O crescente protagonismo do espaço mundial não reduziu forçosamente o papel das
comunidades locais. O poder da comunidade, em vez de ser paradoxal (no que se refere à
globalização) torna-se, pelo contrário, uma das consequências do próprio processo de glo-
balização, quer dizer, é simultaneamente local e, neste sentido, está a lidar com um pro-
Cinco lugares do impacto de exclusão social 107
cesso de «glocalização». Tomemos, por exemplo, o caso das estátuas de Buda no Afeganistão
que se tornaram o centro de uma crise mundial devido à expressão das identidades reli-
giosas locais que quiseram, assim, fazer valer a sua diferença face à hegemonia ocidental.
O ornitorrinco não é a combinação de um pato com um castor que, por sua vez, tem
semelhanças com uma toupeira. Não é uma colagem, mas, antes, uma entidade própria.
Neste sentido, é interessante distinguir, nos três textos que a seguir apresentamos, entre
os personagens de Cissako, Maalouf e Maya.
Cissako gosta de viver aqui (em Paris). Mas, se pudesse escolher, vivia no Mali, junto
da sua família gigante que partilha a mesma casa: três mulheres e onze filhos entre os
dois e os vinte e três anos. Por ele, a família não era tão grande, uma mulher bastava-lhe.
Mas os pais insistiam para que casasse de novo e ele, bom filho, não quis contrariá-los:
casou uma vez, mais outra e mais outra. «No Mali é assim, temos de seguir a tradição e
respeitar a palavra dos mais velhos», diz Cissako. Este africano que chegou a Paris em
1979 é um fiel seguidor da tradição africana que aprendeu e nem estes vinte anos em
França o fizeram mudar de opinião em relação a temas como a excisão. Ele mandou exci-
sar as oito filhas uma semana após o nascimento e explica o porquê: «se as mulheres não
forem excisadas em pequenas, desejam os homem e, aí, nós já não conseguimos ter três
mulheres [...] Temos de manter a nossa tradição familiar e conjugal» [...].
O tema da excisão é quente em França como em qualquer país que acolha no seu seio
comunidades com práticas culturais que violem o que está definido como «direitos
humanos». Cissako sabe-o e é por isso que defende que, em França, as comunidades
estrangeiras não devem praticar a excisão. «Quem tenha filhas em França deve ir ime-
diatamente ao seu país fazer a excisão, enquanto elas ainda são pequenas, e depois voltar.
[...] Em França, devemos viver como os franceses», remata. E é isso mesmo que faz sem-
pre que sai do foyer: despe a longa túnica azul com que nos recebe e enfia umas calças
claras, com camisa bem engomada e blusão beige. «Sempre que ando na rua, visto-me
como os ocidentais, porque não tenho que dar nas vistas, devo ser como a maioria. No
foyer é outra coisa, é como se estivesse em minha casa», explica. (Godinho, 2002)
108 «A Diferença Somos Nós»
«Sou um camaleão!»
Maya é uma japonesa nascida em Tóquio que, «aos quinze anos já tinha aprendido
como ser japonesa». Foi para os Estados Unidos de onde o seu pai era natural, depois foi
dois anos para Taiwan, apaixonou-se por um inglês e foi viver para Londres. Elegeu Paris
entre todas as cidades que conhecia por lhe parecer a que melhor enquadrava as suas
múltiplas vidas:
Agora, entre todas as cidades do mundo, Maya escolheu Paris, onde «tudo o que faço
está bem. Em França vale tudo!». Claro que as coisas são assim porque não tentou ser
francesa. «Gosto de me considerar uma cigana... Sinto que sou feita de cores diferentes.
Não sei dizer que parte é que sou: a americana ou a japonesa. Sou a soma, sou o total».
Passou a ser apresentadora para a televisão japonesa. Quando entrevista um ocidental em
inglês, é completamente ocidental, mas quando coloca a maquilhagem e apresenta a
entrevista em japonês, na NHK, os seus olhos iluminam-se de uma maneira diferente, a
linguagem transforma as suas expressões faciais e parece ser uma pessoa diferente. «Sou
um camaleão», diz. A vantagem está em que se sente confortável numa muito maior
gama de caracteres. (Zeldin, 1996: 48)
A identidade de Cissako parece ser uma bricolage de diferentes selves: está perfeita-
mente consciente que o seu self mali existe independentemente do seu self francês. Parece,
no entanto, manipular os contextos de acordo com os seus desejos, isto é, parece «usar»
os contextos para construir a sua própria identidade. Todavia, poder-se-ia argumentar que
o que se passa neste caso é exactamente o contrário: podemos analisar o caso em termos
de serem os contextos que determinam que self é que Cissako assume num determinado
momento. Não é Cissako que manipula os contextos; são antes os contextos que manipu-
lam Cissako.
Maalouf, por sua vez, considera-se também produto de um processo de bricolage.
Declara veementemente que, em todos os contextos, todo ele está presente. Mais: insiste
Cinco lugares do impacto de exclusão social 109
que nenhuma parte de si pode ser alienada sem ele perder a sua identidade. Podemos afir-
mar, assim, que Maalouf manifesta a existência de uma luta com os diferentes contextos e
está ansioso por impor o seu controlo sob eles.
Finalmente, Maya afirma ser um «camaleão», assumindo naturalmente que a sua apa-
rência muda em conformidade com o contexto. Neste sentido, vive todos os contextos
como se não houvesse tensões entre o contexto e os seus diferentes selves. Todavia, não
existem «selves verdadeiros», como algumas teorias psicanalíticas parecem sugerir. Pelo
contrário, é o grau de reflexibilidade de Maya que aqui está em jogo. Podemos entender
esta posição de Maya através da afirmação de teor psicanalítico: «em lugar do Id colocar o
Ego». Assim, a pluralização de identidades não pode ser reduzida à existência de persona-
lidades múltiplas, um fenómeno do foro do Id e não do Ego: podemos, dessa forma, argu-
mentar que a identidade múltipla de Maya parece ter sido por ela levada a tal ponto que se
tornou, não um camaleão como ela diz, mas, sim, um ornitorrinco!
Conclusão
próprio. Estas histórias desempenham um papel fundacional e, por isso, ontológico, dado
que dão sentido e legitimidade à posição e à acção social dos indivíduos.
Esta afirmação poderia ser vista como profundamente idealista se a entendêssemos
como a redução de um contexto e das suas respectivas determinações estruturais (através
das quais os indivíduos se confrontam a si próprios) à sua tradução em discurso. No
entanto, as determinações e constrangimentos surgem dos contextos, ao mesmo tempo
como elementos narrativos e como o lado «negativo» da narrativa. Este facto é particu-
larmente evidente nas justificações dadas pelos sujeitos nas suas narrativas para as esco-
lhas que fizeram. Como Sarup sugere, as histórias que contamos sobre nós próprios e
acerca das escolhas que fizemos deixam por detrás como que um negativo de uma foto-
grafia, todas as outras histórias e escolhas que nós não contamos, que não fizemos e que
nem sequer surgiram como possibilidades:
[...] penso que se pode dizer que a identidade não é auto-suficiente; é necessaria-
mente completada por uma certa ausência, sem a qual não existe. Parece útil perguntar
às identidades o que é que elas implicam e o que é que não dizem. Ou à volta ou no limiar,
o explícito requer o implícito. Tal como no discurso, para se dizer alguma coisa, há
outras coisas que não devem ser ditas; poderíamos dizer assim: para se ser alguma coisa
há outras que se não pode ser. O que é importante na identidade não é aquilo que se pode
dizer, mas sobretudo aquilo que se não pode ser. (Sarup, 1996: 24)
O que faz da identidade um assunto tão central como «Lugar» é a sua crescente refle-
xividade. Os indivíduos e os grupos parecem estar cada vez mais conscientes do processo
de formação identitária e das suas possibilidades de intervir sobre ele. Por outro lado, onde
antes encontrávamos certezas – «Sou da classe média, branco, anglo-saxónico, protes-
tante, sexo masculino e urbano» – surgem agora incertezas. «Sou da classe média?», «Sou
anglo-saxónico?», «Sou branco?», «Sou urbano?». Quer dizer, sou, ou quero ser, alguma
dessas identidades ou todas elas? A pluralização de identidades, que referimos antes, leva-
-nos a uma situação em que é necessário «(h)abitar pelo menos duas identidades, falar
(pelo menos) duas línguas de cultura, traduzir e negociar entre elas. As culturas do hibri-
dismo são um dos tipos distintivos das identidades que se produzem na era da moderni-
dade tardia [...]» (Hall, 1992: 310).
O LUGAR DO TERRITÓRIO
ciam. Por exemplo, os gregos concebiam o seu território como um espaço delimitado pela
polis. A dimensão da cidade e o número dos seus habitantes deveria ser tal que, do seu
ponto mais elevado, pudessem ser abarcados com o olhar. Na Idade Média, o território, nas
sociedades ocidentais, foi visto do ângulo da identidade com o cristianismo. A palavra de
Deus e a cidade de Deus eram território cristianizado. O trabalho de Santo Agostinho De
Civitate Dei defende que a história da humanidade se fez da luta entre duas cidades ou
reinos: a cidade da Terra e a cidade de Deus, o reino da carne e o reino do espírito. Em
ambos os casos – para os gregos e para os tempos medievais –, o território é determinado
pela sua apropriação por parte da comunidade e é, pois, político nesse sentido.
O tempo e o espaço em sociedades tradicionais foram organizados na base de dualida-
des tais como o tempo/ espaço sagrados e o tempo/ espaço profanos. A sociedade determi-
naria, então, certos momentos e certos espaços como centrais para a vida da comunidade.
A própria vida dos indivíduos estava organizada à volta de momentos especiais (segmentos
de tempo) e espaços (segmentos de espaço). Neste sentido, o tempo e o espaço estavam
estruturalmente organizados na base de rituais que tinham a repetição como a sua finali-
dade. É a repetição do acto fundador, tanto da sociedade como dos sistemas de crenças, que
sublinha o tempo e o espaço sagrados. O tempo e o espaço profanos são definidos com base
no que não é sagrado, isto é, o que é profano é o que constitui o outro lado do sagrado e é
definido em relação a ele. Tanto o espaço e o tempo sagrados como os espaços e os tempos
profanos ocupam todo o tempo e todo o espaço, o que significa que, nas sociedades tradi-
cionais, não existem momentos nem espaços vazios. O território, neste sentido, encontra-
-se impregnado de significações simbólicas para a comunidade que, pelo seu lado, converte
o território na «nossa» terra.
Nesse contexto, o estranho e o território exterior à comunidade são uma ameaça, por
exemplo, de caos, e são entendidos na maioria dos casos como tendo um estatuto inferior.
Ser incluído é ser parte da árvore familiar, da comunidade, parte da sua história genealó-
gica e, desta forma, identificável com um lugar e com um nome. Deste modo, nas socie-
dades sedentárias, os nómadas são vistos como uma ameaça potencial; mais tarde, no
estado-nação, sofreram pressões de um estado normalizador, que os quis integrar no seu
ímpeto regularizador. Os povos nómadas foram frequentemente vistos como perigosos, e
não só porque eram inidentificáveis em termos de nome e em termos de espaço. A inclu-
são/ exclusão na comunidade verifica-se pela atribuição de um lugar hierárquico ao indi-
víduo ou ao grupo. Assim, o território não-homogéneo é, em si próprio, uma fonte de
inclusão/ exclusão. Desde que se nasce num determinado lugar, existe a expectativa de que
lá se permaneça ou se seja obrigado a lá ficar.
O território homogéneo
Nos tempos modernos, o território era equivalente ao que era determinado pelas
fronteira físicas do estado-nação. Este conceito de território estruturou, durante mais
112 «A Diferença Somos Nós»
de dois séculos, a relação entre o tempo e o espaço nas sociedades ocidentais, particu-
larmente quando o capitalismo se entrelaçou com a modernidade. Não só o tempo se
tornou dinheiro, como também o próprio dinheiro acabou por circular internacio-
nalmente, ligando territórios, descontextualizando, como Giddens afirma, o tempo do
espaço.
Na verdade, as narrativas nacionais atribuem ao território um papel fundador que se
encontra ilustrado na referência comum feita ao território nacional como «território
paterno» ou «terra-mãe». É interessante notar como o patriotismo – o amor pelo seu país
– se opõe à reivindicação das nações modernas de ser racionalmente construídas e etnica-
mente plurais. O caso dos Balcãs realça esta contradição entre o estado-nação racional-
mente construído e o desejo de eliminar grupos étnicos competidores. Neste sentido,
pode-se argumentar, por exemplo, que a Sérvia, em nome da diferença dos sérvios, dese-
jou «limpar» o seu território dos «outros» competidores.
No paradigma sociocultural da modernidade, o espaço global é concebido como um
«espaço nações», isto é, não existe território que não possa ser concebido como território
nacional e, neste sentido, todo o território é totalmente incluído. Por outras palavras, não
existe espaço para as designadas «terras de ninguém» – e quando elas existem, por exem-
plo sob a forma de «zonas desmilitarizadas» constituídas por zonas entre as fronteiras de
estados-nação, deixam de ser território dos estados-nação sob a condição de se tornarem
efectivamente «terras de ninguém». Mesmo a Lua, tocada pelo primeiro homem em 1969,
foi imediatamente reivindicada através do símbolo da bandeira americana. De facto, é inte-
ressante verificar como o território se tornou tão importante na modernidade: ao rece-
bermos um bilhete-postal do estrangeiro, a primeira pergunta que fazemos é: «de onde
veio?» significando: «que país controla esse território?».
A segunda característica importante do território no contexto da modernidade é a sua
natureza homogénea. Por acção do estado, através do seu aparelho e agentes, o território
nacional e tudo o que constitui a sua superfície são homogeneizados pelas normas judi-
ciais, educacionais, de saúde, de habitação e de ambiente que constituem a sua base e as
suas regras de governação. A nacionalização do território corresponde à territorialização
do estado em dois sentidos: em primeiro lugar, o estado apropria-se simbólica e efectiva-
mente do território e, em segundo lugar, o que é local é convertido em nacional (ver «O
Lugar da cidadania»).
Ser homogéneo significa, enquanto projecto político e no sentido republicano: (i) ser
o mesmo em todos os locais, portanto os espaços e edifícios públicos assemelham-se inten-
cionalmente por todo o território («o mesmo estado, para todos os cidadãos no mesmo ter-
ritório»); (ii) ser geométrico, significando que em todos os pontos do território nacional
se encontra uma equidade qualitativa (a diferença entre Londres e Manchester tem a ver,
em termos matriciais, com a diferença em quilómetros e não com a qualidade dos servi-
ços estatais). Neste sentido, todos os locais no território nacional são equivalentes.
Finalmente, significa que a organização racional do território nacional é como se de um
todo se tratasse e não na base de considerações locais.
Cinco lugares do impacto de exclusão social 113
No que respeita à inclusão/ exclusão, o território nacional define a fronteira entre o que
é exterior – e, logo, estranho – e o que é interior – e, por isso, pertencente ao espaço nacio-
nal. Quanto ao primeiro aspecto, a regulação pelo sistema inter-estadual atribui ao estado-
-nação o papel de lidar com os que são actualmente cidadãos de outros estados-nação e
formalmente «estrangeiros» e, assim, potenciais criadores de caos. Em relação ao segundo
aspecto, a acção homogeneizadora do estado e dos seus agentes (professores, médicos,
enfermeiros, assistentes sociais, polícia, juízes, etc.) tenta assegurar uma distribuição
racional (que implica uma mobilidade interna) (ver Gouldner, 1970). A regulação do fluxo
e a distribuição da população no território nacional implica o controlo de todos os que
podem potencialmente escapar ao amplexo de cuidados por parte do estado; por exemplo,
aqueles que cometem «más acções» e crimes, aqueles que circulam erraticamente (os
ciganos, por exemplo), os que chegam ilegalmente do estrangeiro (refugiados e migran-
tes) e os que questionam o que, na verdade, é importante para a vida (por exemplo, os
doentes mentais). Esse controlo implica a criação de territórios internos, ainda que mar-
ginalizados (asilos, prisões, alojamentos sociais, hospitais psiquiátricos, etc.), de forma a
reabilitar os indivíduos enquanto cidadãos «saudáveis» e assegurar o ordenamento racio-
nal das relações sociais. Todos os territórios, como territórios potencialmente homogé-
neos, vêem a diferença e a diversidade como uma ameaça que, no mínimo, deve ser disci-
plinada. Esta disciplina da diferença é articulada, de uma forma mais ou menos evidente,
com as necessidades do mercado de trabalho e com as preocupações com o crescimento
económico. Assim, não chega ser um bom cidadão nacional, é necessário ser também um
bom trabalhador (ver «O Lugar do trabalho»).
Podemos afirmar que o que tem sido designado «globalização neoliberal» implica um
processo de desterritorialização, especialmente, como lembra Santos (2001), no que res-
peita às relações sociais (ver «O Lugar da cidadania»). Como vimos antes, a chamada «eco-
nomia do conhecimento» funciona mais na base da informação e da comunicação e menos
na base de produtos materiais. Santos sugere que a «economia do conhecimento» usa
meios sem materialidade e, por isso, é independente dos territórios. Todavia, ao mesmo
tempo que isto deve ser reconhecido, é também verdade que se verifica uma nova afirma-
ção das relações sociais baseadas na territorialização.
Conclusão
Nas sociedades pré-modernas, o território era definido pela comunidade local. A exclu-
são social resulta aí do facto de não se pertencer a essa comunidade. Assim, o que provém
de fora da comunidade e do seu território é encarado como uma ameaça. As sociedades
tradicionais apropriaram-se do tempo e do espaço da mesma forma que se apropriaram
dos indivíduos por meio de processos de socialização. Por outras palavras, os indivíduos
são, nas sociedades tradicionais, definidos pelo seu enquadramento cultural, sendo este
expresso por símbolos sociais que significam a sua comunidade. Ser incluído é reconhe-
cer esses símbolos como organizadores do tempo e do espaço, e a vida dos indivíduos
como parte dos rituais diários da sociedade. Isso significa que a inclusão tende a ser ou
total ou o seu oposto, isto é, exclusão. Não existe posição intermédia. Os territórios são
independentes uns dos outros, porque o que os define são as comunidades locais. Na polis,
no caso dos gregos, as mulheres, os estrangeiros (os que nasceram fora da cidade) e
os escravos não eram cidadãos não porque fossem excluídos tout court, mas, antes,
porque tinham um estatuto inferior. Ser excluído era ser um marginal, desconhecido ou
«bárbaro».
Com o advento do estado-nação, o território torna-se nacional em escala global. O
espaço do estado-nação é homogéneo no sentido de que as particularidades são sacrifica-
das, de forma a que o universalismo possa assumir um papel de liderança no projecto de
desenvolvimento da modernização. O que contribui para este projecto é visto como válido,
tal como acontece com a escola pública baseada no princípio da igualdade de oportunida-
des. As instituições do estado-nação, tal como a escola pública, esforçam-se por se tornarem
universais e por se promoverem na base do que Dale refere como «uma cultura mundial
comum» (2000). O que, pelo contrário, sai fora da norma nacional é visto como ameaça-
Cinco lugares do impacto de exclusão social 117
dor para o território e, dessa forma, disfuncional. Como resultado, o estranho tende a ser
empurrado para as margens da sociedade, para territórios «especiais» construídos com o
objectivo de reeducar, recuperar e reintegrar indivíduos no território depois de terem
reconhecido e de terem aceitado que se desviaram da norma.
Nos territórios heterogéneos e hiper-reais da sociedade em rede, ser incluído é fazer
parte de uma rede. O acesso à comunicação e à informação decide o território – o territó-
rio físico nacional confunde-se com territórios fragmentados e virtuais, desenvolvido na
base de identidades locais e culturais e no fluxo do dinheiro. Dado que se encontra cada
vez mais baseado neste fluxo de dinheiro e no capital financeiro, o capitalismo desterrito-
rializa radicalmente, por um lado, a produção, a distribuição e o consumo e, por outro,
identidades, o que significa que vão sendo criadas condições para que as identidades já não
sejam potencialmente baseadas num local, mas, antes, cada vez mais fundadas nos estilos
de vida e nas crenças partilhadas. Assim, a relocalização que a desterritorialização aparen-
temente implica não é um retorno ao lugar do território tradicional. É, antes, um lugar
reinventado, frequentemente sem território. O regresso dos intelectuais da classe média
aos espaços rurais e o seu empenho ambiental, visível, por exemplo, em Portugal, mas não
só, não é o regresso a um lugar tradicional. É, pelo contrário, uma filiação em princípios
ecológicos na forma de um estilo de vida partilhado pelos que fazem parte da rede de sim-
patizantes do «verde» (Castells, 1997). Nas palavras de Giddens (1990), trata-se de uma
«reinvenção da tradição».
Em suma, a definição de território é determinada pelo paradigma do qual ele faz parte
e a partir do qual é interpretado. Nas sociedades e culturas pré-modernas, o território era
a comunidade local e o sistema de crenças que a constituem. No paradigma de sociedade
e de cultura modernas, o território é o estado-nação, é o sistema de trabalho e de emprego
assalariado que se encontra na sua base. O território emergente das sociedades pós-moder-
nas é virtual, heterogéneo, «glocal» e desenvolvido por meio de sistemas em rede. A exclu-
são social é, no primeiro caso, estar fora dos valores e símbolos partilhados; no segundo
caso, é ser incluído num processo de reabilitação, porque o estado sempre «recupera» os
seus súbditos quer como cidadãos, quer como trabalhadores assalaridos, e, no terceiro
caso, ser excluído é, para dizer de um modo simples, não fazer parte das redes.
CONCLUSÃO
Os Lugares são as instâncias em que o impacto dos espaços estruturais acontece, isto
é, o corpo, o trabalho, a cidadania, a identidade e o território são os lugares onde poten-
cialmente se activa a agência social e os constrangimentos sociais que a delimitam e a ins-
piram. Neste sentido, são lugares onde os projectos individuais e sociais interagem entre
si, fornecendo, dessa maneira, quer a capacidade desses projectos se desenharem, quer os
limites que inevitavelmente influenciam a sua eventual realização. Os Lugares são, então,
acima de tudo, o ponto em que a agência individual e social acontecem, dado que são pre-
118 «A Diferença Somos Nós»
cisamente o ponto de onde dimana aquilo que torna os sujeitos efectivamente sujeitos (e,
nesse sentido, por seu turno, os espaços estruturais são o ponto de onde dimana aquilo
que torna as estruturas estruturas). São os lugares onde os projectos nascem e vivem,
onde a mudança social assume a forma de agência, quer essa mudança social aconteça,
ou não. Por exemplo, um militante ecologista não deixa de permanecer «verde» apenas
porque a possibilidade de realizar políticas fundadas na preservação ambiental está, num
dado momento e lugar, para além do alcance da sociedade. De facto, a preservação do
ambiente manifesta-se sob diferentes formas. No âmbito do paradigma moderno era even-
tualmente vista como um projecto político susceptível de ser gerido sob a forma do modelo
da engenharia social. Nas sociedades pós-fordistas, «ser verde» é, em si mesmo, uma pos-
tura identitária, quer dizer, é uma escolha social e/ ou individual que não tem que ter
necessariamente uma base histórica ou científica que a justifique. É esta postura que está
no cerne daquilo a que se vem chamando os «novos movimentos sociais». Por outras pala-
vras, os contextos sociais estão impregnados pelas posturas reflexivas daqueles e daquelas
que promovem novas formas de identidade, novas formas de cidadania, novas formas de
posicionamento no mundo do trabalho, novas formas de pensar e de viver o território e
novas formas de assunção do corpo por parte dos indivíduos e dos grupos. Tudo se parece
passar de acordo com o enunciado de Giddens (1990) segundo o qual nós, os ocidentais,
vivemos numa sociedade crescentemente sociológica.
Os cinco Lugares que organizam esta parte do livro só se tornam reais nos contextos –
família, escola, prisões, fábrica, igreja, bairro, lazer, etc. – nos quais se manifestam. Por
exemplo, a cidadania reclamada só acontece em dados contextos, precisamente naqueles
em que a cidadania atribuída é reflexivamente questionada pelos actores sociais, exigindo,
nomeadamente no caso da educação, que esta aconteça de acordo com as normas e os valo-
res do grupo étnico ao qual as crianças pertencem ou de acordo com os valores conside-
rados fundadores para os cidadãos que reclamam (veja-se, a título de ilustração, o caso das
lésbicas surdas que assumem a surdez como uma forma de identidade, Mundy: 2002). Os
Lugares, efectivamente, apenas têm significado sociológico nos contextos onde são, por
assim dizer, vividos.
Madan Sarup, como já se mencionou no «Lugar da Identidade», compara as determi-
nações estruturais com o negativo de uma fotografia, como se se tratasse do negativo das
possibilidades de escolha que, nos diferentes contextos sociais, se oferecem aos actores. É
este fundo «negativo» que torna algumas possibilidades realizáveis e outras irrealizáveis e,
mesmo, impossíveis de conceber. A formulação de um desejo, para dizer de outra forma,
não garante a sua realização, nem há qualquer garantia de que o próprio desejo seja for-
mulado. (E se esta formulação for válida, tanto para a dimensão individual como para a
social, traz interessantes matizes à ideia de Marx segundo a qual nenhuma época levanta
um problema que não possa resolver…). O desejo de uma família da classe trabalhadora
de que o filho ou filha se torne um cientista nuclear pode nem sequer se assumir como
enunciado do desejável. Neste trabalho pensamos que ficou claro que adoptamos os seis
espaços estruturais propostos por Santos – o espaço doméstico, o espaço do trabalho, o da
Cinco lugares do impacto de exclusão social 119
(5) «Etnicidades fictícias» são aquelas que, segundo Balibar (1991), são próprias de meros súbditos,
permanentemente «em desenvolvimento», e não cidadãos em pleno dentro do espaço da União Europeia
(por exemplo, a comunidade turca na Alemanha ou a comunidade portuguesa em França, até muito recen-
temente). Assim, a etnicidade dos imigrantes é confundida com a sua menoridade em termos de direitos
e deveres, surgindo o reforço da etnicidade não como algo de real, mas como reflexo de uma situação de
exclusão.
120 «A Diferença Somos Nós»
grupos passa, então, pela sua identificação com o exercício de papéis e de funções que arti-
culem necessidades sociais. A exclusão, por sua vez, está no desafiar da homogeneidade
identitária impressa pela lógica nacional. Em termos modernos, tudo o que desafie a
norma médica e social e assuma a incomensurabilidade de um dado estilo de vida é colo-
cado na ordem da exclusão. Ao contrário, a assunção e a reclamação desta incomensura-
bilidade das diferenças parece ser o que emerge como lógica de construção identitária no
paradigma pós-moderno. Ser alguém é verberar a sua diferença e agir socialmente a partir
dela. Ser excluído, em compensação, é não assumir essa diferença específica e, em muitos
casos, ficar condenado à condição de despossuído, despossuído de identidade e das poten-
cialidades que permitem a reclamação.
No que diz respeito ao Lugar do território, a comunidade, em termos pré-modernos,
surge como o princípio de inclusão. O território é sempre o território que a comunidade
define como o «seu», sendo o território excluído aquele que é do âmbito do inorganizado,
do caos, do alheio à comunidade. A modernidade introduziu uma lógica fundada no estado-
-nação para a definição do território. O território nacional é o único que tem sentido claro,
sendo difícil sequer imaginar territórios que não sejam de dado estado. Neste sentido, a
exclusão territorial tem a sua melhor expressão nas terras-de-ninguém. No paradigma pós-
-moderno, o território parece estar a ser reconfigurado de duas formas. Primeiro, pela sua
virtualização; segundo, pela sua heterogeneização. Por um lado, o espaço criado pelos dis-
positivos tecnológicos, postos à disposição dos indivíduos e dos grupos, torna-se forte-
mente virtual. Por outro lado, assiste-se a uma forte heterogeneização desses espaços e
territórios, dado que, ao contrário da lógica da homogeneidade nacional, são produzidos a
partir da e para difundir e afirmar a diferença (eventualmente) incomensurável dos seus
criadores. A inclusão consiste, pois, na inserção num desses espaços diferenciados, e a
exclusão num posicionamento fora da rede das diferenças e das suas interacções.
Os cinco Lugares estruturam-se pelas tensões que os constituem e pela simultaneidade
que caracteriza a sua leitura na nossa época. Consequentemente, a activação destas tensões
é, por excelência, política, no sentido em que a simultaneidade de opções e de raízes está
presente em todos os processos em que a emancipação/ regulação, agência/ estrutura e o
self como sujeito/ tecnologia-do-self são potencialidades/ limites mobilizados, sobretudo,
pelos processos políticos. Na medida em que estamos inseridos nestas dualidades, somos
obrigados a lidar com elas, sendo impossível vivê-las como se não fossem nem uma coisa
nem outra.
A natureza política dos Lugares é particularmente evidente no paradigma emergente
da pós-modernidade/ pós-fordismo devido ao facto de que, aí, as tensões parecem ser maxi-
mamente activadas. Tal parece ficar a dever-se à natureza sociológica da época e da socie-
dade em que vivemos, quer dizer, quanto mais sabemos acerca dos processos individuais e
sociais, maior é a nossa tendência para construir os guiões da acção social. É este facto que
provoca, de uma forma sem precedentes, as tensões entre estrutura e agência. Estas ten-
sões traduzem-se nos cinco Lugares das seguintes formas:
122 «A Diferença Somos Nós»
• Corpo: a tensão é entre o corpo enquanto foco de agência e o corpo enquanto tecno-
logia do self. Isto significa que, por um lado, o corpo é, enquanto parte indeslindável
do próprio self, senhor de si próprio e não um destino imposto aos indivíduos. Por
outro lado, significa que o corpo enquanto agência é apenas outra forma de controlo
do corpo, por exemplo, quando o mercado determina e configura as necessidades
individuais como mercadorias («é exactamente esse nariz que condiz com a minha
auto-imagem!!»);
• Trabalho: a tensão, neste Lugar, acontece entre aquilo a que Castells chama «traba-
lho autoprogramável» e a dissolução do trabalho em competências. Por outras pala-
vras, posicionar-se no Lugar do trabalho como trabalhador assume hoje em dia um
significado bastante diferente do de há três décadas atrás, dado que já não se é edu-
cado e socializado para se ser membro de uma ocupação tipificada, mas, antes, para
se ser, desejavelmente, detentor de um conjunto de competências transferíveis em
que a principal competência é a competência de continuamente adquirir novas com-
petências (trainability). Quem ocupa uma posição no mundo do trabalho autopro-
gramável detém um lugar privilegiado, sobretudo quando comparado com quem está
colocado no Lugar do trabalho no âmbito do trabalho genérico.
• Cidadania: a tensão, aqui, é entre a afirmação e reclamação de «a diferença somos
nós» e a fragmentação e a incomensurabilidade das diferenças que têm de viver em
conjunto num mesmo mundo. Esta tensão sublinha o carácter relacional da forma
como as diferenças são correlativas, dependentes, portanto, entre si. Sem pretender
ignorar as tensões derivadas da desigual distribuição social do poder, esta tensão tra-
duz-se na exigência aparentemente paradoxal segundo a qual somos simultanea-
mente obrigados a viver entre diferenças e a viver a nossa própria diferença;
• Identidade: neste Lugar a tensão é entre a crescente hibridização das identidades e
o risco de aniquilação dessas mesmas identidades. Na medida em que os diferentes
selves se tornam heterogéneos de acordo com projectos mais ou menos reflexivos, as
identidades parecem distender-se entre dois pólos: o pólo esquizóide e o pólo narci-
sista. Por exemplo, a tensão entre aqueles indivíduos que organizam a sua diferença
em torno de apenas um único eixo (ser gay, ou ser de «Esquerda», para dar apenas
estes exemplos) e aqueles outros que a organizam em torno de múltiplos eixos (o
indivíduo que, durante o dia, se envolve no cuidar de uma criança, que, à tarde, é pre-
sidente de uma associação de emigrantes, e que, à noite, assume a identidade de um
pastor evangelista, sem solução de continuidade);
• Território: a tensão que estrutura este Lugar é aquela entre territórios virtuais e ter-
ritórios heterogéneos, sendo que, no primeiro tipo de territórios, as diferenças tendem
a ser diluídas no hiperespaço da comunicação/ informação e, no caso do segundo tipo,
as diferenças são instaladas nos seus «próprios» territórios. A possibilidade de comu-
nicar de uma forma eficiente para além dos territórios físicos não dilui a diferença
real que esses territórios contêm em si mesmos e entre si. A luta política dos índios
Chiapas assumiu a Internet como uma das suas estratégias centrais, permitindo-lhes
Cinco lugares do impacto de exclusão social 123
divulgar a sua diferença, as suas exigências e a sua luta a nível mundial. Contudo, dado
que ter mais informação não corresponde a saber mais, o reconhecimento dessa luta
não conduz necessariamente à sua compreensão.
Estas tensões que atravessam os cinco Lugares estão na base da forma como, contem-
poraneamente, a exclusão/ inclusão social se revela. Também enfatizam a dimensão polí-
tica destes fenómenos e o facto de que não há fórmulas universais, ou soluções-receita
para a acção, mas, antes, que todos os indivíduos, todos os cidadãos, são chamados a agir
no sentido de assumirem a sua parte na construção dos seus próprios mundos.
Em conclusão, a nossa noção de agência, que constitui um dos conceitos fundamen-
tais, baseia-se em quatro considerações. Primeira: a agência política surge cada vez menos
como «engenharia social», no sentido em que não é possível já conceber a existência de
um engenheiro social que possa com clareza, com brancura social e de forma epistemolo-
gicamente transparente, traçar um mapa referindo direcções universalmente consensuais.
A nossa experiência histórica de engenharia social parece ter frequentemente conduzido a
efeitos perversos, como a vitimização dos excluídos, em vez de ter suscitado a assunção por
parte destes do processo de os tornar sujeitos da sua própria inclusão. Em segundo lugar,
a agência política não se encontra predeterminada por um projecto que generosamente
inclua todos os indivíduos no seu âmbito, incluindo aqueles que tenham sido excluídos.
Por outras palavras, os processos de exclusão/ inclusão devem ser geridos com base na
própria diferença e não em quaisquer discursos sobre ela, sobretudo aqueles que, estabe-
lecendo o projecto político com vista a corrigir as injustiças sociais, sacrificam no mesmo
passe as exigências das próprias «diferenças» (incluindo a nossa própria diferença). Em
terceiro lugar, a agência política depende da assunção de uma certa modéstia no que diz
respeito à questão da mudança social. Com alguma frequência, o mundo que generosa-
mente queremos construir para os outros é precisamente o mesmo em que nós próprios
queremos ser incluídos. Assim, lutar pela inclusão é lutar pela afirmação da diferença pró-
pria e não por um «mundo» próprio. Em quarto lugar, e finalmente, se o enunciado «a
diferença somos nós» tem o efeito de reduzir a diferença entre as diferenças pela recusa de
reconhecer que as próprias diferenças são desiguais, em vez de fazer o contrário, tudo
aquilo que defendemos neste livro cairia pela base.
5
CAPÍTULO
A incomensurabilidade da diferença
e o anti-antietnocentrismo
Este capítulo debruça-se sobre a emergência da diferença como conceito e como prá-
tica. Procuramos identificar aqui, no quadro do debate mais amplo sobre a universalidade,
ou não, dos projectos políticos, a substância relacional do conceito de diferença. Partindo
do debate entre o antropólogo americano Clifford Geertz e o filósofo, também americano,
Richard Rorty, sobre os limites do etnocentrismo e do relativismo, procura-se enfatizar que
o «diálogo» entre as diferenças culturais está longe de possuir um carácter «benigno»,
como algum multiculturalismo mais conservador poderia fazer crer. Introduz-se aqui,
também, o conceito de «bazar» como organizador da perspectiva política segundo a qual
as diferenças são da ordem do relacional e não produto de uma determinação a partir de
um centro epistemológica e sociologicamente privilegiado.
(…) levou a uma posição em que a diversidade cultural, no espaço e no tempo, reduz-
-se a uma série de expressões, algumas saudáveis e outras não, de uma realidade subja-
cente estabelecida, a natureza essencial do homem (...). (1984: 14)1
Assim,
Para escapar a esta imposição, para escapar aos «ditames universais da lógica (“natu-
reza essencial do homem”) e da ciência (“conceito generalizador”)» (Shweder, 1997: 164),
Geertz propõe o anti-anti-relativismo, ou, por outras palavras, apoia-se na ideia de que é
possível defender o relativismo sem se cair nos excessos do relativismo.
A INCOMENSURABILIDADE DA DIFERENÇA
Richard Rorty, num artigo dirigido àquele outro já citado de Geertz, define a inco-
mensurabilidade da diferença da seguinte maneira: trata-se, «para nós» (sic), de uma ten-
tativa de comunicação entre «nós» e «pessoas que não podem ser consideradas como pos-
síveis parceiros de conversa», isto é, trata-se de «pessoas (...) consideradas (por nós) como
irrecuperáveis». Na verdade, não vale a pena fazer o esforço para falar com, ou tentar com-
preender, estas pessoas: «são irremediavelmente loucas, estúpidas, primitivas, pecadoras»
(Rorty, 1991: 203). Alguns, sustenta Rorty, pensarão nos judeus ou nos ateus desta
maneira; outros pensarão assim dos nazis ou dos fundamentalistas religiosos. Outros
ainda, podemos nós (os autores deste trabalho) acrescentar, pensarão desta maneira dos
ciganos ou dos africanos.
Rorty afirma que os liberais (burgueses) ficam assustados quando dão por si a pensar
desta maneira. Porquê? Porque assumem que, no fundo, prefeririam morrer a serem con-
siderados etnocentristas (o etnocentrismo é visto como o extremo oposto do pensamento
liberal). Contudo, é precisamente o etnocentrismo que subjaz a tais considerações. Os libe-
rais de mais pura convicção (designados por Rorty como os wet liberals) são aqueles que
levam esta argumentação até as suas últimas consequências, isto é, combatem o etnocen-
trismo até ao ponto de assumirem, eles próprios, uma posição relativista, assim «procu-
rando (nesse processo) ter mentes tão abertas que até arriscam a que os seus cérebros
caiam por fora dos seus crânios» (1991: 203)!
(1) Ver, como possível exemplificação desta posição, o artigo de M. Spiro (1998).
A incomensurabilidade da diferença e o anti-antietnocentrismo 127
Para Rorty, a argumentação dos wet liberals provoca nele uma reacção: aquilo que
denomina como o anti-antietnocentrismo! Isto é, o relativismo resultante do anti-etno-
centrismo dos liberais de mais pura convicção parece, em primeiro lugar, conduzir a um
beco sem saída. Como é sabido, a relativização das culturas tende a acabar na sua separa-
ção, cada cultura assumindo a diferença que a distingue de todas as outras. Além da fossi-
lização da cultura à qual esse processo parece conduzir, é manifestamente impossível a sua
realização numa época de globalização em que as culturas são «condenadas» a confrontar-
-se umas com as outras. Em segundo lugar, o relativismo dos wet liberals obriga a que se
relativizem os valores até ao ponto de se pôr em questão todos os valores.
O anti-antietnocentrismo de Rorty desenvolve-se na base de uma distinção entre o que
o mesmo denomina de etnocentrismo hard («venenoso»; «vicioso»), em que o outro é
simplesmente rejeitado em razão da sua diferença, e etnocentrismo soft, que se baseia no
reconhecimento do outro sem a transformação desse reconhecimento numa hermenêu-
tica de conhecimento. Rorty ilustra esta última forma de etnocentrismo, que exprime o
conteúdo da sua postura anti-antietnocentrista, através da metáfora de uma comunidade
constituída por casas que têm as suas janelas abertas para o exterior, comunidade essa sem
pretensões de ser a melhor ou a mais racional das comunidades, mas que, ao mesmo
tempo, defende os seus valores como os únicos capazes de orientar o seu projecto.
(…) um índio americano com uma doença de rins inscreve-se para tratamento numa
máquina de hemodiálise. Ao mesmo tempo, ignora a ordem dos médicos para não inge-
rir mais bebidas alcoólicas. Poucos anos depois morre, presumivelmente por causa da
sua recusa de parar de beber. (citado em Rorty, 1991: 204)
Segundo Geertz, a morte do índio constitui um dilema moral não só para os médicos,
confrontados com valores e comportamentos hostis aos seus, como para todo o pensa-
mento iluminista. No fundo, trata-se, afirma Geertz, de «um caso duro com um fim duro».
Isto é, o que faz o índio beber relaciona-se com relações sociais baseadas num poder insti-
tuído que é incapaz, como sustenta Shweder, de «defender a co-igualdade de “quadros” de
compreensão fundamentalmente diferentes» (ibidem). Tal como o índio cuja incapacidade
para parar de beber é condenada (não só pelos médicos, como também pela sociedade envol-
vente em geral), independentemente deste facto ter sido (ou não) a razão da sua morte,
128 «A Diferença Somos Nós»
(…) quando a pena capital é assumida como «correcta» (ou «errada») independen-
temente do facto de dissuadir (ou não) o crime, quando o incesto entre irmão-irmã é
assumido como «errado», independentemente do facto de se produzir (ou não) uma des-
cendência mutante, quando as empresas continuam a utilizar entrevistas para seleccio-
nar os seus empregados, independentemente do facto de as entrevistas ajudarem (ou
não) a predizer o seu desempenho laboral, em suma, quando parece estar em causa
muito mais do que considerar os factos em si, aquilo que está em causa é provavelmente
uma questão de enquadramento não-racional. (…)
(…) não há padrões que colham um respeito universal e que ditem o que se deve
pensar e como se deve agir. (Shweder, 1997: 163-64) (sublinhados nossos)
Richard Rorty, por outro lado, declara encorajador o final da história do índio ameri-
cano bêbado, isto é, os médicos provaram que a justiça nos EUA funciona porque as deci-
sões são tomadas não com base em «cunhas», ou com base no poder político, mas com
base nas necessidades dos cidadãos. O índio, cidadão americano, precisava de tratamento,
foi inscrito na lista de espera dos cidadãos que aguardavam o mesmo tipo de tratamento
e, quando chegou a sua vez, foi tratado como todos os outros.
Rorty também defende que a solução para este caso (como acima vimos, «duro», nas
palavras de Geertz) não passa pela adopção por parte dos médicos dos valores e comporta-
mentos dos índios. Segundo Rorty, se os médicos tivessem manifestado solidariedade para
com o índio até ao ponto de assumirem os valores dele, teriam negligenciado os seus
papéis específicos na sociedade vigente. Isto é, os médicos tinham que actuar em nome de
justiça para todos, justiça essa crucial para que a sociedade funcione. Se tivessem assu-
mido o quadro cultural do índio teriam posto em causa os direitos dos cidadãos, a maior
parte dos quais pertencente a quadros culturais diferentes.
Rorty defende ainda que Geertz, no seu papel de antropólogo, conseguiu tornar o índio
(eventualmente alcoólico) numa parte importante da sociedade ocidental. A ciência da
antropologia e, mais especificamente, o trabalho dos antropólogos nos Estados Unidos aju-
daram a conseguir tornar o índio americano, mesmo no contexto de relações sociais desi-
guais, num «parceiro de conversa», isto é, num cidadão americano.
Resumindo, na base da argumentação de Rorty encontra-se o que o próprio concebe
como uma distinção entre agentes de amor e agentes de justiça. Qualquer sociedade
democrática moderna tem necessidade de ambos, os primeiros como connaisseurs da
diversidade, cuja preocupação principal é com a inclusão com base na diferença, e os
segundos como guardiões de universalidade, cuja tarefa orientadora é a promoção da cida-
dania fundada no princípio de igualdade de oportunidades (cf. Rorty, 1991).
A incomensurabilidade da diferença e o anti-antietnocentrismo 129
Apesar de uma certa aproximação, talvez o que seja mais interessante explorar é o que
diferencia o anti-anti-relativismo do anti-antietnocentrismo. No fundo, a incomensurabi-
lidade da diferença parece ser mais incomensurável para Geertz do que para Rorty. Este
último consegue resolver «um caso duro com um fim duro» através da funcionalidade que
atribui à separação entre os «agentes de amor» e os «agentes de justiça», isto é, a distinção
entre estes agentes e os seus respectivos papéis específicos torna o sistema funcional. Este
facto acaba por ser o mais importante da questão, mesmo quando implica um lugar subal-
terno para certos quadros culturais. Por outras palavras, não basta tratar o índio americano
como cidadão, com direitos iguais aos outros cidadãos. Neste sentido, pode dizer-se que
Geertz nos obriga a fazer mea culpa e a confrontar um poder que, embora possa ser hoje
em dia mais plural, continua a ser altamente polarizado, entre aqueles que historicamente
detêm o poder e aqueles que dele foram afastados. Mais, obriga-nos a reconhecer que os
efeitos desse poder mudaram de natureza; é um poder que não só discrimina como exclui.
O anti-anti-relativismo de Geertz, diferentemente do anti-antietnocentrismo de Rorty,
também nos obriga a conviver com a diferença (incomensurável) ao mesmo tempo que a
analisamos. No caso de Rorty, a diferença impõe-se-nos; não somos nós que vamos gene-
rosamente à procura dela. Assim sendo, a diferença, na análise de Rorty, pode não invadir
o lugar a partir do qual se pensa a diferença; podemos ganhar algum espaço de reflexão
eventualmente necessária, em primeiro lugar, para melhor a compreender e, em segundo
lugar, para melhor lidar com a sua incomensurabilidade. Com o anti-anti-relativismo de
Geertz, não, somos obrigados de olhar para a diferença enquanto lidamos com ela. Como
(2) Ver a interessante crítica desta posição de Rorty no trabalho de M. Billig (1993).
130 «A Diferença Somos Nós»
Quais são as implicações e os contributos desta discussão para a relação com as dife-
renças, e, concretamente, para as pensar? Este é o ponto em que a questão socioantropo-
lógica se torna essencialmente epistemológica e vice-versa. De facto, neste contexto,
parece-nos relevante o exercício de trazer para um nível explícito os mecanismos, ao
mesmo tempo cognitivos e ideológicos, pelos quais as diferenças são pensadas3.
Todas as sociedades, todos os grupos sociais, ao construírem os seus mecanismos de
socialização e enculturação assumem quadros culturais (Shweder, 1997) dentro dos quais
os indivíduos se reconhecem, e são reconhecidos, como pertencentes a esse grupo, a essa
sociedade. Apresentam-se, assim, valores, padrões de comportamento e de atitudes que
delimitam o «nosso» como «normal», sendo o conhecimento produzido e transmitido
também enquadrado culturalmente. Todavia, todas as sociedades e todas as culturas, ten-
dencialmente, apresentam como universais esses valores, padrões de atitudes e acervo de
conhecimentos. O «normal» torna-se normativo ao disponibilizar-se como base dos juízos
éticos, estéticos, políticos e epistemológicos descontextualizados.
A consciência crítica destas aquisições das ciências sociais e humanas tem-se traduzido
em propostas teóricas e práticas que, por seu turno, se têm organizado, sobretudo, sob a
designação do já referido relativismo. Todavia, aquilo que vulgarmente esta designação
cobre não parece esgotar-se na consciência do carácter contextual fornecido às práticas
sociais (incluindo aí obviamente o conhecimento) pelos quadros culturais. Primeiro,
porque o enquadramento cultural do conhecimento não faz dele algo de totalmente rela-
tivo (Spiro, 1998) (e.g., todos os seres humanos de todas as culturas reconhecerão que se
se perfurar o ventre com uma faca e o golpe for bastante profundo, se corre perigo de vida);
segundo, porque o isolamento das diferenças culturais na sua própria especificidade, se
resolve o problema da especificidade, não resolve o problema do seu matricial carácter
relacional4. Quer dizer, se o relativismo corresponde sobretudo à consciência da incomen-
surabilidade da diferença, a sua crítica poderá corresponder ao enfatizar do carácter rela-
cional desta. Do nosso ponto de vista, é no cruzamento destas duas perspectivas que o pen-
sar das diferenças se deve colocar, isto é, na resultante das críticas ao etnocentrismo e ao
relativismo, tal como o anti-anti-relativismo e o anti-antietnocentrismo as formulam.
(3) Não se trata de defender que a relação real com a diferença é determinada pelo modo como ela é
pensada, apenas assumimos aqui o pensar a diferença como objecto de análise, procurando relevar a arti-
culação do pensar as diferenças com a relação real.
(4) Como é o caso de algum multiculturalismo que, na ânsia de sublinhar as diferenças culturais, erra-
dica o carácter relacional destas, como se um cigano nascido e criado em Portugal tivesse mais em comum
com um cigano vivendo na Roménia do que com os outros portugueses (Magalhães, 1998: 105-110).
A incomensurabilidade da diferença e o anti-antietnocentrismo 131
O desafio que, neste ponto, nos solicita radica-se, então, no modo como pensamos as
diferenças, sendo os dispositivos, as categorias gnoseológicas e, no fim, o quadro cultural,
com e dentro dos quais aquilo que é diferente é tratado, o centro do nosso problema. Dito
de outra forma, trata-se de saber como pensar as diferenças no duplo registo de connais-
seurs da diversidade e de críticos da sua hipóstase.
Assim, se propuséssemos ao leitor que pensasse, digamos, num magomatório, o que é
que aconteceria em termos de processo mental? A primeira coisa que, quase indubitavel-
mente, faria, era procurar no «armazém» da sua memória o vocábulo para lhe determinar
o significado. Depois, e na eventualidade de aí nada ter encontrado, procuraria palavras
semelhantes para delimitar uma área de significados (coisas, pessoas, ideias...) que lhe per-
mitisse circunscrever um possível sentido. O passo seguinte, se baldados os esforços mencio-
nados, seria o de procurar, por exemplo, num dicionário – uma memória mais colectiva – a
palavra estranha. Ainda na eventualidade de fracasso, perguntaria à pessoa que enunciou
magomatório, «o que é?», «o que é que quer dizer com isso?», etc. Esta, porventura, diria
tratar-se de um objecto arredondado, côncavo, de cerca de meio metro de diâmetro e com cerca
de seis centímetros de espessura e, a maior parte das vezes, de cor azulada, etc. O leitor reini-
ciaria então o processo mental, procurando, por analogia, e partindo sempre das suas catego-
rias lógicas e gnoseológicas, dentro das representações disponíveis na sua mente, o conjunto
conceptual de objectos que pudessem dar a chave para o significado ou sentido do vocábulo.
Não se preocupe o leitor mais com magomatório, pois foi uma palavra inventada por
nós para sublinhar o facto de que quando aquilo que é diferente surge às mentes, estas pro-
curam nos seus acervos e dispositivos cognitivos algo que, de algum modo, o reduza aos
seus quadros («Ah! É isso!!!»), a aprisione nos seus territórios de sentido. E o exemplo é
«suave», pois a palavra tem, intencionalmente, aparência de possuir um significado codifi-
cado. Exemplos mais «duros» poderiam ser adiantados, assumindo significantes mais distan-
tes dos nossos códigos fonéticos e semânticos. Mas, mesmo aí, a sua diferença seria também
pensada por analogia, por semelhança, em função, portanto, do Mesmo. Este é o conjunto
de códigos, categorias e representações organizadas que, embora de uso individual, são
disponibilizados e legitimados pelo grupo social. O Mesmo é delimitado e ao mesmo tempo
delimita os quadros culturais. E é na medida em que as práticas sociais são indeslindáveis
destes quadros culturais e mentais, dentro dos quais os actores sociais são socializados e
enculturados, que acabam por reflectir aquela redução da alteridade ao Mesmo.
vos do conhecer. No próximo capítulo, referiremos este carácter relacional sob o enun-
ciado «a diferença somos nós» através da tematização de quatro modelos diferentes da
relação com a diferença.
A questão do multiculturalismo
tico) as próprias diferenças. Desta forma, estas já não surgem no horizonte delimitado pelo
máximo de consciência do tolerável, questionando-se antes a própria natureza arrogante
da tolerância, enquanto máximo de consciência possível daquilo que é susceptível de ser
aceite.
Se Geertz e Rorty coincidem, até certo ponto, na crítica do relativismo e do etnocen-
trismo, as consequências políticas das suas formas de pensar a diferença afastam-nos. A
posição de Geertz permite que a diferença se instale simultaneamente nas relações sociais
e no próprio acto de a pensar. A posição de Rorty parece remeter para uma relação prag-
mática com a diferença, tanto ao nível social como epistemológico, pragmatismo esse que
não só não coloca em causa a legitimidade da existência de tempos e de lugares onde os
actores sociais afirmam e assumem a radicalidade da sua diferença, como sugere que, por-
ventura, há «um» – precisamente o ocidental – mais legítimo e justo.
Na sua reflexão sobre os novos contornos da diversidade e das diferenças, Geertz sus-
tenta que o mundo, numa época de globalização, parece cada vez mais uma enorme cola-
gem, isto é, «em cada uma das suas localidades, o mundo parece cada vez mais um bazar
do Kuwait do que um clube inglês exclusivo» (citado em Rorty, 1991: 209) (sublinhado
nosso). Por outras palavras, a diversidade e a diferença parecem estar a substituir a homo-
geneidade e a uniformidade; o eixo das relações sociais torna-se mais horizontal do que
vertical, quer dizer privilegia-se as relações entre culturas a partir da sua igualdade e não
as relações hierarquizadas entre elas. Rorty partilha esta visão de Geertz e defende que as
suas implicações reforçam o anti-antietnocentrismo e as vantagens políticas das institui-
ções liberais, que se constroem com base: i) na distinção entre os agentes de amor e os
agentes de justiça (precisa-se de ambos em toda a sua especificidade), e ii) na construção
de um mundo cujo modelo é o de um bazar, rodeado de clubes exclusivos (mas com as
janelas abertas ao exterior!).
O bazar, sustenta Rorty, não é uma «comunidade» (os seus valores e comportamentos
são demasiado diversos) mas, sim, uma sociedade civil. Os wet liberals ficam horrorizados
pela exclusividade das comunidades (os ditos «clubes» privados) que parece atraiçoar o
espírito do Iluminismo. Mas, diz Rorty, é possível dissociar a liberdade e a igualdade da fra-
ternidade, e, na lógica do defendido pelos agentes de amor (pelos connaisseurs da diversi-
dade), pode concordar-se com Levi-Strauss que a exclusividade é uma condição necessária
e apropriada ao desenvolvimento pessoal (1991: 210). Por outras palavras, tal como acima
se anunciou, pode defender-se que a exclusividade é essencial para produzir os tão neces-
sários agentes de justiça que têm a responsabilidade de manter o bazar aberto, funcio-
nando. Na verdade, questionamos o facto do Iluminismo ter desejado uma cidade mundial
com cidadãos e aspirações comuns. Assim, parece não ser necessário basear a sociedade
em certos ideais morais. Bastaria a justiça. Neste sentido, a síntese política do amor e da
A incomensurabilidade da diferença e o anti-antietnocentrismo 135
justiça talvez seja, afirma Rorty, a colagem cuidadosa do «narcisismo privado» (a referên-
cia a um quadro cultural especifíco) com o «pragmatismo público» (a necessidade de se
viver em tempos e espaços públicos comuns) (1991: 210).
Parece mais do que evidente que o anti-anti-relativismo de Geertz não pode coadunar-
-se com o anti-antietnocentrismo de Rorty. Dissociar a fraternidade da liberdade e da
igualdade é, como anteriormente se referiu, condenar o índio americano (bêbado ou não)
a um quadro cultural subalterno. Na sua defesa de comunidades exclusivas, Rorty parece
subestimar os efeitos do processo de ocidentalização, processo esse que, associado com a
globalização, rasga todas as culturas. Tem-se testemunhado nos últimos tempos o aumento
de violência que se reclama de uma comunidade, que apela a uma identidade, que visa o
reestabelecimento do unanimismo perdido ou a criação de uma nova homogeneidade.
Trata-se, paradoxalmente, de uma guerra pela explosão da diferença para poder proclamar,
posteriormente, a diferença, isto é, destrói-se o multiculturalismo local (como, por exem-
plo, a prática de «limpeza étnica») para poder defender-se a diferença a nível nacional ou
regional.
Não é a questão de atraiçoar o espírito do Iluminismo que está em causa com a pro-
posta de Rorty, é a questão de uma promessa de modernidade não cumprida: a realidade
de um mundo (cada vez mais) desigual que o anti-antietnocentrismo de Rorty parece ter
tendência para naturalizar.
6
CAPÍTULO
Este capítulo pretende conduzir para a análise política as consequências dos argumen-
tos desenvolvidos nos capítulos anteriores. Assim, apresenta quatro modelos que preten-
dem dar conta do modo como as sociedades ocidentais conceptualizaram, numa perspec-
tiva simultaneamente diacrónica e sincrónica, a sua relação com as diferenças – internas
e externas – e procura identificar, por trás das intenções explícitas das políticas e das prá-
ticas da relação com as diferenças, o «lugar» epistemológico e sociológico que marca essas
políticas e essas práticas. Na segunda parte do capítulo, procura-se relacionar estes mode-
los, assumidos como modelos heurísticos, com o campo mais específico da educação inter/
multicultural.
Como se viu no capítulo anterior, a cultura ocidental viveu secularmente – com raros
interregnos críticos – numa espécie de autocontemplação da sua própria superioridade
ética e política. Esta superioridade foi justificada das mais diversas formas, desde a narra-
tiva religiosa que afirmava a superioridade do nosso Deus sobre todos os outros, até à,
eventualmente mais sofisticada, narrativa filosófica que justificava o modelo ocidental
como sendo a realização na história do próprio espírito universal, como em Hegel. A ten-
dência foi sempre para postular a nossa forma de pensar e de conhecer como sendo a mais
universal (e, por isso, a mais verdadeira) e a nossa forma de organização social e política
como sendo a mais «desenvolvida» e, logo, a mais legítima como cânone. As outras epis-
temologias e organizações sociais – as diferenças – eram julgadas a partir desta posição.
Na verdade, a segurança do Ocidente em si próprio tem vindo a ser posta em causa num
movimento em que nos olhamos no espelho da nossa própria face civilizacional. Um dos
138 «A Diferença Somos Nós»
indícios que poderíamos seleccionar para ilustrar o modo como a sociedade e a cultura
europeias foram caminhando até este ponto de insegurança civilizacional são os modelos
de conceptualização e de legitimação de relação com as diferenças (internas e externas)
que elas desenvolveram.
Num trabalho recente que foi elaborado para proporcionar um «catálogo analítico de
materiais de formação para a diversidade», L. Cortesão et al. (2000) apresentam quatro
perspectivas susceptíveis de ser identificadas no campo da formação em educação inter/
multicultural (ver Figura 2).
Contributos para a reconfiguração da educação inter/ multicultural 141
1. A Perspectiva Assimilacionista: visa contribuir para o que se admite ser uma boa e harmónica inte-
gração dos grupos minoritários na sociedade dominante. (…) Esta proposta decorre (…) de se admi-
tir que as regras e os valores da sociedade dominante são válidos, indiscutíveis e próprios de uma cul-
tura superior. Assim sendo, os grupos minoritários só lucrarão em aceitar e absorver essa cultura, tor-
nando-se semelhantes aos indivíduos maioritários (em termos de poder) na sociedade. (…) Trata-se de
uma postura informada por um evidente etnocentrismo que nem questiona a universalidade dos pró-
prios valores e normas (…) nem percepciona o sofrimento que decorre da sua arbitrária imposição a
grupos cujas raízes culturais são bastante diferentes.
3. O Multiculturalismo Crítico: decorre de uma posição teórica que, como o seu nome indica, se alicerça
na teoria crítica. Neste quadro estimula-se, constantemente, a existência de atitudes interrogativas,
questionantes do significado real de todas as situações e soluções, mesmo as que o senso comum con-
sidera como obviamente aceitáveis. (…) Quando se consideram questões de formação multicultural
num quadro teórico com estas características, as relações entre grupos diferentes têm portanto de ser
analisadas, numa constante preocupação de desocultação. Procura-se identificar significados, por
vezes menos explícitos, da relação entre grupos com estatutos diferentes e que usufruem também de
situações diferentes de poder de decisão.
4. A Acção Anti-Racista: diz respeito a propostas de formação que pretendem ser desencadeadoras de ati-
tudes activas de luta contra a discriminação e a exclusão em todas as suas formas. Este tipo de preo-
cupação (que pressupõe o exercício de uma perspectiva crítica) pretende estimular o formando a assu-
mir atitudes explícitas de intervenção no problema de discriminação e/ ou exclusão com que se depara
no seu quotidiano.
[Fonte: Cortesão, Luiza, et al., 2000: 25-26]
gia moderna e a sua tendência para pensar a diferença, não a partir do seu próprio
discurso, mas através do discurso – sobretudo «emancipatório» – sobre ela;
4. o modelo relacional, pelo contrário, não se traduz na perspectiva da acção anti-
-racista que não é mais do que «o exercício de uma perspectiva crítica». Neste sen-
tido, esta perspectiva constitui o pólo oposto da estruturação da escola pelo modelo
etnocêntrico/ perspectiva assimilacionista, isto é, o oposto da escola da reprodução.
Esta escola é a escola da emancipação que se torna possível devido à agência do
sujeito «iluminado» (através da pedagogia crítica). A narrativa libertadora desta
perspectiva já se revelava fortemente presente no multiculturalismo crítico, atin-
gindo, na acção anti-racista, a sua concretização.
CONCLUSÃO
Nesta última parte do livro, procuramos levar até à questão da construção euro-
peia as consequências da assunção de «a diferença somos nós». Trata-se de identi-
ficar, nesse processo, não só o impacto da alteração do paradigma da elaboração
de políticas e da sua implementação (objecto da primeira parte), mas também as
consequências da perda do centro epistemológico e sociológico a partir do qual
tradicionalmente a Europa definiu os seus «outros». Como se viu, estes foram de
ordem externa e interna, sendo o nosso objectivo perspectivar a alteridade grupal
e individual a partir da criação de diferenças que dimanam de relações e não de
qualquer privilégio epistemológico ou histórico. Neste sentido, «a diferença somos
nós» enquando perspectiva epistemológica e política tem, no caso em apreço,
como paralelo «a Europa somos nós».
Da mesma forma que a linearidade da acção política foi posta em causa pela
crescente reflexividade dos actores sociais, e que o privilégio de determinação de
quem são os outros se foi fragilizando, a Europa surge como uma possibilidade de
agência política que não só escapa aos cânones modernos de elaboração de políti-
cas como desafia a imaginação sociológica. É por isso que referiremos as metáfo-
ras para analisar a forma pela qual o processo está a ser pensado. Da Europa como
«meganação» à Europa como afirmação de «racionalidades mínimas», procurare-
mos identificar possibilidades estimulantes para a repensar.
Na sequência da Cimeira de Lisboa de 2000, a Comissão Europeia assumiu como
objectivo central tornar a Europa o mais competitivo espaço do globo, identificando
como principal meio para tal desígnio o conhecimento. Esta assunção parece impli-
car uma reconfiguração do mandato endereçado aos sistemas educativos. A estes
é pedido não só que formem bons cidadãos e bons trabalhadores como também,
e sobretudo, cidadãos em permanente processo de aprendizagem (learning citi-
zens). Paralelamente, embora de uma forma não obrigatoriamente conflitual, novos
estilos de vida e de reclamação política a partir das diferenças específicas dos indi-
víduos e dos grupos parecem articular um conhecimento e projectos educativos
que dimanam dessa mesma alteridade. Esta última parte pretende mostrar que
entre a Europa do conhecimento, a Europa enquanto unidade política, a Europa
como projecto ecológico, a Europa da livre circulação de pessoas e mercadorias, a
Europa como riqueza cultural das nações, etc., e aquilo que lhe se opõe corre uma
espécie de fio de navalha, no sentido em que as formas emergentes de regulação
encerram importantes potencialidades de agência social e individual.
7
CAPÍTULO
Se toda a linguagem tem uma matriz metafórica (Ricoeur, s/d) e sendo mesmo da ordem
da poética a estrutura da linguagem científica, em termos sociológicos as metáforas têm
148 «A Diferença Somos Nós»
também consequências. Quer dizer, os termos em que o socius é pensado e dito repercute-
-se sobre ele próprio. Os exemplos são muitos, desde a metáfora biológica de Spencer da
sociedade como organismo à mais recente «rede» para designar a forma como os grupos
e as sociedades se desenvolvem.
Diz A. Mons que
[...] o processo metafórico nas suas variantes, nas suas cristalizações entre a imagem,
o território, na comunicação, introduz-nos numa economia ficcional que se sobrepõe
cada vez mais a uma economia material. Qual das duas disposições determina a outra
hoje em dia? Na verdade é impossível dizer, visto que elas formam um entrelaçado per-
feito na complexidade das permutas. As metáforas visíveis dos «campos» projectam-se
irresistivelmente para uma poética do social, através dos efeitos de colagem, de sobrepo-
sição de representações, de invisibilidade, de virtualidade, de explosão de sentido. (Mons,
s/d: 8)
É neste sentido que pensamos ser importante a análise de algumas metáforas que têm
servido para organizar as nossas visões da construção europeia como tarefa colectiva.
Identificamos neste trabalho três – a bandeira, a associação e a rede – e propomos uma
quarta – o bazar – no sentido de levar mais longe a análise do processo em causa. De facto,
a construção europeia não corresponde a um projecto único ou a uma intenção unitária,
isto é, existem diversas Europas nas nossas cabeças quando acerca dela falamos. Esta plu-
ralidade pode ser identificada através das metáforas que lhe dão corpo nos discursos polí-
ticos. Na verdade, a Europa tem sido ela própria uma metáfora, uma figura da mitologia
grega, e pensada politicamente através de metáforas. É possível mesmo dizer que tem exis-
tido apenas através dessas metáforas; em certo sentido a Europa é criada por estas metá-
foras.
com matizes que vão desde estados à procura de uma nação (é o caso de Espanha) até
nações à procura de um estado (o Ulster, por exemplo). Tem também sido a história do
conflito entre estados-nação, quer em nome do território, quer em nome da religião, quer
em nome de mercados. A Europa captada pela metáfora da bandeira é uma Europa ensan-
guentada (ver Coulby, 1997). Desde o século XII que o sangue corre em nome de Deus, da
terra-mãe e dos mercados, mas é com a Idade Moderna que a bandeira mais se intensifica
como enformadora da acção política. Organizadas pelo estado, as sociedades internamente
homogeneizam-se e externamente criam sociedades de nações cuja forma de convivência
vai desde o conflito até à criação das Nações Unidas.
Os estados-nação, ainda sob o signo da metáfora da bandeira, criaram sistemas educa-
tivos como forma privilegiada de formar os indivíduos «pertencentes» à sua esfera de regu-
lação. Como já se sugeriu, nascer num determinado território, sendo razão formal a
partir da qual é atribuída a condição de cidadão, sobretudo após a combinação do capita-
lismo com os sistemas nacionais, não é suficiente para se aceder plenamente à cidadania.
De facto, o capitalismo requer que aquele que nasce em territítório nacional seja integrado
numa relação salarial. Só assim é que se é reconhecido pelo estado como sujeito detentor
de direitos e deveres. É assim que o conhecimento e a cultura são configurados a partir do
nível nacional. As universidades modernas foram concebidas como centros de produção,
conservação e difusão de conhecimento para a consolidação do projecto nacional, quer
em termos económicos, quer em termos culturais. Tanto a universidade humboldtiana,
como a universidade napoleónica, ao mesmo tempo que celebravam o carácter universal
do conhecimento, enfatizavam a sua matriz nacional. Os sistemas educativos criados no
âmbito da consolidação do estado-nação são o dispositivo difusor desse conhecimento e
desse carácter nacional numa tensão entre a universalidade do primeiro e a particulari-
dade do segundo.
O papel do conhecimento neste paradigma sociocultural de modernidade reflecte esta
tensão entre a formação de um sujeito universal e um cidadão nacional. Quando combi-
nado com o capitalismo, este paradigma impõe ao conhecimento uma terceira dimensão
que se traduz quer no input científico no processo produtivo, quer na organização cientí-
fica desse mesmo processo. No período de capitalismo organizado, ou fordista, o processo
de trabalho inclui o conhecimento nestas duas vertentes, mas o processo produtivo em si
não tem como factor central o conhecimento. Trata-se de um processo centrado no traba-
lho, na transformação de matérias-primas e na organização desse mesmo processo. O
conhecimento surge como dependente do trabalho e não como o cerne deste.
Assim, o conhecimento e a cidadania enformados pela metáfora da bandeira parecem
convergir na tarefa funcional de criar bons cidadãos e bons trabalhadores, implicados no
fortalecimento e prosperidade do estado-nação. Os projectos de crescimento industrial
confundem-se, durante o período do fordismo, com os projectos de crescimento e de afir-
mação nacionais. Em termos gerais, à educação é remetido um triplo mandato: fazer cir-
cular o conhecimento como formador do indivíduo, como formador do trabalhador e como
formador do cidadão.
150 «A Diferença Somos Nós»
A Europa pensada a partir desta metáfora é a Europa que herdámos. Surge como a ten-
tação de pensar a Europa a partir do modelo dos estados-nação, tal como os conhecemos.
Isto reflecte-se ainda em formas aparentemente mitigadas, através do conflito «civilizado»
das línguas nacionais-oficiais, no lugar que se ocupa na «fila das nações» europeias, isto é,
o «estar na cauda», o «estar atrás dos gregos», «antes dos alemães», «depois dos france-
ses»... são tropos políticos poderosos. A Europa deverá ser uma meganação que engloba
todas as outras e, de algum modo, as regionaliza, como questiona Anne-Marie Thiesse
(2000)? Ou deverá ser uma construção de um novo tipo? De facto, parece que nem o sím-
bolo da bandeira das estrelas, nem a moeda única, nem a promessa de uma constituição
europeia veiculam, por si só, um modelo político capaz de reconfigurar o sentimento de
pertença nacional, proporcionando as bases de uma forma reinventada de cidadania. Actual-
mente, a ingenuidade é algo que nos é reflexivamente vedado. Ninguém se pode dar ao
luxo da inocência: a construção da Europa dificilmente se poderá fundar na afirmação de
um terriório «mãe» (Vaterland ou Motherland), numa religião (seja ela a cristã) ou numa
língua (seja ela a língua franca – o inglês europeu– ou outra). A Europa das nações poderá,
antes, aproveitar o deslocamento e a reconfiguração do poder político para outro centro –
Bruxelas, Estrasburgo... – para reequacionar o caso corso, o caso basco, o caso belga, etc.,
com novos actores para além de Londres, Madrid...
Por um lado, dizem Held e McGrew, os cépticos «ao contrário de considerarem que os
governos nacionais estão a ficar imobilizados pelos imperativos internacionais, apontam,
antes, para a activa promoção e regulação das actividades entre fronteiras» (2002: 105),
por outro, Hedley Bull enfatiza, precisamente, a necessidade de se desenvolver uma alter-
nativa aos sistemas estatais tais como os conhecemos até hoje.
Eu não me proponho especular sobre como é que se configurariam essas alternati-
vas não históricas. Não é evidentemente possível confinar as variedades de possíveis
formas futuras dentro de uma lista finita de sistemas políticos, e por isso não se pode
tomar a sério as tentativas de ditar leis de transformação de um dado tipo de sistema polí-
tico universal para outro. (...) Mas a nossa visão de possíveis alternativas ao sistema dos
estados deve ter em consideração as limitações da nossa própria imaginação e a nossa
incapacidade para transcender a experiência passada. (Bull, 2002: 466)
gente, como se pode ver na definição das «categorias de competências» (art. 11.º), de
«competência exclusiva» (art. 12.º) e das «áreas de competência partilhada» (art. 13.º)
(ibidem) da proposta de Constituição para a Europa, pois a forma como o exercício dessa
soberania se vem configurando é de alguma forma excepcional. Citando Keohane, «(...) a
Comunidade Europeia não é de modo algum um estado soberano, embora constitua um
híbrido sem precedentes, ao qual já não se aplica o conceito tradicional de soberania»
(2000: 116). O mesmo autor enfatiza que está em causa uma nova forma de inter-relacio-
namento entre os diferentes estados-nação europeus, isto é, a própria interdependência «é
caracterizada por uma contínua discordância dentro de e entre os países, dado que os inte-
resses dos indivíduos, dos grupos e das empresas estão frequentemente em conflito entre
si» (ibidem).
É neste sentido que se torna necessário procurar noutras metáforas a Europa. Mary
Kaldor (1995) identificou quatro características principais dos estados-nação, essa «forma
particular de estado que teve a sua origem durante o século XIX»: identidade política –
baseada na cidadania que, por seu turno, estava ligada à cultura do território; cultura
«vertical e homogeneizadora»; moeda, «consist(indo) numa moeda nacional controlada
por um banco central»; «violência organizada» – sob «a forma de forças armadas nacio-
nais, que representam a sua única forma legítima» (sublinhado no original) (1995: 71-73).
Segundo Kaldor, «o estado-nação teve uma vida curta», tornando-se evidente na última
parte do século XX que se tinha tornado «demasiado amplo para proteger as culturas»,
«demasiado amplo para proporcionar um processo eficiente de tomada de decisão»,
«demasiado pequeno para impedir as guerras» (ibidem: 74-75). Foi sendo, então, substi-
tuído por aquilo a que a autora chama um «sistema de blocos, que assumiu as seguintes
características: identidade política (…) fundada na pertença nacional ao bloco, que, por
seu turno, se baseava na ideologia (isto é, um compromisso com a democracia parlamen-
tar e com o capitalismo no Ocidente ou com o socialismo no Leste)»; «uma cultura hori-
zontal comum ligando as elites»; uma forma peculiar de moeda que «para o bloco oci-
dental (…) era hegemónica»; e «forças armadas» (…) «organizadas sob estrutras integra-
das de comando» (ibidem: 75-76). Relativamente ao «sistema de blocos», que foi também
de curta duração, pergunta Kaldor:
Em que sentido prefiguraram os blocos novas formas de estado? Eles não eram meras
alianças de estados-nação. O sistema de blocos marcou um corte decisivo com o estado-
-nação, pois a noção de uma comunidade ideológica não se baseava tanto numa comu-
nidade fundada no território ou na cultura de uma comunidade, mas num universalismo
a priori, se não mesmo de facto, do bloco, na construção de novas culturas horizontais
de elites, na criação, em teoria, de uma moeda internacional e, acima de tudo, nas limi-
tações das forças armadas nacionais. (Kaldor, 1995: 77)
152 «A Diferença Somos Nós»
A revolução causada pelas tecnologias da informação dos anos 1970 e 1980 tiveram um
impacto significativo nas características das formas de poder de estado. A identidade polí-
tica na forma de «identidade do bloco (…) desapareceu com o fim da Guerra Fria»; a cul-
tura tornou-se «comunicação transnacional (que) torna possível todos os tipos de novas
redes horizontais, que poderão não ser necessariamente redes de elites»; a moeda hege-
mónica foi posta em questão e enfraquecida pelo «crescimento da liquidez internacional e
pelo aumento da dimensão e da velocidade dos fluxos de capital»; e «o carácter da guerra
mudou também dramaticamente. (…) O monopólio da violência organizada foi erodido
simultaneamente pela transnacionalização e privativação», e, parafraseando ainda a autora,
por se ter tornado um espectáculo global (ibidem: 80-83).
Embora Kaldor reconheça que a construção europeia poderá significar o retorno às
formas de organização política do estado-nação, argumenta que «na era pós-blocos, tal
seria anacrónico e mesmo periogoso» (ibidem: 69). Propõe, então, dois modelos possíveis
para o futuro, um baseado naquilo que poderia ser uma combinação dos modelos do
estado-nação e dos blocos e outro baseado num «novo conjunto de estruturas horizontais
do estado». Será este último que poderá alimentar a nossa imaginação para a concepção
de novas possibilidades em relação à construção europeia. As características deste modelo
são as seguintes: identidade política baseada numa «associação voluntária fundada em
temas e não no território» (exemplos desses temas poderão ser «direitos humanos, segu-
rança, o meio ambiente, a gestão económica e financeira»); cultura horizontalmente
baseada «num compromisso para resolver certos problemas globais comuns, isto é, verde/
paz/ desenvolvimento/ direitos humanos»; moeda baseada numa «genuína forma de
dinheiro internacional, garantida por instituições monetárias internacionais que prestem
democraticamente contas»; e violência organizada numa «série de redes de alianças de
segurança, incluindo unidades multinacionais e um complexo quadro de inspecção mútua
que transforme as forças armadas nacionais em relíquias culturais» (ibidem: 88).
O que se pretende aqui não é a recuperação das propostas já elaboradas por diversos
analistas e sociólogos, que acabam por esvaziar os temas da identidade política sob o peso
da necessidade de associação em torno de um tema «mestre», a «emancipação da huma-
nidade», a «conscientização dos sujeitos sociais», «a utopia da igualdade», para dar apenas
estes exemplos. Pelo contrário, a associação em torno de temas surge aqui sob formas
híbridas de regulação e de emancipação. Não é o carácter «superior» (em termos éticos e
políticos) do tema da identidade política que o legitima como tal, mas, antes, o seu carác-
ter de agregador de interesses e de vontades (uma «associação voluntária») que podem ser
reclamados por parte dos cidadãos. Ora, estas reclamações nem sempre coincidem com as
dos ideais utópicos herdados do século XIX. Como sugere Kaldor, podem surgir também
na reclamação de livre circulação de mercadorias e de medidas de padronização de produ-
tos e modos de consumo em nome da gestão eficiente. À partida não está garantido o
carácter emancipatório ou regulatório de quaisquer medidas políticas do âmbito de qual-
quer tema. Por exemplo, a normalização dos depósitos de água dos autoclismos pode ser
vista como a intrusão dos burocratas de Bruxelas na mais íntima zona dos nossos lares, ou
A Europa como um bazar: educação na Europa do conhecimento 153
como uma racionalização dos gastos e controlo do desperdício de água. No sentido oposto,
políticas desenhadas a partir de um tema assumido à partida como emancipatório, por
exemplo a abertura ao público de zonas verdes como zonas de lazer, podem redundar no
seu perverso oposto, a destruição dessas mesmas zonas verdes, dando eventualmente origem
à sua interdição.
No que diz respeito à dimensão cultural referida por Kaldor, o questionamento do
patriarcado, a afirmação das diferenças de estilos de vida e a preocupação «verde» surgem
não como temas europeus, per se, mas com um forte potencial de agregação cultural da
Europa. Os temas quer de identidade política, quer de dimensão cultural são, como se
sabe, o campo, por excelência, dos novos movimentos sociais que têm uma projecção global.
Ora, sendo a Europa também uma questão de identidade, uma questão de pertença, seja o
que for que tal possa significar, os «temas» parecem acabar por recusar à Europa aquilo
que ela própria, como diferença em relação aos outros espaços, necessita. Todavia, esta
«diferença» é uma possibilidade de ser assumida como uma opção dos estados-nação que
dela pretendem fazer parte.
Esta opção por «fazer parte» surge como uma reconfiguração do próprio estado-nação,
sobretudo no que concerne à sua soberania. A participação através de temas como o Euro
ou a defesa do ambiente tem como contrapartida oferecer uma parte da sua soberania para
o desenvolvimento do próprio tema, como é sugerido pelos princípios da concessão, da
subsidariedade e da proporcionalidade insertos na Proposta da Constituição para a Europa
(2003, ver art. 9.º). Por exemplo, prescindindo da utilização de dadas formas de energia se
tal for compensador em termos da realização do tema da preservação do meio ambiente.
É no aparente paradoxo entre o carácter universalista das perspectivas «temáticas» e o
carácter «local» da Europa, e entre a dimensão da identidade política e a dimensão cultu-
ral dos temas, que esta poderá potencialmente afirmar-se, por um lado, através da recon-
figuração da sua política interna e externa, isto é, não assumindo uma acção política com
base no modelo dos blocos, pois, para falar como Habermas, a UE dificilmente poderá ter
como objectivo principal a confrontação com o poder económico americano ou outro, que
a tornaria particularista (1999: 58); por outro lado, com a participação do estado-nação no
tema podem ser desencadeadas dinâmicas que conduzam à sua própria reterritorialização.
Dado que os territórios são simultaneamente reais e virtuais, é possível e necessário repen-
sar as diferentes políticas (quer as da diferença, quer as da redistribuição) com base não
só nos «novos territórios» (local, regional, supranacional) – a Europa, por exemplo – mas
154 «A Diferença Somos Nós»
também com base nos territórios desterritorializados. A este título, a associação em torno
dos temas pode surgir como forma deste tipo de território desterritorializado: o ambiente,
ser mulher, os direitos humanos, a moeda única europeia, liberdade de circulação de mer-
cadorias e de pessoas, etc. Os estados «voluntariamente associados» têm, a propósito dos
temas, uma oportunidade de se reterritorializarem novamente em torno do novo tipo de
reinvindações dos seus cidadãos.
Se, como diz Giddens, vivemos numa sociedade marcadamente sociológica, reflexiva,
no sentido em que as práticas pessoais e institucionais são permanentemente configura-
das pelo conhecimento que acerca delas fomos construindo, também é verdade que esta
reflexividade se estende à afirmação de identidades mais particularistas, mesmo locais, que
as racionalidades mais cosmopolitas e de pendor universalista não podem ignorar. Estes
particularismos, não sendo redutíveis aos nacionalismos, mais ou menos localistas, inte-
gram-nos em importantes constelações conflituais: a defesa da economia nacional e a defesa
do ambiente; a afirmação identitária a partir de dados estilos de vida e a defesa das tradi-
cões culturais, etc. Assim, a metáfora da bandeira parece proporcionar algo que os temas
não podem proporcionar: um intenso sentido de pertença. Embora as causas temáticas (os
direitos das mulheres, o ambiente, as identidades sexuais) possam proporcionar impor-
tantes âmbitos de identificação e de forte militância, parece que a nacionalidade continua
a despertar fortes sentimentos de defesa e de ataque a partir dela.
O conhecimento, nesta metáfora, surge, em primeiro lugar, como uma espécie de lite-
racia política, no sentido em que deve servir os projectos reflexivos dos indivíduos e dos
grupos. Em segundo lugar, o conhecimento surge como um factor crucial no processo
produtivo e assume uma dimensão global/ local. No que se refere ao primeiro aspecto, já
acima falámos da tensão entre individualização e individuação. É aqui que esta tensão se
torna particularmente evidente. Ao mesmo tempo que o conhecimento potencia a reflexi-
vidade dos indivíduos e dos grupos e a sua capacidade de agência, o processo produtivo,
referido no segundo aspecto, articula essa mesma reflexividade. Os processos produtivos
não só se globalizam, como fazem apelo a um novo tipo de trabalhador, como aquele iden-
tificado por Stephen Ball com base em entrevistas a responsáveis pela indústria e mundo
de negócios ingleses (1990; ver também Guile, 2002). As competências de comunicação,
inovação e de cooperação são apresentadas ao mesmo tempo como indicadores de bem-
-estar dos indivíduos e como factores importantes para o próprio processo produtivo e
competitividade económica.
O conhecimento aparece, assim, como um instrumento dos indivíduos e dos grupos
para a consecução dos seus próprios projectos e crescentemente como factor produtivo
importante. A distância entre individuação e individualização é subtil, não sendo fácil
identificar se estes conceitos correspondem àqueles outros, de matriz moderna, de desa-
lienação e alienação.
A cidadania, da mesma forma, surge recombinada entre preocupações, por assim dizer,
reflexivas e as novas sociabilidades. Por exemplo, a preocupação com a defesa do ambiente
tem implicações ao nível dos quotidianos, quer em termos locais, quer termos globais,
A Europa como um bazar: educação na Europa do conhecimento 155
fazendo com que o risco e a confiança, como diria Giddens, sejam permanentemente tidos
em conta nas diferentes tomadas de decisão e de acção. Tudo se parece passar, ainda para
utilizar uma expressão de Giddens (1992), como se o carro de Jagrená, que se sabe ingo-
vernável, tivesse constantamente de ser alvo dos esforços dos cidadãos, enquanto tal, para
o manter nos caminhos minimamente previstos. Ser cidadão, neste sentido, é contribuir
o mais activamente possível para a governabilidade das sociedades de risco.
Uma Europa configurada pela metáfora da associação em torno dos temas parece atri-
buir ao conhecimento uma tarefa cosmopolita e de reconfiguração da cidadania nacional
em torno de causas e de escolhas dos indivíduos e dos grupos. Por outro lado, as compe-
tências solicitadas à escolarização, ao mesmo tempo que formam o indivíduo como actor
reflexivo, colocam-no num mercado de trabalho reconfigurado pelo capitalismo flexível (e
de casino – ver Harvey, 1989). E se os temas têm na base a assunção de uma cidadania fun-
dada numa literacia política cosmopolita, também expõem os indivíduos e os grupos aos
fluxos globais de capital não regulados e dificilmente reguláveis.
Do que ficou dito, parece-nos claro que a Europa é algo que surge aos cidadãos, aos
sociólogos e à acção política como sendo da ordem do «constituinte» e não do «consti-
tuído». A agência dos actores sociais e a sua reflexividade são cruciais para a agenda da
Europa como uma das oportunidades da mais recente e estimulante invenção sociológica.
É neste sentido que, antes de retomarmos a metáfora do «bazar», pensamos ser impor-
tante falar da Europa como um dos primeiros estados em rede.
Portanto, entre os modelos desejáveis e a realidade em curso, o estado em rede surge
como uma metáfora política interessante de aprofundar. Por um lado, tem implícita uma
linguagem e uma gramática que, ao mesmo tempo que surgem padronizadas e algo fixas,
aparecem também como susceptíveis de ser agenciadas. Por outro lado, a rede é uma teia
de relações que não se esgota na tecnicidade dos processos informáticos e de difusão de
informação. A rede, neste último sentido, tem actores privilegiados e potencialmente hege-
mónicos; não é um «lugar branco» no sentido em que é marcada epistemológica e politi-
camente (veja-se o caso da Microsoft e a predominância do inglês como linguagem de trân-
sito informático). Estes dois aspectos fazem da rede um lugar de agência política marcado
não definitivamente pela lógica top-down, dado que proporcionam, nos seus interstícios,
importantes possiblidades de afirmação individual e grupal, a diferentes níveis, local, regio-
nal, nacional e global. As redes não são, portanto, um lugar político idílico. Para seguirmos
a definição de Castells:
nece o material de base para a sua expansão hegemónica por toda a estrutura social.
Mais, defendo que esta lógica da rede induz uma determinação social de um nível mais
elevado do que aquela dos interesses sociais específicos expressos através das redes: o
poder dos fluxos assume supremacia sobre os fluxos de poder. (...) As redes são estrutu-
ras abertas, com o potencial de se expandirem sem limites, integrando novos nós desde
que sejam capazes de comunicar dentro da rede, nomeadamente desde que partilhem os
mesmos códigos de comunicação (por exemplo, valores ou objectivos de desempenho).
Uma estrutura social com base na rede é um sistema altamente dinâmico e aberto, sus-
ceptível de inovar sem ameaçar o seu próprio equilíbrio. (Castells, 1996: 469-70)
Como metáfora para a reorganização da Europa, a rede surge fundada não só em fluxos
de poder como também em fluxos de informação e conhecimento. Estes fluxos já não são
nem produzidos, nem controlados, pelas instituições nacionais encarregues da produção
e difusão dessa mesma informação e conhecimento, isto é, principalmente as instituições
do sistema educativo. Efectivamente, a informação e o conhecimento, como funções
essenciais das instituições educativas estão a ser colocados fora do sistema escolar, como
enfatiza Carnoy, quando diz que a função da selecção das escolas terá que ser relativizada,
devendo a produção e difusão de conhecimento e de competências, pelo contrário, ser
enfatizadas. Diz ainda que o estado terá de transformar toda uma burocracia escolar, e que
se essa transformação não acontecer, a própria legitimação do estado estará em risco,
assim como estará em risco a capacidade deste para sustentar o desenvolvimento econó-
mico num ambiente global (Carnoy, 2001: 32).
A razão para esta urgência de reconfiguração é que, ao mesmo tempo que o estado-
-nação, a metáfora da bandeira, vê diluída a sua legitimidade face aos poderes dos média,
das reterritorializações regionais (NAFTA, ASEAN, etc.), das reclamações locais e mesmo
da redistribuição dos poderes jurídicos (por exemplo, os tribunais supranacionais, como o
Tribunal Penal Internacional e o Tribunal Europeu de Justiça), a informação e o conheci-
mento transformaram-se em factores centrais de produção, fazendo com que o desenvol-
vimento económico seja deles dependente, como acima já se disse. Assim, a literacia polí-
tica, necessária ao exercício da cidadania, no âmbito da metáfora política da rede, comple-
xifica-se em relação às duas metáforas anteriores.
O conhecimento na primeira metáfora, a da bandeira, era visto como factor de forma-
ção do indivíduo, do cidadão e do trabalhador. Na segunda metáfora, o conhecimento era
enquadrado como forma de participação política por excelência nos debates cosmopolitas.
Nesta metáfora, a da rede, a literacia política necessita de ser desenvolvida exigentemente
a dois níveis diferentes: a um primeiro nível, o cidadão deve possuir as competências (lite-
racia digital) que lhe permitam integrar a rede enquanto fluxo de informação e de conhe-
cimento para ter um lugar no mercado de trabalho, assim reconfigurado; a um segundo
nível, necessita de assumir um grau importante de reflexividade (literacia política) para se
localizar, enquanto identidade, num contexto onde o próprio exercício de cidadania é
objecto de reclamação. Estas duas formas de literacia não se opõem, como poderiam fazer
crer aqueles diagnósticos que vêem nos actuais desenvolvimentos das sociedades ociden-
A Europa como um bazar: educação na Europa do conhecimento 157
tais uma espéce de aprisionamento do indivíduo em si próprio. Como Castells tem refe-
rido, existem duas formas de exclusão face à rede: a primeira relaciona-se com o acesso,
ou não, à rede, enquanto que a segunda se desenvolve com base na qualidade da pessoa
como utilizador da rede, isto é, é crucial saber se se trata de um mero utilizador passivo
ou de um utilizador interventor.
O modelo político enformado por esta metáfora, embora seja aberto e pleno de possi-
bilidades de agenciamento por parte dos actores sociais, não deixa de ser claramente mar-
cado por uma lógica que, como se disse acima, é predominantemente de cima para baixo.
O que está aqui em causa não é apenas a questão da literacia, ou iliteracia, digital, é o con-
dicionamento da própria cidadania a essa literacia. Ser analfabeto digital significa ser, por-
tanto, duplamente excluído, quer como utente da gramática universal da informática, quer
como cidadão que reclama cidadania a partir da sua própria diferença, ou identidade.
Castells refere-se à Europa como um estado em rede:
(1) É evidente que não se deve ser ingénuo face ao surgimento de um espaço educativo europeu. Como
enfatiza R. Dale (2003), na base das «boas intenções» é possível identificar os interesses ligados à reorga-
nização do sistema produtivo e as suas implicações políticas.
158 «A Diferença Somos Nós»
(…) constituído por instituições comuns, activadas pela negociação e iteração inter-
activa ao longo da cadeia dos processos de tomada de decisão: governos nacionais, gover-
nos co-nacionais, órgãos supranacionais, instituições internacionais, governos de nacio-
nalidades, governos regionais, governos locais e ONGs (…). (…) Estas novas funções do
estado em rede implicam que todos os nós interajam e sejam igualmente necessários
para o desempenho das funções do estado. Trata-se de um estado cuja eficiência é defi-
nida em termos da sua capacidade para criar e manter redes – redes globais, regionais e
locais – e através dessas redes promover o crescimento económico e desenvolver novas
formas de integração social. (Carnoy, 2001: 31)
Estas novas formas de integração social, que efectivamente correspondem a uma nova
forma de regulação, estão relacionadas com dois importantes aspectos: em primeiro lugar,
resultam de um novo papel desempenhado pelo conhecimento no processo produtivo,
«criando condições para o crescimento económico (…) e gerindo e compensando os efei-
tos globais criadores de desigualdade ao nível local» (ibidem); em segundo lugar, elas pro-
porcionam a oportunidade para a articulação do estado em rede com aquilo que noutro
trabalho chamámos «formas híbridas de regulação» (Stoer e Rodrigues, 1998), devido ao
facto de elas combinarem uma lógica política horizontal com a de tipo vertical. No que
concerne ao primeiro, o que está em questão são, em grande medida, os efeitos do pro-
cesso de tradução do conhecimento em competências. No Capítulo 3, desenvolvemos este
argumento mais circunstanciadamente, ligando-o à reconfiguração do mandato político
endereçado à educação e às suas implicações no contexto da sociedade do conhecimento e
da informação, onde ocorrem pressões de «cima para baixo» e de «baixo para cima» sobre
o estado-nação e sobre os cidadãos. Relativamente ao segundo, o que está em causa é a
articulação de um espaço em que a justiça redistributiva e a justiça ligada ao reconheci-
mento das diferenças se desenvolvam com um estado cuja legitimidade tem vindo a ser
desafiada por importantes transformações económicas e pelo desenvolvimento de uma
nova ontologia social (ver Capítulo 4). Por outras palavras, a emergência da Europa como
um «estado em rede» aparentemente significa o surgimento de um estado que assume a
tarefa de se tornar capaz de providenciar as condições necessárias para o desenvolvimento
de uma política social que se baseie ela própria na capacidade dos cidadãos lidarem com as
possibilidades e os riscos inerentes ao capitalismo flexível.
sociólogos que têm trabalhado com a questão da classe social sabem que a reflexividade,
enquanto capacidade de escolher, é uma capacidade aprendida e que está ligada às origens
sociais e familiares específicas, isto é, o efeito de classe dá origem àquilo a que ele chama
uma nova desigualdade, a desigualdade na forma como se lida com o risco e a reflexividade
(ibidem, 98). O conhecimento surge ao mesmo tempo como factor central de produção –
sobretudo aquele que é susceptível de ser traduzido em linguagem máquina –, e – o conhe-
cimento sobre a vida individual e colectiva principalmente – como um dos esteios das
actuais formas de cidadania, profundamente marcadas pelas identidades individuais e gru-
pais dos cidadãos. Por exemplo, ser mulher, de um dado grupo étnico, assumir dado estilo
de vida ou dada identidade sexual, são crescentemente factores que enformam o exercício
da cidadania e que se escoram, em princípio, na reflexividade. Estas duas formas do papel
e do desenvolvimento do conhecimento não parecem ser contraditórias com o carácter
universal e mais ou menos homogéneo da informação bytificada que circula globalmente.
Referimos no Capítulo 5 o debate entre o filósofo Richard Rorty e o antropólogo Clifford
Geertz sobre a organização das sociedades ocidentais modernas. Como dissemos, o segundo
propõe a metáfora do «bazar do Kuwait» para dar conta da simultânea tendência para a
fragmentação e agregação dessas sociedades. Geertz fala concretamente sobre como, numa
época de globalização, as comunidades locais se assemelham crescentemente a uma
enorme colagem, isto é, em cada uma das suas localidades, o mundo parece-se cada vez
mais «um bazar do Kuwait do que um exclusivo clube inglês» (ibidem, 47). Este último
representa a incomensurabilidade das diferenças locais/ culturais: a «portuguesidade» dos
portugueses, a «englishness» dos ingleses, o carácter árabe dos próprios árabes, etc.
A ideia do «bazar do Kuwait», como estruturadora de uma nova concepção das socie-
dades e das sociabilidades actuais, surge enquadrada pelas seguintes preocupações:
1. o bazar não é uma grande narrativa que possa estruturar uma espéce de nova utopia
política. Em vez disso, tem um valor pragmático no sentido em que é proposto por
europeus para pensar o contexto e a construção europeias;
2. o bazar é um espaço público (político, social, cultural...) regulado e susceptível de
regulação;
3. se reconfigurado como estado em rede, o estado pode ser um importante agente de
distribuição de justiça social e de difusão do reconhecimento da diferença, assim
como um importante instrumento de implementação da justiça redistributiva;
4. a soberania que as diferenças reclamam do estado não corresponde à dissolução
deste enquanto agente de justiça (sobretudo redistributiva), mas diz respeito à legi-
timidade das diferenças regularem as suas próprias vidas;
5. no bazar não se discute a legitimidade das diferenças, apenas se negoceia as formas
de convivência e as regras de convivialidade comum, assumindo que «poderemos
viver em conjunto» (Touraine, 1998);
6. esta negociação não é uma fase a ultrapassar, mas um estado permanente: a demo-
cracia já não é um «estádio», mas um fim em si mesmo (ou sem fim);
160 «A Diferença Somos Nós»
O que está em causa nesta definição política do bazar é o facto de ela colocar a questão
do poder, enfatizando que as diferenças se afirmam como um «campo de batalha ideoló-
gico» (Wallerstein, 1990), isto é, articulando as questões da discriminação, racismo ou
exclusão com aquelas derivadas da desigualdade na distribuição da riqueza e vice-versa. O
bazar, enquanto metáfora política, pela agência que pressupõe por parte dos actores
sociais, integrando embora a lógica «de cima para baixo» da rede, relativiza-a com a ênfase
que coloca na lógica «de baixo para cima» da cidadania reclamada. Neste sentido, o bazar
enquanto metáfora política parece-nos incluir as virtualidades das metáforas anterior-
mente referidas. Da primeira, a bandeira, inclui o reconhecimento de que a questão da
identidade nacional não pode ser ignorada mas, antes, articulada como diferença. Da
segunda, integra o cosmopolitismo e a preocupação universal com aquilo que a todos os
seres humanos diz respeito. Da terceira, assume que a rede é um âmbito da agência dos
actores sociais, da gramática informacional e da lógica do capitalismo flexível.
O bazar enquanto unidade política pressupõe a reflexividade dos cidadãos, considera-
dos quer individual, quer colectivamente. Enquanto conjunto negociado de regras de con-
vivência, ele é o outro lado daquilo que Rorty chama os «clubes privados». Quer dizer, o
bazar é o lugar em que a cidadania se expressa através da comunidade das regras gerais,
que não violam a diferença dos cidadãos. É na qualidade de diferentes que os cidadãos se
podem congregar neste espaço político, diferentemente do que acontecia com o exercício
da cidadania em contextos modernos, em que os cidadãos se encontravam nos espaços e
nos tempos públicos com base naquilo que tinham em comum, a religião, a língua, o ter-
ritório, etc.2
O conhecimento, a informação e as competências para deles se servir, surgem, assim,
como ingredientes básicos da actual cidadania. Até muito recentemente estes três factores
tinham como sede privilegiada a escola, enquanto espaço de distruibuição de conheci-
mento e informação e de formação. Actualmente, parece que a produção de conhecimento,
da informação e das competências se estão a afastar da escola como locus privilegiado,
(2) John Rex, no seu texto clássico sobre «o conceito da sociedade multicultural» (1988), fala de uma
«cultura cívica e laica como uma componente comum e necessária de todas as culturas, nas sociedades
industriais avançadas» (1988: 206). Assim o multiculturalismo para Rex «só pode ser tolerado se não
ameaçar uma cultura cívica partilhada incluindo, evidentemente, a ideia de igualdade de oportunidade»
(ibid.). É precisamente esta utopia de uma «cultural cívica partilhada» que, no nosso ver, as diferenças
rejeitam. Os pensamentos sofisticados de Rex sobre o que poderia constituir uma sociedade multicultural
estão contextualizados por uma visão moderna do racional desenvolvimento industrial. É a crítica dessa
visão que está na base das «rebeliões das diferenças». Ver também a crítica de Rex feita por Parekh (2000)
do que ele designa «teorias procedimentalistas e de assimilação cívica».
A Europa como um bazar: educação na Europa do conhecimento 161
CONCLUSÃO
educação. Todavia, pode defender-se que essas possibilidades em vez de terem sido explo-
radas através das implicações da reconfiguração do capitalismo onde o conhecimento
assume, como já se disse, um lugar central no processo produtivo, o que tem acontecido
é a conceptualização da rede como uma espécie de «lugar branco», ponto de consenso e
convergência de tudo e de todos. Ser europeu, ser cidadão deste tipo de estado, pode, efec-
tivamente, significar mais do que um mero reescalonamento da cidadania atribuída pelos
estados nacionais.
É por isso que nos parece fazer sentido a utilização da metáfora do bazar para pers-
pectivar a Europa. A Europa, como rede, já o dissemos, corresponde à emergência de uma
nova forma de regulação que congrega os contributos das três perspectivas para a concep-
tualização da Europa. A metáfora do bazar possui fortes implicações que derivam da sua
própria definição específica (ver acima). Estas implicações centram-se essencialmente em
torno da questão da relação entre a justiça redistributiva e a justiça baseada no reconhe-
cimento da diferença e da questão da reconfiguração da cidadania, isto é, da transição da
«cidadania atribuída» para a «cidadania reclamada», que, por seu turno, implica o redese-
nho das políticas da diferença baseado na perspectiva, acima explicitada, «a diferença
somos nós».
A concepção do bazar, como metáfora política para a construção da Europa, incorpora
e mediatiza as três perspectivas e metáforas fundadoras (a bandeira, a associação e a rede),
sem nelas se esgotar. O que o bazar poderá trazer de novo para a discussão é que, fundado
no enunciado «a diferença somos nós»
(3) Este aspecto é pleno de consequências para o campo da educação. Devido ao facto desta estar pro-
gressivamente a escapar à acção educativa do estado, para se transferir para o âmbito da «formação» e do
ambiente do mercado, o desafio que se coloca ao estado em rede é o de como tornar a posicionar-se no
campo educativo. Eventualmente, fá-lo-á assumindo a promoção da «educação ao longo da vida» em con-
trapeso à «formação contínua».
A Europa como um bazar: educação na Europa do conhecimento 163
Terminamos este capítulo sublinhando uma dúvida: será que a Europa como bazar tem
a potencialidade de desempenhar as funções que a Europa das bandeiras, da associação em
torno de temas e da rede parecem desempenhar de uma forma eficaz? Será que é capaz de
desenvolver, no âmbito da sua própria especificidade enquanto metáfora política, o senti-
mento de pertença da primeira, de promover o cosmopolitismo universalista da segunda,
e as formas de produção capazes de sustentar estilos de vida diversificados e a potencial
sofisticação da terceira? Obviamente que não há uma resposta fácil a estas questões, mas
a ideia do bazar parece trazer para a ribalta da discussão uma preocupação com formas de
cidadania ligadas ao local, mas de dimensão global, fundadas em discursos na primeira
pessoa do singular e do plural (a cacofonia do bazar pode não ser sinónimo de confusão,
mas expressão de diferenças) e de formas de convivência estruturadas com base nas pró-
prias diferenças. Nesse sentido, o bazar como metáfora política para a construção da
Europa parece incorporar as diferentes metáforas, mediando as suas legítimas especifici-
dades sem as destruir em qualquer síntese superadora.
C A P ÍCONCLUSÃO
TULO
diente fundamental como afirma que os espaços de relação, onde eventualmente possamos
viver em conjunto, são espaços e tempos em que o conflito não surge como um obstáculo
à reinvenção das comunidades, mas como o próprio terreno a partir do qual o próprio con-
trato social é renegociado.
Ao ser reclamada pelas diferentes «diferenças», a educação também se pluraliza e dife-
rencia. Esta diversificação, contudo, longe de pôr necessariamente em causa o carácter
público das instituições educativas, até o pode aprofundar, no sentido em que a tradicio-
nal influência (desde a Revolução Francesa) do domínio económico sobre a educação
(através da origem social dos indivíduos) é, pelo menos em parte, reconfigurada pela colo-
cação da questão dos direitos culturais dos indivíduos e dos grupos. Como podem o estado
e as suas instituições interiorizar (e aproveitar) esta nova situação da «educação recla-
mada»?
Não se trata de fazer o elogio da fragmentação da educação em projectos incomensu-
ráveis, mas de enfatizar o facto de a educação estar a ser colocada nos guiões e nos pro-
jectos pessoais e grupais. O projecto de uma educação universal, tal como foi desenhado
no âmbito do projecto da modernidade e implementado de «cima para baixo» pelo apare-
lho estatal, parece efectivamente estar a ser relativizado por uma lógica que sugere um
desenvolvimento de «baixo para cima», quer dizer, a partir dos interesses, projectos e von-
tades dos indivíduos e dos grupos. Neste sentido, a «educação reclamada» é ao mesmo
tempo um conjunto de ameaças e de oportunidades. Ameaças, porque o risco é o da con-
denação dos cidadãos a tornarem-se definitivamente indivíduos (esvaziando, assim, qual-
quer política educativa e/ ou social enquanto projecto de responsabilidade colectiva pela
satisfação das necessidades individuais: o indivíduo é responsável pela sua educação,
saúde, segurança, etc.); oportunidades, porque permite colocar a educação nos projectos
«glocais» dos indivíduos e dos grupos.
Entre as ameaças e oportunidades não é uma quase-cidadania que parece emergir, mas
uma concepção de «quase-sujeito», como diz Beck, Bonss e Lau (2003). Os direitos e os
deveres que definem o cidadão não estão a ser explicitamente contestados (é, por exemplo,
na retórica política dominante, em nome da cidadania e da luta contra o peso burocrati-
zante do aparelho do estado, que os utentes dos serviços de saúde são transformados em
clientes). O que está a acontecer, a nosso ver, é que, entre a individualização e a indivi-
duação se perfila uma outra figura molecular das actuais sociedades ocidentais, a de quase-
-sujeito, que «é simultaneamente o resultado e o produtor das suas redes, situação, loca-
lização e forma» (ibid.: 25).
A «educação reclamada», assim, parece encontrar-se entre a pressão da universalidade
de um projecto educativo para todos, em que o conhecimento é organizado em termos de
competências flexíveis e/ ou transferíveis, e a particularidade das necessidades e dos pro-
jectos reflexivos dos cidadãos – portanto, como um campo de importantes possibilidades
de agência política.
Como já se disse, não é nossa intenção sugerir a perspectiva política da criação de con-
textos educacionais fragmentados, quer dizer, uma escola para ciganos, uma escola para
168 «A Diferença Somos Nós»
gays1, etc. Antes, o nosso objectivo é o de enfatizar que as reclamações de cidadania não
podem ser julgadas a partir de um centro, de um «nós», mais sabedor e seguro acerca do
que convém aos «outros». Estes «outros», no fundo, na perspectiva que desenvolvemos,
surgem como um parceiro integral, cujo controlo político já não é desejável nem possível
exercer, a não ser ao custo da perda do seu estatuto de sujeito. Porém, o reconhecimento
do carácter integral do «parceiro de conversa» política não significa nem a sua reificação,
nem a perda da nossa própria diferença. Por exemplo, se alguém diz que a dada comuni-
dade mais convém desenvolver contextos educativos próprios, tal não significa que o pro-
jecto de uma educação para todos tenha deixado de ser indefensável, pelo contrário, o que
ele tem é de ser politicamente gerido com a consciência reflexiva de que se trata de um
projecto conflitual. A fragilidade da perspectiva de «a diferença somos nós» reside no facto
dessa consciência assumir a limitação de ser a consciência do «nós», por mais universal
que seja a dimensão ética, ou política, que a enforma. Em suma, gerir as políticas sociais
é procurar, no fio da navalha, lidar com a incomensurabilidade das diferenças num mundo,
e particularmente na Europa, onde estamos definitivamente «condenados» a viver em con-
junto.
(1) Veja-se a notícia do jornal Público de 4 de Agosto de 2003 que informava acerca da inauguração
em Nova Iorque de uma escola pública de ensino secundário gay, sob o argumento dos seus fundadores
de que essa era uma forma de criar as melhores condições para os jovens com essa identidade sexual serem
bem sucedidos nos seus estudos.
BIBLIOGRAFIA
CAP ÍTULO
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