Você está na página 1de 180

António M.

Magalhães
Stephen R. Stoer

«A Diferença Somos Nós»


A Gestão da Mudança Social
e as Políticas Educativas e Sociais

Edições Afrontamento
Título «A Diferença Somos Nós»
A Gestão da Mudança Social e as Políticas Educativas e Sociais
Autor António M. Magalhães; Stephen R. Stoer
© 2005, Autores e Edições Afrontamento
Imagem da capa ???????????????????????????????
Edição Edições Afrontamento/ Rua Costa Cabral, 859/ 4200-225 Porto/ www.edicoesafrontamento.pt
Colecção Biblioteca das Ciências Socias/ Ciências da Educação/ 21
Nº de edição ???
ISBN 972-36-0761-1
Depósito legal 225805/ 05
Impressão e acabamento Rainho & Neves Lda./ Santa Maria da Feira
Setembro de 2005
C ÍNDICE
APÍTULO

7 Introdução: O discurso científico e a relação com a diferença

15 PARTE I: A GESTÃO DA MUDANÇA SOCIAL E AS POLÍTICAS EDUCATIVAS


19 Capítulo 1: Mapeando decisões no campo de educação numa época de globa-
lização (em co-autoria com Luiza Cortesão)
19 A gestão da mudança social e as políticas educativas
25 Reflexividade e loucura
26 Mapeando as decisões de política educativa
30 Conclusão

31 Capítulo 2: A «Nova Classe Média Nova» e a reconfiguração do mandato ende-


reçado ao sistema educativo
31 A renovação do mandato para o sistema educativo da nova classe média
33 A reestruturação do mercado de trabalho no contexto do capitalismo flexível:
da profissionalidade à empregabilidade
36 Do conhecimento como formação ao conhecimento como competência, ou da
pedagogia à performance
39 A falsa dicotomia: performance sem pedagogia vs pedagogia sem performance
40 Conclusão

43 Capítulo 3: Educação, sociedade em rede e redefinição do conhecimento


44 O capitalismo, a socialização escolar e a formação de trabalhadores
46 Do mercado de trabalho keynesiano à rede: a relação entre conhecimento,
competências e educação na formação do indivíduo
51 A sociedade em rede, o conhecimento e a educação
56 Conclusão
59 PARTE II: O IMPACTO DA GLOBALIZAÇÃO NOS PROCESSOS DE INCLU-
SÃO/ EXCLUSÃO SOCIAL E «A DIFERENÇA SOMOS NÓS»
63 Capítulo 4: Cinco lugares do impacto de exclusão social
63 A «Sociedade de Risco» e a exclusão social
65 A exclusão social como um fenómeno multidimensional
66 A exclusão social e a inclusão social como um único conceito
67 Cinco lugares do impacto da inclusão/ exclusão social
68 O lugar do corpo (em co-autoria com David Rodrigues)
83 O lugar do trabalho
89 O lugar da cidadania
101 O lugar da identidade
111 O lugar do território
117 Conclusão

125 Capítulo 5: A incomensurabilidade da diferença e o anti-anti-etnocentrismo


125 O «Anti-Anti-Relativismo» de Clifford Geertz
126 A incomensurabilidade da diferença

137 Capítulo 6: Contributos para a reconfiguração da educação inter/ multicul-


tural
137 Modelos de conceptualização e de legitimação da relação com as diferenças
139 As pontes e as margens: a educação inter/ multicultural no fio da navalha
140 A reconfiguração da educação intercultural
142 Conclusão

143 PARTE III: NOVAS FORMAS DE REGULAÇÃO E A «DIFERENÇA» NO


ÂMBITO DA CONSTRUÇÃO EUROPEIA
147 Capítulo 7: A Europa como um bazar: educação na Europa do conhecimento
147 Quatro metáforas para a construção da Europa
161 Conclusão

165 Conclusão
169 Bibliografia
C A PINTRODUÇÃO
ÍTULO

O discurso científico
e a relação com a diferença

Não é possível afirmar que exista um padrão único através do qual a Europa, desde a
antiguidade grega, tenha determinado a sua relação práxica e intelectual com o mundo.
Não é possível também afirmar que as narrativas que legitimaram a relação de poder face
às diferenças sociais e culturais, com que interna e externamente nos fomos confrontando,
sejam de uma só natureza e de um só tipo. Ao longo da história das sociedades ocidentais
foram-se desenvolvendo e implementando diferentes matizes e padrões de relação com as
mencionadas diferenças, consoante não só a episteme dominante – medieval, renascentista,
moderna… – mas também consoante as conjunturas. Por exemplo, o modo de pensar as
relações sociais durante o século XIX foi objecto não só da perspectiva iluminista, e da sua
mais ou menos dominante deriva positivista, mas também da «rebelião romântica», para
nos exprimirmos como Shweder (1997). É, porém, inegável que foi a matriz racional-cien-
tífica que se tornou dominante como modo de apreensão do mundo, da vida e das socieda-
des. Muitas vezes, até, as rebeliões, umas mais românticas do que outras, aconteceram no
âmbito e sob a égide de um quadro epistemológico hegemónico perante o qual elas sempre
tiveram que se justificar e legitimar. Neste sentido, a explicação e a compreensão do mundo,
das diferentes formas de vida e das diferentes sociedades, sobretudo na Idade Moderna,
foram substancialmente marcadas pelo modelo «científico» de explicar e compreender.
No fundo, o «objecto» da atenção deste tipo de conhecimento foi sempre a alteridade
que, pelo saber, se pretende delimitar, categorizar e, em última instância, governar. A
antropologia cultural e a psiquiatria, para mencionarmos apenas estes dois «olhares»,
ecoaram no seu próprio corpus não só a deriva racionalista-funcionalista, como também
alguma deriva romântica, dado que a diferença externa (sobretudo objecto da antropolo-
gia cultural) e a interna (cerne da preocupação da psiquiatria e da medicina em geral) sur-
giram, enquanto incomensurabilidade, tantas vezes sob o apelo da diferença exótica, à la
Gaugin, como desafios ao(s) quadro(s) epistemológicos e socioculturais.
O que parece ser actualmente incontestado é o facto de haver uma estreita consonân-
cia paradigmática entre o saber científico acerca das coisas/ diferenças e a necessidade de
8 «A Diferença Somos Nós»

as governar. A antropologia cultural e a etnologia, por um lado, e as ciências médicas, por


outro, de braço dado de resto com as ciências sociais e humanas (Foucault, 1967), torna-
ram-se, sobretudo a partir do século XIX, um forte sustentáculo das políticas da diferença,
isto é, na base da legitimidade e de legitimação pela qual as pessoas e os grupos diferentes
se tornavam objectos da acção organizadora do pensamento e da compulsão ordenadora
(governativa) das sociedades ocidentais.
Aliás, é interessante ver como a própria variação nos nomes das disciplinas científicas,
nomeadamente na antropologia cultural, reflecte o modo como os diferentes estados-nação
europeus se confrontaram com a necessidade de gerir a sua relação com as diferenças
sociais e culturais. Na Europa continental, o nome «Etnologia» foi o privilegiado para a
disciplina, particularmente entre os franceses, alemães, italianos, espanhóis e portugue-
ses. Tornada uma área de saber independente a partir de 1830, parece ter guardado a marca
derivada do movimento das Descobertas, dos relatos produzidos sobre o encontro com
outras sociedades e culturas a partir dos séculos XV e XVI1. É claro que a tarefa de criação
e consolidação dos estados-nação e da respectiva cultura nacional criou condições para
que a disciplina se confrontasse sobretudo com as diferenças «internas». E isto mesmo
quando se tratava de territórios coloniais, lidos assim como «pertencentes» ao corpo (polí-
tico/ geográfico) nacional. Nos Estados Unidos a disciplina surge sobretudo referida como
Antropologia Cultural, não sendo, na nossa perspectiva, alheio a essa predominância do
nome o facto de que foi efectivamente em nome do anthropos civilizado (Morgan, 1976)
que se legitimou o forte movimento de aculturação e mesmo de etnocídio («A good Indian
is a dead Indian») das populações pré-colombianas. Os britânicos empregaram (e conti-
nuam a empregar) mais a expressão Antropologia Social, focalizando-a sobretudo nas rela-
ções sociais e não tanto nas «produções» culturais dos grupos.
Recusando algum reducionismo inerente à sua crítica, não podemos deixar de recor-
dar Gérard Leclerc (1973) que afirma a «conivência» entre o funcionalismo, enquanto teo-
ria social, e a indirect rule enquanto modo de regulação política que a Inglaterra adoptou
para governar as populações colonizadas. O controlo cultural indirecto seria o processo de
desenvolver a vida económica, a administração da justiça pelos próprios indígenas, assim
como a promoção da moral e da educação segundo «a linha indígena». Foi nesta margem
de «respeito pela linha indígena» que a antropologia surgiu, e ao anicharem aí a sua dis-
ciplina os antropólogos acabaram por tornar a indirect rule num sistema e numa teoria
(ibidem):

A palavra de ordem de Lugard Find the chief!, retomada por Malinowski e seus dis-
cípulos, estará frequentemente na origem de numerosas pesquisas de campo, consagra-
das àquilo a que mais tarde se denominará de «antropologia política». Porque a própria

(1) «Tendência mais conservadora do europeu, campo de acção e de pesquisas maiores, devido às pos-
sessões africanas e asiáticas (…). Assim, houve lugar a uma manifesta conservação do termo Etnologia,
sem que, por outro lado, se não aceitasse a expressão Antropologia Cultural (…)» (Lima, Martinez e Filho,
1982: 28).
Introdução 9

circunscrição é apenas um elemento da instituição política, e da «estrutura social total»,


para retomar os termos essenciais (funções religiosas, funções económicas da acumula-
ção e de redistribuição, etc.). (ibidem: 104)

Se definirmos as políticas da diferença como o conjunto articulado de modos como, no


Ocidente, os estados, as suas concepções e as suas práticas, regularam e regulam, pensa-
ram e pensam e lidaram e lidam com a diferença, é possível identificar aí três níveis: o nível
político, o nível epistemo-ontológico e o nível práxico. O primeiro nível está localizado ao
nível dos dispositivos legais e normativos que regulam, em termos de cidadania formal, a
relação dos diferentes aparelhos do estado com as pessoas e grupos diferentes (internos ou
externos); o segundo nível localiza-se, aparentemente, a montante do primeiro e é refe-
rente às concepções e ao conhecimento sobre as diferenças; o terceiro nível é aquele que
corresponde aos quotidianos das nossas sociedades na sua relação com as ditas diferenças.
Estes três níveis surgem, na prática, como dimensões da mesma abordagem, frequente-
mente imbricados na sua procura de mútua legitimação. Por exemplo, a atribuição de
cidadania britânica a um indiano, ou a dado grupo étnico, corresponde à activação de uma
política que se justifica a si mesma enquanto tal e como visão do mundo, quer dizer, a partir
de uma narrativa que falará do modo como as relações com o mundo físico e social são pen-
sadas, como é que esses mundos são conhecidos e cognitivamente ordenados e acerca da
legitimidade destes processos. É neste sentido que a antropologia e a sociologia, por um
lado, e as ciências humanas centradas nos indivíduos (psicologia, psiquiatria, etc.), por
outro, não podem reclamar um estatuto de independência face a qualquer dos três níveis
referidos das políticas da diferença.
É interessante sublinhar que é uma importante característica dos saberes e das políti-
cas ocidentais esta preocupação com o outro, com as diferenças, sobretudo a preocupação
científica com o outro é exclusivamente ocidental. A separação sujeito/ objecto, fundadora
do olhar científico, foi já há muito denunciada como uma relação que não se esgotava na
epistemologia, sendo sobretudo da ordem do político. Sendo esta ordem aquela onde o poder,
o seu exercício e distribuição se instalam, pode-se dizer que a assunção epistemológica da
separação sujeito/ objecto como condição de ciência é também a condição política que atri-
bui o lugar de objecto do conhecimento e o lugar do sujeito do conhecimento. Nesse sentido,
os discursos científicos sobre as diferenças (culturais, sociais, individuais, etc.) são parte de
um acto instituidor que determina e legitima determinados seres, entidades, indivíduos e
estados como «objectos» de conhecimento. Esta legitimação epistemológica e política é
particularmente visível na concepção das sociedades diferentes como «primitivas».
É nesta matriz que repousam os discursos sobre a diferença que neste livro estarão em
análise. Quer dizer, a questão que atravessará as suas diferentes partes é a de saber quais
as consequências do questionamento, pelos ocidentais, do discurso científico como narra-
tiva fundadora e legitimadora das relações com a diferença e, por outro lado, da recusa, por
parte das diferentes diferenças, da condição de «objecto» dos olhares que as delimitam
como alteridade.
10 «A Diferença Somos Nós»

O argumento que desenvolveremos parte precisamente da encruzilhada em que se


parece encontrar o pensamento e a acção sobre as diferenças. Procurando evitar alguns
efeitos mais ou menos perversos derivados de algumas leituras da teoria da comunicação
inspiradas em Habermas, questionamos os diferentes como interlocutores (mesmo na sua
condição de eventuais «silenciados») e não como entidades a quem a voz deve ser politi-
camente devolvida. O acto de devolução de voz pode não escapar à delimitação do outro
como objecto, desta feita através da nossa generosidade política. É neste sentido que nos
colocamos sob a afirmação «a diferença somos nós», o fio condutor deste trabalho. Como
se verá ao longo do trabalho, a diferença, nesta perspectiva, é produto de um jogo relacio-
nal no qual deixou de haver um centro priviliegiado a partir do qual se pode determinar
quem são os outros, quem são os diferentes. Ao mesmo tempo que se recusa a diferença
como objecto do nosso discurso, por mais autorizado que seja, recusa-se também a pers-
pectiva de que nós próprios não somos uma diferença. Não se trata de sugirmos no jogo de
relações políticas como uma mera diferença entre outras (como o discurso de apartheid
poderia fazer crer) branqueando a história e a dominância étnica, cultural e política dos
ocidentais, mas de, incorporando a história na própria identidade de ocidentais, assumir
que já não somos o «nós» privilegiado a partir do qual os «outros» são determinados como
tal. Mais adiante, no capítulo 6, desenvolveremos esta questão mais aprofundadamente;
por ora, é suficiente dizer que a nossa perspectiva é a de pensar a diferença dos outros e a
nossa a partir da sua incomensurabilidade. Tal parece permitir uma humildade epistemo-
lógica e política mais consentâneas com aquilo que reflexivamente vamos sabendo acerca
de nós e dos outros. Quer dizer, já não é possível falar e fazer programas políticos para os
«outros», para os incluir, ou para os excluir, sem questionar e investigar a natureza da
relação que existe entre o «Nós» hegemónico e os outros, definidos como diferentes.
Neste sentido, fazer apelo aos discursos nas primeiras pessoas do singular e do plural,
contra os discursos sobre as diferenças, não é uma forma de justificar alguns silêncios
enquanto produto do silenciamento histórico, mas a assunção do eventual silêncio como,
por assim dizer, voz, dado que o silêncio pode ser uma forma de falar.

O MERCADO E A INCLUSÃO SOCIAL

É paradoxal que numa altura em que toda a ênfase parece ser colocada na questão da
inclusão, na educação inclusiva e na chamada «sociedade inclusiva», a exclusão surja como
sendo a norma. E isto parece ser verdade, a menos que se assuma como ponto de partida
a ideia de que o mercado é a instância que, na emergente ontologia social2, define a inclu-

(2) Por ontologia social entendemos o modo como, nos diferentes contextos temporais, as relações
sociais são vividas, concebidas e explicadas/ compreendidas. Desde o senso comum às ciências sociais que
um dado tipo de ontologia social preside à organização dessas relações, ora como «facto social», ora como
ordem social desejável (ver também capítulo 4), quer dizer, em todos os casos se identifica o que é uma
relação social e a sua legitimidade.
Introdução 11

são, substituindo-se dessa forma às funções do estado-nação e ao seu modelo de protecção


social, sobretudo tal como se desenvolveu sob a égide do estado de bem-estar social. Se a
inclusão for, efectivamente, definida a partir do mercado, pode ser vista como um dos pro-
cessos que permite a esse mesmo mercado desterritorializar as relações sociais ao nível do
estado-nação para as reterritorializar, depois, a um nível supranacional. A razão para tal
reside no facto de os fluxos de capital terem deixado de estar amarrados às regulações
nacionais e, na sua lógica de casino (no sentido em que pressupõe um retorno rápido do
lucro derivado do investimento – ver também Harvey, 1989), reconfigurarem as relações
sociais, deslocalizando-as intensivamente sob a forma, como diz Santos, de «globalismos
localizados» e de «localismos globalizados»3 (1995). Assim, nesta perspectiva, pode dizer-se
que em vez da promoção de instâncias, quer nacionais, quer internacionais, de regulação
das práticas de exclusão, o mercado – no duplo sentido de «regime de verdade» e de modo
de regulação hegemónico – foi criando um espaço global onde todos os indivíduos, inde-
pendentemente das suas diferenças, parecem ser incluídos como consumidores. O para-
doxo reside, é claro, no facto de a inclusão ser promovida com base nesta erradicação das
diferenças e não com base nessas mesmas diferenças. Ser incluído, nesta lógica, é ser
incluído como consumidor criando precisamente a ilusão de que é com base na sua dife-
rença que é configurado como consumidor, isto é, porque o mercado, nos actuais contex-
tos, se articula com uma forma de produção pós-fordista que se caracteriza precisamente
pela directiva just in time e pelo imperativo just for you, as diferenças dos indivíduos e dos
grupos e as necessidades que derivam dessas diferenças e da sua afirmação (ser «verde»,
ser pelo «comércio justo», ser «naturista», ser «surfista», etc.) são transformadas em mer-
cadorias elas próprias. Desta forma, e, repita-se, paradoxalmente, a inclusão das diferenças
através do mercado é feita com base no esbatimento dessas diferenças pela sua identifica-
ção com consumo e consumidores.
Este processo de inclusão pela erradicação das diferenças é semelhante àquele levado a
cabo pelos diferentes estados-nação durante os séculos XVIII, XIX e XX, pois também nesse
caso era aquilo que as pessoas possuíam em comum (território, linguagem, religião, grupo
étnico, história) que se tornava o factor determinante para a definição daqueles que eram
incluídos no espaço nacional e, assim, aptos para o exercício da cidadania. Antes do estado-
-nação ser o organizador-chave da inclusão, a Igreja desempenhou esse mesmo papel com
base, dessa feita, na comunidade da fé. A ontologia social das sociedades pré-modernas oci-
dentais fundava-se na ideia de que todos eram criaturas de Deus e, como tal, eram incluí-
dos e organizados no corpus social.

(3) Por «localismo globalizado», Santos (1995) entende a redimensionação de um fenómeno local para
um nível global, sem que, com isso, os actores sociais nele envolvidos sejam integrados. O exemplo do
samba, nascido nas favelas brasileiras, é ilustrativo de um «localismo globalizado», ou o do Vinho do Porto
que, circulando como mercadoria, só em negativo evidencia as condições difíceis dos camponeses do
Douro. Como «globalismo localizado» o autor refere fenómenos de circulação global de capital que arti-
culam os locais. Como exemplo, pode adiantar-se as empresas transnacionais da indústria do turismo que
transformam pela sua acção o «local» numa mercadoria (as pirâmides do Egipto, Pisa…)
12 «A Diferença Somos Nós»

Consequentemente, poderá argumentar-se que tanto a concepção medieval como a


moderna de ontologia social definiam a inclusão baseando-a na exclusão – ou na tentativa
de erradicação – da diferença. Tanto os infiéis como os sem pátria (recorde-se o caso dos
ciganos até muito recentemente em Portugal e o caso dos povos indígenas no Brasil) eram
empurrados para as margens como sendo aqueles a quem não era possível considerar legí-
timos participantes na sociedade. Esta construção da inclusão com base naquilo que as
pessoas partilham, no que têm em comum, conduziu inevitavelmente a diferentes formas
de exclusão económica, social, política e cultural.
Se nas sociedades capitalistas ocidentais o lugar que se ocupava no mercado de traba-
lho, assim como o processo de formação que proporcionava aos indivíduos o acesso a
dada ocupação, era crucial na sua definição identitária e na das políticas sociais em geral
e das educativas em particular, com o advento da sociedade do conhecimento, e o corres-
pondente movimento do conhecimento do estado-nação para o global/local, os indiví-
duos são cada vez mais definidos não pelos empregos que têm mas pelos conhecimen-
tos/competências que conseguem acumular e eventualmente gerir. Quer dizer, a produção
e divulgação do conhecimento, que até aos anos 1970 estavam centradas e sediadas
nas universidades e nas instituições educativas nacionais, deixaram de assumir a cul-
tura nacional como o seu âmbito e objectivo de desenvolvimento. O conhecimento, sobre-
tudo quando traduzido em linguagem-máquina, articulou-se de uma forma sem prece-
dentes com o sistema de produção, distribuição e consumo do capitalismo e globalizou-se.
Isto é, circula sob a forma de bytes de informação e de conhecimento como competên-
cias. Não se trata de negar que o industrialismo e o capitalismo sempre utilizaram conhe-
cimento e a ciência como factor produtivo e da organização do trabalho; o que se trata
de enfatizar aqui é que, de uma forma sem precedentes, os processos de produção que
estruturam o capitalismo transnacional são conhecimento-intensivos e não trabalho-
-intensivos.
É neste contexto que se compreende a forte pressão sobre os conhecimentos, sobre-
tudo escolares, para que estes se construam sob a forma de competências. Quer dizer, na
medida em que as funções produtivas se vão articulando com a permanente inovação pro-
porcionada quer pela circulação intensiva do conhecimento, quer pela emergência contí-
nua de necessidades-mercadorias – e, nessa circunstância, se vão diluindo em conjunto
mais ou menos difusos, flexíveis e dinâmicos de fazeres e saberes-fazer – os saberes ocu-
pacionais e profissionais são reconfigurados como «competências». É este conhecimento
traduzido em competências que desencadeia, simultaneamente, a tentativa do sistema
educativo procurar actualizar a sua estrutura curricular para responder às novas exigên-
cias de um mercado do trabalho, em vias de reconfiguração, e as iniciativas das comuni-
dades locais para recolocar a questão dos conhecimentos formadores do indivíduo (agora
menos centrados na escola), tanto para promover interesses de classe (por exemplo, a nova
classe média nova – ver capítulo 2), como para reencontrar um novo impulso emancipa-
tório através da educação. Como se sabe, a escola pública manifesta sinais da sua redefini-
ção através da lógica do mercado.
Introdução 13

O que é que significa este reposicionamento do mercado no que diz respeito à redefi-
nição da elaboração das políticas educativas tendo como objectivo a inclusão? O que pre-
tendemos com o nosso argumento ao longo deste livro é pôr em causa a ideia segundo a
qual a inclusão se deve desenvolver com base na lógica de que quem não é consumidor é
excluído. Como adiante defenderemos, a reconfiguração da esfera pública poderá assumir-
-se como um espaço de regulação, um espaço em que a justiça redistributiva esteja ligada
ao reconhecimento das diferenças. Para designar esta possibilidade, utilizaremos a metá-
fora, que fomos colher a Geertz, do Bazar de Kuwait (ver capítulo 5).

ORGANIZAÇÃO DO LIVRO

O livro está organizado em três partes. A Parte I aborda a questão da elaboração das
políticas, sociais e educativas, numa época de globalização, quer em termos da recompo-
sição dos próprios campos social e educativo, quer no que diz respeito aos actores sociais
mais envolvidos nesse processo de elaboração – sobretudo os actores que designamos
como a nova classe média nova. Trata-se, no essencial, de uma reconfiguração do triplo
mandato constituído, nas palavras do sociólogo de educação R. Dale (1989), pelas tarefas
principais de um moderno sistema educativo, nomeadamente o desenvolvimento indivi-
dual, a formação de cidadãos e a preparação para o trabalho. Quais os efeitos do capita-
lismo informático e da sociedade organizada em rede, por um lado, e da centralidade do
conhecimento nos processos de produção, distribuição e consumo, por outro, sobre essas
três componentes do mandato educativo? Eis a questão que constitui o eixo principal da
primeira parte deste livro.
Uma vez estabelecido o contexto, a Parte II do livro direcciona o seu olhar para a ques-
tão da diferença, no sentido em que ela é acima, na primeira parte desta introdução, teo-
rizada. Trata-se de uma tentativa de levar a sério a diferença, adoptando a já mencionada
estratégia da sua incomensuralibilidade. Esta estratégia desenvolve-se, por um lado, atra-
vés da abordagem do fenómeno de exclusão/inclusão social, uma problemática que resulta
dos processos analisados na Parte I do livro, que se manifesta nos lugares do corpo, do tra-
balho, da cidadania, da identidade e do território. Por outro lado, a mesma estratégia da
incomensurabilidade da diferença também se desenvolve através da abordagem das novas
cidadanias que, com base em projectos de identidade, reclamam o que constitui para todos
os efeitos um repensar do conceito de cidadania, não a partir do território nacional ou da
ancestralidade dos seus habitantes, mas, antes (e como acima se disse), a partir daquilo
que os indivíduos e grupos têm de diferente, isto é, a base política a que já nos referimos
como «a diferença somos nós».
A Parte III do livro explora um dos novos terrenos dessa cidadania «reclamada», cen-
trando o seu olhar no processo de construção europeia. Aqui, a assunção de «a diferença
somos nós» transforma-se numa outra: «a Europa somos nós». Heuristicamente, quatro
metáforas são apresentadas para repensar a construção europeia, quer como projecto polí-
14 «A Diferença Somos Nós»

tico, quer como analisadores do papel do conhecimento na chamada «sociedade cogni-


tiva», ou da «aprendizagem», quer ainda como processo da reconfiguração do mandato
endereçado aos sistemas educativos.
Finalmente, gostaríamos de referenciar o desenvolvimento dos diferentes capítulos
deste livro. Assim, o primeiro capítulo baseia-se, por um lado, numa comunicação reali-
zada na European Conference on Educational Research, em Setembro de 2000,
Edimburgo, e publicada sob o título «Mapeando Decisões no Campo da Educação no
Âmbito do Processo da Realização das Políticas Educativas», na revista Educação
Sociedade & Culturas, nº 15, 2001, 45-58; por outro lado, baseia-se numa comunicação
apresentada no VIII Colóquio Nacional da AIPELF/AFIRSE, publicada nas actas do coló-
quio, em 1998, A Decisão em Educação, com o título «A Questão da Impossibilidade
Racional de Decidir e o Despacho Sobre os Currículos Alternativos», 210-215. Os autores
de ambos os trabalhos foram Luiza Cortesão, António M. Magalhães e Stephen R. Stoer.
Quanto ao segundo capítulo, uma sua primeira versão foi publicada na revista
Educação, Sociedade e Culturas, n.º 18, 2002, 25-40. Uma primeira versão do terceiro
capítulo, embora inédita em Portugal, foi publicada na revista brasileira Educação e Socie-
dade, 85, 24, 1179-1202. O capítulo 4 baseia-se no livro Theories of Social Exclusion, texto
produzido sob a forma de um dispositivo pedagógico no âmbito do Mestrado Europeu
«Perspectivas Europeias sobre a Inclusão Social» e publicado em 2003 pela editora Peter
Lang. A Cortez Editora, de São Paulo, também publicou, em 2004, uma versão portuguesa
desse livro intitulada Os Lugares da Exclusão Social. Destaca-se aqui a colaboração de
David Rodrigues, especialmente no desenvolvimento do Lugar do Corpo. No que diz res-
peito ao capítulo 5, foi publicado no livro, da Porto Editora, organizado por David
Rodrigues, que se intitula Educação e Diferença: Valores e Práticas para uma Educação
Inclusiva, 2001, 35-48. Uma primeira versão do capítulo 6 foi apresentada como comuni-
cação de abertura do II Seminário Internacional de Educação Intercultural, Género e
Movimentos Sociais no dia 8 de Abril, em Florianópolis, Brasil.
Finalmente, o capítulo 7 deste livro foi baseado em dois artigos, um intitulado «A
Europa como um Bazar, Contributo para a Análise da Reconfiguração dos Estados-nação
no Contexto Europeu e das Novas Formas de “Viver em Conjunto”» e publicado, pelas
Edições Afrontamento, no livro das Actas da Midterm Conference Europe 2003, da
Associação Internacional de Sociologia, sob o título Educação Crítica e Utopia, organizado
por António Teodoro e Carlos Alberto Torres, e outro intitulado «Knowledge in the Bazaar:
Pro-Active Citizenship in the Learning Society», publicado, pela Editora Peter Lang, no
livro Homo Sapiens Europeus? – Creating the European Learning Citizen, organizado por
Michael Kuhn e Ronald Sultana, 2004.
PA R T E I
A Gestão da Mudança Social
e as Políticas Educativas
INTRODUÇÃO

Nos últimos duzentos anos, o paradigma da elaboração de políticas, da tomada


de decisão e da implementação das políticas parece ter consistido numa espécie de
gestão da mudança social «de cima para baixo», quer dizer, um centro, mais ou
menos «iluminado», elaboraria planos de mudança social que, depois de imple-
mentados, teriam efeitos na vida social. Alguns autores (sobretudo aqueles identi-
ficados com o chamado funcionalismo sociológico) referem este paradigma como
uma espécie de engenharia social, no sentido em que uma classe de especialistas
pensaria e elaboraria as políticas, enquanto que outra prepararia a sua implemen-
tação resultando estes processos na obtenção de mudanças desejadas e, geral-
mente, designadas como modernizadoras.
O que parece ter-se alterado é não só a complexidade dos processos de dese-
nho e implementação das políticas, mas a própria natureza da concepção da polí-
tica como projecto de mudança social. O modelo de engenharia social partia do
princípio de causalidade segundo o qual se alteradas dadas condições de teor eco-
nómico, cultural e social efeitos previstos e previsíveis resultariam dessa alteração.
Quando se diz que a alteração paradigmática não é só ao nível da complexidade
dos processos, o que se pretende significar é que a própria conceptualização das
políticas crescentemente incorpora os efeitos não esperados das consequências
sociais que pretende despoletar. R. Boudon, em 1977, falava já de «efeitos perver-
sos» da implementação das políticas; Giddens, por seu turno, leva um pouco mais
longe esta ideia, chamando a atenção para o facto de o conhecimento (incorporado
nas políticas) aplicado reflexivamente na actividade social ser filtrado por quatro
factores: o poder diferencial (isto é, alguns indivíduos e grupos são mais capacita-
dos para articularem este conhecimento do que outros), o papel dos valores (os
valores e o conhecimento empírico estão relacionados numa rede de influência
mútua), o impacto das consequências não pretendidas (o que quer dizer que o
conhecimento sobre a vida social não é redutível às intenções dos implementado-
res) e a circulação dos saberes sociais em termos da dupla hermenêutica (isto é, os
efeitos dos saberes são incorporados nas práticas sociais dos actores) (Giddens,
1992: 41-42). Esta não-linearidade é, portanto, de uma natureza diferente da de
um mero efeito diferido das políticas e das intenções dos gestores políticos. Lash
(2003) enfatiza esta mudança qualitativa nos seguintes termos:

(N)a primeira modernidade, a modernidade da estrutura, a socie-


dade é concebida como um sistema linear. O sistema social de
Talcott Parsons é um excelente exemplo desta linearidade. Os
sistemas lineares têm um só ponto de equilíbrio, e apenas forças
externas podem perturbar este equilíbrio e conduzir à mudança
do sistema. A reflexividade da segunda modernidade presume
a existência de sistemas não-lineares. Aqui o desequilíbrio do
sistema e as mudanças são produzidas internamente no sistema
através de arcos de feedback. Trata-se de sistemas abertos.
Actualmente, a reflexividade é, ao mesmo tempo, desestabili-
zação do sistema. Os sistemas complexos não se reproduzem
meramente. Mudam. É o «caos» ou o «ruído» das consequências
não pretendidas que conduzem ao desequilíbrio do sistema.
(Lash, 2003: 50)

Todavia, a reflexividade, indutora principal dessas consequências não pretendi-


das, está delimitada por aquilo que aos indivíduos e aos grupos surge como possí-
vel, isto é, como adiante se verá, e como diz Sarup (1996), as possibilidades e as
impossibilidades de escolhas estão relacionadas com as variáveis sociológicas de
classe, género, raça, idade, etc. Neste sentido, podemos dizer que as novas classes
médias novas (ver capítulo 2) ocupam o lugar privilegiado neste contexto. Por dois
motivos: por um lado, esta classe, como defendemos no referido capítulo, reco-
nhecendo a centralidade do conhecimento nos actuais processos de produção, dis-
truibuição e consumo, reconfigura as suas estratégias para se assegurar das suas
posições de distinção; por outro lado, neste contexto de predominância de conhe-
cimento como factor crucial de produção, esta classe média, tradicionalmente iden-
tificada com a reprodução do conhecimento, encontra a sua razão de existência
reforçada.
É este o argumento que é desenvolvido ao longo da primeira parte do livro. Os
mandatos políticos endereçados à educação na sociedade de conhecimento, na
sociedade em rede, são articulados precisamente com a recontextualização do
conhecimento nesses novos enquadramentos.
1
CAPÍTULO

Mapeando decisões no campo


da educação numa época de globalização

«Sem macroteorias que procurem mapear cognitivamente as novas formas de


desenvolvimento e de relações sociais (…), ficaremos condenados a viver entre frag-
mentos. O mapeamento cognitivo é, por isso, necessário para fornecer orientação teó-
rica e política à medida em que penetramos num novo e confuso terreno social» (Kellner,
1990, citado in Paulston, 1993: 101).

Neste capítulo analisaremos a construção de políticas e a decisão política admitindo


que elas constituem um projecto – ou projectos – de mudança social. O objectivo é o de
contribuir para a construção de um quadro teórico capaz de esclarecer o sentido de dadas
decisões no campo da educação no presente contexto de transição sociocultural. Neste
sentido, propomos um dispositivo de mapeamento de decisões no campo da educação com
base em três tipos-ideiais de formas de lidar com a mudança social. Não é nossa intenção
levar a cabo uma análise de políticas concretas, mas, antes, propor um dispositivo herme-
nêutico que nos permita simultaneamente escapar ao anything goes (vale tudo) pós-
-modernista e localizar as acções políticas na nova geografia social dos processos de decisão.
A primeira parte do capítulo apresenta duas perspectivas que parecem estar na base de
uma nova compreensão do processo de realização das políticas educativas, uma que
assume que os projectos políticos são projectos de mudança social, outra que pode ser
referida como o fim da legitimação das políticas por uma narrativa fundadora. A segunda
parte dedica-se ao mapeamento de tomada de decisão no campo da educação através da
construção de um dispositivo de operacionalização deste processo heurístico.

A GESTÃO DA MUDANÇA SOCIAL E AS POLÍTICAS EDUCATIVAS

Muitos trabalhos, na área da sociologia, têm sido produzidos no âmbito da construção


social das políticas; todavia poucos parecem ser aqueles que assumem como objecto de
20 «A Diferença Somos Nós»

análise e de discussão a elaboração de políticas enquanto materialização de concepções de


mudança social. Quer dizer, não são muitas as abordagens que procuram delimitar os pres-
supostos acerca das transformações sociais que as políticas concretas veiculam, tentando
a resposta a questões como: o seu objectivo é de que teor? Emancipatório? Regulatório?
Uma terceira via entre um e outro? Quais as possibilidades que delimita e pressupõe? O
que é que deixa por discutir? O que é que dá como adquirido e o que não assume sequer
como possibilidade?
É que a decisão e o seu processo político surge frequentemente nos manuais de admi-
nistração e de gestão (ver, por exemplo, Laroche, s/d) como uma démarche essencialmente
técnica, como uma espécie de acção política sem alma, sem inocência, mas também sem
culpa. É esta perspectiva que contestamos, recusando que os processos de decisão, ligados
mais ou menos à implementação, sejam remetidos para um não-lugar da geografia polí-
tica, diferentemente do que acontece àqueles outros que assentam directamente sobre os
«possíveis» que são dados como «desejáveis», sobre os «impossíveis», e sobre aqueles que
sendo desejáveis são dados como impossíveis.
O discurso político cristalizado nas decisões é construído através de uma linguagem
que promove um interesse aparentemente público e universal, ocultando, assim, a real
heterogeneidade da sociedade e a diversidade dos interesses (ver Codd, 1998). Segundo
Codd, a desconstrução do discurso oficial, na forma de documentos, relatórios e declara-
ções de política, implica o tratamento de tais textos como artefactos culturais e ideológi-
cos que serão interpretados em termos dos seus padrões de significado, as suas estruturas
simbólicas subjacentes e os contextos que delimitam o seu significado. O que significa,
desde logo, que as políticas não têm apenas um significado autêntico e autorizado. Não são
planos para a acção política que exprimem intenções universais e inequívocas. Em vez disso,
são textos ideológicos construídos dentro de um (con)texto histórico e político particular.
Pode ilustrar-se a natureza deste contexto específico de decisão política através da pro-
posta de abordagem de Dale (1986), que ele designa como três projectos para o estudo da
política educativa. Estes projectos são o de «administração social», o de «análise das polí-
ticas» e o da «ciência social». Ao iniciar a explicitação destes três projectos, Dale cita
Maurice Kogan num trecho que nos parece sintetizar bem a diferença entre, por um lado,
o trabalho dos políticos e dos administradores, e, por outro, o trabalho dos cientistas sociais:

Vejo o trabalho dos cientistas sociais como uma tarefa de desmontagem. Vejo o tra-
balho dos políticos e dos administradores como a reconstituição daquilo que foi des-
montado. Os cientistas sociais devem detectar as ambiguidades e a multiplicadade de dis-
putas, impactos, valores e estruturas. Na verdade, podem ir ainda mais além, ao mostrar
o que poderiam ser as consequências da construção de sistemas alternativos ou da manu-
tenção daqueles existentes. São negociantes de ambiguidades. Os administradores não
podem ignorar estas ambiguidades; em vez disso, têm de as pôr a funcionar. Manter as
opções em aberto é, de facto, uma utilização construtiva de ambiguidade, mas, em última
análise, os adminstradores têm de tomar decisões e a palavra decidir significa, literal-
mente, cortar com as opções. Enquanto o cientista social pode preocupar-se com o estudo
Mapeando decisões no campo da educação numa época de globalização 21

das coisas em si, o lema do administrador tem de ser «Eu devo agir, por isso penso». Não
pode ser o contrário. (Kogan, 1979, citado em Dale, 1986: 47)

No que diz respeito ao primeiro projecto, o de «administração social», a política social


tem como objectivo melhorar as condições de vida das populações. Enquanto modelo de
aperfeiçoamento social, muitas vezes pensado a partir de um processo de «engenha-
ria social», tem como fins a justiça, a solidariedade e a eficiência. No que diz respeito
ao segundo, o projecto de «análise das políticas», este tem como meta não o alterar do
conteúdo das políticas sociais mas, antes, a procura de caminhos para assegurar a imple-
mentação efectiva e eficiente de políticas sociais, independemente do seu conteúdo.
Neste modelo, o que parece ser crucial é a capacidade de prognosticar e influenciar de
maneira positiva o processo de tomada de decisões. Quanto ao terceiro modelo, o das
«ciências sociais», pode dizer-se que enquanto o segundo é normalmente encomendado
ou contratado por agências governamentais ou privadas que pretendem, como objectivo
principal, servir o «cliente», este, enquadrado normalmente numa instituição universitária,
rege-se pelos paradigmas e normas partilhados pela comunidade científica. Porém, como
se sabe, o projecto de ciência social é ele próprio plural, existindo diferentes perspectivas
que influenciam o desenvolvimento das suas teorias. Em síntese, ver o quadro a seguir.

Quadro 1: Três projectos para o estudo da política educativa

ADMINISTRAÇÃO ANÁLISE DAS CIÊNCIA SOCIAL


SOCIAL POLÍTICAS

Definição do problema • deriva da percepção • deriva das necessidades • é fortemente


das necessidades do cliente influenciado pela
do utente teoria existente

Metas a atingir • melhorar a situação • melhorar o processo • melhorar a teoria


como tratamento do utente da tomada de decisões existente e eventual-
do problema mente propor
intervenções

Visão do mundo • focaliza a história • restringida à relevância • potencialmente sem


da política nacional imediata limites

Determinação do • determinado pelo • determinado pela • determinado pelos


tópico de estudo objectivo de fornecer estratégia face aos objectivos da pesquisa
políticas (reforma) resultados das políticas (acção)

Natureza das questões • política • técnica • académica


geradas

Público-alvo • administradores • decisores políticos • a disciplina (e práticos)


(precisam de soluções
práticas para
problemas prementes)

[Fonte: Date e Ogga, 1991]


22 «A Diferença Somos Nós»

O que é de enfatizar é que, seja qual for o projecto, a decisão política é um texto dentro
de um (con)texto, sem determinação directa entre um e outro. Os anglo-saxónicos pos-
suem um recurso linguístico que permite distinguir entre a concepção ampla de uma polí-
tica – politics – e as políticas concretas que a materializam – policies. A primeira é a con-
cepção orientadora da mudança social a implementar, as segundas são elaboradas a partir
da primeira enquanto seu enquadramento orientador1. Os trabalhos sobre a decisão e o
seu processo assumem aparentemente esta partição e instalam-se essencialmente nas
segundas, nas policies, nas políticas concretas e, frequentemente, no carácter técnico e
pragmático da sua implementação ou na sua justificação e legitimação no quadro das
metas estabelecidas como quadro político (politics). Ver Quadro 1, a coluna referente à
análise das políticas.
Temos, assim, três níveis de análise que não só se articulam entre si como cada um
possui características e espessura políticas que os tornam de per se susceptíveis de mapea-
mento. No campo das políticas educativas, estes níves poderão ser representados da
seguinte formas:

Figura 1

}
Nível 1 POLÍTICA

Comunidade académica
Partidos Políticos
Empresários Autores e decisores
Sindicatos
Ass. Profissionais
Etc.

Nível 2 política 1 política 2 política 3

Nível 3 Interpretação/Implementação
Burocratas/Professores/Pais

(1) De facto, não é possível traçar uma ligação directa entre o quadro amplo da política e as políticas
concretas. Primeiro porque a sua mediação é feita por «tradutores», como os burocratas (recorde-se o
papel de Sir Humphrey na famosa série televisiva Yes Minister!), técnicos da função pública, que frequen-
temente refractam a intencionalidade do quadro amplo; em segundo lugar, porque muitas políticas têm a
sua inspiração em contextos e pressões meramente pragmáticos provenientes de lobbies, da influência de
actores-chave, etc. Contudo, a distinção/ conexão entre o quadro amplo da política e as políticas elas pró-
prias parece ser produtiva em termos heurísticos.
Mapeando decisões no campo da educação numa época de globalização 23

Por exemplo, não é raro ouvir-se determinados actores políticos defenderem o carácter
emancipatório das alternativas curriculares (Nível 2) pela concepção política que teria
estado na sua origem (Nível 1), visando a integração daqueles de quem a escola eventual-
mente já teria desistido.
As potencialidades heurísticas desta perspectiva, que recusa o limbo (no sentido de
«não-lugar» ou de «lugar branco», cf. Magalhães e Stoer, 2002) a qualquer dos níveis de
acção política, parecem ser:

i) as políticas e as decisões concretas (política 1, política 2, política 3), mesmo as apa-


rentemente mais técnicas (Nível 2 e 3), surgem como leituras de projectos de
mudança social;
ii) os processos de decisão parecem desvelar-se mais claramente na sua espessura
ideológica, permitindo a localização filosófica e política da própria tecnicidade da
decisão e da implementação;
iii) o que, por seu turno, dilui e complexifica a separação entre os implementadores e
os elaboradores de políticas (Dale, 2001).

Efectivamente, no nível de concreção imediatamente a seguir ao das políticas – poli-


cies – está a acção dos técnicos e burocratas que, nestes termos, nos surgem não como
actores neutrais, mas como agentes de escolhas políticas. Da mesma forma, os decisores
políticos são chamados a responder pela implementação, por mais técnica que seja, das
suas opções de mudança. Em política, portanto, a divisão do trabalho não neutraliza as
opções nem dos políticos nem dos implementadores, nem as remete para um topos polí-
tico branco, para um não-lugar.
Por exemplo, a decisão política de integrar o mais possível as crianças e os jovens no
sistema escolar pelo combate quer ao insucesso, quer ao abandono precoce (Nível 1), ao
traduzir-se em políticas concretas – como a dos currículos alternativos, dos territórios
educativos, a gestão flexível dos currículos, a autonomia das instituições escolares, a revi-
são curricular do secundário, etc. (Nível 2) – vê-se confrontada, na sua disseminação no
sector social que pretende influenciar, com uma complexificação exponencial da(s) sua(s)
localização(ões) política(s). A política geral pode surgir localizada num topos emancipató-
rio e dadas políticas – nomeadadamente, a já mencionada dos «currículos alternativos» –,
aparentemente daí derivadas, surgirem com um potencial desenvolvimento localizado
num topos regulatório – no caso, a gestão controlada da exclusão (Magalhães e Stoer, 2003).
A implementação concreta, técnica, por assim dizer, destas políticas, isto é, a sua tra-
dução em dispositivos de ordem regulamentar e até pedagógica, não é também imediata e
directamente determinada pelo teor e pelos topoi dos anteriores níveis. Veja-se, a título de
ilustração, o caso da política com vista à atribuição de autonomia às escolas do ensino
básico, secundário e jardim de infância: entre a sua concepção inicial (Barroso, 1996 e
1996a), a sua tradução em diploma legal, a sua regulamentação concreta e o seu efectivo
funcionamento, é difícil delimitar os lugares políticos de uma forma cartesiana e unitária.
24 «A Diferença Somos Nós»

No processo, o que parece ter surgido são lugares ambíguos e híbridos onde as similitudes
com as performances das instituições em ambiente de mercado e o reforço do peso e do
papel da comunidade educativa convivem lado a lado.
O segundo ponto de partida da nossa análise – o fim da legitimação das políticas por
uma narrativa fundadora – imbrica-se com o primeiro. A narrativa da modernidade, nos
seus diversos cambiantes, tinha como centro uma personagem triúnica: Homem, Razão e
História. A humanidade, instrumento e agente, depois de dominar a natureza e os seus
processos, dominaria, pelo conhecimento das suas leis, a sociedade e conduziria a histó-
ria, isto é, a mudança social, no sentido necessário, «correcto» e desejado. Esta matriz
moderna tornou a política, enquanto acção dos governos, o reino do «domínio» da
mudança. É esta matriz que se adivinha por detrás quer do sonho positivista de uma socie-
dade cientificamente organizada, quer da realização «científica» do «socialismo cientí-
fico», para só mencionar dois exemplos.
Como se sabe, com o esboroar tanto da narrativa da modernidade como da nossa crença
nela as propostas de mudança social já não são susceptíveis de se legitimarem por narra-
ções quer filosóficas, quer científicas (Lyotard, 1989). Primeiro, porque os processos de
legitimação se pulverizaram: está-se longe de contemporaneamente se poder destacar um
actor central e privilegiado dos processos de mudança social (sejam os trabalhadores, as
mulheres, as etnias, as minorias sexuais, etc.). Os ideais emancipatórios surgem como hete-
rogéneos e, por vezes, mesmo conflituantes entre si (e.g., ser mulher e assumir os direitos
de cidadania e ser simultaneamente muçulmana tradicionalista emigrada numa sociedade
como a francesa). Não é, assim, possível estabelecer um quadro que seja ao mesmo tempo
suficientemente amplo e suficientemente específico para que o «desejável» congregue os
incomensuravelmente diferentes projectos dos múltiplos actores em presença (os anseios
de dada minoria étnica, a afirmação política de um determinado movimento social, as
reinvindicações de uma dada minoria sexual, etc.). Segundo, o aumento do conhecimento
sobre os processos de mudança social não se traduz imediatamente em domínio do social,
como bem enfatizou Giddens em As Consequências da Modernidade (1992).
Todavia, a decisão acontece sempre no interior de uma narrativa. Lyotard define a actual
condição do pensamento e da vida como sendo a do fim das grandes narrativas, condição
essa a que ele chama pós-modernidade. O Papa e os príncipes da Igreja decidiam fundados
na centralidade de Deus, nos dogmas teológicos e nos cânones eclesiáticos. Decidir era acti-
var a grande narrativa teológica. A partir do século XVIII é a Razão que irá assumir o papel
da personagem principal no âmbito da grande narrativa da modernidade. Esta possuía,
contudo, duas faces: o Estado e a Humanidade. Hegel preconizou no seu sistema filosófico
a união fundamental do Estado, do Homem e da Razão. Decidir era veicular a mudança no
sentido das leis que a regulavam (as leis da história). Na sua matriz mais hegeliana, o mar-
xismo prometia também dar um sentido à história, e, neste sentido, decidir era promover
o andamento da roda da história e assumir colectiva e individualmente essa direcção.
Com o fim das grandes narrativas foi como se a mudança tivesse enlouquecido, rebe-
lando-se contra as leis com que o historicismo a pretendia dominar, contra a sua raciona-
Mapeando decisões no campo da educação numa época de globalização 25

lidade interna. Invalidará isto a afirmação segundo o qual a decisão só acontece no seio de
uma narrativa? Não, porque o que se perdeu foi o poder fundador nas metanarrativas, das
grandes narrativas. As «pequenas» narrativas permanecem no seu papel central de identi-
ficar e dar sentido. No dizer de Somers e Gibson, os conceitos de narrativa e narratividade
são conceitos de epistemologia social e ontologia social que «estabelecem que é através da
narratividade que podemos saber e dar sentido ao mundo social, e é através das narrativas
e da narratividade que construímos as nossas identidades sociais» (Somers e Gibson, 1996:
58-59).

REFLEXIVIDADE E LOUCURA

No trabalho acima referido (cf. Stoer, Cortesão e Magalhães, 1998), sugeríamos que à
matriz da concepção da política como domínio da mudança se parece substituir uma outra
em que a mudança surge como susceptível de ser gerida, pilotada ou surfada:

«Surfar as mudanças é fluir no seu dorso, é decidir no contexto do momento, das


necessidades e dos desejos mais imediatos e aspirar apenas aos seus ganhos igualmente
mais imediatos. É como que a táctica sem estratégia (...). Pilotar a mudança é assumir
um conjunto amplo, e algo vago, de metas organizacionais e/ ou objectivos pessoais a
médio-longo prazo, deixando às decisões as escolhas tácticas. Estas podem assumir vias
estrategicamente directas ou mais ou menos indirectas da consecução das metas, objec-
tivos e valores (...). Gerir a mudança implica a assunção de um topos de decisão mais
reflexivo do que o anterior, (...) dado que (...) a assunção de um conjunto de metas orga-
nizacionais e/ ou objectivos pessoais e valores assume a agência como central. Em rela-
ção à pilotagem, a gestão da mudança distingue-se pelo predomínio das estratégias sobre
as tácticas, do conteúdo sobre a forma e da predominância da reflexividade dos actores
sociais sobre a sua determinação estrutural» (Stoer, Cortesão e Magalhães, ibidem.: 212).

O que há de comum entre estas três concepções de decisão, enquanto perspectivas


sobre a mudança social, é, por um lado, o facto de nenhuma delas precisar de um funda-
mento metanarrativo e, por outro lado, o de serem pragmáticos em diversos graus e níveis.
Mais adiante, procuraremos caracterizar estes conceitos de uma forma mais precisa
enquanto instrumento de mapeamento das políticas. Por agora, insistiremos em que o facto
de as políticas serem destituídas de um enraizamento filosófico, científico ou religioso uni-
versal, não quer dizer que a acção política seja por isso menos mapeável. Ao contrário do
pós-modernismo reaccionário que afirma que tudo se equivale, é possível dizer que a pul-
verização dos lugares políticos não neutralizou politicamente esses mesmos lugares.
Aquilo que é desejável em termos políticos, geralmente cristalizado em torno das utopias,
tem sido de algum modo heterogeneizado, dando lugar a heterotopias mais ou menos
incomensuráveis entre si. Por exemplo, o(s) projecto(s) dos ecologistas, o(s) projecto(s)
das feministas e o(s) projecto(s) dos vários movimentos gay, para falar apenas destes três,
26 «A Diferença Somos Nós»

dificilmente convergiriam num «desejável» suficientemente universal para congregar as


suas vontades de mudança social. Não se trata, a nosso ver, do anything goes, mas da com-
plexificação do diálogo e dos mapas políticos organizados quer em torno da emancipação,
quer em torno da regulação. Estes lugares, ao heterogeneizarem-se, ao perderem em uni-
dade e universalidade, não se diluíram numa insustentável leveza, passaram-se, antes, para
a natureza da relação entre as diferenças. É agora a própria relação entre os actores que é
susceptível de ser localizada como emancipação, como dominação, como alienação, etc., e
não a acção política aparentemente dimanada da substância de cada um dos actores. Quer
dizer, não é por uma política ser da autoria, apoiada ou influenciada por actores situados
politicamente numa preocupação com a emancipação (sindicato, governos de esquerda,
etc.), que assume imediatamente esse teor e a respectiva localização.
É, assim, o teor da relação que as políticas suscitam e veiculam que é possível e pro-
veitoso mapear, e não a solidão de cada um dos actores e das suas acções. Não são, pois, os
«princípios», explícitos ou implícitos, de que uma política se reclama que permitem loca-
lizar essa mesma política, mas, sobretudo, a sua activação no contexto que visa enquanto
projecto de mudança social.
As decisões são assunções reflexivas, na medida em que o conhecimento que se cons-
trói sobre o real actua sobre este, integrando-o narrativamente e produzindo sentidos. Por
exemplo, a História e a Sociologia da Educação permitem hoje construir e articular práti-
cas enformadas/informadas pela crítica à igualdade formal de oportunidades. Em termos
individuais, tomamos decisões acerca do nosso corpo, da nossa sexualidade, das nossas
relações sociais, lidando com a margem de incerteza que sempre se oferece às nossas inten-
ções e à nossa capacidade de actuar, assim como tomamos, individual e colectivamente,
decisões políticas fundadas nos nossos conhecimentos e nos nossos projectos de mudança.
Derrida fala da loucura da decisão (Critchley, 1997). Do nosso ponto de vista, contudo,
e tendo em conta a já referida crescente reflexividade das sociedades modernas, o processo
de decisão é mais luta contra a loucura do que loucura propriamente dita. O tempo que
vivemos parece caracterizar-se pela implosão das narrativas legitimadoras, quer dizer, não
há fundações de verdade que estabelecem critérios absolutos que permitam seleccionar a
«melhor» decisão. A reflexividade não corresponde ao domínio cognitivo do real e da
mudança, mas é, antes, uma possibilidade de lidar com a mudança, o que quer dizer que
esta pode, pois, ser surfada, pilotada ou gerida, mas nunca previamente estabelecida e
direccionada.

MAPEANDO AS DECISÕES DE POLÍTICA EDUCATIVA

Em diversos trabalhos publicados em revistas de educação comparada nos anos 1990,


R. Paulston defende que a ideia de mapear corresponde a um exercício de tentar com-
preender as paisagens em transição (1993; 1994; 1999). Os mapas «ajudam a orientar os
investigadores de educação comparada à medida em que vão assumindo novas e desafia-
Mapeando decisões no campo da educação numa época de globalização 27

doras tarefas intelectuais e representacionais» (1993: 101). Elaborar um mapa é simulta-


neamente promover uma forma de ver o mundo e influenciar a visão do mundo de outros
grupos. É também uma forma de produzir intertextualidade entre discursos que concor-
rem entre si, mostrar que todo o conhecimento é relativo a um espaço que é cada vez mais
definido como um espaço mundial (world space)2. Assim, Paulston enceta um projecto de
«cartografia social» que vê como uma «estratégia de oposição pós-moderna» que «procura
abrir significados, desocultar limites dentro dos campos culturais e relevar as tentativas
reaccionárias de fechar fronteiras e proibir traduções. É nisto (defende Paulston) que
consiste o contributo pós-moderno do mapeamento para uma crítica anti-hegemónica»
(1999: 454).
Enquanto Paulston desenha mapas de textos sobre educação comparada, o nosso objec-
tivo é, como acima se disse, mapear políticas educativas e, mais especificamente, a tomada
de decisões em educação. Implicitamente, isto também significa ter em consideração não
só as ideologias que informam as decisões em educação, mas também o estabelecimento
da agenda que permite (ou impede) dadas decisões verem a luz do dia. Por outras palavras,
no sentido de mapear as decisões em educação, é também necessário mapear o terreno
sobre o qual essas decisões assentam3. É claro que a arte de mapear tem sido tradicional-
mente uma espada de dois gumes. Por um lado, tem tido um efeito orientador ao tornar
claro aquilo que antes parecia confuso e aparentemente fragmentado; por outro lado, tem
imposto fronteiras e criado afinidades que frequentemente se transformam no funda-
mento de novas (hegemónicas) relações de poder. No caso da cartografia social, este perigo
é mitigado pelo carácter aberto do empreendimento, pela assunção de que os mapas neces-
sitam constantemente de ser rearticulados com o valor das suas variáveis tornadas explí-
citas desde o início. Mais, neste caso particular, os objectivos do processo de mapeamento,
como acima se disse, visam compreender não como a mudança social é dominada mas,
antes, como é que a mudança social se manifesta na acção política que se encontra na base
das políticas educativas.
As decisões em educação – mas não só neste campo, naturalmente – são sempre ideo-
logicamente informadas, sejam elas formuladas directamente pelo centro do sistema – de
acordo com uma política geral resultante das opções feitas – ou por aqueles que se encon-
tram na periferia do sistema (técnicos, burocratas, professores e pais). As decisões em
educação são, também, situadas dentro de um dado quadro teórico e desenvolvem-se
de acordo com diferentes procedimentos e objectivos (sejam eles implícitos ou explícitos).
É importante aqui notar que o significado global das decisões tomadas nem sempre é fácil
de descortinar, especialmente se se tiver em conta as refracções que sofrem na sequência

(2) Embora tenha que ser dito que a extraordinária desigualdade da capacidade para utilizar este
espaço mundial levanta dúvidas acerca do adjectivo «mundial».
(3) Para uma tentativa de mapear o espaço sobre o qual assentam as decisões em educação, ver
Cortesão e Stoer (2001), que fornecem uma cartografia da transnacionalização do campo da educação em
Portugal. Ver também a caracterização elaborada por J. A. Correia das ideologias educativas dos últimos
25 anos em Portugal (cf. Correia, 1999).
28 «A Diferença Somos Nós»

de sucessivas traduções, isto é, quando passam pelos três níveis de decisão a que acima
nos referimos.
Com isto em mente, e no sentido de proporcionar a descodificação das características
estruturantes (frequentemente não explícitas) de diferentes tipos de decisão em educação,
criou-se um dispositivo para analisar as decisões em educação. Este procura fornecer uma
caracterização genérica destas num contínuo que se distende entre um topos emancipa-
tório e um topos regulatório. Para começar, talvez seja útil explicar a estrutura deste ins-
trumento e tornar explícito como é que ele pode fornecer a caracterização das decisões em
educação.
O «surfar», o «pilotar» e o «gerir» deste tipo de decisões podem ser considerados como
sendo três tipos-ideais. Estes podem ser assumidos colectivamente pelas instituições ou
individualmente pelos actores sociais no contexto de uma agenda que se estabelece no
quadro em que a decisão é tomada. Como acima se disse, é este quadro que determina que
questões podem efectivamente surgir na agenda do processo de tomada de decisão4. Os
parâmetros constituídos para a análise dos três tipos-ideais da tomada de decisão são os
seguintes:

– o quadro operacional da tomada de decisão, isto é, o projecto que contextualiza o


processo da tomada de decisão5;
– o timing da decisão, isto é, o período de tempo no qual se espera que os efeitos da
decisão se façam sentir (curto, médio e longo prazo);
– a relação com o contexto mais amplo, em que a decisão tomada é julgada relativa-
mente à sua capacidade de ter em conta as características do contexto em que ela será
implementada;
– o modus operandi, que procura identificar até que ponto o carácter táctico ou estra-
tégico predomina como base da acção a desenvolver;
– os objectivos a serem alcançados pela decisão tomada.

Quando estes parâmetros são colocados num eixo e as formas de lidar com a mudança
social através da tomada de decisão são colocadas noutro, o resultado é aquele que pode
ser visto no quadro seguinte:

(4) Como argumentámos noutro lugar (e.g. Stoer e Cortesão, 1999; 2001), a pobreza ou riqueza deste
espaço dependerá em grande parte do grau do desenvolvimento do que Bernstein chama o campo de
recontextualização pedagógica (1990).
(5) Utilizamos aqui a designação de Dale para os projectos de estudo da política educativa. Reconhe-
cemos que se trata de uma utilização que extrapola a intenção quer de Dale, quer daquilo que cada um dos
projectos se propõe. Todavia, o nosso propósito de construir um dispositivo heurístico encorajou-nos a
esta utilização algo transgressora dos conceitos.
Mapeando decisões no campo da educação numa época de globalização 29

Quadro 2: Dispositivo para mapear as decisões em educação

Parâmetros Quadro Timing da Relação com Modus Objectivo


de análise Operacional decisão o contexto Operandi
da tomada de
Modos de decisão
lidar com a
mudança social

Administração Curto prazo Decisões Táctica sem Eliminação


Surfar social limitadas ao estratégia dos sintomas
contexto

Análise das Médio prazo Decisões que Escolha Conciliação de


Pilotar Políticas reconhecem o táctica das interesses
contexto, sem estratégias
o conhecer

Ciência Social Longo prazo Consideração Predominância Tentativa de ir


Gerir sistemática das estratégias à raiz dos
do problema sobre as problemas;
tácticas desocultar

Pensamos ser possível com este dispositivo caracterizar uma decisão como sendo do
primeiro tipo (surfar) quando esta se situa dentro de um quadro operacional de adminis-
tração social, visando a melhoria e o aperfeiçoamento sociais, realizados, frequentemente,
através de processos de engenharia social. Este tipo de decisão consiste na tomada de
medidas, sobretudo de curto prazo, medidas estas que são consideradas válidas sem tomar
em conta o contexto mais amplo em que ocorrem, recorrendo a múltiplas tácticas no sen-
tido, sobretudo, de eliminar os sintomas percebidos como sendo indesejáveis. Pilotar sig-
nifica uma decisão que procura caminhos para assegurar a implementação eficiente e eficaz
de políticas sociais, independentemente do seu conteúdo. Com este tipo de decisão, apesar
de um reconhecimento inicial das características do contexto, o conhecimento acerca desse
contexto não é determinante para as opções que são tomadas com base na escolha táctica
das estratégias. O terceiro tipo de decisão representa um exercício de gestão da mudança
social no sentido em que é uma decisão informada pelas preocupações das Ciências
Sociais. Neste caso, estamos perante decisões que são tomadas com o olhar posto no longo
prazo e fundadas numa consideração sistemática do contexto e em que, predominante-
mente, se recorre a estratégias para confrontar problemas que, dessa forma, deixam de ser
sociais para passarem a ser sociológicos.
Em suma, trata-se de uma caracterização de três tipos-ideais de tomada de decisão no
actual contexto socioeconómico e político que, como se sabe, encerra uma série de cons-
trangimentos e limitações dentro dos quais os actores sociais e as institutições se movem
com maior ou menor facilidade. Quando se analisa uma decisão concreta através desta
grelha de análise, provavelmente verificar-se-á que essa decisão não revela exclusivamente
as características atribuídas apenas a «surfar», a «pilotar» ou a «gerir», isoladamente con-
30 «A Diferença Somos Nós»

siderados. É, por isso, importante enfatizar que nenhum dos parâmetros indicados é exclu-
sivamente marcado por apenas um destes tipos-ideais. Assim como também é improvável
que eles estejam, em todas as suas características, presentes no decurso de uma dada
tomada de decisão em todos os três tipos de decisão. Por exemplo, uma decisão pode ser
tomada sob pressão da urgência das circunstâncias no sentido de obstar a certos sintomas,
mas ser estruturada com base nas características do contexto. Outra decisão pode ser
informada pelas características do pensamento científico, visando por isso ir até às raízes
do problema a ser confrontado, mas ser obrigada a responder no médio prazo. É muito
possível, portanto, que em cada processo de tomada de decisão concreto se possa identifi-
car uma mistura de características que no Quadro 2 são atribuídas selectivamente a cada
um dos tipos de decisão per se.

CONCLUSÃO

A nossa análise do processo de tomada de decisão no campo das políticas educativas


obriga-nos, em última análise, a concordar com Stephen Ball quando ele chama a atenção
para o facto de as políticas serem distintas e, por isso, não poderem ser tratadas todas da
mesma forma. Reconhecemos, pois, ser necessário desenvolver uma concepção diferen-
ciada das políticas (Ball, 1994). O nosso dispositivo para mapear decisões políticas em edu-
cação funda-se precisamente nesta ideia. No entanto, a chamada de atenção de Ball ten-
derá a privilegiar análises políticas ao nível da disseminação, administração e implemen-
tação (Níveis 2 e 3). Pela nossa parte, reconhecemos, portanto, a perspicácia de Dale
quando argumenta que separar a implementação de uma política da sua elaboração não só
distorce mas também conduz a uma incorrecta compreensão do papel do estado nas polí-
ticas educativas. O estado, que numa época de globalização necessita crescentemente de
ser pensado simultaneamente numa dimensão nacional e supranacional, estabelece em
última análise os limites em relação à educação, isto é, em relação não só a «quem é ensi-
nado» e a «o que é ensinado» mas também em relação a «quem é ensinado o quê» (Dale,
2001). A insistência de Dale na importância da decisão política ao nível governamental
(Nível 1) reforça a necessidade de ter em conta não só todos os três níveis políticos do pro-
cesso de decisão, mas também de ter em consideração o processo de elaboração das polí-
ticas como um todo, isto é, a tomada de decisão, o estabelecimento da agenda das políti-
cas e a produção de ideologias educativas.
2
CAPÍTULO

A «Nova Classe Média Nova»


e a reconfiguração do mandato
endereçado ao sistema educativo

No sentido de dar conteúdo à redefinição da gestão política dos sistemas sociais, parece-
-nos importante referir a reconfiguração do mandato endereçado ao sistema educativo por
parte da «nova classe média nova». De facto, a classe média, quer a «antiga», quer a «nova»
(Bernstein, 1978), que foi o sustentáculo sociológico do fordismo, do keynesianismo e do
Estado-Providência, tem vindo a apresentar importantes alterações nas suas estratégias
políticas. Neste capítulo, argumentaremos que as alterações introduzidas pela emergência
de novas formas de produção, distribuição e consumo, e pelas novas formas de circulação
do capital, volatizaram o mercado de trabalho.

A RENOVAÇÃO DO MANDATO PARA O SISTEMA EDUCATIVO DA NOVA CLASSE


MÉDIA

Bernstein (1977) chamou a atenção para a emergência, em meados do século XX, de


uma classe média nova que se caracterizaria pelo investimento no capital cultural e esco-
lar – em detrimento, por exemplo, do investimento na propriedade – como estratégia de
classe. É esta classe média nova que, sobretudo no auge do capitalismo organizado (Offe,
1985), se constituiu como o sustentáculo sociológico do fordismo, do keynesianismo e do
Estado-Providência. De facto, o estado que acompanha o desenvolvimento desta classe e a
expressão do seu poder é um estado que tem como objectivo tornar-se o gestor da com-
plexidade, isto é, o promotor da reorganização das estruturas dele dependentes, com vista
à sua autonomização, enquanto mediador no processo de concertação social. O estado
assume-se, então, como actor presente em todos os processos sociais, desenvolvendo o seu
trabalho através de uma postura produtiva que, por sua vez, se vai realizar através da gestão
e da articulação das diferentes actividades da sociedade.
O mandato educativo que esta classe foi endereçando à escola reflectia a tensão entre
a promoção de uma «pedagogia invisível» no ensino primário (ou básico), e, à medida que
32 «A Diferença Somos Nós»

a entrada no mercado de trabalho se erigia como prioridade, uma pedagogia explícita de


transmissão. Um dos nossos argumentos é que esta tensão se tem vindo a resolver em favor
desta segunda perspectiva (isto é, em favor de uma «pedagogia visível» reconfigurada), e
que se esclarece na presença quase obsessiva da questão da excelência académica nos dis-
cursos que circulam, como vozes dominantes, na comunicação social sobre educação.
Efectivamente, desde 1997 que, em Portugal, de uma forma mais ou menos organizada,
jornais de referência, fazedores de opinião, intelectuais mais ou menos desiludidos com os
desenvolvimentos da democracia portuguesa e intelectuais conservadores – diga-se, numa
peculiar aliança – sob a capa da luta contra a descida do nível académico, do nível cultu-
ral das nossas escolas, da luta contra o laxismo disciplinar e corporativismo profissional
dos professores, se lançaram numa cruzada a favor da excelência académica1. Por tal pare-
cem entender essencialmente aquilo que é proporcionado pelas pedagogias explícitas de
transmissão, isto é, um desempenho escolar fundado na capacidade de reproduzir profi-
cientemente o saber codificado ele próprio também como «excelente» (para uma discus-
são mais aprofundada deste assunto ver Magalhães e Stoer, 2002). A assunção destas peda-
gogias por parte dos educadores teria como correspondente, no que diz respeito aos edu-
candos, a saliência do esforço e do empenhamento que, por seu turno, permitiriam selec-
cionar os «melhores», isto é, os que mais mérito (talento + empenho) revelassem.
Classificamos esta perspectiva como um mandato meritocrático renovado, dado que
surge após a crítica que os sociólogos e os pedagogos, sobretudo nos anos 1970, fizeram
precisamente dos excessos da escola meritocrática. É um dos casos que poderia ser desig-
nado como um curto-circuito da reflexividade proporcionada pelas sociedades modernas.
Se por reflexividade social se entender a acção informada das sociedades sobre si mesmas,
esta renovação do mandato meritocrático para a escola pública surge com conhecimento
do debate sobre a igualdade de oportunidades de sucesso, mas fazendo-o circular, como
diria Giddens, sob a forma de dupla hermenêutica2. Mónica (1997), por exemplo, atribui à
acção proporcionada pelo conhecimento sobre a educação (as ciências da educação) a res-
ponsabilidade da descida generalizada do nível académico e educativo do sistema de educa-
ção em Portugal. É como se os intelectuais que trabalham no campo da educação, no caso
português, não tivessem as bases para poderem produzir conhecimento reflexivo sobre ele.
Pensamos que esta renovação do mandato meritocrático tem como base sociológica
principal o reposicionamento da classe média nova nos novos mercados de trabalho estru-
turados pelas formas emergentes de produção, distribuição e consumo. Assumimos, neste
aspecto, a tese de Harvey da determinação em «primeira instância» da economia nas pro-
duções culturais nos actuais contextos (1989: 336), ou, como dizem Robertson e Dale, que

(1) Por exemplo, Filomena Mónica (2001), José Manuel Fernandes (2001), Mário Pinto (2001a; 2001b),
Vital Moreira (2001), António Barreto (2001a; 2001b), Santana Castilho (2001), Guilherme Valente (2001a;
2001b) para citar apenas estes.
(2) O conhecimento reflexivamente aplicado às condições de reprodução do sistema altera as circuns-
tâncias a que primeiramente se reportava, circulando, assim, o saber sob a forma de uma dupla herme-
nêutica (Giddens, 1992: 41-42).
A «Nova Classe Média Nova» e a reconfiguração do mandato endereçado ao sistema educativo 33

«acumulação é legitimação» (2001: 118). Na verdade, o conceito de «competências» tal como


surge nos mais diversos discursos sobre a educação, parece assumir uma centralidade em
que, não raro, é a própria autonomia da instância educativa que parece estar em causa.

A REESTRUTURAÇÃO DO MERCADO DE TRABALHO NO CONTEXTO DO CAPITA-


LISMO FLEXÍVEL: DA PROFISSIONALIDADE À EMPREGABILIDADE

Como já se sugeriu, entre os anos 1950 e 1970 a classe média nova investiu, pelo menos
nos países do centro, numa entente social que alegadamente lhe permitia consolidar e
desenvolver os seus «lugares» de classe, sobretudo em torno do capital social e cultural. O
mercado de trabalho com o qual articulava as suas estratégias era-lhe dócil, por assim
dizer, no sentido em que as carreiras familiares e escolares (dos «herdeiros») lhes garan-
tiam aí, à partida, lugares confortáveis e seguros.
O capitalismo flexível (Harvey, 1989) introduziu a partir da década de 1980 um mer-
cado de trabalho fundado na dissolução das profissões3 em competências. Só as compe-
tências são realmente susceptíveis de um uso flexível. As profissões são insustentavel-
mente «pesadas» com a sua carga grupal (sobretudo sindical) e moral (o percurso do
aprendiz ao profissional é um percurso fortemente normativo quer em termos das activi-
dades e gestos próprios das tarefas que constituem a profissão, quer em termos das condi-
ções éticas da sua execução).
Esta reestruturação do mercado de trabalho em termos de competências e a emergên-
cia de novos estilos de vida estão a reconfigurar as estratégias políticas da classe média
nova. O capital cultural e escolar, sendo ainda brandidos como arma essencial desta classe
na sua procura de assegurar os seus privilégios tradicionais no mercado de trabalho, e na
estrutura social no seu conjunto, são ressignificados no novo contexto. A diferença parece
residir no facto de que presentemente estas estratégias se articulam preferencialmente
com a flexibilidade, com a aceleração da circulação dos capitais, com a transformação do
conhecimento – e a sua circulação sob a forma de bytes – em factor central de produção e
com o mercado de trabalho assim reestruturado. Neste sentido, e tomando como referên-
cia a distinção de Castells (1996) entre «trabalho programável» e «trabalho genérico»,
pode argumentar-se que o novo mandato da classe média nova para a educação tem como
objectivo o dominar o mercado do primeiro tipo. Esta renovação do mandato endereçado
ao sistema educativo é o que transforma a classe média nova a que se referia Bernstein (ver
acima) em «nova classe média nova».
Efectivamente, Castells defende que no modelo de produção emergente,

(3) A categoria social de «profissão» surge historicamente ligada àqueles que professam uma activi-
dade nobre como o direito e a medicina, mas à medida que o capitalismo foi alargando o processo de mer-
cadorização das coisas para as pessoas essa categoria foi-se ampliando a cada vez mais áreas de actividade,
falando-se cada vez mais dos antigos ofícios como profissões. É neste sentido amplo que aqui usaremos o
termo «profissão».
34 «A Diferença Somos Nós»

[..] o trabalho é redefinido no seu papel de produtor e claramente diferenciado de


acordo com as características dos trabalhadores. Uma diferença central é aquela que se
refere àquilo a que eu chamo trabalho genérico versus trabalho autoprogramável. A
qualidade crítica na diferenciação entre dois tipos de trabalho é a educação e a capaci-
dade de aceder a níveis elevados de educação; quer dizer, a incorporação de conheci-
mento e informação. (...) A educação (enquanto forma distinta de formação de crianças
e de estudantes) é o processo pelo qual as pessoas, isto é, o trabalho, adquire a capaci-
dade de constantemente redefinir as competências necessárias para o desempenho de
uma dada tarefa, e para aceder a essas competências de aprendizagem. Quem for educado
no ambiente organizacional adequado pode reprogramar-se a si próprio no sentido de
acompanhar as mudanças intermináveis do processo produtivo. (Castells, 1998: 361)

Se é verdade que o mandato da classe média nova para o sistema educativo sempre
visou a solidificação das suas posições na estrutura social, o que parece distinguir a reno-
vação deste mandato é a ressignificação daquilo que por «educação» se parece entender.
Esta ressignificação parece ser modelada, por um lado, pelas dificuldades trazidas à estra-
tégia do investimento em capital escolar pela massificação da escolarização e, por outro,
pela transformação do papel do conhecimento no processo educativo. Tendo como pano de
fundo o mercado de trabalho dual4 e o facto de as escolas secundárias públicas já não
serem as «passarelles» seguras para a universidade e para os cursos de «distinção», torna-
-se mais compreensível o «arrepio» da nova classe média nova perante a perspectiva de que
às escolas do estado só vá parar, citando Filomena Mónica, o «lixo social» (1997: 19). O
processo de massificação do ensino (alunos a mais e recursos a menos), em Portugal, ou
em qualquer outro país do mundo, resolve-se através da sua democratização (mais recursos
para tornar possível o acesso para todos), mas o que parece perpassar nos discursos neo-
meritocráticos é uma implícita sugestão de que os males gerados pelo efeito combinado
entre massificação e meritocracia (fundada apenas na igualdade de oportunidades de
acesso) se resolvem apenas com mais meritocracia.
Por outro lado, é o próprio conhecimento e o seu papel educacional que está a ser
revisto. Na próxima secção debruçar-nos-emos sobre esta questão em particular; por ora
gostaríamos apenas de remeter esta transformação do papel do conhecimento para a já
referida dualização do mercado de trabalho.
«Flexibilidade» parece ser a palavra-chave na mais recente literatura desde a teoria das
organizações às teorias do management. É a capacidade de adaptação às inesperadas
mudanças nos ambientes organizacionais e a capacidade de resposta aos desafios que estas
colocam à produção e à distribuição que estão na base da exigência de se ser flexível. A
categoria social de profissão/ ocupação, definida a partir de um conjunto articulado de
gestos técnicos (fazer), respectivo saber (saber fazer) e atitudes e valores (definidos as mais

(4) Thompson defende que nos sectores económicos com maior proporção de investimento em capi-
tal do que em trabalho existe um «mercado de trabalho dual para trabalho qualificado e desqualificado no
interior da tendência mais ampla para a desqualificação» (1989: 83).
A «Nova Classe Média Nova» e a reconfiguração do mandato endereçado ao sistema educativo 35

das vezes corporativamente), enquadrada frequentemente – sobretudo a partir dos anos


1950 – por mais ou menos fortes organizações sindicais, era, no contexto do fordismo e da
regulação keynesiana, um factor estruturante do mercado de trabalho. Entre a organização
fordista da produção, distribuição e consumo e o trabalho, definido a partir desta categoria,
construiu-se uma confluência que, sem ser estreitamente funcional, assumia importantes
articulações. Sindicatos e representantes dos empresários, trabalho e capital conviviam nos
países do centro sob a égide reguladora do Estado-Providência numa entente que, sem resol-
ver as contradições seminais do sistema, fazia com que ele funcionasse com essas mesmas
contradições. O sufrágio universal, o surgimento de diversos movimentos sociais, a politiza-
ção dos sindicatos e a progressiva regulação dos mercados pelos aparelhos de estado, pro-
piciaram o aumento das expectativas sociais das classes populares5, ao mesmo tempo que
o capitalismo, enquanto sistema económico, se podia desenvolver pacífica e regularmente.
Neste contexto, o «trabalho» constituiu-se a partir de uma matriz «dura», isto é, definido
corporativamente e enrijecido pela acção sindical, sendo as «profissões» em que social-
mente se organizavam os trabalhadores um importante factor de delimitação de sistema,
isto é, era a profissionalidade do electricista, por exemplo, que definia em grande medida
as suas tarefas e actividades laborais. A regulação estatal, as organizações sindiciais e a pró-
pria organização da produção e distribuição cristalizavam, assim, uma configuração do
mercado de trabalho fundada na centralidade «dura» do trabalho/ profissão.
Com o surgimento das estruturas produtivas pós-fordistas esta «dureza» é substituída
pela «flexibilidade» como chave para o sucesso dos indivíduos e das organizações. O capi-
talismo sob a sua forma «desorganizada» (e globalizado) acaba por condenar tudo e todos
os que não forem capazes de se adaptar à aceleração das transformações proporcionada
pela crescente centralidade do capital financeiro. Os processos produtivos são redesenha-
dos a partir de critérios financeiros, numa clara subsunção dos capitais industrial, comer-
cial e fundiário ao critério de proficiência na produção de mais-valia, ele próprio tornado
como indicador da performance individual e colectiva. Neste contexto, é compreensível
que, a par da exigência sobre os estados-nação no sentido da desregulação dos processos
económicos e sociais, se insista na «flexibilidade» do trabalho e das organizações como
indutora dos sistemas sociais, do educacional ao da saúde quase sem excepção.
Esta «flexibilidade», argumentamos nós, está a ser levada a cabo enquanto tal sob a
forma da conceptualização do trabalho como agregado de «competências». Estas, defini-
das como a capacidade criada nos indivíduos e nos grupos para desempenhar os seus
papéis sociais e produtivos em ambientes continuamente em transformação, compreen-
dem sobretudo a capacidade de continuamente se capacitarem para lidar com a mudança.
Os conhecimentos teóricos e práticos a serem mobilizados segundo este critério são, por-
tanto, aqueles que propiciam a sua contínua abertura para a novidade e criação de inovação6.

(5) Boaventura S. Santos diz que durante este período «o pilar da emancipação torna-se cada vez mais
semelhante ao pilar da regulação. A emancipação torna-se verdadeiramente no lado cultural da regulação
[...] (Santos, 1994: 78).
(6) Veja-se, a este propósito, as entrevistas que Ball realizou a empresários britânicos (1990).
36 «A Diferença Somos Nós»

Definido a partir destas competências, o trabalho organizado em volta da categoria


social de profissão, como tudo o é que sólido, dilui-se e, em substituição dos requisitos
e perfil profissionais, é a empregabilidade que assume o papel central. Ser «empregável»
é possuir competências de adaptabilidade, é a capacidade de estar continuamente em
processo de formação (trainability, nas palavras de Bernstein, 2001) e circular no mercado
de trabalho com uma velocidade o mais semelhante possível àquela com que o capital
circula, com que as empresas reorganizam os seus processos e com que as inovações
surgem.
Não são só, portanto, as empresas, devido à sua «dureza» e insustentável peso organi-
zacional, que se diluem no ar do capitalismo flexível, como são os próprios indivíduos
enquanto trabalhadores/ profissionais que são compelidos a reconfigurar-se como «empre-
gáveis» (Sennett, 2000). Se a profissão/ ocupação de cada um, no contexto do fordismo, era
crucial para o próprio processo de auto-identificação, a empregabilidade, definida como
conjunto de competências que proporcionam perfomance económica (Lyotard, 1989) (isto
é, a obtenção do máximo output com o mínimo de input), parece sugerir a emergência de
identidades mais voláteis e eventualmente mais fragmentadas (Stoer, Magalhães e Rodri-
gues, 2004).
É para se reposicionar neste mercado de trabalho dualizado pelas competências/ ausên-
cia de competências, qualificado/ não qualificado, que o mandato endereçado ao sistema
educativo fundado na preocupação quase exclusiva com a excelência académica nos parece
ganhar sentido. A nova classe média nova aponta as suas estratégias para a camada auto-
programável do mercado de trabalho, procurando que os seus «herdeiros» se instalem aí
o mais seguramente possível. Esta estratégia contra os riscos despoletados pelo novo mer-
cado de trabalho é um dos factores que nos parece mais contribuir para a renovação do
mandato meritocrático da nova classe média nova a que estamos actualmente a assistir.

DO CONHECIMENTO COMO FORMAÇÃO AO CONHECIMENTO COMO COMPETÊN-


CIA, OU DA PEDAGOGIA À PERFORMANCE

Como já sugerimos, este contexto de renovação do mandato meritocrático não corres-


ponde apenas a uma exigência de arrumação diferente dos curricula, ou mesmo apenas a
uma proposta de curriculum escolar diferente, mas antes a uma ressignificação do conhe-
cimento, do seu papel no processo educativo e da própria educação escolar. Este debate
tem assumido, desde os anos 1980, diferentes matizados nos países europeus, mas em
Portugal tomou a forma da responsabilização da preponderância da tradição rousseau-
niana no sistema educativo. Veja-se, por exemplo, Filomena Mónica quando diz que a
culpa da inadequação do sistema escolar em relação àquilo que seria desejável deve ser
procurada na «cultura dominante» que é inculcada nos cursos de Ciências da Educação e
que, por consequência, assume uma posição soft em relação à avaliação:
A «Nova Classe Média Nova» e a reconfiguração do mandato endereçado ao sistema educativo 37

Trata-se, em resumo, da mistura entre o legado de Rousseau e algumas ideias, mal


digeridas, da Sociologia da Educação, com ênfase para as que contestam a autoridade do
professor, a validade dos conteúdos curriculares e a disciplina nas salas de aula.
Evidentemente que ninguém conseguirá – nem o julgo desejável – reconstituir a autori-
dade, tal como ela existiu no passado. Mas a ideia de que é possível aprender sem esforço,
a subalternização do professor, a ambiguidade perante a avaliação, degradaram as esco-
las para além do tolerável. (ibidem.: 49)

Sublinhe-se a ênfase colocada pela autora nos conteúdos curriculares, na autoridade e,


sobretudo, na necessidade de avaliação. A excelência académica é definida implicitamente
aqui a partir dos conteúdos veiculados pela autoridade pedagógica e da sua avaliação. A
mediação efectuada pela «avaliação» é crucial na estrutura argumentativa do discurso
neomeritocrático, dado que induz a questão da qualidade e respectivo dogma («O quê?
Estão contra a qualidade?», perguntam, indignados, quando se lhes pede que digam exac-
tamente o que querem com isso dizer).
Nessa senda, Luís Salgado de Matos, num artigo do Público (20.08.2001), sublinha,
também implicitamente, essa ênfase na performance pedagógica fundada no domínio dos
conteúdos e também na respectiva avaliação:

A escola desmoraliza os jovens: sabem que andam lá a matar tempo. Indirectamente


perturba a família: «os meus filhos arranjarão emprego?», dizem os pais quando esque-
cem o alívio da nota falsa que os filhos recebem em tudo o que não é exame. As famílias
com capital cultural resistem melhor: pagam explicadores, escolhem boas escolas – por-
tuguesas ou estrangeiras – e pilotam o futuro dos filhos.

Em artigo de 26 de Janeiro de 2001, Vasco Pulido Valente, no Diário de Notícias, bate


na mesma tecla, isto é, que o mal de que o sistema educativo português enferma, é o de
não avaliar:

[...] ninguém se atreve – presumo que por humanidade – a rejeitar a raiz filosófica da
«integração» universal. Lindos sentimentos com certeza. Só que não estabelecer estritos
critérios de comportamento e trabalho e não excluir equivale a transformar a escola
numa espécie de extensão da rua e das famílias menos responsáveis.

A avaliação surge, assim, insistentemente, como a medida político-pedagógica que condu-


zirá o sistema educativo ao desempenho eficaz enquanto formador e, eventualmente, criador
de competências e indutor de «qualidade». Guilherme Valente e Carlos Fiolhais (Público, 24
de Janeiro de 2001) chamam-lhe mesmo o antídoto para o problema educacional português:

A avaliação é o antídoto da aparência. É por isso que a ciência, que exige, exercita
e promove uma permanente avaliação, é uma ameaça para a velha cultura nacional. É
talvez por isso que a ciência e a cultura científica têm tanta dificuldade em emergir na
sociedade portuguesa.
38 «A Diferença Somos Nós»

A ligação entre a necessidade de avaliação e a renovação do mandato meritocrático para


o sistema educativo é, pois, clara. Veja-se o que diz a este propósito José Manuel Fernandes:

Na sociedade em que vivemos exige-se que se aprenda ao longo da vida, e é bom que
todos estejamos preparados para ser avaliados em permanência: para podermos evoluir,
para que haja justiça nas relações de trabalho, para sermos uma meritocracia e não uma
sociedade clientelar, onde uma boa cunha vale mais do que uma competência compro-
vada (Público, 28 de Dezembro de 2000).

Não se trata de opor os desempenhos da escola que temos àqueles que poderíamos ter
se ela fosse mais eficiente, mas antes de reconfigurar a própria instituição escolar e, em
lugar da formação de indivíduos, esta cuidar sobretudo da sua contínua formação enquanto
trabalhador flexível.
A ideia da escola e da instituição escolar tal como a conhecemos hoje são modernas por
excelência. Elas são o produto do cruzamento do projecto do Iluminismo com o do estado-
-nação e de ambos com o capitalismo enquanto forma de organização da produção. O
Iluminismo atribuiu à instituição escolar eventualmente a função mais nobre e central do
projecto da modernidade: a formação do homem novo. Este não é já pensado como o súb-
dito de Deus e do suserano, ou aquele que rege as suas escolhas pela tradição, mas o cida-
dão-indivíduo. Acreditava-se que este, deixado aos cuidados da razão, da ciência e do saber
técnico, se erigiria como senhor da natureza, da sociedade e, logo, de si mesmo. Por seu
turno, o projecto de consolidação dos estados-nação endereçava à escola um mandato
muito forte: caber-lhe-ia a difusão da cultura, da língua e da ciência nacionais e a forma-
ção dos respectivos cidadãos.
Com a integração política pelo estado (Archer, 1979), a educação passa a estar, em
última análise, ao serviço da formação da nova forma de conceber os indivíduos: cidadãos
unidos pela língua, território, cultura, etc. Atribuía-se ao conhecimento, recontextuali-
zado pedagogicamente, uma função emancipadora. O que parece acontecer ao conheci-
mento quando recontextualizado como competência e como performance é que este deixa
de estar ao serviço da formação do indivíduo enquanto tal, e surge como algo que flui atra-
vés dele, monindo-o com capacidade de resposta a situações mais ou menos restritas e
mais ou menos complexas, mas não interferindo com a sua formação enquanto tal. Parece-
-nos ser isto que Bernstein quer dizer quando se refere a

(…) um novo conceito quer de conhecimento, quer da sua relação com aqueles que
o criam [...] O conhecimento deve fluir como dinheiro para onde quer que possa criar
vantagens e lucro. De facto, o conhecimento não é apenas como o dinheiro: é dinheiro.
[...]. O conhecimento, depois de quase dois séculos, divorciou-se da interioridade e lite-
ralmente desumanizou-se. Uma vez separado o conhecimento da interioridade, do com-
prometimento e da dedicação pessoal, então as pessoas podem ser levadas de um lado
para o outro, substituídas umas por outras e excluídas do mercado (1990: 155).
A «Nova Classe Média Nova» e a reconfiguração do mandato endereçado ao sistema educativo 39

Ao ser conceptualizado como «competência flexível» o conhecimento, tal como a


modernidade o definiu, potencialmente emancipador, muda de natureza. A análise desta
transformação já começou a ser feita ao nível epistemológico propriamente dito (ver entre
outros Lyotard, 1989; Gibbons et al., 1997; Santos, 1987, 1989, 1991, 1995), estando ainda
muito por fazer no referente às suas consequências ao nível da recontextualização pedagó-
gica. Será possível, todavia, desde já, questionar se a mera tradução pedagógica do conhe-
cimento, assim transformado, e a sua subsequente organização em curricula que propor-
cionem aos formandos a obtenção de «competências», protege a autonomia relativa da ins-
tância educativa e a especificidade da acção pedagógica. A razão da nossa perplexidade é
que o escopo das competências tal como é formulado pelos porta-vozes do renovado mer-
cado de trabalho em torno da flexibilidade e aquele saído das penas e das vozes proponen-
tes do mandato neomeritocrático é de tal forma próximo que a instância educativa e a ins-
tância produtiva, mais do que tornarem as suas fronteiras indefinidas, assumem uma cân-
dida funcionalidade7.

A FALSA DICOTOMIA: PERFORMANCE SEM PEDAGOGIA VS PEDAGOGIA SEM


PERFORMANCE

Para escapar às armadilhas que a noção de competência parece trazer consigo, temos
vindo a analisar o debate sobre políticas educativas em Portugal (Magalhães e Stoer, 2002)
evitando entrar na discussão acerca do carácter mais ou menos amplo ou mais ou menos
restrito das competências a criar pelo processo de formação escolar. O preço a pagar
parece-nos ser o fechamento da discussão em torno do dilema das «boas» competências –
que servem a formação integral do indivíduo – e das «más» competências – aquelas que,
cativas do curto prazo, apenas capacitam para lidar com situações, frequentemente em
contexto de empresa, pouco complexas e com necessidade de baixa qualificação. Em alter-
nativa, temos procurado construir um continuum heurístico em que pedagogia e perfor-
mance (ver Magalhães e Stoer, ibidem) constituem os extremos. Ao colocarmos aí as dife-
rentes propostas de mandato para o sistema educativo, a natureza política destas parece
melhor explicitada. Dado que não se pode ser idealista em relação aos efeitos exponencial-

(7) Veja-se, a este propósito, a lapidar afirmação de Medina Carreira numa entrevista conduzida por
Paulo Emerenciano, do jornal O Expresso, publicada no «Dossier Economia» de Dezembro de 2001: «(...)
A falta de qualidade da nossa educação é altamente preocupante. (...) Tem de se começar simultaneamente
em vários sítios, mas o primeiro é a educação onde nunca se começou satisfatoriamente. (...) Tem de se
começar por rever os manuais, os métodos, a preparação e exigência dos professores e a disciplina (uma
escola não é produtiva quando andam todos a agredir os outros sem preservar os docentes). A escola é
essencial para todos e também para muitos empresários. O Marquês de Pombal tinha um vizinho francês,
empresário, Jacome Ratton, que lhe sugeriu a criação de uma escola para essa gente que era toda analfa-
beta e chamamos hoje empresários. E o Marquês mandou abrir a Aula do Comércio, uma escola onde se
aprendia os juros, os créditos, os pesos e as medidas. Acho que, em Portugal, deveríamos pensar numa
actualizada Aula do Comércio. Na minha opinião, a base essencial é, de facto, a preparação (...)».
40 «A Diferença Somos Nós»

mente selectivos do mercado de trabalho, e dado que o conhecimento veiculado no pro-


cesso educativo não deve visar apenas a performance de cada um em contexto de trabalho,
não opomos as exigências da pedagogia às exigências de performance. Se é verdade, como
lembram os neomeritocratas mais assanhados, que a pedagogia sem performance é «nada»,
também o parece ser que não há performance sem pedagogia, na medida em que por mais
mecânico que seja o conhecimento a veicular ele é sempre «veiculado», quer dizer, mediado
por um processo pedagógico.
Assim, a assunção do continuum não só permite mapear as propostas dos diferentes
intervenientes no debate, como também sugere que, no actual contexto de um mercado
de trabalho reestruturado pelo capitalismo flexível, não é obrigatório ficar confinado à
defesa radicalmente pedagógica da educação (como se a autonomia do pedagógico fosse
independência em relação à economia) ou à redução da educação à performance (como se
a performance pudesse existir sem pedagogia). Os caminhos alternativos podem ser pro-
curados nas diferenças que estruturam os mandatos educativos e na sua análise. Tanto
mais que a escola deixou de ser percepcionada pelas famílias e pelos alunos/ estudantes
como «o» recurso de formação e, logo, de criação de competências. Outras organizações e
instituições, públicas e privadas, assim como os mais diversos contextos, proporcionam
formação e qualificam os que neles se envolvem. Empresas, associações, movimentos
sociais, políticos, religiosos e a própria família, em alguns países apresentam-se já explici-
tamente como alternativas à escola pública. A escola deixou de ser a instituição socializa-
dora central e as narrativas educacionais legitimadoras da missão quase salvadora (a for-
mação do homem novo, do indivíduo-cidadão) que o projecto da modernidade lhe atribuía
parecem viver apenas em alguns e excepcionais lugares, e na mente generosa de alguns
estóicos educadores. A instituição e os serviços que ela presta são antes crescentemente
integrados nas estratégias que os indivíduos vão reflexivamente construindo.

CONCLUSÃO

Numa sociedade totalmente pedagógica (Bernstein, 2000), a educação escolar parece


ter muita da sua relevância confinada à sua função de acreditação e de atribuição de diplo-
mas. Como consequência da crescente reflexividade social e individual, parece ser a escola
que é cada vez mais frequentemente colocada nos guiões que os indivíduos fazem para a
sua vida e não ao contrário, como de alguma forma sonharam muitos pedagogos moder-
nos, isto é, a escola forneceria o «bom» material com o qual os indivíduos construiriam a
sua vida. Todavia, isto não nos deve fazer esquecer, na esteira de Beck (1992), que a capa-
cidade para cada um escolher, manter e justificar as suas próprias relações sociais e opções
de vida, não é a mesma em e para todos, ela é,

(…) como qualquer sociólogo das classes sabe, uma capacidade aprendida que depende
das origens sociais e familiares especiais. A conduta reflexiva da vida, o planeamento que
A «Nova Classe Média Nova» e a reconfiguração do mandato endereçado ao sistema educativo 41

cada um faz da sua biografia e das relações sociais, dá origem a uma nova desigualdade,
a desigualdade no lidar com a insegurança e a reflexividade (Beck, 1992: 98).

A escolarização surge, neste contexto, ao mesmo tempo como um instrumento a utili-


zar para escapar às «origens sociais e familiares» e como consequência dessas mesmas ori-
gens. Da mesma forma, pensamos – e isto parece-nos matizar bastante a assunção da
determinação em «primeira instância» que acima desenvolvemos – que o surgimento do
novo mandato da nova classe média nova não é o mero produto da determinação econó-
mica imposta pelo capitalismo flexível, mas, antes, que é coetâneo de mudanças culturais
que envolvem fenómenos que vão desde a transformação da intimidade à reinvenção das
tradições e do culto do efémero, assim como a já referida assunção reflexiva de novos esti-
los de vida.
Efectivamente, as implicações destas mudanças de teor cultural conduzem-nos a uma
análise não só dos estilos de vida, como também à análise do surgimento de novas formas
de cidadania.
3
CAPÍTULO

Educação, sociedade em rede


e redefinição do conhecimento

Neste capítulo, centramos a nossa atenção numa das dimensões daquilo que R. Dale
designa como o mandato para o sistema educativo. Este mandato sofreu transformações
que não se limitam à formação para a cidadania e à preparação para o trabalho, implicando
também mudanças no âmbito da dimensão referente ao desenvolvimento de capacida-
des individuais. O nosso intuito aqui é o de mapear os efeitos da simultânea pressão
«de cima para baixo» e de «baixo para cima» a que quer o estado-nação quer o sistema
educativo têm vindo a estar sujeitos. Quanto à primeira, pode defender-se (cf. Bernstein,
1996) que o que está em causa é a transformação do próprio conhecimento em «moeda»
(isto é, em performatividade pura); quanto à segunda, parece haver em curso uma des-
locação do conhecimento da escola (nacional) para a comunidade (local) em que esta
última é interpretada como «a cidade educativa» (onde aparentemente prevalece um
projecto pedagógico e uma pedagogia comunicacional que se assumem como transpa-
rentes). Este capítulo pretende precisamente pôr em causa a dicotomia construída por
meio da análise das implicações, para a pedagogia e para o desenvolvimento de capacida-
des individuais, do desenvolvimento e da consolidação de um estado (e sociedade) em rede
(Castells, 1996).

A Idade Moderna festejou o conhecimento, sobretudo como conhecimento científico,


como a pedra-de-toque da emancipação dos indivíduos e das nações. Conhecer o mundo –
natural ou social – era o correspondente a desvelar as suas leis de modo a que o mundo –
natural e social – pudesse ser apropriado e dominado pela humanidade que, assim, se assu-
mia como o sujeito central da história.
Esta dimensão iluminista do conhecimento projectou-se de diferentes maneiras sobre
as concepções de educação e sobre o papel que o conhecimento deveria assumir no processo
educativo das crianças e dos jovens. Noutro trabalho, já evidenciámos a matriz moderna
dos sistemas escolares (Magalhães e Stoer, 2003); neste, procuraremos, numa primeira
parte, enfatizar o papel central atribuído ao conhecimento no desenvolvimento individual.
44 «A Diferença Somos Nós»

De facto, da mesma forma que o conhecimento, como apropriação intelectual das forças
e das leis que regem a natureza e a sociedade, permitiria às sociedades humanas um cres-
cente domínio sobre os processos naturais e sociais, conduzindo mesmo à possibilidade de
direcionar a história (como se torna particularmente evidente, por exemplo, em algumas
perspectivas marxistas da acção política), também o indivíduo no seu desenvolvimento
veria o mundo e a sua acção sobre ele «limpo» de forças mágicas, ocultas e impossíveis de
manipular. O conhecimento racional forneceria aos indivíduos um potencial de consciên-
cia, de acção sobre o mundo e de cidadania que como que o tornaria em senhor do seu pró-
prio destino. Este optimismo surge particularmente evidente em Hegel, que assume que
a própria liberdade individual encontra a sua realização máxima na figura do cidadão, isto
é, no indivíduo enquadrado pelo estado, dado que é aí «onde a liberdade adquire a sua
objectividade e vive a sua própria realização» (1965: 11). Em última análise, do conheci-
mento do qual se esperava que emancipasse a humanidade, organizada em estados-nação,
a modernidade também esperava que tornasse os indivíduos emancipados. O conhecimento
era assumido, efectivamente, neste domínio, como o meio privilegiado por intermédio do
qual os indivíduos se reencontrariam consigo próprios, desalojando o desconhecido de
medos e de superstições por meio da assunção da sua cidadania. Desenhou-se, assim, uma
função formativa do conhecimento que conduzia o indivíduo num processo de desaliena-
ção até ao cidadão.
É neste sentido que a modernidade assume a escola – mais precisamente o sistema
escolar – como um dos instrumentos centrais da sua realização. Se vistas sob este ângulo,
as fundações dos sistemas educativos nos diferentes países europeus ganham uma consis-
tência e coerência notáveis: a produção de cidadãos por meio da educação dos indivíduos.
Os sistemas escolares foram eleitos como a forma privilegiada de construção e de consoli-
dação dos estados-nação (ver Nóvoa, 1998; Candeias, 2002).
O conhecimento surge, neste contexto, ao mesmo tempo como o mediador entre a
ignorância e o saber e como o organizador da relação entre a natureza e a humanidade. A
socialização escolar surge como o modo a partir do qual a natureza natural dos homens se
transforma em natureza social. É neste ponto que a pedagogia – como agenciadora dessa
relação – e o contrato social moderno convergem. A «viragem rousseauniana» da pedagogia
(Magalhães e Stoer, 1998) ganha, a partir deste ponto de vista, uma interessante dimensão:
ao postular que o centro do ensino/ aprendizagem não é o corpus do saber, mas a pessoa
daquele que aprende, isto é, o sujeito da aprendizagem com as respectivas características,
o que se enfatiza é a importância da mediação da pedagogia entre o natural e o social.

O CAPITALISMO, A SOCIALIZAÇÃO ESCOLAR E A FORMAÇÃO DE TRABALHADORES

Por outro lado, quando a modernidade se combina com o capitalismo, o mandato diri-
gido ao sistema escolar complexifica-se e a socialização escolar assume a função algo
ambígua entre o conduzir às «luzes» e à emancipação dos indivíduos e o transformar o
Educação, sociedade em rede e redefinição do conhecimento 45

cidadão num trabalhador disciplinado. Procurando traçar a evolução histórica das relações
entre formação e emprego, Alaluf (1993) diz que, num primeiro momento, à escola com-
petiria formar «bons operários», quer dizer, competir-lhe-ia combater a «vagabundagem»,
desenvolver a disciplina, a pontualidade e a «honestidade» dos trabalhadores, pois impor-
tava criar não só operários bons, mas sobretudo importava criar bons operários.
O conhecimento assumido pelo paradigma sociocultural da modernidade como poten-
ciador da emancipação dos indivíduos surge simultaneamente como uma poderosa forma
de regulação social. Efectivamente, o conhecimento das leis da natureza e da sociedade
tornou-se um meio de domínio dessa mesma natureza e sociedade. Entre o saber e o poder
constituiu-se um laço sem precedentes na história. O capitalismo, por um lado, e os apa-
relhos de regulação social, por outro, incorporaram o conhecimento nos seus próprios
processos, racionalizando-os, quer dizer, a racionalização foi incorporada nos processos
produtivos e na organização social.
No que diz respeito ao modo de produção, o conhecimento foi integrado como factor
produtivo (como ciência e tecnologia) e no nível da própria organização do trabalho (por
exemplo, o taylorismo). No que diz respeito à organização social, o conhecimento foi inte-
grado também de duas formas: primeiro como factor de legitimação que surge o mais das
vezes com toda a evidência nas narrativas do estado-nação ou nas sagas nacionais; depois,
como elemento organizador da própria vida social, eventualmente cristalizada nas organi-
zações burocráticas do estado e da vida civil em geral. A metáfora weberiana da «gaiola de
ferro» surge, neste contexto, como bastante apropriada.
Assim, o capitalismo imbricou a sua lógica de maximização da obtenção de mais-valia
com a racionalidade cognitiva e instrumental do paradigma sociocultural da modernidade,
originando aquilo a que Santos chama a hiper-racionalização do pilar da emancipação,
que, a par do pilar da regulação, escorava narrativamente o referido paradigma. Diz Sousa
Santos que as concentrações e reduções que a modernidade fez acontecer resultam na
hipercientifização do pilar da emancipação que «desequilibrou as relações de vinculação
recíproca entre este e o pilar da regulação» (Santos, 1991: 24), no estrutural esvaziamento
do princípio da comunidade pelo do mercado e na colonização por parte deste do próprio
princípio do estado.
Esta combinação da racionalidade moderna com a lógica do capitalismo e com a da
organização estatal teve amplas consequências nos mandatos dirigidos à socialização esco-
lar, não só visível na já mencionada formação de «bons operários», mas também na pró-
pria concepção do papel do conhecimento no desenvolvimento individual. O conhecimento,
de condutor iluminado, reconfigurou-se, em três grandes etapas, como instrumento que
confere competências ao serviço dos indivíduos, sobretudo ao serviço do posicionamento
destes no mercado de trabalho. É o que, noutro trabalho (Magalhães e Stoer, 2003), desig-
námos como o processo de transformação do conhecimento em throughput (o conheci-
mento funciona como se fosse «moeda», passando pelos indivíduos sem os alterar – ver
Bernstein, 1996). A primeira fase é aquela a que já nos referimos, seguindo Alaluf, que cor-
responde à exigência sobre o sistema escolar de formação de trabalhadores «disciplinados»
46 «A Diferença Somos Nós»

e «honestos». A segunda foi a fase em que a adequação do ensino ao posto de trabalho pro-
gressivamente tomou o lugar central, num modo keynesiano de regulação em que os pro-
gressos da educação se procuravam ajustar aos da produção. A terceira, em consequência
do desemprego, sobretudo do desemprego de possuidores de diplomas, e dada a incapaci-
dade de previsão dos decisores acerca dos perfis profissionais necessários, foi delineada a
partir do contexto em que

(…) são novamente critérios de conformidade individual que são valorizados. Não é
o conteúdo de ensino que interessa ao empregador, diz-se, mas a aptidão das pessoas para
sobreviverem num meio de concorrência encarniçada. É necessário desenvolver «com-
petências de processos», ligadas mais ao «estilo de ensino» do que ao conteúdo. (Alaluf,
1993: 14-15)

DO MERCADO DE TRABALHO KEYNESIANO À REDE: A RELAÇÃO ENTRE CONHE-


CIMENTO, COMPETÊNCIAS E EDUCAÇÃO NA FORMAÇÃO DO INDIVÍDUO

É neste processo de transformação do conhecimento em throughput que, na nossa


perspectiva, pode-se iniciar a arqueologia do discurso das competências. À medida que o
conhecimento vai ganhando centralidade como factor de produção, e se transforma ele
próprio em mercadoria (Lyotard, 1989), as competências a que ele permite aceder são recon-
figuradas de uma forma que afasta esse mesmo conhecimento da sua matriz moderna (o
conhecimento como formação, como input). Ao modelo da competência cognitiva como
emancipação, parece substituir-se um arquétipo de competência adaptativa às exigências
do mercado de trabalho, transformado agora na arena central onde o desenvolvimento
(pessoal e social) dos indivíduos acontece. Se «ser alguém» na matriz moderna é sinónimo
de domínio do conhecimento dos processos e dos contextos em que os indivíduos se
encontram envolvidos, na situação emergente o mote cartesiano parece ser glosado da
seguinte forma: «Tenho uma posição no mercado de trabalho, logo existo». As competên-
cias escolares reflectem de uma forma mais ou menos directa esta reconfiguração do
conhecimento. Aliás, no capítulo anterior, referimo-nos a esta reconfiguração das compe-
tências educativas como uma eventual determinação em primeira instância (Magalhães e
Stoer, 2003).
Esta deriva das competências no sentido da individualização dos indivíduos nos novos
contextos sociais tem sido denunciada, sobretudo pelos pedagogos mais rousseaunianos,
como a influência do capitalismo flexível nos processos educativos e da ideologia neolibe-
ral na educação. Pela nossa parte, gostaríamos de matizar mais esta análise: no sentido em
que, como já argumentámos, não há pedagogia sem performance, nem performance sem
pedagogia. Por outras palavras, por um lado, não é possível hoje continuar a pensar as
competências educativas como sendo do âmbito do restrito desenvolvimento individual,
descurando a articulação dos indivíduos com o mercado de trabalho; por outro lado, entre
Educação, sociedade em rede e redefinição do conhecimento 47

a formação do critical self e a do corporate self, para utilizar os termos de Barnett (1997),
a oposição pode surgir como algo artificial, como se fosse possível desenvolver qualquer
destes selves num vácuo social e pedagógico.
O conceito de «competência» não pode ser, de facto, reduzido à sua função de articu-
lação da educação com as exigências do mercado de trabalho. Fazê-lo seria cair na oposi-
ção simplista que reedita aquela outra entre pedagogia e performance e, em termos da
concepção do desenvolvimento individual, opor de uma forma idealista (Stoer, 1994) o
processo de individuação ao de individualização (um processo em que, segundo Beck
[1992], o indivíduo reflexivo se torna senhor das suas próprias escolhas no sentido em que
assume o limite das suas possibilidades de escolha). A análise mais cuidada do conceito
permite, por um lado, uma ênfase na autonomia do campo educativo que seria grosseiro
descurar e, por outro, permite a confirmação de uma forma sustentada da tese de Harvey
(1989) da «determinação em primeira instância» da cultura pelo capitalismo flexível.
Matizando a assunção de Bernstein, segundo a qual uma determinação desse tipo anularia
a autonomia do campo pedagógico (ver 1990: 198 e 202), sugerimos que esta não se dilui
na indeterminação de possibilidades que caracteriza os actuais contextos. Os pedagogos,
que vêem na performance apenas a materialização da determinação em primeira instân-
cia pela economia, pugnam por um afastamento das práticas e dos discursos educativos
das posturas que articulam as demandas do mercado de trabalho, aprofundando dessa
forma o fosso entre pedagogia e performance (ver Magalhães e Stoer, 2002). Como se refe-
riu no capítulo anterior, será que faz sentido discutir o conceito de competência no intuito
de saber quais são as «boas» competências e quais são as «más»? Quais são as competên-
cias que estão ao serviço dos indivíduos independentemente da necessidade de estes se
posicionarem no mercado de trabalho? Não será o conceito do papel do conhecimento na
formação do indivíduo que está aqui em causa e não o de competência? Por outras pala-
vras, se o conceito de competência é um conceito de mediação, ele não pode ser esgotado
por apenas um dos campos entre os quais faz essa mediação. Do mesmo modo, não pode
ser apropriado apenas por um desses lados, quer dizer, pelo lado da pedagogia ou pelo lado
do mercado de trabalho. No primeiro caso, tratar-se-ia de uma intencional não-articulação
com as instâncias económicas; no segundo, tratar-se-ia de uma articulação funcional entre
os dois campos.
Num documento oficial, o Ministério da Educação, em 2001, procurou lidar com a
tarefa da definição do conceito de competências:
O termo «competência» pode assumir diferentes significados, pelo que importa deixar
claro em que sentido é usado no presente documento. Adopta-se aqui uma noção ampla
de competência, que integra conhecimentos, capacidades e atitudes e que pode ser
entendida como saber em acção ou em uso. Deste modo, não se trata de adicionar a um
conjunto de conhecimentos um certo número de capacidades e atitudes, mas, sim, de
promover o desenvolvimento integrado de capacidades e atitudes que viabilizam a utili-
zação dos conhecimentos em situações diversas, mais familiares ou menos familiares ao
aluno. (Ministério da Educação, 2001: 9)
48 «A Diferença Somos Nós»

O documento aproxima o conceito de competência do de «literacia», pressupondo a


aquisição de um conjunto de conhecimentos e processos fundamentais, que não devem ser
reduzidos ao «conhecimento memorizado de termos, factos e procedimentos básicos, des-
provido de elementos de compreensão, interpretação e resolução de problemas» (ibidem).
Procura-se, igualmente, autonomizar o conceito e enfatizar a especificidade do campo
educativo, sublinhando que a competência «não está ligada ao treino para, num dado
momento, produzir respostas ou executar tarefas previamente determinadas» (ibidem). A
organização do ensino/ aprendizagem em torno deste conceito sugere que a aquisição de
competências «diz respeito ao processo de activar recursos (conhecimentos, capacidades,
estratégias) em diversos tipos de situações, nomeadamente situações problemáticas. Por
isso, não se pode falar de competência sem lhe associar o desenvolvimento de algum grau
de autonomia em relação ao uso do saber» (ibidem). Assim, a articulação das competên-
cias como núcleo organizador do processo de ensino/ aprendizagem pretende, nas palavras
de um responsável político do Departamento da Educação Básica, apoiar a

(…) construção de uma nova cultura de currículo e práticas mais autónomas e flexí-
veis de gestão curricular (...). Por um lado, trata-se de um trabalho que contraria a forte tra-
dição de produção de orientações programáticas baseadas em tópicos específicos e disper-
sas pelas disciplinas e anos de escolaridade. Por outro lado, a natureza do trabalho torna-o
sempre inacabado e susceptível de melhoramentos de diversos tipos. (Abrantes, 2001, p. 3)

Esta definição do conceito de competência surge-nos como uma oportunidade de o


delimitar enquanto conceito central das actuais políticas educativas. Tal como é formulado
neste documento, e apesar de afirmações de intenção em sentido contrário, o conceito per-
manece algo ambíguo e, assim, é muitas vezes interpretado, particularmente pelos peda-
gogos inspirados na viragem rousseauniana, como soçobrando numa precipitada lógica de
articulação com o mercado de trabalho, mercado esse que se vem apresentando como cres-
centemente volátil e imprevisível, isto é, em transição. O que está em causa parece ser a
preocupação com o sujeito da aprendizagem e a alternativa abstracta de saber quem gere
as competências: o indivíduo ou o mercado de trabalho. A concepção de formação do
sujeito aqui presente parece traduzir-se no dilema de saber se é o indivíduo quem gere as
competências ou se é o sistema social e educativo que se gere por intermédio delas, pro-
duzindo o processo de individualização de que fala Bauman (2000), isto é, a condenação
dos sujeitos a serem inelutavelmente indivíduos.
Este processo de individualização é não só um esvaziamento do conhecimento, redu-
zido a throughput, como acima referimos, mas também um reflexo derivado da actual
proeminência do mercado na regulação da vida social. A promoção de «competências
essenciais» neste contexto, sob uma forma que pode ser desafiadora da individualização e
do conhecimento como throughput, parece envolver a assunção pelo menos de algumas
implicações daquilo que significa viver numa «sociedade em rede» e, talvez mais impor-
tante, parece implicar confrontar o mercado como um espaço social que tendencialmente
Educação, sociedade em rede e redefinição do conhecimento 49

promove uma lógica baseada na homogeneização das diferenças (de género, de etnia, de
idade, de estilos de vida, de classe social, etc.), reduzindo as diferenças destas ao estatuto
de consumidor. Neste sentido, o conhecimento perde a sua forma e o seu conteúdo e, desse
modo, já não parece deter o potencial de promover um processo de ensino/ aprendizagem
reflexivo. Mais adiante, procuremos identificar os contornos de um novo mandato para a
política educativa europeia, tentando, precisamente, mapear algumas das implicações para
a educação das transformações que estão a acontecer no âmbito do mercado de trabalho.
Também apresentaremos, no capítulo 6, um modelo relacional de compreensão da dife-
rença no que à educação e à cidadania diz respeito, pensadas estas a partir da heteroge-
neidade das próprias diferenças.
Neste mesmo sentido de formação articulada essencialmente com o mercado, em geral,
e com o mercado de trabalho, em particular, parece ir o documento da Comissão Europeia,
de 1998 (portanto anterior ao que acima nos referimos), Ensinar e aprender: rumo à socie-
dade cognitiva. Aí, parte-se do princípio de que há «três choques motores» que estariam a
transformar de modo profundo e duradouro o contexto da actividade económica e o fun-
cionamento das nossas sociedades.

São eles o advento da sociedade da informação e da civilização científica e técnica e


a mundialização da economia. Estes três choques contribuem para a evolução rumo à
sociedade cognitiva. Embora possam representar riscos, podem igualmente constituir
oportunidades, que é necessário aproveitar. A construção desta sociedade dependerá da
capacidade de fornecer duas grandes respostas às implicações destes choques: a pri-
meira, centrada na cultura geral; a segunda, tendente a desenvolver a aptidão para o
emprego e a actividade. (1998: 21)

Tudo se parece passar, então, como se o conhecimento veiculado na relação ensino/


aprendizagem fosse uma extensão das exigências da globalização económica, por um lado,
e função das novas necessidades emergentes da reconfiguração científica e tecnológica dos
processos de produção e distribuição, por outro. Aliás, o documento chega a dizê-lo quase
explicitamente:

A finalidade última da formação, que é desenvolver a autonomia da pessoa e a sua


capacidade profissional, faz dela um elemento privilegiado da adaptação e da evolução. É
por isso que as duas respostas principais escolhidas pelo presente «livro branco» são, em
primeiro lugar, facultar a cada homem e a cada mulher o acesso à cultura geral e, em
segundo lugar, o desenvolvimento da sua aptidão para o emprego e a actividade. (ibidem: 22)

Neste contexto, parece que à pedagogia e ao conhecimento só resta o caminho único,


unidimensional, de cair nos braços da performance, assumindo-se simultaneamente que
a formação deve colocar os indivíduos numa situação «interessante» no mercado de tra-
balho. Sublinhámos «interessante» porque a formação individual, neste sentido, parece
articular-se e articular uma individualização que não só torna o indivíduo responsável por
50 «A Diferença Somos Nós»

si próprio na sua colocação no mercado de trabalho – quer dizer, o da rede (Castells, 1996)
– como o coloca na responsabilidade dos seus próprios desaires. Esta forma de centração
no indivíduo do processo de formação é, no fundo, e como já se disse, uma condenação: ao
ser treinado para ser indivíduo, a individualidade transforma-se no ónus de si própria.
Esta crítica da redução do processo de formação à individualização e da educação à
articulação com a actividade económica tem sido levantada por alguns pedagogos que,
também como já se disse, clamam pela formação como forma de não-articulação com o
mercado de trabalho e com as novas exigências do tecido económico e da nova economia.
Tudo se passando, neste campo, como se o fito do processo educativo fosse o da entrega
emancipatória do indivíduo a si mesmo, visando apenas a sua formação integral, isto é, a
individuação, no sentido de emancipação.

Todos sabem que o objetivo da educação é executar a terrível transformação: fazer


com que as crianças se esqueçam do desejo de prazer que mora nos seus corpos selva-
gens, para transformá-las em patos domesticados, que bamboleiam ao ritmo da utilidade
social. Filosofia silenciosa: cada criança é um meio para esta coisa grande que é a socie-
dade. (Alves, 2000: 169)

Ora, a concepção da formação individual no contexto da sociedade em rede não parece


comportar a dicotomia entre individualização, como condenação do indivíduo à sua pró-
pria dimensão, com a simultânea retirada dos mecanismos de protecção social, e a indivi-
duação, como afirmação de si como projecto emancipatório. É difícil conceber a formação
integral do indivíduo, no desenvolvimento das suas dimensões identitárias, por exemplo,
fora do «lugar» do trabalho. É neste sentido que se diz que

(...) a compreensão necessária para produzir práticas capazes de reduzir os cons-


trangimentos socioeconómicos (e não só) actuando sobre [os grupos penalizados pela
escola] passa pela compreensão da sua relação directa com a produção material e o mundo
do trabalho, mas também pela maneira como estes grupos «vivem» e «constroem» as
suas vidas (...) Na nossa opinião só assim se evitará ou uma abordagem que culpabiliza
as próprias «vítimas» para a existência continuada desses constrangimentos («são peri-
gosos», «não têm os valores certos», «são ignorantes»), ou uma abordagem que reduz a
análise desses constrangimentos (e as práticas possíveis para os ultrapassar) ao antago-
nismo de classe que existe entre o trabalho e o capital. (Stoer, 1994: 8-9)

Neste sentido, a oposição entre a educação como articulação das exigências do mercado
de trabalho e a educação como formação integral do indivíduo, independentemente dessas
exigências, surge como insustentável. Por um lado, porque os projectos dos indivíduos são
indeslindáveis das possibilidades efectivamente disponíveis, as quais, no caso, são as ofe-
recidas por um mercado de trabalho capitalista que, actualmente, se expande de uma
forma global e assume características específicas. As consequências desta expansão ainda
estão por determinar na sua totalidade, estando abertas muitas possibilidades, algumas
Educação, sociedade em rede e redefinição do conhecimento 51

destas, como pretendemos argumentar mais adiante, relacionadas com o que Castells deno-
mina a sociedade em rede (1996). Por outro lado, o trabalho, mesmo na sua forma mais
mercadorizada, e apesar da determinação em primeira instância a que nos temos referido,
não é a única e a total determinação. Reside, aliás, aí um peculiar paradoxo: ao mesmo
tempo que o capitalismo se apresenta como a «única» solução da história, mesmo o seu
fim (Fukuyama, 1992), torna-se mais volátil, alargando as suas malhas de determinação e
abrindo amplas possibilidades para aquilo que noutros trabalhos temos, inspirados em
diversas pesquisas, chamado novas formas de acção social e cultural (Stoer, Magalhães e
Rodrigues, 2004).
O conhecimento, como veículo de formação, e neste contexto, configura-se de uma
forma dúplice: como competências, como competências essenciais que dão azo, pelo menos
em parte, a iniciativas como a da «gestão flexível do currículo»; e como formação integral
do indivíduo que está longe de se esgotar na sua relação com o trabalho. Com o surgi-
mento da sociedade em rede esta duplicidade parece esbater-se, dado que a oposição entre
o conhecimento como competência e o conhecimento como formação, ela própria se
reconfigura, dadas as transformações da natureza do trabalho, do mercado de trabalho, da
vivência da cidadania e da afirmação sem precedentes das identidades pessoais e grupais.

A SOCIEDADE EM REDE, O CONHECIMENTO E A EDUCAÇÃO

De facto, os processos de produção, distribuição e consumo transformaram-se profun-


damente com a centralidade do conhecimento e da informação nesses processos. Berns-
tein (1996), por exemplo, enfatiza o papel do conhecimento na transição de uma sociedade
baseada em recursos físicos (matérias-primas, força de trabalho, instalações, etc.) para
uma sociedade fundada em informação e conhecimento. Harvey (1989) (e outros autores
poderiam ser aqui igualmente convocados) procurou explicar como é que o acesso à infor-
mação e ao conhecimento científico e técnico, embora estes tenham sido desde sempre
importantes para a produção capitalista, assumiu uma centralidade renovada naquilo a
que ele chama o capitalismo flexível. Identifica, em primeiro lugar, o facto de que tanto a
informação como o conhecimento não são somente cruciais para as respostas flexíveis exi-
gidas pelos mercados globais, mas também porque se tornaram eles próprios mercadorias.
Para enfatizar mais este aspecto, podemos mesmo dizer, na esteira de Castells, que a tec-
nologia de informação está para este novo contexto como as novas fontes de energia esta-
vam para «as sucessivas revoluções industriais, da máquina a vapor à electricidade, aos
combustíveis fósseis e à energia nuclear» (Castells, 1996: 31).
A posse do capital informacional e de comunicação transformou-se numa finalidade
estratégica das classes sociais tradicionalmente mais identificadas com as funções de
reprodução social. Diz Lash a este respeito:
Como consequência do facto de a produção de bens informacionais se ter tornado no
novo princípio axial da acumulação de capital, surge a (nova) classe média nova. Esta
52 «A Diferença Somos Nós»

nova classe desenvolve-se através dos novos lugares ocupacionais que resultaram deste
novo princípio da acumulação. Mas agora a classe média já não é uma «classe de servi-
ços», isto é, uma classe ao serviço das necessidades reprodutivas do capital manufactu-
reiro. Na sua forma expandida, torna-se mais uma classe «servida» do que uma classe que
presta serviços, na medida em que o seu trabalho, principalmente de processamento de
informação, já não se encontra subsumido às exigências da acumulação manufactureira.
(…) A questão-chave é que a acumulação da informação (e do capital) nas estruturas de
I&C (informação e comunicação) torna-se a força motriz da modernidade reflexiva; da
mesma forma que a acumulação do capital manufactureiro e as estruturas sociais a ele
associadas o tinham sido numa fase anterior da modernidade. (In Beck, Giddens e Lash,
1994: 129-130)

O que introduz uma interessante questão: se o conhecimento e a informação se estão


a transformar em força motriz da produção, os grupos ligados à sua criação e manipula-
ção passam de reprodutores a produtores.
Ao tornar-se capital informacional e comunicacional, o conhecimento parece mudar de
natureza. Por um lado, os enunciados sobre o mundo e a sociedade são traduzidos em
bytes de informação por meio dos quais podem circular em rede1. As implicações deste
fenómeno estão relacionadas com as questões do acesso à rede; se, em termos modernos,
a cidadania era determinada pela ligação ao trabalho assalariado e à pertença nacional,
actualmente parece depender da integração na rede, isto é, a sua determinação alarga-se
para o campo cultural (como resultado, a cidadania assume novas formas: em lugar de ser
«atribuída» ela é, antes, «reclamada», ou «reivindicada» [«Eu tenho direitos – por exem-
plo, o direito a ser indemnizado pelos efeitos de vários séculos de escravatura sobre as
minhas oportunidades na vida –, deveres e necessidades especiais enquanto negra e lésbica
que não podem ser resolvidos no âmbito da identidade nacional»], no sentido em que a
cidadania é estruturada não só por meio da identidade nacional, mas também por inter-
médio de outros processos identitários, tanto locais como supranacionais) (Magalhães e
Stoer, 2003).

(1) Embora tomando alguma distância a um determinismo tecnológico de Manuel Castells, assumi-
mos em termos operacionais, na economia deste trabalho, a definição que ele dá de sociedade em rede: «As
redes constituem a nova morfologia das nossas sociedades, e a difusão da lógica da rede modifica subs-
tancialmente a operação e os produtos nos processos de produção, experiência, poder e cultura. Enquanto
que a forma de rede de organização social existiu noutros tempos e noutros espaços, o paradigma da nova
tecnologia de informação fornece o material de base para sua expansão hegemónica por toda a estrutura
social. Mais, defendo que esta lógica da rede induz uma determinação social de um nível mais elevado do
que aquela dos interesses sociais específicos expressos através das redes: o poder dos fluxos assume supre-
macia sobre os fluxos de poder. (...) As redes são estruturas abertas, com o potencial de se expandirem sem
limites, integrando novos nós desde que sejam capazes de comunicar dentro da rede, nomeadamente desde
que partilhem os mesmos códigos de comunicação (por exemplo, valores ou objectivos de desempenho).
Uma estrutura social com base na rede é um sistema altamente dinâmico e aberto, susceptível de inovar
sem ameaçar o seu próprio equilíbrio» (Castells, 1996: 469-70).
Educação, sociedade em rede e redefinição do conhecimento 53

Por outro lado, o conhecimento, sobretudo na sua versão científica, está a ser reconfi-
gurado pela reflexividade. Beck (1992) diz a este propósito, que estamos a lidar com uma
segunda cientifização que nos confronta com os resultados da primeira, isto é, a cientifi-
zação do real natural e social. A segunda cientifização é, por excelência, reflexiva: ninguém
está hoje em posição de dizer «Eu não sabia». O conhecimento sobre o mundo social e
natural já tem de estar ciente das suas consequências sobre esses mesmos mundos. Como
diz Giddens (1990), depois de Chernobyl não há outros. Beck (1992) diria que depois desse
acidente nuclear a ciência já não pode ser a mesma.
Assim, o conhecimento susceptível de ser traduzido e de circular sob a forma de bytes
parece ser aquele que mais enforma o conceito de competências, e o conhecimento enfor-
mado pela reflexividade parece surgir como sendo aquele que se articula com novas formas
de cidadania e de afirmação identitária. É neste último sentido que podemos falar de um
movimento do conhecimento da escola do nível nacional para o nível «local». Todavia,
convém não sobrestimar esta oposição entre o conhecimento fundado em bytes e o conhe-
cimento enformado pela reflexividade, porque o que ocorre é um imbricamento entre os
níveis local e supranacional. Precise-se que, quando se fala aqui de «local», o que se pre-
tende referir não é apenas o local territorializado, frequentemente ligado a fenómenos de
reinvenção da tradição (por exemplo, o caso de Barrancos e as touradas de morte em Por-
tugal) (ver Stoer, Magalhães e Rodrigues, 2004), uma espécie de recontextualização, para
falar como Giddens. O local surge como uma reivindicação plural que comporta o territó-
rio, mas não se esgota nele. O «local», tal como utilizamos aqui em conceito, é plural e
pluralizado. É plural porque integra dimensões identitárias subjectivas e colectivas múlti-
plas (por exemplo, o «samba» que, sendo globalizado, tem uma matriz local muito forte),
que não se esgotam no território nem na comunidade local. É pluralizado porque é sujeito
a múltiplas interpretações ou apropriações (para manter o registo musical nos exemplos,
considere-se a reinvenção da música «tradicional» cubana por Ry Cooder como ícone de
esquerda e como mercadoria).
Assim, quando se fala de um movimento do conhecimento da escola do nível nacional
para o nível «local», está-se a querer significar que o conhecimento, como factor essencial
de formação, está a escapar da escola para se relocalizar em vários contextos e em vários
lugares da própria comunidade local. Por um lado, este conhecimento formativo e emo-
cional desenvolve-se por intermédio das estratégias do que temos chamado «nova classe
média nova», que se materializam no recurso a «apoios» educacionais extra-escolares
como as explicações, visitas e férias culturais, disponibilidade de equipamentos informáti-
cos e perícia na utilização do computador que permite uma atitude pró-activa em relação
à «net», «docentização dos pais» (Correia e Matos, 2001), etc. As consequências disso são
tais que aquilo que antes era próprio das funções normais da escola parece agora aconte-
cer noutros espaços, como a família, com base em recursos eventualmente menos sujeitos
ao controlo democrático e evidenciando dessa forma uma activação considerável dos pro-
cessos ligados à posse de capital cultural e social (nos termos de Bourdieu). Por outro lado,
para utilizar uma metáfora da investigadora norte-americana Linda McNeill, se a ênfase
54 «A Diferença Somos Nós»

nas competências essenciais e sua avaliação faz com que os jovens antes de entrar na sala
de aula depositem no vestíbulo os seus conhecimentos de marca local, como os cowboys
faziam com as armas à entrada dos saloons no mítico far-west, a relocalização a que nos
estamos a referir parece ter implícita uma interpretação da relação da escola com a comu-
nidade, assumindo esta como sensível e porosa a conhecimentos e sociabilidades locais,
numa espécie de reinvenção da «cidade educativa».
Esta última interpretação surge, precisamente, como interpretação, frequentemente
como proposta alternativa à escola nacional, definida como social e cognitivamente injusta
e incapaz de veicular o conhecimento como instância de formação integral do indivíduo.
Essas propostas têm assumido diversas formas, que vão desde as críticas ao «escolocen-
trismo» (Correia e Matos, 2002) até à promoção das escolas rurais como reduto da educa-
ção como acção contra-hegemónica, passando por propostas de educação comunitária,
educação de adultos, de grupos que resistem à integração, etc., com forte ênfase nas socia-
bilidades de marca local. A comunidade surge, nessas propostas, como uma espécie de
«lugar branco» que é ao mesmo tempo anticapitalista e antimercado, em oposição à socie-
dade do trabalho, à imagem de Huck Finn e Tom Sawyer a flutuar numa jangada no
Mississippi, gozando plena felicidade e autenticidade.
Da mesma forma, a rede não nos deve surgir nos mesmos termos. A tentação de alguns
dos entusiastas da sociedade em rede pode ser a de assumir que a informação se substituiu
definitivamente ao conhecimento, e que está para além da necessidade de legitimação epis-
temológica e sociológica. Castells já foi interpelado neste sentido. Veja-se a seguinte crí-
tica de Visvanathan:

Por causa da preocupação de Castells com a informação existe um estranho silêncio


em relação ao conhecimento. A sociedade em rede de Castells é uma sociologia do para-
digma da informação sem uma sociologia ou teoria do conhecimento. (...) Por conse-
quência, a sociedade em rede de Castells é a personagem central da nova narrativa cívica
da mutação do paradigma tecnológico constituindo uma nova relação entre o mapa e o
território. O que falta é uma política do conhecimento e uma política das teorias do
conhecimento concorrentes. O paradigma de Castells veria as epistemologias alternati-
vas como um «ruído». Por exemplo, África faz obrigatoriamente parte do Quarto Mundo
em consequência das suas carências de desenvolvimento. Mas, para lá da falência do
Estado e do crescimento de uma elite predatória, este atraso pode ser resultado dos
modelos de ciência que foram aplicados. Argumenta-se muita vezes que os modelos agrí-
colas africanos podem induzir noções diferentes de comunidade e ciência. É esta comu-
nidade de competência que a aplicação oficial do desenvolvimento pode ter destruído.
Neste contexto, a agricultura africana e os sistemas de medicina tradicional podem ser
paradigmas alternativos ilusórios e que camuflam modelos de ciência correntes. (Visva-
nathan, 2001: 38-39)

A crítica de Visvanathan à «grand sociology» («uma das narrativas fundamentais do


século XX» onde o herói do século XXI «não é o Estado nem as ONGs nem os partidos ou
Educação, sociedade em rede e redefinição do conhecimento 55

as uniões comerciais, mas sim a rede» [2001: 35]) dá ênfase à necessidade de criar mode-
los alternativos de desenvolvimento fora da rede. A rede («um fragmento da imaginação
democrática») ao desenvolver a sua própria lógica torna-se numa nova forma de totalita-
rismo, fixando as regras de jogo de tal modo que todos os outros jogadores estão condena-
dos a jogar de acordo com essas regras, eliminando assim a possibilidade de desenvolvi-
mento de outros paradigmas que não sejam baseados no «informacionalismo».
Uma questão que aqui se poderia levantar – mas que não iremos desenvolver – é que
se a rede se tornou coincidente com o «sistema», ou seja, com a nova economia global,
será que é possível falar de um lugar que seja exterior a ela? Por outras palavras, pode ser
inventado um novo jogo, uma nova rede? A preocupação com a inclusão e com a emanci-
pação humanas parece tornar o conhecimento e as práticas inerentes mais legítimas. É
como se Visvanathan estivesse a falar a partir de um lugar transparente, tão transparente
que se torna invisível mesmo para aqueles que nele habitam. Tal transparência permite
uma inquestionável liberdade de falar de alternativas, alternativas que se tornam meca-
nismos essenciais de análise sociológica, mas que conduzem a um lugar absolutamente
exterior ao chamado «sistema» («rede») dentro do qual encontrariam a sua origem. Neste
sentido, pode-se argumentar que é necessário desmistificar e desvendar o lugar a partir do
qual se deseja propor as alternativas.
Mas a nossa preocupação aqui é, antes, a de questionar quais as implicações da socie-
dade em rede para o desenvolvimento das capacidades individuais, nomeadamente em con-
texto educativo. Participar plenamente na rede traz vantagens importantes que se relacio-
nam não só com a acumulação de capital social e comunicacional, mas também com a pos-
sibilidade de serem produzidas competências pelos próprios utilizadores da rede, na qua-
lidade de agentes na rede e de não meros utentes. Como já sugerimos, a lógica da rede é
da mesma ordem do tipo de conhecimento, fundado na informação, que nela circula. A crí-
tica de Visvanathan opõe conhecimento a esta informacionalização. Mas será que o conhe-
cimento informacional é susceptível de ser reduzido a meros pacotes de competências que
as instituições e os actores educativos accionariam e produziriam? Será que a «morte do
professor» (Nuyen, 1992) às mãos das competências «bytificadas» é um facto consumado
ou um dos aspectos do campo de batalha ideológico cujo desenlace ainda está por deter-
minar? A oposição do conhecimento como formação ao conhecimento como competência
pode reduzir o debate educacional de uma forma dramática, tudo se parecendo passar
como se, paralelamente à redução do conhecimento a bytes, a reflexividade social e pes-
soal não reconfigurasse o campo de agência dos diversos actores envolvidos. A oposição de
Visvanathan parece reproduzir outras como emancipação versus regulação e pedagogia
versus performance, assumindo muitos pedagogos, de uma forma assaz paradoxal, as com-
petências como as inimigas da pedagogia, quando elas constituem precisamente o input
pedagógico neste processo, quer dizer, o espaço de agência dos pedagogos. Afirma, por
exemplo, Perrenoud (2001: 12-13): «A competência é uma mais-valia acrescentada aos
saberes: a capacidade de a utilizar para resolver problemas, construir estratégias, tomar
decisões, actuar no sentido mais vasto da expressão» (itálico no original). O processo peda-
56 «A Diferença Somos Nós»

gógico, assim, surge como enformado pela preocupação central com o incremento da
reflexividade como processo individual, no sentido de as competências estarem ao serviço
dos indivíduos. O inverso, por exemplo no âmbito da gestão flexível do currículo, corres-
ponderia ao facto de o aluno ser «objecto» dessa gestão e não «sujeito» dela; por outras
palavras, a própria gestão flexível do currículo só o é se for capaz de promover a reflexivi-
dade e não apenas as competências em que esta se materializa. Assim, se não sustentamos
a oposição que vimos analisando, insistimos que a concepção do conhecimento como for-
mação e factor de reflexividade deve assumir um papel de conceito organizador em con-
texto educativo.
O que parece estar a acontecer é que, com o movimento que já mencionámos da escola
do nacional para o local, a redução do processo de aprendizagem dentro da escola à aqui-
sição de competências torna-se dominante. Neste sentido, e utilizando os conceitos de
gestão política desenvolvidos no primeiro capítulo, a «gestão» flexível do currículo torna-
-se na «pilotagem» ou até na «surfagem» flexível desse mesmo currículo.

CONCLUSÃO

Neste capítulo, traçamos o desenvolvimento do conhecimento, partindo de um enqua-


dramento em que este surgia simultaneamente como formação, como Bildung, e como
forma de socialização fortemente marcada pelas exigências da consolidação do capitalismo
enquanto modo de produção dominante das sociedades ocidentais. Com a emergência do
pós-fordismo e com as decorrentes transformações no modo de produzir, distribuir e con-
sumir, o conhecimento mudou não só de natureza, mas também de estatuto. O conheci-
mento é reconfigurado como rede comunicacional e informacional e como mercadoria,
assumindo um lugar central na produção. Em termos do lugar e da função do conheci-
mento no processo educativo e, em particular, no desenvolvimento individual, esta trans-
formação parece traduzir a tensão entre os movimentos «de cima para baixo» e «de baixo
para cima» ocasionados pela globalização económica e cultural, e pelo desenvolvimento
das novas tecnologias de informação e comunicação. Esta tensão tem-se reflectido, no
debate educativo, na oposição entre educar para as competências e educar como formação,
como se à primeira correspondesse a pressão «de cima para baixo», isto é, a pressão resul-
tante sobretudo das exigências do mercado de trabalho reconfigurado onde apenas os indi-
víduos competentes têm lugar e podem circular; e à segunda correspondesse sobretudo a
pressão «de baixo para cima», isto é, a pressão resultante da exigência da educação como
uma mistura ambígua de emancipação individual e reclamação local.
Temos vindo a defender a necessidade de desfazer este tipo de dicotomias políticas e
educacionais entre formação e competências, entre pedagogia e performance (Magalhães
e Stoer, 2002) e entre globalização e localização. Aqui, pretendemos enfatizar a possibili-
dade de o conhecimento como formação e o conhecimento como informação não serem
pólos opostos no âmbito do desenvolvimento individual. Como dissemos anteriormente, o
Educação, sociedade em rede e redefinição do conhecimento 57

desenvolvimento dos indivíduos não pode ser reduzido nem às determinações económicas,
nem, à maneira idealista, às determinações de tipo cultural. Esta perspectiva permite efec-
tivamente complexificar a relação entre os diferentes tipos de competências e de formação.
Por exemplo, a construção europeia e a europeização da educação parecem implicar novas
formas de cidadania que assumem diferentes formas de localização (localização «gay»,
localização «Barrancos», localização «Europeia», etc.) e que são indeslindáveis da recon-
figuração do próprio mercado de trabalho no espaço europeu (a dissolução das profissões
e das ocupações em competências combina-se simultaneamente com a construção e afir-
mação de identidades múltiplas e diversificadas – por exemplo, o empresário «verde» que
assume as suas preocupações com o ambiente ao mesmo tempo que procura o lucro; as
lojas de «comércio justo» que se regem pelas leis do mercado capitalista, etc.).
Em contrapartida, e assumida a perspectiva da pressão «de baixo para cima», o movi-
mento do conhecimento para o local, para a comunidade, constitui, em primeiro lugar,
uma reconfiguração das estratégias sociais da nova classe média nova no sentido de garan-
tir uma sólida formação o mais facilmente traduzível em capital cultural e social; em
segundo lugar, constitui um apelo da comunidade para a reconfiguração do conhecimento
em termos locais, isto é, se em termos da escola moderna o «local» nunca esteve lá muito
presente, a reivindicação actual das comunidades parece ser a da valorização do conheci-
mento produzido localmente (para retomar a metáfora de McNeill, o conhecimento de
marca local já não é deixado no vestíbulo da escola).
Pensamos, todavia, que este último tipo de reconfiguração do conhecimento é condi-
cionado pelo facto de ele ser simultaneamente local e global, isto é, o conhecimento pro-
duzido localmente, dado que não existe independentemente da estrutura capitalista glo-
balizada, tem uma dimensão global. Por outras palavras, em razão do desenvolvimento da
rede, a produção local do conhecimento é, ao mesmo tempo, a sua produção global e vice-
-versa. Contudo, os efeitos da rede sobre o conhecimento não deveriam ser, como Visva-
nathan enfatiza, ignorados. Os chiapas, por exemplo, quando dimensionam a sua acção
política por meio da rede proporcionam «informação» sobre a sua causa, mas não obriga-
toriamente «conhecimento». Contudo, a clivagem informação/ conhecimento não deve ser
tomada como um absoluto, mas como um campo de batalha ideológico, onde a agência
dos investigadores, dos professores e dos movimentos sociais se activa. Assumir o carácter
absoluto da distinção é, a nosso ver, cair novamente nos braços de atávicas dicotomias
como performance-pedagogia; conhecimento como competências-conhecimento como
formação ou, em termos mais estritamente políticos, entre acção crítica no sistema e
acção crítica fora do sistema. É neste sentido que deve ser interpretada a afirmação de
Carnoy, segundo a qual «a produção de conhecimento desempenha um papel crucial (no
Estado em rede) [...] na gestão e compensação dos efeitos produtores de desigualdade da
globalização em nível local» (2001: 31).
Se se admitir que se desenha, em termos globais, um novo mandato para a educação
no que diz respeito ao desenvolvimento das capacidades individuais, qual o «lugar» que
a nossa posição de recusa da dicotomização do debate educacional ocupa entre aqueles
58 «A Diferença Somos Nós»

pólos? Aquilo que é, para utilizar os termos de Dale (1989), desejável e possível realizar
por intermédio do sistema educativo, num contexto de sociedade e de estado em rede, não
nos surge como se tivéssemos de escolher entre um corpus de conhecimento capaz de pro-
porcionar a «verdade» acerca da natureza, das sociedades e das relações sociais e huma-
nas, e a sua natureza esclarecedora, capaz, por si, de induzir a liberdade individual e grupal.
O que aqui está em causa é, antes, uma reconfiguração dos limites e das potencialidades
do próprio conceito de «mandato». A educação dificilmente surge hoje, nas investigações
de ciências sociais e humanas, como um campo privilegiado de condução da mudança
social, nem o seu conteúdo se apresenta como universal e definitivo. A fragilidade episte-
mológica do conhecimento não dilui o seu carácter formativo e ao mesmo tempo o infor-
macionalismo, em si mesmo, não esvazia o conhecimento do seu potencial de intervenção
política e social. A questão que surge como central não é tanto a dos termos «informação»
e «conhecimento», mas a da sua relação nos contextos de agência social.
PA R T E I I
O Impacto da Globalização
nos Processos de Inclusão/ Exclusão
Social e a «Diferença Somos Nós»
INTRODUÇÃO

Depois de, na primeira parte deste livro, termos tentado mapear o campo em
que actualmente se desenvolvem os processos de elaboração e de decisão política,
nomeadamente em educação, e de termos identificado os principais actores e pro-
tagonistas destes processos, parece-nos importante nesta segunda parte explorar
os impactos dos processos descritos como delimitando as actuais transformações
sociais sobre a inclusão/ exclusão social. Em primeiro lugar, porque a inclusão tem
sido um dos objectivos centrais da política social dos estados europeus e da pró-
pria Comissão Europeia. Em segundo lugar, porque a diferença, temática central
deste livro, foi o objecto preferencial dessas políticas, quer sob a forma de assimi-
lação, quer sob a forma de integração ou, mais recentemente, sob a forma de inclu-
são propriamente dita. Os modelos políticos de assimilação, integração e inclusão
reflectem concepções – que procuraremos identificar – sobre a diferença e sobre a
relação do «nós» com os «diferentes». Finalmente, porque a inclusão surge como
uma problemática central no contexto de sociedades marcadas pelo processo
desencadeado pela volatilização do mercado de trabalho e pela assunção reflexiva
das identidades dos indivíduos e dos grupos. Estes dois processos sociais produ-
zem formas de exclusão distintas. A primeira é caracterizada pela individualização
das necessidades dos indivíduos; a segunda pelo protagonismo dos indivíduos e
dos grupos no âmbito da sua própria definição como actores sociais face ao pro-
cesso da sua própria exclusão («Include me out!» dizem alguns grupos étnicos ou
de estilos de vida/ identidade minoritários nas nossas sociedades europeias).
A exclusão social e a «invisibilidade» dos grupos ignorados, ou marginais, nos dife-
rentes países europeus tornaram-se uma questão central cujas causas e implicações são
amplamente discutidas. Alguns modelos teóricos – dimanados de diferentes discipli-
nas como a medicina, a psicologia, a sociologia, a economia – procuram «explicar» as
razões da exclusão social; outros centram-se em saber como é que os sistemas produ-
zem exclusão através da normalização de certas características dos indivíduos. Recen-
temente, a questão da exclusão social tem sido o objecto de investigação levado a
cabo pelos próprios «excluídos» sobre a sua situação. Diferentemente destas pers-
pectivas, aqui pretende-se abordar a problemática da inclusão/ exclusão social atra-
vés da análise desse par simbiótico. A sua preocupação central é a da problematiza-
ção destes termos nos diferentes contextos (quer sociais e culturais, quer educacio-
nais aos níveis local, nacional e supranacional) através da análise de cinco dos Luga-
res – o corpo, o trabalho, a cidadania, a identidade e o território – onde a inclusão/
exclusão social produz o seu impacto. Nesta abordagem, assumir-se-á como referên-
cia os três paradigmas socioculturais, isto é, aqueles que enquadram as sociedades
tradicionais, as sociedades modernas e as emergentes sociedades pós-modernas.
4
CAPÍTULO

Cinco lugares do impacto


de exclusão social

Após termos analisado aquelas que nos parecem ser as questões estruturantes da actual
gestão política da educação, surge como essencial identificar o pano de fundo epistemólo-
gico e sociológico em que aquelas questões se desenvolvem. Se, por um lado, o conheci-
mento reconfigurado como informação parece estar a enquadrar a problemática da edu-
cação, por outro lado as instituições educativas e o conhecimento sobre a educação reper-
cutem, crescentemente, as reivindações das diferenças que assumem, com um protago-
nismo sem precedentes, uma espécie de «rebeliões das diferenças», como adiante se dirá.

A «SOCIEDADE DE RISCO» E A EXCLUSÃO SOCIAL

De acordo com Ulrich Beck, o conceito de «sociedade de risco» designa «uma fase de
desenvolvimento da sociedade moderna na qual os riscos sociais, políticos, económicos e
individuais cada vez mais tendem a escapar às instituições de monitorização e protecção
na sociedade industrial» (Beck, 1994: 5). Neste sentido, Beck defende que:

A «sociedade de risco» não é uma opção que alguém possa escolher ou rejeitar no
decurso de disputas políticas. Surge na continuidade dos processos de modernização
autonomizados que são cegos e surdos aos seus próprios efeitos e ameaças. Cumulativa
e latentemente, este último produz ameaças que põem em questão e eventualmente des-
troem as bases da sociedade industrial. (1994: 5-6)

Deste modo, o conceito de «sociedade de risco», «no sentido de uma teoria social e de
um diagnóstico da cultura (...) designa um estado de modernidade no qual as ameaças pro-
duzidas até aqui, no âmbito da sociedade industrial, começam a predominar» (ibidem, 1994:
6). A este respeito, Beck refere o que ele próprio designa como «crise ecológica actual»,
definida como «a metamorfose de efeitos secundários invisíveis da produção industrial em
64 «A Diferença Somos Nós»

foci de crises ecológicas globais». Esta «crise ecológica» já não surge como um problema
do mundo que nos rodeia – o chamado «problema ambiental» – mas como «uma profunda
crise institucional da própria sociedade industrial» (ibidem, 1994: 8). Em resumo, a
«sociedade de risco» implica o «retorno da incerteza à sociedade» o que, por sua vez, como
sublinha Beck, significa:

Cada vez mais os conflitos sociais não são tratados como problemas de ordem (que
por definição são orientados para a clareza e para a capacidade de decisão) mas como pro-
blemas de risco. Estes problemas de risco são caracterizados por terem soluções ambí-
guas (...). Face a uma crescente falta de clareza (...) a crença na viabilidade técnica da
sociedade desaparece quase por necessidade. (ibidem, 1994: 8-9)

A perda de fé ou confiança na viabilidade técnica da sociedade moderna é também um


tema tratado no conhecido trabalho de A. Giddens As Consequências da Modernidade
(1992a). Aí Giddens afirma:

Risco e confiança entrelaçam-se, servindo a confiança, normalmente, para reduzir ou


minimizar os perigos a que determinados tipos de actividade estão sujeitos. Há algumas
circunstâncias nas quais estão institucionalizados padrões de risco, dentro de estruturas
circundantes de confiança (investimento em acções, desportos fisicamente perigosos).
(…) Aquilo que é visto como um «risco aceitável» – a minimização do perigo – varia em
contextos diferentes, mas é geralmente fundamental para a manutenção da confiança.
(Giddens, 1992a: 27)

Pode afirmar-se que, para nos protegermos da perda de confiança nos sistemas periciais
(isto é, sistemas de viabilidade técnica sofisticada), se exige o desenvolvimento daquilo que
Lash (ver acima) designa «identidade reflexiva» e «cidadania cultural» e, nas palavras de
Giddens, um «projecto para o self reflexivo». De facto, a sociedade de risco, para além dos
«riscos globalizados» que afectam todos os indivíduos e todas as sociedades, torna os indi-
víduos vulneráveis a uma forma de exclusão social que tem como veículo a invasão das
sociedades e dos «eus» por relações sociais globalizadas e baseadas na distribuição dife-
renciada do poder. Como acima se disse (ver nota 3 da Introdução), Santos (1995: 263)
referiu-se a estes últimos como uma regulação transnacional promovida por dois modos
de globalização: «os localismos globalizados» («o processo através do qual um determi-
nado fenómeno local é globalizado com sucesso») e os «globalismos localizados» (que
consistem «no impacto específico das práticas transnacionais e os seus imperativos em
condições locais»). Giddens capta bem os dois tipos de «riscos globalizados» no texto que
se segue:

Aquilo que designei por intensidade do risco é certamente o elemento básico na


«aparência ameaçadora» das circunstâncias em que hoje vivemos. A possibilidade de
guerra nuclear, de calamidade ecológica, de explosão populacional incontrolável, de
Cinco lugares do impacto de exclusão social 65

colapso da troca económica global e de outras potenciais catástrofes globais oferece um


horizonte de riscos assustador para todos. Como Beck comentou, os riscos globais deste
tipo não respeitam as divisões entre ricos e pobres, ou entre regiões do mundo. O facto
de «Chernobyl estar em toda a parte» implica o que ele designa por «o fim dos “outro”»
– as fronteiras entre os que são privilegiados e os que não o são. (…) Claro que isto não
nos deve impedir de ver o facto de que, nas condições da modernidade, tal como no
mundo pré-moderno, muitos riscos estão diferencialmente distribuídos entre os privile-
giados e os não privilegiados. (Giddens, 1992: 97)

Assim, a exclusão social na «sociedade de risco» apresenta diferentes dimensões e


manifesta-se em lugares diferentes. São estas duas questões que analisaremos de seguida.

A EXCLUSÃO SOCIAL COMO UM FENÓMENO MULTIDIMENSIONAL

A exclusão só pode ser pensada como um fenómeno multidimensional não apenas por
causa das múltiplas orientações teóricas que inspira, mas também pela forma «como des-
creve a natureza multifactual da privação social nas sociedades avançadas, assim como a
forma como os processos de negligência e marginalização crónicos (...) se tornaram sin-
tomas de injustiça social» (Bowring, 2000). Deste modo, a sua natureza multidimensional
refere-se tanto às múltiplas causas como às múltiplas consequências da exclusão social nas
sociedades da modernidade tardia.
Quando nos referimos à exclusão social como campo de debate e discussão surgem-nos
duas concepções. A primeira é de natureza mais histórica e relaciona-se com a literatura
identificada com a sociologia do desvio e com a sociologia dos indivíduos e grupos margi-
nalizados (incluindo clássicos da «Escola de Chicago» como Delinquent Boys de Cohen
[1955], Outsiders de Becker [1963] e Delinquency and Drift de Matza [1964]; também tra-
balhos de Goffman como Asylums [1961] e Stigma [1963]). No Reino Unido encontramos
obras como Deviance and Society de Taylor (1971) e The Drugtakers de Young (1972). A
segunda relaciona-se com a época actual e o que tem sido designado por «pós-fordismo»
(Harvey, 1999; Amin, 1994). Aqui, a exclusão social ganha um novo significado resultante
do desemprego a longo termo, desemprego de jovens, formas de emprego precário e daquilo
que Paugam designou como «desqualificação social» (1991). Para além disto, o que Castells
(1998) chama «informacionismo», no contexto da reestruturação capitalista, produziu
novas formas de desigualdade e diferenciação social que resultaram não só em exclusão
social nas sociedades ocidentais, mas também na exclusão social de países inteiros e partes
de continentes (a Africa subsariana, por exemplo). Castells define a exclusão social como:

(…) o processo pelo qual certos indivíduos e grupos são sistematicamente impedi-
dos de aceder a posições que lhes permitiriam uma forma de vida autónoma dentro das
normas sociais, enquadrados por instituições e valores, num determinado contexto. Em
circunstâncias normais, no capitalismo informacional esta posição é comummente
66 «A Diferença Somos Nós»

associada com a possibilidade de acesso a um trabalho pago regularmente para, pelo


menos, um membro num agregado familiar estável. A exclusão social é, de facto, o pro-
cesso que não permite a uma pessoa o trabalho no contexto do capitalismo. (Castells, 1998:
73) (itálico no original)

Nesta citação de Castells o que está em jogo é a distribuição diferencial de poder nos
«novos tempos» das relações sociais globalizadas.

A EXCLUSÃO SOCIAL E A INCLUSÃO SOCIAL COMO UM ÚNICO CONCEITO

Pode defender-se que falar de exclusão social é falar simultaneamente de inclusão


social. Num artigo recente, Popkewitz e Lindblad (2000) referem duas formas de questio-
nar a ligação entre «a governação da educação» e a inclusão e exclusão social. Estes con-
ceitos são enquadrados no âmbito «da problemática da equidade» e da «problemática do
conhecimento» e actuam como um mapa para compreender como é que as políticas são
postas em prática. O primeiro conceito coloca a mudança social na acção racional do actor
social. A inclusão social e a exclusão social são conceptualizadas como duas entidades dife-
rentes nas quais o objectivo é produzir inclusão social e eliminar a exclusão social «de
determinados grupos de actores sociais, tais como aqueles definidos por classe, sexo, raça
ou etnia» (ibidem: 6). O estado como poder soberano é responsável por elaborar e admi-
nistrar a política.
De forma muito diferente, a problemática do conhecimento, fortemente influenciada
pelos trabalhos de Michel Foucault, coloca a ênfase nos sistemas racionais que estão incor-
porados na política e nas reformas. A inclusão social e a exclusão social são concebidas
como um único conceito, inseparáveis um do outro: «a exclusão (...) é permanentemente
comparada com um cenário de algo que está incluído» (ibidem). O objectivo é o de estu-
dar «as distinções, diferenciações e divisões que disciplinam e produzem os princípios que
qualificam e desqualificam indivíduos (e grupos) para a acção e participação» (ibidem).
Aqui, o que está em jogo é a fabricação de identidades e a forma como os sistemas racio-
nais produzem subjectividades. O estado é concebido como conjuntos de relações, ao invés
de uma entidade soberana que produz estratégias disciplinadoras de forma a promover o
cidadão auto-responsável e automotivado.
O conceito de exclusão social integra a dureza e o drama das formas estruturais de des-
qualificação societal, como se constata tanto no que diz respeito ao fordismo e à margina-
lização social de certos grupos, como no pós-fordismo, na medida em que gera formas
novas de desigualdade e diferenciação. Contudo, existe, como Bowring (2000: 319) afirma,
um problema com a interpretação dominante da exclusão social como um normalizador
do que ele designa pobreza e desigualdade «vulgares». Citando Levitas, Bowring concorda
que esta interpretação «retira importância» ao carácter essencialmente classista e permite
«uma visão da sociedade como basicamente benigna para coexistir com a realidade visível
Cinco lugares do impacto de exclusão social 67

da pobreza» (Levitas, 1998: 188, citado em Bowring, ibidem). Contudo, Paugam (s/d) res-
ponde a esta posição argumentando que embora a pobreza em França não tenha aumen-
tado nos últimos 10 anos, a exclusão social aumentou, o que significa que a desqualificação
social resultante do emprego precário é agora prevalecente na sociedade francesa. Em jogo
neste debate estão, em larga medida, o peso atribuído, por um lado, às políticas de redis-
tribuição e, por outro, às políticas relacionadas com o reconhecimento da diferença.
A referência a esta distinção é feita em vários dos Lugares discutidos adiante. O debate
também precisa de ser contextualizado, pois varia de conforme os espaços territoriais. Nos
Estados Unidos, por exemplo, o filósofo americano R. Rorty foi ao ponto de acusar a
esquerda de ter deixado de ser esquerda porque «permitiu que as políticas culturais
suplantassem as políticas reais e colaborou com a direita para colocar os assuntos cultu-
rais no centro do debate público» (1988: 50). No contexto muito diferente que é o da União
Europeia, pode-se, contudo, argumentar que se tem passado o oposto, pois só muito
recentemente a «diferença» começou a ocupar um lugar central, tanto como uma exigên-
cia de identidade, como enquanto uma exigência de cidadania. Na verdade, só recente-
mente a construção europeia começou a encarar seriamente o desafio da cidadania euro-
peia (que primeiramente surgiu no Tratado de Maastricht de 1992) e a até agora altamente
enigmática «dimensão europeia da educação» (Stoer e Cortesão, 2000).

CINCO LUGARES DO IMPACTO DA INCLUSÃO/ EXCLUSÃO SOCIAL

Neste capítulo do livro, seleccionamos cinco lugares do impacto da exclusão social (o


corpo, o trabalho, a cidadania, a identidade e o território) precisamente para poder explo-
rar as dimensões múltiplas do fenómeno de exclusão social. Estes Lugares podem ser
caracterizados como províncias de um mapa que se sobrepõem, cada Lugar ligado pelos
contextos nos quais são activados (família, escola, hospital, prisão, tribunal, bairro, etc.) e
pelos níveis aos quais funcionam (local, regional, nacional e supranacional). Cada Lugar
junta e activa o que Santos (1995) denomina «espaços estruturais» (espaço do trabalho,
espaço da cidadania, espaço doméstico, espaço do mercado, espaço da comunidade, espaço
do mundial), que, por sua vez, são atravessados por variáveis sociológicas tais como classe
social, género, etnicidade e idade. Neste sentido, explorar estes Lugares nas suas diferen-
tes dimensões é, com certeza, mapear a exclusão/ inclusão social.
O processo de mapeamento dos cinco Lugares realiza-se através da consolidação da
exclusão/ inclusão social face a cada lugar com base em três paradigmas socioculturais:
«pré-modernidade» (as chamadas sociedades tradicionais); «modernidade» (as sociedades
modernas); e «pós-modernidade» (o paradigma emergente da pós-modernidade/ pós-for-
dismo). Em cada caso, o que está em causa é a relação entre estrutura e agência e o modo
como as tensões presentes nessa relação são traduzidas nos cinco lugares. Pensamos que
mapear a exclusão/ inclusão social desta maneira é também reflectir sobre a natureza da
mudança social e sobre o modo como os actores sociais se posicionam face a ela.
68 «A Diferença Somos Nós»

O LUGAR DO CORPO

«(...)

Dão-nos um cravo preso à cabeça


E uma cabeça presa à cintura
Para que o corpo não pareça
A forma da alma que o procura

Dão-nos um esquife feito de ferro


Com embutidos de diamante
Para organizar já o enterro
Do nosso corpo mais adiante
(...)»

(Natália Correia, Queixa das Almas Jovens Censuradas)

«O Século do Corpo»

Nas sociedades ocidentais, o século XX foi apelidado «o século do corpo» (cf. Ribeiro,
2003). Na história conhecida da humanidade, sempre houve diferentes valores, práticas,
ciências e técnicas corporais que se desenvolveram nas várias civilizações e que, apesar de
espelharem valores sociais, estabeleceram um diversificado diálogo com as condições do
envolvimento. Mas se sempre existiu este acervo de culturas do corpo, por que é que,
então, o século XX é chamado «o século do corpo»?
Antes de mais, cabe dizer que o século XX não foi só apelidado o século do corpo, nele
tendo desabrochado e fortalecido outras realidades, fazendo com que viesse a ser chamado,
também, por exemplo, «o século da mulher» ou «o século da criança».
A expressão «século do corpo» pode ser vista em duas dimensões: pela importância que
o corpo assume enquanto objecto de estudo, e pela assunção da consciência da importância
dos valores e práticas corporais. O corpo revelou-se um objecto de estudo surpreendentemente
rico tanto ao nível disciplinar como ao nível multidisciplinar e transdisciplinar. Inicialmente
objecto exclusivo da Medicina o corpo foi, ao longo do século XX, estudado pela Antropolo-
gia, pela Filosofia, pela Sociologia, pela Educação e por muitas outras áreas científicas.
Os valores e práticas do corpo viveram também no século XX, sobretudo na Europa e
nos Estados Unidos, uma intensa proliferação que se verificou sobretudo ao nível da «inte-
gração» de práticas e valores oriundos de outras culturas (por exemplo o Kung-Fu, o Judo,
a Capoeira, o Karaté mas também a Acupunctura, o Shiatsu, o Ioga...) e na criação de sis-
temas novos tais como a Educação Física, o Desporto e toda uma multiplicidade de novas
«culturas corporais» ou de novos entendimentos sobre culturas antigas como a massa-
gem, o exercício, a ginástica, a aeróbica, etc.
Cinco lugares do impacto de exclusão social 69

O século do corpo deu, pois, a este um valor de estudo «em si» – mesmo com a cons-
ciência da sua realidade multidisciplinar – valor que hoje se ampliou muito para além da
sua dimensão puramente funcional. Esse estudo dos significados e das influências do
corpo tem vindo a ser designado por «corporeidade». Tomamos, assim, consciência da
dimensão do estudo do corpo, um corpo que é simultaneamente complexo, fonte inesgo-
tável de sofisticados mistérios, visto como a «suprema máquina» que engloba e resume
todas as outras, mas, também, limitado e tornado insuficiente para fazer frente às exigên-
cias que o quotidiano das sociedades industrializadas lhe exige. É este, sem dúvida, um dos
paradoxos do corpo – por um lado, a sua complexidade e dimensão ontológica, por outro,
os seus limites e insuficiências. Podemos, nesta matéria, entender o desenvolvimento de
toda a tecnologia como uma superação do corpo e, consequentemente, um reconheci-
mento da sua insuficiência em resistência, força, capacidade de armazenar informação,
etc. A tecnologia cria, assim, verdadeiras «próteses corporais», que expandem as funções
de um corpo encarado como insuficiente e incapaz de desempenhar as funções para que
as novas exigências sociais o desafiam.
Visto com esta latitude, seria impossível que o corpo se mantivesse à margem dos pro-
cessos de inclusão/ exclusão que tão fortemente se têm feito sentir nas sociedades euro-
peias (por exemplo: será que todos têm necessidade de próteses corporais? E será que todos
têm direito a elas?). Pelo corpo passaram, e passam, as marcas que determinaram a cate-
gorização e a valorização desigual das pessoas. No corpo não só seguiram e se reproduzi-
ram os caminhos da exclusão, mas também foram criadas formas particulares, por vezes
discretas e capciosas, de exclusão. Há, assim, tipos de exclusão que encontram a sua razão
principal no corpo. Por exemplo (e isto será explorado em mais pormenor adiante), a pre-
sença corporal de um filho de um trabalhador rural aparecerá na escola como «fora de
lugar» no que diz respeito às normas que se relacionam com a postura do corpo, os gestos,
as atitudes do corpo, etc.
No ponto que segue, vamos levantar algumas das questões que nos parecem propor-
cionar um contributo mais estimulante para entender as formas como, através das cultu-
ras e práticas corporais, se manifesta a inclusão ou exclusão (na verdade, a exclusão e a
inclusão são como a parte de dentro e de fora de uma mesma linha que forma a espiral da
identidade). Estas formas são extremamente diversas e a sua análise revela-se complexa.
Talvez porque, citando o filósofo fenomenologista François Chipraz: «O espírito não está
atrás do corpo, ele habita-o; o corpo não serve o espírito: exprime-o, insere-o no mundo e
fá-lo comunicar com este» (1969: 33). Haverá maior complexidade para estudar?

Duas concepções do corpo na teoria social

Está fora do âmbito deste texto traçar, mesmo em linhas gerais, uma história do corpo.
Este campo, aliciante e complexo, pode ser estudado em múltiplas obras que descrevem e
que interpretam os entendimentos, significações, controlos e regulações impostos ao corpo
70 «A Diferença Somos Nós»

nas diferentes civilizações e culturas. Uma destas contribuições que se assume como incon-
tornável é a de Michel Foucault, em particular nos seus ensaios História da loucura, O
nascimento da clínica, e Vigiar e punir. Foucault apresenta uma concepção sócio-histó-
rica do corpo em que este se apresenta «totalmente influenciado pela história» e determi-
nado pelos valores sociais e modo de organização económica de cada sociedade. Em parti-
cular, no ensaio Vigiar e punir este autor apresenta em detalhe a emergência histórica de
práticas sociais complexas que influenciam a conduta humana, moldando-a e forçando o
portador dessas condutas a assumir responsabilidade por elas. Na perspectiva de David
Levin (1989: 123), Foucault vê o corpo como um receptáculo passivo de forças históricas
e políticas quando afirma, por exemplo, que «o corpo é moldado por um grande número
de regimes distintos».
A perspectiva de Foucault é muitas vezes colocada em confronto com a posição de
Maurice Merleau-Ponty. Analisando estas duas perspectivas, Crossley (1996) afirma que se
está a gerar uma divisão nas teorias sociais sobre o corpo alicerçadas nestes dois autores.
Por um lado, um corpo historicamente «inscrito» a partir do exterior, que consubstancia-
ria a posição de Foucault; por outro, uma concepção de corpo veiculada por Merleau-
-Ponty, em que o corpo é apresentado como tendo uma certa autonomia, como corpo
«vivido» e activo. Na verdade, para Merleau-Ponty, o corpo está em permanente e activa
relação com o seu envolvimento e cria um «espaço funcional» à sua volta. O corpo é visto
como uma entidade activa que usa os esquemas e hábitos que adquiriu para lidar e nego-
ciar com o mundo que habita, constituindo uma unidade de sentido indissociável que se
designou por fenomenológica. Um bom exemplo das diferenças de perspectiva das con-
cepções destes dois autores poderia ser encontrado na forma como é pensado o espaço.
Para Merleau-Ponty, o espaço é uma construção que o indivíduo faz a partir da sua expe-
riência e da acção no seu envolvimento, isto é, o corpo constrói o espaço à sua volta; para
Foucault, diferentemente, o corpo é posicionado no espaço e não torna o espaço funcio-
nal, pelo contrário, a função do corpo depende e é condicionada pelas propriedades do
espaço em que está («enformado», por exemplo, pelas regras e valores que são dominan-
tes nas prisões, escolas, fábricas, etc.).
Talvez, como nos alerta Crossley (1996), não exista uma verdadeira oposição entre estes
dois autores ou, dito de outra forma, entre uma perspectiva mais fenomenológica ou mais
centrada no que se designa construcionismo social. Por um lado, Foucault alerta-nos
para a significação social das culturas corporais e para uma causalidade que, sem o enten-
dimento mais profundo dos valores das sociedades em que elas se verificam, nos escapa-
riam. Por outro lado, Merleau-Ponty, sem rejeitar a grande influência que os valores
sociais exercem sobre as culturas do corpo (e dá como exemplo a aquisição dos hábitos
motores e da sua determinação social), outorga ao corpo uma propriedade que poderíamos
comparar ao conceito de «autonomia relativa» de Gramsci. Na verdade, o corpo «escapa»,
muitas vezes, a estritas determinações sociais e apresenta manifestações autonómicas.
Radley (1995) dá como exemplo desta autonomia do corpo o jogo infantil, que considera
como irredutível a relações de poder e controlo. O jogo testa as possibilidades do jogador,
Cinco lugares do impacto de exclusão social 71

fazendo-o ir mais além, levando-o a assumir riscos tornando o seu corpo um desafio não
redutível à obediência a normas sociais e em frequente divergência com códigos morais
estruturados.
Outros exemplos dessa «autonomia» do corpo poderiam ser usados. As manifestações
populares, como o Carnaval, as manifestações religiosas, a dança, etc., desenvolvem-se
muitas vezes nas margens da sociedade, no «claro-escuro» do que é permitido ou proibido
e por isso nos mostram exemplos de como o corpo se pode assumir como portador de códi-
gos próprios que lhe dão um carácter de «fora do poder» e mesmo de «contrapoder». São
práticas em que o corpo desafia, pela sua negligência, caricatura, distorção, manifestação
de sexualidade, criação de novos significados, etc., uma não aceitação, uma não confor-
mação com os valores que dele seriam esperados. O corpo é, assim, não só a sede da expe-
riência no mundo, mas muitas vezes o lugar da resistência a uma ordem social que a pes-
soa ou os grupos não querem aceitar. O que distingue a actual centralidade do corpo como
«resistência» identitária, do corpo transgressor de Sade, é, por assim dizer, a sua descri-
minalização, isto é, o corpo já não é locus do pecado a perseguir, nem a simples emanação
de um determinismo social, mas sim o locus do desejo pluralizado e mesmo uma mani-
festação de autonomia, de que falaremos mais adiante.

Corpo e comunicação

Algumas considerações de ordem da psicologia do desenvolvimento podem contribuir


para entendermos melhor o papel do corpo nos processos de inclusão/ exclusão. A impor-
tância do corpo e a sua «autonomia relativa» verifica-se e aprofunda-se ao longo do per-
curso de desenvolvimento da pessoa. Logo a partir das primeiras idades, encontramos no
corpo características de comunicação e de relação que o tornam diferente das formas
usualmente consideradas de comunicação.
Em primeiro lugar, a característica de precedência da comunicação corporal. O corpo
nos seus movimentos, imobilidade, simetria, assimetria, silêncios, expressões, sinais varia-
dos, etc. é a primeira forma de comunicação da criança com o seu envolvimento. Essa
comunicação é anterior em relação a outras formas de comunicação como a linguagem.
Muito antes de a criança falar já o seu corpo «fala». Essa precedência dá ao corpo uma
importância fundamental na sobrevivência e permite o estabelecimento de esquemas pre-
coces de comunicação entre a criança e o envolvimento. É ainda essa característica que
inspira muitos métodos de reeducação da linguagem escrita a regredir a estádios de acção
ou comunicação não-verbal procurando «intervir na fonte» ou, por outras palavras, pro-
curando melhorar a vivência das primeiras formas de comunicação (não-verbal) de molde
a influenciar a qualidade das formas subsequentes (verbal e escrita). Cabe aqui lembrar o
que diz Marcel Mauss no seu ensaio Body Techniques (1979) quando fala do corpo como o
primeiro e mais natural instrumento. Ou, mais precisamente, para não falar de instrumen-
tos, o seu primeiro e mais natural objecto técnico, sendo que técnico quer dizer o seu corpo.
72 «A Diferença Somos Nós»

Um segundo aspecto a realçar é a permanência da comunicação corporal na comuni-


cação humana. Mesmo em face da utilização predominante da comunicação verbal, esta
apoia-se sempre na comunicação corporal. A linguagem verbal pode ser intermitente, mas
o corpo está sempre a emitir sinais que comunicam o seu interesse, desinteresse, cansaço,
atenção, empatia, etc. Essa comunicação corporal apresenta, ainda, uma característica
importante: em caso de incoerência entre a mensagem verbal e a comunicação não-verbal, a
mensagem não-verbal irá prevalecer (Miller, 1985). Assim, em caso de conflito entre as duas
(por exemplo, um orador profere um discurso em que pretende incutir confiança aos
ouvintes, mas a sua expressão corporal não é coerente com esse objectivo), os destinatários
da comunicação tendem a dar mais importância à comunicação corporal do que à verbal.
Outro aspecto que convém referir quanto à permanência é o que se refere à função da lin-
guagem corporal como suporte da comunicação total. Vários autores (cf.: Banbury e Hebert,
1992) têm realçado, por exemplo, o papel que a linguagem corporal tem na memorização da
comunicação verbal. Na verdade, é mais difícil reter a informação transmitida sem suporte
de comunicação corporal do que com ela. O corpo é, assim, importante não só para trans-
mitir um significado, mas também para a configuração de um determinado significado.
Um terceiro aspecto distintivo da comunicação corporal é a visibilidade. A comunica-
ção corporal tem um carácter de imediatismo. O corpo não só está sempre a comunicar,
mas a sua comunicação é de imediato emitida para os interlocutores. Também aqui a
comunicação corporal se revela uma fonte fundamental da comunicação, dado que
endossa permanentemente mensagens de que a pessoa pode ou não estar consciente e que
podem ser critério de maior ou menor sucesso da comunicação. A visibilidade da comuni-
cação corporal assume-se como um «cartão de visita», um conjunto de dados que permitem
ao interlocutor fazer um juízo de valor que obviamente nem sempre é coincidente nem
coerente com os valores que a pessoa pretende transmitir. Um exemplo entre muitos pode-
ria ser o de uma pessoa que, procurando fazer-se passar por membro de uma classe social
diferente, «treina» a sua linguagem, mas é «atraiçoado» pelo seu corpo, isto é, por deta-
lhes do vestuário, pela sua postura ou pelos seus gestos.
Finalmente a expressividade. A comunicação corporal pode ter um curso, uma fluên-
cia e uma finalidade próprias; não é um mero suporte da comunicação verbal. O corpo é
comunicação para além da linguagem verbal. É conhecida a frase da bailarina Isadora
Duncan que dizia: «Se pudesse dizer o que sinto não precisava de dançar». Determinados
gestos podem ser quase intraduzíveis por palavras ou, então, prestar-se a uma multiplici-
dade de interpretações. A comunicação não-verbal tem uma semiótica própria que não é
um mero reforço da linguagem verbal. Pode funcionar como alternativa, como um modo
de expressão diferente, como a transmissão de significados diferentes. É nessa potenciali-
dade alternativa da comunicação não-verbal que se fundamentam as terapias expressivas,
como a Musicoterapia, a Dançoterapia, a Dramoterapia ou a Arteterapia.
Vimos que o corpo está sempre a comunicar e que a sua comunicação é visível. Comu-
nica antes de existir linguagem falada e é capaz de comunicar conteúdos que não podem
ser transmitidos de outra maneira. Mas de que forma comunica o corpo? A investigação
Cinco lugares do impacto de exclusão social 73

sobre a comunicação não-verbal é um campo que carece ainda de muita investigação.


Radley (op. cit.) sustenta que «a experiência corporal das pessoas é reconhecida como
tendo uma importância central mas também muito significativa na forma como desafia a
nossa maneira de a estudar e conhecer».
O corpo comunica, antes de mais, pela proxémia, isto é, pelo estabelecimento e gestão
da distância interpessoal durante a comunicação. A proxémia depende de aspectos inter-
culturais e intraculturais. Existem, assim, culturas em que o espaço de comunicação entre
dois interlocutores é menor do que em outras. Por exemplo, o que se considera uma dis-
tância interpessoal adequada numa cultura norte-europeia pode ser entendido com dis-
tante e afectado numa cultura do Sul da Europa, enquanto uma distância adequada no Sul
pode ser entendida como intrusiva e demasiado íntima por habitantes do Norte. Dentro de
cada cultura podemos também ser confrontados com características proxémicas entre
homens e mulheres, entre adultos e crianças, entre empresários e trabalhadores, entre
professores e alunos (Banbury e Hebert, op. cit.).
Outros factores da comunicação não-verbal são determinantes: a expressão facial – que
veicula uma grande parte da comunicação verbal, a expressão corporal – que inclui a
orientação, isto é, o ângulo em que as pessoas se sentam ou falam em relação ao interlo-
cutor (Argyle, 1972), bem como as atitudes corporais, que podem significar, por exemplo,
maior ou menor aceitação do discurso – ou a cinesia constituída pelos movimentos e os
gestos que podem, por exemplo, ser entendidos como mais ou menos agressivos.
Há ainda a realçar as designadas «componentes não-verbais da linguagem» (CNVL).
Essas CNVL referem-se a todo o conjunto de informação veiculado pela comunicação
verbal para além do significado estrito das palavras. A entoação, a prosódia, a ênfase, o
ritmo, as marcas de pronúncias regionais são factores que influenciam igualmente a
recepção do discurso. Como exemplo, poderíamos citar a estranheza que constitui ouvir
uma personalidade com notoriedade pública falar com um acento fortemente «regional»
ou com uma prosódia ou ritmo de fala de tipo «popular».

As imagens corporais

Cada pessoa tem um conceito e uma percepção do seu corpo. Durante muitos anos,
usou-se para designar esse conceito e percepção o termo «imagem corporal», que procu-
rava fazer uma distinção entre uma noção mais cognitiva sobre o corpo designada por
esquema corporal e o nível de satisfação no âmbito afectivo e emocional com o seu corpo:
a imagem corporal. Mais recentemente, tem vindo a ser usado o termo «imagens corpo-
rais», designação que procura precisar que não existe uma imagem corporal única e cons-
tante em todos os momentos e envolvimentos, mas que, dependendo de vários factores,
poderemos constatar a existência de várias imagens. Assim, a noção e o sentimento que
temos sobre a aparência e a competência do nosso corpo pode ser completamente distinta
em contextos diferentes (cf.: Clash e Puzinsky, 1990).
74 «A Diferença Somos Nós»

As imagens corporais são, no entanto, experiências subjectivas, não havendo coinci-


dência entre a opinião que a pessoa faz de si e a que é veiculada por outras pessoas. Outro
aspecto interessante é a possibilidade de alteração da imagem corporal tanto por iniciativa
do próprio, como por factores exteriores. Neste aspecto, as imagens corporais podem ser
alteradas por acções rápidas (ex.: cirurgia estética, alterações de peso, traumatismos,
tatuagens, etc.) ou por acções lentas, como, por exemplo, o envelhecimento ou a deficiên-
cia adquirida. Existe, em termos psicológicos, uma forte ligação entre as imagens corpo-
rais e a forma como a pessoa se avalia e percepciona em geral. Essa constatação não é
obviamente formulada em termos absolutos: pessoas que negligenciam a sua imagem cor-
poral e têm mesmo uma ideia desfavorável sobre ela podem sentir-se competentes e segu-
ros no seu desempenho social, mas encontra-se frequentemente uma ligação próxima
entre as imagens corporais e o sentimento geral de competência.
As imagens corporais que as pessoas fazem de si próprias têm, enfim, uma forte deter-
minação social. Estas mudanças procuram criar uma convergência ou divergência com
padrões de beleza socialmente aceites e em constante mutação (Fallon, 1990). Neste
aspecto, é interessante, por exemplo, consultar o gráfico do peso médio das candidatas ao
concurso de «Miss América» de 1958 a 1978 e verificar como o peso foi sucessivamente
diminuindo de molde a que as candidatas se adaptassem a um padrão social de beleza que
elegia a magreza como um sinónimo de distinção e elegância (Garfinkel e Garner, 1982).

O corpo como lugar dos processos de exclusão/ inclusão social

O corpo é um lugar de exclusão e de inclusão social. A comunicação que veicula apro-


xima ou afasta as pessoas de determinadas realidades sociais. Existem diferentes factores
de inclusão/ exclusão social do corpo. Uns podem ser, em grande parte, desencadeados e
controlados pela pessoa, tais como o uso do vestuário, o cuidado do corpo, a impressão de
identidades corporais como os piercings e as tatuagens. Outros dizem respeito a condições
dificilmente alteráveis, tais como a deficiência e a idade. Em ambos os factores, o corpo
pode ser visto como um sinal de pertença e de identidade assumido na aceitação, e conse-
quente recusa, de certos valores sociais. São múltiplos os factores corporais que podem
conduzir a esta pertença ou identidade. Os factores corporais, como a moda e as identidades
corporais impressas, proporcionam uma diferenciação e um corte com os valores estéticos
do seu meio e a identificação com realidades e projectos diferentes. Vamos analisar quatro
destes factores: moda/ vestuário, identidades corporais impressas, a deficiência, a idade.

Moda/ vestuário

Pela sua natureza a moda é instável, efémera e superficial: sendo exactamente estas
as características das relações nas democracias políticas contemporâneas. Tal não surge
como motivo para grande preocupação, na opinião de [Gilles] Lipovetsky. Quanto menor
Cinco lugares do impacto de exclusão social 75

for o cuidado ou os sentimentos que dedicarmos uns aos outros, melhor nos relaciona-
remos. Uma estrutura social impessoal é um dispositivo ideal para a tolerância mútua e
para a redução do conflito. Um brilhantemente original argumento torna-se deslum-
brante quando os princípios da moda – obsolescência, sedução, diversificação – são alar-
gados para analisar a sociedade de consumo onde a inovação é central, e a identidade
dilacerada em fragmentos. Longe de nos homogeneizar, como muitos autores inicial-
mente profetizaram, a cultura de massas acelerou o processo de individualização. E isso
pode ter aumentado a capacidade para a integração social.
New Statesman & Society (http://pup.princeton.edu/quotes/q5535.html)

A moda é um conjunto de regras temporárias sobre cores, formas, tipos de vestuário


que tendem a criar um determinado tipo de identificação e de «pertença». Nas sociedades
de economia de mercado, os ditames da moda são provenientes de grandes interesses
comerciais que, de ano para ano, vão introduzindo inovações cujo interesse imediato é
«datar» (leia-se desactualizar) o vestuário dos anos anteriores e, dessa forma, criar novas
necessidades de consumo. Outras sociedades usaram a «moda» com outros objectivos, já
não de lucro, mas como formas de normalização e de identificação com um líder ou com
uma ideologia (lembre-se, a propósito, o omnipresente vestuário azul durante o regime de
Mao Zedong, na China, ou os penteados «Eva Perón»).
Uma assunção na base do consumo das regras da moda (a sua actualidade, o uso de
roupa com a assinatura de marcas dispendiosas, etc.) constitui um sinal no sentido de a
pessoa procurar identificar-se com camadas mais prósperas ou com um status cultural
mais elevado do que o que ela tem actualmente. Da mesma forma, o uso de roupa desac-
tualizada ou de proveniência fora de casas comerciais caras transmite igualmente uma
mensagem que pode oscilar entre menor status económico ou simplesmente uma recusa
de participar no jogo comercial das «marcas». Esse culto da «marca» não tem a ver (só?)
com a qualidade da roupa, mas com o status que a ostentação da etiqueta implica. A esse
respeito, devemos notar que as etiquetas das marcas de roupas são cada vez mais visíveis
no vestuário, quer pelo tamanho, quer pelo lugar em que são colocadas (cabe lembrar a his-
tória verídica de um adolescente que queria comprar umas calças de certa marca prestigiada.
Encontrou-as num saldo. Como a etiqueta das calças era retirada por as calças estarem em
saldo, o comprador desistiu da aquisição). Pode ainda tornar-se uma espécie de tecnologia
de fabricação da identidade, quer dizer, aquilo que se veste, que se mostra ou que se con-
some pode constituir formas de auto e de heteroidentificação. Esse tipo de relação com a
moda é muito visível nas culturas juvenis, mas não só. O vestuário proporciona identidades
que se delimitam em face de outras identidades. Um jovem que se veste no estilo rastafári,
um funcionário público que se veste de motard (motociclista), uma pessoa que se veste com
um traje tradicional do seu país procuram simultaneamente recusar uma homogeneização
mainstream e identificar-se com outros valores e, eventualmente, com outras pessoas.
Ainda sobre a moda, é interessante verificar que, nesse afã de criar essa diferença de
vestuário, os conceitos estéticos e de qualidade sofreram grandes alterações: por exem-
plo, vende-se roupa propositadamente envelhecida e rasgada que procura acentuar o carác-
76 «A Diferença Somos Nós»

ter de naturalidade, de familiaridade e de um falso não investimento no vestuário, com


estéticas «retro» ou «kitch» que proclamam a diferença e a originalidade, ou ainda com
uma estudada negligência que procura convencer os demais das qualidades do corpo,
mesmo em face das condições adversas oriundas de um vestuário supostamente pouco cui-
dado.
O vestuário e a manipulação do corpo são, pois, um factor de inclusão/ exclusão social
e o seu uso é um indicador de uma identidade social mais ou menos procurada, mas sempre
presente na interacção da pessoa com o seu meio.

Identidades corporais impressas

Outro factor de inclusão/ exclusão social são as Identidades Corporais Impressas (ICI).
Designamos por ICI as modificações relativamente estáveis que se operam no corpo sem
significado funcional óbvio. Existem múltiplos exemplos: a cirurgia plástica com intuitos
puramente estéticos (e não de remediação) (as lipoaspirações, os implantes de silicone nos
lábios ou nos seios, etc.), os piercings, as tatuagens, etc.

Eu sou mãe de dois filhos, divorciada de 27 anos e tenho andado a pensar em colo-
car um piercing na língua desde que a minha grande amiga Lori colocou um em 1997.
[...] Acabei por colocá-lo. Depois tive que tornar a aprender a falar outra vez. Deram-me
uma solução oral chamada Tech 2000 para usar. Algumas pessoas sobre quem li usam sal
marinho e água. Até agora não tive problemas e parece que a ferida está a cicatrizar rapi-
damente. Mostrei o meu piercing à minha melhor amiga, que pensa que eu estou com-
pletamente doida, mas ficou bastante intrigada. A minha filha de 7 anos pensa que é
«muit’a fixe!». Ela reagiu exactamente assim: «Meu Deus!! Fixe Mãe!! Meteste um pier-
cing na língua!». O meu filho de 3 anos quer saber como é que a coisa foi lá parar. E eu?
Eu adoro! Acabei por o colocar em dois dias. O incómodo foi mínimo. Ouvi dizer que
todos têm experiências diferentes no processo de cicatrização. Eu não tive problemas.
Quase não se sente dor, o pior foi quando hoje comi comida sólida e mordi o piercing.
Aiii! Forçou um bocado, mas vi depois que não tinha sangrado nem nada. Já tive a expe-
riência daquele esgar embaraçoso que, pelos vistos, faço enquanto durmo. Mas se tudo
correr bem vou acabar por rapidamente corrigir isso. Penso que só preciso de me habi-
tuar a tê-lo. Lavar os dentes e a boca não oferece qualquer problema. Contudo, quando
tenho que dizer um preço, tenho de facto algumas dificuldades a dizer «Three» ou «Six»
(«Six» soa como se eu dissesse SEXO. Os homens ficam sempre surpreendidos com isso).
A maior parte das pessoas com quem trabalho acham graça à ideia de eu ter um piercing.
O meu patrão acha giro. (GRAÇAS A DEUS). Se está a pensar em colocar um piercing,
deve fazê-lo. Eu gosto da ideia de me saber diferente dos outros, porque tenho os meus
dois piercings e tatuagens, e que posso expressar a minha individualidade através de
jogos de arte/ corpo.
(http://www.bmezine.com/pierce/02tongue/A30104/tngohmyg.html)
Cinco lugares do impacto de exclusão social 77

A cirurgia estética procura proporcionar à pessoa uma aproximação a padrões estéticos


generalizados, mas com que a pessoa, por razões congénitas ou adquiridas, não se encon-
tra satisfeita. Uma cirurgia que elimine o nariz adunco, que aumente e molde os seios, que
elimine as rugas, uma lipoaspiração para diminuir o diâmetro abdominal, não tendo um
carácter funcional evidente, imprimem na pessoa uma nova identidade corporal que pro-
cura um melhor desempenho e «imagem» no seu meio social.
De dimensão diferente parecem ser outras formas de ICI, como os piercings ou as
tatuagens. Os piercings têm múltiplas formas que talvez se possam organizar em termos
de maior ou menor visibilidade. Os piercings que se praticam em lugares mais visíveis do
corpo (por exemplo, orelhas, sobrancelhas, nariz, queixo, umbigo, etc.) parecem apontar
para a criação de uma identidade restrita pessoal e cultural. A visibilidade desses sinais
funciona como uma marca distintiva e como um aviso de uma filiação cultural, de um
modo de vida diferente. Existem também piercings que se praticam em lugares menos
expostos do corpo (ex.: língua, órgãos genitais, etc.). Estes piercings, para além de meios
de construção de uma identidade diferenciada, têm frequentemente um carácter de osten-
tar resistência à dor e a consequente certificação aos demais de coragem e superação.
Encontramos frequentemente igual motivação de superação da dor em pessoas que reali-
zaram tatuagens permanentes.
As identidades procuradas encontram um nível de explicação antropológico, na medida
em que as tatuagens e os piercings representavam, em muitas sociedades não-industriais,
um critério de diferenciação social, de beleza e de comprovação de resistência ao sofri-
mento (Titiev, 1963). Ainda nesse âmbito antropológico, as funções dos piercings e das
tatuagens podem também assumir um papel social activo, na medida em que, ao mesmo
tempo que criam uma identidade, procuram inibir eventuais agressores intimidando-os
com a ostentação de marcas de «coragem» e estoicismo. Como exemplos desse papel social
das ICI, poderíamos citar a mutilação de dedos como ritual de iniciação em gangs no Japão
e as incisões cutâneas ostentadas por grupos de jovens em guetos nos Estados Unidos. No
entanto, Identidades Corporais Impressas podem também implicar uma gestão do corpo
mais reflexiva, no sentido de que a intervenção sobre ele não é determinada por um desejo
racional (ou não-racional) de o moldar com o objectivo de o alinhar com um propósito
exterior ao corpo, mas, antes, como veremos mais abaixo, pelo desejo do próprio corpo de
activar significados.

A deficiência

Direitos Constitucionais das Pessoas Portadoras de Deficiência


I. O Direito a Protecção Igual Perante a Lei
II. O Direito de ser Reconhecido como Pessoa de Valor
III. O Direito de Deter Propriedade Pessoal
IV. O Direito de Escolher Alojamento
V. O Direito de Escolher Companheiros
78 «A Diferença Somos Nós»

VI. O Direito a Serviços de Assistência de Qualidade


VII. O Direito de Escolher a Intervenção Médica
VIII. O Direito a Escolher Intervenção Médica Selectiva e Limitada e de Especificar o
Método de Cuidado Paliativo
IX. O Direito de Designar Pessoas para fazer Escolha Médica
X. O Direito de Continuar a Viver como a Natureza Determina
Preparado como Guia para Cidadãos com Incapacidades Mentais ou Sensoriais
(http://www.geocities.com/Athens/Styx/6756/)

«O meu corpo», como diria François Chipraz (op. cit.), «sou eu no mundo». Esta pers-
pectiva de totalidade e permanência é particularmente útil para analisarmos a «exclusão/
inclusão» social de uma pessoa com uma condição de deficiência.
As marcas da deficiência encontram-se presentes no corpo. É o corpo que, pela sua imo-
bilidade, tipo de mobilidade, assimetria, rigidez, tremor, controlo, descontrolo, integridade,
amputação, forma, expressão não-verbal, etc. anuncia o que podíamos designar como uma
deficiência. A definição de deficiência disponível (Who, 2001) menciona explicitamente que
esta é uma alteração nas funções e estruturas do corpo, ainda que encarada na relação que
essas funções ou estruturas do corpo estabelecem com as actividades e com a participação
social. Essa visibilidade da deficiência proporciona um imediatismo de identificação que con-
trasta com a «invisibilidade social» que as pessoas com condições de deficiência têm tido.
O corpo é, assim, um lugar primordial da deficiência, e é nele que se alicerça a avalia-
ção que conduz à exclusão. A exclusão de pessoas com condições de deficiência radica em
três razões principais. Em primeiro lugar, por se considerar que a deficiência é uma con-
dição imutável e uma «tragédia pessoal» que não é possível melhorar. A visibilidade da defi-
ciência origina também uma ingenuidade de análise que leva as pessoas a crer que, pelo
facto de a deficiência não se poder «curar», ela resulta numa condição inalterável e solici-
tando uma intervenção de tipo assistencial, caritativo ou ocupacional. O chamado modelo
médico da deficiência, na verdade, via a deficiência como um defeito da própria pessoa
situando nela todos os esforços de «recuperação» ou «reabilitação». Actualmente, analisa-
-se a deficiência com base num modelo social que, ao contrário do modelo médico, reco-
nhece que a deficiência é causada pelas barreiras sociais e estruturais criadas pela socie-
dade e sabe da necessidade de participação das pessoas com deficiência na tomada de deci-
sões sobre si próprias (Johnstone, 2001). Este modelo social da deficiência encontra-se
muitas vezes articulado, na acção e na teorização, com o modelo afirmativo. O modelo afir-
mativo, segundo Swain e French (2002), enfatiza uma perspectiva não dramática da defi-
ciência, realçando as identidades sociais positivas tanto individuais como colectivas, basea-
das em eventuais benefícios do estilo e da experiência de vida de ser deficiente.
Em segundo lugar, radica no facto de não se reconhecer às pessoas com deficiência
autonomia e cidadania. Contra esta perspectiva paternalista, desenvolveu-se o chamado
modelo de direitos que, ao consagrar na legislação os direitos da pessoa com condições de
deficiência e ao prever sanções para qualquer acto discriminatório, muda o eixo da relação
Cinco lugares do impacto de exclusão social 79

do nível da «boa-vontade» do estado para o nível das suas obrigações constitucionais e legais.
A pessoa com condições de deficiência é assim reconhecida como uma pessoa com autonomia,
com direito a participar nas decisões e políticas e cujos direitos de cidadania são invioláveis.
A terceira razão para a exclusão de pessoas com deficiência relaciona-se com atitudes
em que se encaram as pessoas com condições de deficiência como improdutivas e perma-
nentemente devedoras à sociedade. O desenvolvimento de programas de formação e inte-
gração profissional, a utilização sistemática de tecnologias de apoio e o inerente sucesso
de processos de autonomia profissional são a comprovação de que é um erro perspectivar
quem tem condições de deficiência como um eterno devedor, como consumidor de subsí-
dios ou como cidadão improdutivo.
A exclusão social com base no «corpo deficiente» é assim uma forma ingénua e pouco
sociológica de considerar a deficiência imutável e as pessoas com condições de deficiência
permanentemente dependentes e improdutivas. Como veremos mais adiante, em tempos
recentes, a deficiência tem-se relacionado mais com a construção de identidades e com
novas formas de cidadania baseadas na diferença. Como resultado, quer a exclusão quer a
inclusão são reconfiguradas na sua relação com a deficiência.

A idade

O que é «ageism»? O termo «ageism» foi criado em 1969 por Robert Butler, o pri-
meiro director do National Institute on Aging. Ele ligou o termo a outras formas de
estreiteza de espírito como o racismo e o sexismo, definindo-o como um processo de
estereotipização e de discriminação contra pessoas porque estas são velhas. Hoje, é mais
amplamente definido como qualquer preconceito ou discriminação em favor de ou con-
tra um grupo de idade.
(http://istsocrates.berkeley.edu/~aging/ModuleAgeism.html#anchor)

O corpo, como vimos, é valorizado nas sociedades de economia de mercado pelo seu
desempenho, pela sua eficiência e pela posse das suas plenas capacidades. É a apologia de
um corpo «eternamente jovem», saudável e capaz de resistir mesmo às mais duras condi-
ções de trabalho e stress. Não é assim de estranhar que seja o arquétipo do corpo adulto o
mais valorizado em face de outras idades e períodos da vida, tais como a infância e a velhice.
Na infância, o corpo anuncia uma imaturidade e uma «incompletude» que conduz à rejei-
ção produtiva, e a uma desvalorização da sua voz (Prout, 2000). Na velhice, pelo facto de
o corpo ser julgado como menos produtivo ou improdutivo, as pessoas são conduzidas
para ilhas segregadas, como, por exemplo, lares de idosos, e o seu estatuto de participação
e actividades sociais é depreciado e grandemente diminuído.
A tentativa de escapar à segregação provocada pelas marcas da idade no corpo alimenta
prósperas indústrias e comércios de medicamentos, estética, vestuário, manutenção física,
etc. Não basta só ser jovem, é preciso parecê-lo...
80 «A Diferença Somos Nós»

O corpo como agência

Crash é uma adaptação do livro com o mesmo nome de J. G. Ballard, e tem a ver com
uma seita secreta de vítimas de acidentes automóveis que obtêm prazer sexual do facto
de testemunharem e de se envolverem em intensos desastres com carros.
O filme é marcado por um conjunto de cenas de sexo em cenários onde os automó-
veis são motivo central. Muitas das cenas são de sexo explícito, sendo algumas delas de
tipo homossexual. O filme foi considerado bastante controverso quando foi publicitado.
A seguir encontra-se um excerto de uma entrevista feita ao realizador, o canadiano David
Cronenberg.
Bem, o outro lado de «Crash» – o que é que pode haver de erótico em cicatrizes,
intervenções médicas, ou ferimentos?
[...]
Quando olho para a personagem de Rosanna Arquette, é-me muito mais fácil pensar
nisso, porque me recorda o tempo em que eu era um adolescente e trabalhava numa loja
de fotocópias e um tipo levou para fotocopiar uma revista artesanal com pequenos dese-
nhos de mulheres amputadas ou de desastres, e por aí adiante, com pouca história acerca
desses desenhos, acerca de como é que ele as salvava e depois as «comia». E a sua vul-
nerabilidade e a sua fraqueza têm esse intenso erotismo, assim como a sua timidez com-
binada com o couro preto ou seja lá o que for que ela usava.
Trata-se de uma coisa do género, mas que é também bastante agressiva. Em
Inglaterra, onde a cobertura do Crash pela imprensa escrita foi completamente louca –
mas, bem sabe, é uma doença inglesa – um crítico escreveu: «Entre as coisas mais nojen-
tas, repugnantes que acontecem neste filme é um homem a manter relações sexuais com
uma aleijada». E eu pensei, espera lá, significa isto que se o teu marido ou a tua mulher
forem ou se tornarem aleijados deixas de ter sexo com ele ou com ela? Por que é que nos
havemos de des-sexuar apenas porque somos aleijados?
Realmente, este é o filme do ano sobre os direitos dos aleijados.
Absolutamente. Quer dizer, neste ponto tornei-me de forma acidental politicamente
correcto – embora não o tivesse pretendido. Mas parte do filme diz que todos se preten-
dem transformar de uma forma ou de outra. Uma mulher que foi transformada por um
acidente, que diz «vou incorporar o meu novo corpo na minha sexualidade», e efectiva-
mente tudo o que ela tem a fazer é encontrar um amante que lide com isso, porque ela
não vai esconder partes suas que estão deformadas ou aleijadas. Ela diz: «Não, tudo isto
sou eu, este é o meu novo eu, isto é o que eu realmente sou. Queres “comer-me”? “Come”
isto, sou eu que sou isto». É assim basicamente que eu vejo a personagem e penso que
foi assim que Rosanna a desempenhou.
(http://www.salon.com/march97/interview970321.html)

Pode defender-se que há três momentos principais na cultura ocidental quanto ao


desenvolvimento fundador do corpo: um primeiro momento em que o corpo é a fonte do
pecado, do mal, da decadência; um segundo momento em que o corpo se torna naquilo
que precisa ser disciplinado (retomando o velho aforismo de «corpo são em mente sã»); e
um terceiro momento em que o corpo não só se revela a si como também se rebela con-
Cinco lugares do impacto de exclusão social 81

tra a tirania da alma e da razão, para aludir ao poema de Natália Correia no início deste
capítulo. Como parte da rebelião do corpo, é crucial a recusa deste em ver o seu desejo nor-
malizado e predefinido. Pelo contrário, não só o desejo se tornou múltiplo como também
os objectos de desejo se tornaram pluralizados. Assim, o corpo desejável não pode ser pre-
determinado, nos moldes do concurso «Miss América» nos anos 1950 e 1960.
De facto, até recentemente, nas sociedades ocidentais, o corpo era definido pelas iden-
tidades sociais que lhe eram atribuídas. Por exemplo, o corpo do advogado era o corpo do
advogado. O advogado andava como um advogado, fumava como um advogado, adoptava
a postura de um advogado e amava como advogado. O corpo era a extensão pública do self.
O que parece acontecer hoje em dia é que a distinção entre o self (selves) público(s) e o
self (selves) privado(s) encontra-se cada vez mais difusa. O corpo, neste sentido, exprime
cada vez mais, em todos os domínios – quer públicos, quer privados – o projecto reflexivo
de que faz parte. Assim, o advogado gay deixa cada vez menos partes do seu self dentro do
armário; em vez disso, desenvolve estratégias em função do seu projecto de identidade em
que o corpo representa um papel central. Nesse sentido, o corpo exprime agência, isto é,
não é um mero anexo do self, mas, antes, um dos ingredientes principais do self.

Conclusão

O que nos parece importante reter é que o corpo, pelas suas características, é um Lugar
de exclusão e de inclusão. Pela intensidade e visibilidade das marcas da sua origem social,
estatuto económico, integridade, pertença a uma subcultura e idade é como que um portal
de entrada, uma anunciação da identidade da pessoa. E a questão é que este imediatismo,
esta «primeira impressão» frequentemente não proporciona uma segunda oportunidade
de apreciação. As pessoas são sumariamente julgadas e identificadas por características
corporais eivadas de pressupostos de lugares comuns, de ideias ultrapassadas e de concep-
ções sociais elitistas, hierarquizadas e reprodutoras de valores sociais competitivos e eli-
tistas (Rodrigues, 1998).
Os modelos de inclusão social exigem outra visão sobre o corpo e sobre a sua diversi-
dade e identidade. Perspectivas em que exibição da diferença do corpo, a diferença visível,
não seja encarada como uma categorização, como uma normalização ou um rotular, mas
em que, pelo contrário, os diferentes corpos e as diferentes imagens corporais constituam
um convite para iniciar um puzzle de conhecimento das capacidades da pessoa, das suas
identidades e valores de vida e trabalho. Diz-se que a primeira impressão das imagens pro-
porcionadas pelo corpo pode enganar e, assim, pode ser reducionista se for imediatamente
aceite. Contudo, pensar o corpo como uma identidade significa descobrir e compreender
os valores que tornaram possível tal primeira impressão. Pode ser verdade dizer que «ao
ver o corpo dos outros, também vemos o nosso», que o corpo constitui um facto que
obriga a um certo grau de auto-reflexão, mas mesmo o nosso próprio corpo não é mais o
instrumento dócil dos nossos próprios desejos.
82 «A Diferença Somos Nós»

Na verdade, e para levar o argumento mais longe, o corpo, ele próprio, rebelou-se contra
estas categorizações mais ou menos sábias. Não só recusa ser o «outro» das nossas identi-
dades pessoais e colectivas, como também aparece, cada vez mais, como e com agência
(ver acima). Por outras palavras, o corpo começou a exigir, em nome de si próprio, um
lugar importante nas narrativas identitárias (ver adiante «O Lugar da identidade») e no
que diz respeito à cidadania (ver «O Lugar da cidadania»). Já não aparece como um mero
reflexo do self pessoal, cognitivo, assumindo a racionalidade da norma, nem aparece como
o self do cidadão, higiénico, são, fisicamente em forma, mas, antes, como o projecto plás-
tico da reflexividade. No seu limite, esta rebelião do corpo em relação à sua concepção de
corpo invisível, pecador ou disciplinado (concepções que historicamente foi assumindo),
parece apontar na direcção da sua reconceptualização como qualquer coisa «para além» da
humanidade (tal como foi concebida até agora). A transplantação de órgãos e doutras partes
do corpo, a manipulação genética, a transfiguração plástica dos corpos, a introdução de
elementos estranhos no corpo com o fim da sua reconstrução, etc., aparecem como indi-
cadores da eventual transformação daquilo convencionalmente designado como humano,
como o corpo inclusivo, no sentido de um modelo que se anuncia como, nalgum sentido,
pós-humano.
A modernidade, embora tivesse trazido o corpo para o centro da cena, concebeu o corpo
na base, sobretudo, de biologia, medicina e saúde. Na verdade, o corpo era o objecto dos
discursos e das manipulações de um estado educador, um corpo dócil perante os olhos e
as actividades das ciências e das mais variadas técnicas. O que aparentemente aparece
agora como novo é a recusa pelo corpo ele próprio deste estatuto de «corpo dócil». Sendo
integrado cada vez mais nas estratégias da identidade e da cidadania, o corpo constitui-se
não só um lugar de agência, mas sobretudo um Lugar da sua própria afirmação.
O imediatismo das imagens proporcionadas pelo corpo não deve, assim, ser julgado em
termos de uma localização, mas em termos da sugestão de uma identidade que não deve-
mos apreciar fora de uma reflexividade sobre os valores próprios que conduziram à cria-
ção destas imagens. É que ver o corpo dos outros é também ver o nosso…
Esta transformação parece ser plena de consequências para a questão da exclusão e
inclusão social. No modelo de modernidade, o corpo era o objecto de estratégias que pre-
tendiam (de uma maneira mais ou menos generosa) produzir a inclusão, erradicando,
assim, a exclusão. O sistema educativo, o sistema de saúde, o sistema de segurança social
tinham como objectivo central cuidar e proteger, no sentido de garantir que os corpos dos
cidadãos reflectissem o zelo e a preocupação do estado (providência) que os queria bem e
em boa forma. No modelo de pós-modernidade, ainda emergente, a inclusão/ exclusão
depende de estratégias que já não têm o Estado e as instituições que promoveram a enge-
nharia social da modernidade no seu centro, mas, em vez disso, baseiam-se nos guiões dos
próprios indivíduos e grupos. O corpo aparece, portanto, com as características de sujeito
da sua própria enunciação. Assim, a inclusão social e a exclusão social articulam-se com o
corpo na construção de identidades e na reivindicação de novas formas de cidadania. Os
Lugares do trabalho, da cidadania, da identidade e de território convergem no lugar do
Cinco lugares do impacto de exclusão social 83

corpo, não como um Lugar privilegiado, mas como um espaço em que a inclusão e a exclu-
são são, de uma forma cada vez mais concreta, o projecto do próprio self.

O LUGAR DO TRABALHO

Trabalho e identidade ocupacional na sociedade industrial

Se existe um Lugar decididamente identificado como fonte de exclusão social é o do


trabalho. Certamente que este facto se relaciona com formas mais frequentes e novas de
desemprego que ganharam terreno nos últimos trinta anos. O trabalho foi o Lugar privi-
legiado de discussão para as pessoas que se identificaram com o projecto da modernidade,
tanto para os que promoveram o trabalho como forma de acumulação de riqueza (conhe-
cidos historicamente como «burguesia»), como para aqueles que foram mobilizados para
este processo e que sofreram a maior carga das suas consequências negativas (as classes
trabalhadoras). Ser incluído neste processo significa ser incorporado no processo de tra-
balho e numa relação salarial. O exercício da própria cidadania tornou-se dependente do
facto de se ter um trabalho e ser excluído significou, em larga medida, não ter lugar no
processo de trabalho. Ao mesmo tempo, ser parte do processo pressupunha certas formas
de inclusão, quer dizer, ser incluído como engenheiro era bem diferente de ser incluído
como trabalhador não-especializado na indústria. A distância entre estas duas formas de
inclusão no sistema laboral, isto é, a sua diferente localização no processo produtivo, cons-
tituiu o que é normalmente designado por desigualdade, cuja matriz foi determinada pela
propriedade e mais tarde pela gestão dos meios de produção.
O trabalho, tal como o entendemos hoje, encontra-se ainda largamente identificado
com a sociedade industrial, significando isso que se reconhece o trabalho enquanto pro-
cesso produtivo que transforma matérias-primas em mercadorias acabadas. Os próprios
trabalhadores tornaram-se mercadorias no sentido do poder laboral, como Marx tão bem
demonstrou, e destinavam-se a ser integrados e vendidos no mercado sob a forma de «tra-
balho livre» oferecido ao «melhor preço». No início do século XX, Henry Ford e Frederick
Winslow Taylor revolucionaram o processo de trabalho na economia capitalista: o pri-
meiro, introduzindo a relação assalariada e o consumo modernos, o segundo, através de
uma nova organização dos processos de trabalho, incluindo a ideia de que a fábrica se devia
mover à volta do trabalhador e não o contrário.
Reiterar, em termos sociais, ser alguém, significa, portanto, estar incluído no processo
de trabalho, o que indica que a identidade depende em muito dos lugares que se ocupa na
estrutura ocupacional derivada da organização do processo laboral. Neste sentido, até a
própria cidadania parece ter as suas origens no processo de trabalho e na relação salarial.
Todavia, é o Estado que atribui ao indivíduo a qualidade de ser cidadão (ver «O Lugar
da cidadania»). Esta cidadania só se torna «real», isto é, concreta, quando é articulada com
o processo de produção cujas condições básicas são outorgadas pelo próprio estado
84 «A Diferença Somos Nós»

(Lenhardt e Offe, 1984). Em alguns países europeus, no início do século XX, o direito de
votar estava ainda condicionado à obrigatoriedade de ter um rendimento fixo.
O trabalho era definido, até há bem pouco tempo, como estando intimamente ligado à
categoria social de profissão ou à ocupação1. O trabalho era um conjunto de gestos técni-
cos e atitudes individuais e grupais normalmente desenvolvidas no âmbito de uma insti-
tuição (empresa de negócios, companhia, etc.), na qual estas actividades de trabalho têm
lugar. Unificado sob o rótulo de uma ocupação, o trabalho mostrou-se também central
para a construção da identidade dos indivíduos. Os tempos modernos sob o capitalismo
aumentaram essa tendência de identificar os indivíduos pela sua profissão/ ocupação (por
exemplo, quando se pergunta a uma pessoa «Quem és?», a resposta é dada frequentemente
em forma de uma identidade ocupacional: «Sou padeiro») e o trabalho encontra-se pro-
fundamente ligado a estratégias de classe.

A reconfiguração do trabalho e da identidade ocupacional

Hoje reconhece-se que a natureza do trabalho está a mudar, e este, no sentido de pro-
fissão, parece dissolver-se:

1. como consequência dos efeitos da crescente «leveza» das empresas (isto é, quanto
maiores são mais parecem tender para a dissolução nos paraísos fiscais off shore);
2. como consequência da crescente fragilidade das relações salariais; e
3. como consequência da sua dissolução em competências.

Até muito recentemente, as pessoas identificavam-se através da sua ocupação profis-


sional, da instituição onde trabalhavam e do conjunto e actividades que definiam o seu
«emprego». Actualmente, torna-se cada vez mais difícil as pessoas identificarem-se pelo
«trabalho», pois este está a assumir formas cada vez mais voláteis. O que parece restar,
eventualmente sob a forma residual, são, efectivamente, as competências.
Braverman (1974) defendia que a desqualificação do trabalho nas sociedades capitalis-
tas derivava da separação do trabalho nos seus gestos e momentos pela divisão e redução
dos processos e gestos técnicos às suas partes constituintes. Efectivamente, o que estava
em jogo não era uma redistribuição e reorganização dos saberes dos artífices, mas uma
subdivisão sistemática do trabalho que forneceu a base sobre a qual o trabalho artesanal
se volatizou em competências. Ao mesmo tempo, Braverman argumentava que as origens
do management poderiam ser encontradas no esforço para conseguir os meios mais efi-
cazes para assegurar o controlo do trabalho pelo empregador.

(1) Inicialmente o conceito de «profissão» só se aplicava ao que hoje se designa «profissões liberais».
Todavia, ao longo do tempo o conceito alargou-se, incluindo conhecimentos e aptidões relativas a áreas
especializadas, como construção civil, electricidade, panificação, etc.
Cinco lugares do impacto de exclusão social 85

A emergência de formas pós-fordistas de produção, distribuição e consumo parece estar


a impor importantes transformações na natureza do trabalho que aparentemente contra-
dizem as teses de Braverman da desqualificação a longo prazo do trabalho no quadro do
capitalismo. Não nos referimos aqui às abordagens managerialistas de «enriquecimento
da tarefa» (job enrichment), mas à aparente recomposição das competências que a nova
economia do conhecimento parece exigir. Ser criativo, inovador, capaz de comunicar, ser
flexível, com capacidade de adaptação e, talvez acima de tudo, capaz de ser formado conti-
nuamente (isto é, nas palavras de Bernstein, ser capaz de «responder eficientemente a
pedagogias concorrentes, subsequentes e intermitentes», 2001), etc., são as exigências
pós-fordistas que parecem ultrapassar a divisão taylorista-fordista entre concepção e exe-
cução e a consequente desqualificação do trabalho. Contudo, como Thompson argumenta,

(…) a desqualificação mais ampla é frequentemente acompanhada por uma maior


«qualificação» de pequenos estratos de trabalhadores envolvidos em tarefas de planea-
mento, programação e tarefas do género. Mas a tendência geral tende imediatamente a
afirmar-se à medida que as tarefas assim enriquecidas são sujeitas a uma subespecializa-
ção semelhante e as qualificações são rearticuladas num mecanismo mais complexo. A
prova que Braverman dava para a progressiva desqualificação – a dos programadores de
computadores – constitui o melhor exemplo deste tipo de desenvolvimento. (Thompson,
1989: 81)

De acordo com esta perspectiva, não nos encontramos perante uma recomposição do
trabalho na qual este pudesse ser reapropriado pelos trabalhadores (a desalienação do tra-
balho, portanto), mas, antes, perante um desenvolvimento da tendência para a desqualifi-
cação. Contudo, Thompson reconhece que a realidade é mais complexa e afirma que, nos
sectores económicos com uma maior proporção de investimento em capital do que em tra-
balho, existe um «mercado de trabalho dual para trabalho qualificado e desqualificado no
interior da tendência mais ampla para a desqualificação» (ibidem: 83). Pensamos que é
para este mercado de trabalho dual que as estratégias educacionais das classes médias se
dirigem e que é dentro deste quadro que a ênfase nas noções de «qualificações», «compe-
tências» e «excelência académica» pode ser melhor compreendida. É interessante subli-
nhar, a este propósito, o argumento de Castells segundo o qual,

Neste novo sistema de produção, o trabalho é redefinido no seu papel de produtor e


claramente diferenciado de acordo com as características dos trabalhadores. Uma dife-
rença central é aquela que se refere àquilo a que eu chamo trabalho genérico versus tra-
balho autoprogramável. A qualidade crítica na diferenciação entre dois tipos de trabalho
é a educação e a capacidade de aceder a níveis elevados de educação; quer dizer, a incor-
poração de conhecimento e informação. [...] A educação (enquanto forma distinta de for-
mação de crianças e de estudantes) é o processo pelo qual as pessoas, isto é, o trabalho,
adquirem a capacidade de constantemente redefinir as competências necessárias para o
desempenho de uma dada tarefa, e para aceder a essas competências de aprendizagem.
86 «A Diferença Somos Nós»

Quem for educado no ambiente organizacional adequado pode reprogramar-se a si pró-


prio no sentido de acompanhar as mudanças intermináveis do processo produtivo.
(Castells, 1998: 361)

Em suma, os efeitos da reconfiguração do trabalho e da identidade de ocupação tendem


a ser, por um lado, a ascensão do desempenho como uma cultura da aprendizagem, signi-
ficando que as novas classes médias, sentindo o seu estilo de vida presente e futuro amea-
çado pela fragmentação do trabalho e pela reestruturação das profissões em que as «apti-
dões transferíveis» começam a desempenhar um papel cada vez mais importante, procu-
raram retomar a supremacia num contexto em que o «desempenho» se tornou a palavra-
-chave tanto ao nível político como pedagógico. Como Giddens (1994) e Apple (1998, 2000)
sublinharam, o colocar a ênfase no abaixamento dos padrões académicos e nos disfuncio-
namentos dos modelos progressistas de ensino-aprendizagem é a base dos argumentos da
coligação – algo contra natura – entre neoliberais e neoconservadores no seu ataque ao
ensino público. O conceito organizador desta aliança parece ser o de performance, como
diria Dale, a pedra-de-toque da «modernização conservadora» (1989). Esse conceito surge
como colocando a tónica no produto (output) do processo pedagógico contra a tónica
colocada no próprio processo. Quer dizer, o processo de ensino-aprendizagem deve ser
tendencialmente avaliado pelo desempenho (ou performance) que proporciona aos jovens
em contexto académico e no mercado de trabalho, e não a partir das idiossincrasias for-
mativas que o próprio processo lhes possa proporcionar.
O conceito de performance emergiu no contexto dos discursos legitimadores do pós-
-fordismo. O conhecimento, nesse contexto, surge como um factor de produção crucial e
como um meio para o funcionamento das relações no âmbito do mercado. Efectivamente,
Bernstein refere-se a

(…) um novo conceito quer de conhecimento, quer da sua relação com aqueles que
o criam. [...] O conhecimento deve fluir como dinheiro para onde quer que possa criar
vantagens e lucro. De facto, o conhecimento não é apenas como o dinheiro: é dinheiro.
[...] O conhecimento, depois de quase dois séculos, divorciou-se da interioridade e lite-
ralmente desumanizou-se. Uma vez separado o conhecimento da interioridade, do com-
prometimento e da dedicação pessoal, então as pessoas podem ser levadas de um lado
para o outro, substituídas umas por outras e excluídas do mercado. (1990: 155)

O conhecimento, neste sentido, em vez de qualificar o indivíduo transforma-o num


conjunto de competências de tipo cognitivo. O conhecimento deixa de educar os indiví-
duos e a sociedade, tornando-se antes um instrumento que permite posicionar os indiví-
duos (ou excluí-los do) no mercado de trabalho. Uma das consequências desta transfor-
mação é o processo de individualização em que os indivíduos são reduzidos à sua perfor-
mance (à semelhança da noção de «indivíduo privatizado» de Castoriadis [1998]). A regu-
lação pelo mercado reconhece apenas indivíduos sobre os quais fica colocado o ónus quer
dos seus excessos, quer dos seus défices.
Cinco lugares do impacto de exclusão social 87

Por outro lado, a precariedade da ocupação e as novas formas de desemprego ou de


semi-emprego criaram uma situação em que muitas pessoas se sentem cada vez mais iso-
ladas, sob o ponto de vista social, e sentem que se encontram em risco de cair em situa-
ções de marginalização e desqualificação social (Paugam, 1991). Investigadores a trabalhar
sob a orientação de Paugam (1996) referem três orientações básicas quanto à noção de
exclusão:
• «trajectória», que com base em dados longitudinais nos permite compreender melhor
as razões pelas quais certas pessoas se sentem socialmente excluídas e outras não;
• «identidades», que se refere aos efeitos da crise socioeconómica sobre as identidades
das pessoas e à sua capacidade de resistir a esses efeitos e/ ou reconstruir as suas pró-
prias identidades (ver «O Lugar da identidade»):
• «território», que procura olhar para a exclusão social através das lentes da segrega-
ção espacial (ver «O Lugar do território»).

Trabalho, globalização e inclusão/ exclusão social

Num trabalho recente sobre «A economia europeia do conhecimento», David Guile


identifica os seguintes quatro factores-chave no processo de reestruturação económica.
Todos eles parecem contribuir para a reconfiguração do trabalho:

• a velocidade de evolução da inovação científica e tecnológica resultou em conheci-


mento que se tornou mais importante para o desenvolvimento económico do que
factores tradicionais de produção tais como a terra, o capital e o trabalho (Drucker,
1933);
• a emergência de um novo paradigma técnico-económico, que tem sido referido,
algumas vezes, como «um modelo de desenvolvimento informacional» (Castells,
1996) [...];
• a escala e o impacto da actividade multinacional global, que ocasionou a emergên-
cia de organizações mais focalizadas no consumo, com outros modelos de divisão
de trabalho, menos hierarquizadas, com novos perfis ocupacionais e novos requisi-
tos de competências (Bartlett e Ghoshal, 1993);
• o processo global de convergência industrial que ajuda a confundir as linhas que
separaram as indústrias tradicionais (as telecomunicações, por exemplo) das indús-
trias mais recentes, tais como os media e os computadores, e criam novas oportu-
nidades de crescimento como tecnologias e convergência de mercados (Yoffe,
1996). (Guile, 2002: 252-3)

Um quinto factor que se poderia juntar à lista é a emergência e o rápido crescimento


de mercados globais, em particular os desenvolvidos no âmbito das actividades da organi-
zação Mundial do Comércio (em relação à educação ver Bonal, Robertson e Dale, 2001).
Todos esses factores apontam para o papel das organizações internacionais como uma nova
88 «A Diferença Somos Nós»

forma de regulação global no sentido que frequentemente assume o carácter político das
corporações transnacionais. Na verdade, pode-se afirmar que as organizações internacio-
nais, que actuam maioritariamente como «veículos» da política económica hegemónica,
se implicaram numa nova forma de governação a nível mundial (ver, por exemplo, Bonal
[2002]; Dale [2000]; Samoff [1996]; Santos [2000]).
No que respeita à exclusão social, o Lugar do trabalho pode ser pensado enquanto
ponto de convergência de riscos globalizados, que afectam todos por igual, e os riscos glo-
balizados, que expressam uma distribuição diferente de poder. A citação de Santos, acima,
realça esta última, na forma de um «modelo de desenvolvimento orientado para o mer-
cado» que promove a inclusão na base do consumo e exclui todos aqueles que ou têm
um fraco acesso ao mercado, ou se encontram desapetrechados para tirar o melhor par-
tido dele. As relações globais de mercado tendem, então, a desvincular, tal como Castells
diz, tanto as pessoas como os espaços geográficos, ao mesmo tempo que produzem ou
demasiado pouco, ou o tipo errado de trabalho necessário para a integração no capitalismo
global.
Castells realça ambos os tipos de risco, ao mesmo tempo que sublinha que o desenvol-
vimento da sociedade em rede pode proporcionar integração nesta sociedade e constitui,
assim, uma forma de luta contra a exclusão social. A rede torna-se, nesse sentido, um sis-
tema uniforme fora do qual todas as formas alternativas de desenvolvimento se tornam
impossíveis. Daí que Castells tenha saudado o movimento «zapatista» como o «primeiro
movimento de guerrilha informatizado» capaz de captar a imaginação do povo e dos inte-
lectuais através do mundo, catapultando «um grupo insurreccional local e fraco para a
linha da frente da política mundial» (1997: 79). A oposição à nova ordem mundial só pode
tomar lugar numa rede em que, por um lado, as consequências de exclusão da moderni-
zação económica sejam desafiadas e, por outro, a inevitabilidade da nova ordem geopolí-
tica, sob a qual o capitalismo é universalmente aceite, seja questionada. Pode-se discutir
se a visão algo optimista de Castells sobre a sociedade em rede e o capitalismo da infor-
mação, apesar do seu conhecimento rigoroso dos desequilíbrios do mundo que podem
fazer gorar a sua realização, são capazes de providenciar o que é necessário para transfor-
mar riscos diferenciais numa forma de luta contra os riscos globalizantes que ameaçam
todos por igual.

Conclusão

A transformação do trabalho e da sua organização está enquadrada no que hoje se


chama «capitalismo flexível» (Harvey, 1989), que se manifesta através do processo de fle-
xibilização do processo produtivo, dos contextos e de toda a organização do trabalho. Por
outras palavras, trata-se de uma transformação que resulta de uma sociedade cada vez
mais «programada», nos termos de Touraine (1981), baseada nos fluxos de informação
e de conhecimento, em suma, numa «sociedade em rede» (Castells, 1996). Desse modo,
Cinco lugares do impacto de exclusão social 89

surge como necessário proporcionar aos indivíduos uma educação não assente em apti-
dões fortemente estruturadas, mas sobretudo em competências que os tornem flexíveis. A
flexibilidade torna-se sinónimo de empregabilidade (muitas vezes expressa sob a forma de
uma lista de competências instrumentais e mesmo... emocionais!). A ocupação baseava-se
em competências organizadas em conjuntos de gestos técnicos e cimentadas por atitudes
(portanto, de forte teor «formativo»), enquanto a emergência da empregabilidade parece
basear-se na (insustentável) fragilidade das competências organizadas frequentemente em
termos do curto e médio prazo (portanto, sem forte teor «formativo») (ver Stoer e Maga-
lhães, 2003). Ser flexível é uma condição para ter sucesso no mercado de trabalho emer-
gente. Ser «inflexível» é quase sinónimo de ser excluído/ a.

O LUGAR DA CIDADANIA

Sintomas de mudança da ontologia social da modernidade

No ponto que se segue, procura-se explorar a ontologia social da modernidade, no


sentido de a contrastar com a nova ontologia social que aparentemente se encontra a
emergir e no âmbito da qual a afirmação das diferenças se torna um dispositivo para
compreender as novas formas de cidadania, em que a exclusão social também assume
novos contornos. Por ontologia social entendemos a forma como as relações sociais,
os grupos e os indivíduos são, enquanto tal, legitimados, aceites e reconhecidos, quer
dizer, a forma como são conceptualizadas e vividas as relações sociais no âmbito de um
dado corpo social.
O contrato social, tal como a modernidade o desenvolveu, fundava-se na cidadania deli-
mitada pelo Estado-nação. Este era a base da arquitectura política, que garantia aos indi-
víduos e aos grupos um conjunto de deveres e protecções sociais e políticas em troca
da sua desistência das identidades desenvolvidas a nível local. Isto é, a sua lealdade já não
se baseava em pertenças étnicas, familiares, religiosas e em outras teias da tradição,
mas naquilo que se assumia como algo comum, como a cultura nacional, o território, a
língua, etc.
O projecto moderno de construção dos estados-nação fundava-se no princípio segundo
o qual a pertença nacional era tão «natural» ao indivíduo como este «ter duas orelhas e
um nariz» (Gellner, 1983: 6). Todavia, esta «naturalização» da pertença nacional é mediada
pelos processos identitários. A modernidade fez assentar o processo de formação de iden-
tidades em três esteios: (1) a identidade nacional: «Tu és/ Eu sou um súbdito de tal país»;
(2) a identidade jurídica ou legal: «Tu és/ Eu sou um detentor de direitos e deveres»; (3) a
identidade subjectiva: «Tu és/ Eu sou uma unidade consciente, racional e afectiva». A legi-
timidade da nacionalidade-cidadania-individualidade era assegurada pela metanarrativa da
modernidade que localizava o Eu no cruzamento dos seus três eixos fundadores: a Razão,
o Homem e o Estado. Estes três eixos desdobram-se, por seu turno, em mediadores nar-
90 «A Diferença Somos Nós»

rativos como a ciência, a filosofia, a arte, as instituições sociais e o estado. A Razão arti-
cula as narrativas da ciência, da filosofia e da arte que, assim, surgem como os dispositi-
vos discursivos, que, no projecto da modernidade, enquadram a formação da subjectivi-
dade/ individualidade. Quer dizer, a modernidade faz assentar o seu projecto de racionali-
dade no facto de a razão, à maneira cartesiana, ser a coisa mais bem distribuída no mundo.
Esta universalidade da capacidade de distinguir o verdadeiro do falso faz da ciência um
empreendimento ao mesmo tempo dos indivíduos enquanto subjectividades e, por maio-
ria de razão, da humanidade. A expressão das idiossincrasias pessoais encontrará, even-
tualmente, mais espaço nas artes; todavia, no projecto da modernidade – e não cabe no
objectivo deste trabalho uma discussão mais aprofundada dessa questão – não parece
haver contradição paradigmática entre a deriva romântica e a corrente do Iluminismo
eventualmente mais racionalista. A História, com letra maiúscula, desenvolve-se como o
processo cuja finalidade (no sentido de telos) surge como o palco em que a máxima auto-
consciência do indivíduo no Homem, ele próprio Razão, deve acontecer ao realizar-se no
Estado. É em Hegel que esta identificação (Homem [indivíduo/ subjectividade] = Razão =
Estado) parece ter atingido quer o máximo de consciência possível, quer a melhor cons-
ciência possível. A humanidade e o indivíduo, e este enquanto sujeito/ subjectividade, reú-
nem-se e realizam-se no Estado, «onde a liberdade (individual) adquire a sua objectividade
e vive na fruição de si mesma» (Hegel, 1965: 11)2 a partir da crítica à Razão feita com base
em valores (Nietzsche, 1976), isto é, a partir de uma instância (a moral) exterior à razão.
Tal permitiu desalojá-la da sua centralidade e desvelá-la enquanto discurso não universal,
mascarado pela abstracção e universalidade.

Quadro 1

Metanarrativa da modernidade Mediadores narrativos Identificadores


Razão Ciência/ Filosofia/ Arte Consciência
Humanidade Instituições sociais Indivíduo
Estado Estado-nação Cidadão

É na figura do cidadão que os três identificadores referenciados se parecem cruzar com


mais profundidade, consistência e legitimidade. A universalidade da Razão só se realiza
pela organização da humanidade em Estados e estes configuram os indivíduos como cida-
dãos. A cidadania, assim, funda-se no contrato social como ontologia social, quer dizer, o
contrato social é o que constitui o corpo social como cidade e os indivíduos como cida-
dãos.

(2) Foi talvez Nietzsche quem pela primeira vez, de uma forma radical, questionou a modernidade.
Cinco lugares do impacto de exclusão social 91

O que o homem perde pelo contrato social é a sua liberdade natural e um direito ili-
mitado a tudo o que tenta alcançar; o que ganha é a liberdade civil e a propriedade de
tudo o que possui. Para não haver enganos sobre estas compensações, é preciso distin-
guir a liberdade natural, que só tem por fronteiras as forças do indivíduo, da liberdade
civil, que está limitada pela vontade geral, e a posse, que é apenas o efeito da força do
primeiro ocupante, da propriedade, que apenas se pode fundar num título positivo.
(Rousseau, 1981: 26)

Os estados-nação que se desenvolveram no decurso da modernidade encontram, nesse


tipo de concepção, a legitimação última da sua tutela sobre os seus súbditos-cidadãos. Os
indivíduos prescindem da acção a partir das suas «inclinações» (ibidem: 25) e das suas per-
tenças mais imediatas (étnicas, locais) e entregam-se, enquanto acto fundador da sua cida-
dania, à justiça do estado civil, isto é, prescindem da sua soberania para a endossarem ao
estado-nação. Em compensação, é garantido aos indivíduos a máxima utilização das suas
capacidades.
Estas capacidades são constituídas pelos seus talentos próprios, a realizar pelo empe-
nho de cada um nos diferentes contextos do estado, da comunidade e do mercado. O valor
social dos indivíduos é, assim, pensado a partir da igualdade de oportunidades de exercício
dos seus talentos (cuja realização terá como instrumento e lugar de eleição a escola
pública), da liberdade de desenvolver a sua capacidade empreendedora no mercado e da
participação fraterna na comunidade.
A cidadania enformada por esta forma de legitimação encontra a sua concretização
mais cabal no modelo de democracia representativa. A atribuição de cidadania aconteceu,
num primeiro momento, sobretudo a nível formal, pois a determinação de quem se incluía
no âmbito do contrato era feita a partir da posição dos indivíduos no mundo do trabalho,
inicialmente restringindo-se ao patronato, e alargando-se, depois, na sequência de um
século de lutas políticas em torno da reivindicação pelo reconhecimento da importân-
cia do trabalho no desenvolvimento do capitalismo, aos trabalhadores. Num segundo
momento, a democracia representativa torna-se, por assim dizer, «real», na medida em
que o leque dos representados se alarga substancialmente, sendo visível a presença (repre-
sentada) de quase todos aqueles que se viram excluídos dessa representação. Esta «reali-
zação» da democracia representativa não aconteceu em todo o Ocidente ao mesmo tempo.
Por exemplo, os negros dos Estados Unidos só tiveram a sua representação garantida em
meados dos anos sessenta, e as mulheres de alguns cantões suíços só muito recentemente,
nos anos 1970, alcançaram esse direito.
A educação no modelo que estamos a analisar fica, assim, essencialmente atribuída à
escola, desenhada como a instituição socializadora por excelência dos indivíduos, dado que
é o lugar onde as capacidades destes se libertam das peias da tradição e onde, ao mesmo
tempo, se reforçam os valores da comunidade, agora dimensionada em termos de nação.
Da escola, contudo, espera-se, além da formação de cidadãos, também a preparação de tra-
balhadores aptos para a estrutura ocupacional, conceptualizadas ambas como potencial-
92 «A Diferença Somos Nós»

mente em harmonia. Esta «escola da sociedade» (Touraine, 1997) tem o seu auge, no pós-
-guerra, no processo de realização da «escola para todos».

A reconfiguração do contrato social moderno

É frequente atribuir-se o actual questionamento do contrato social moderno ao final


das grandes narrativas, sobretudo ao esgotamento da metanarrativa da modernidade
(Lyotard, 1989). Nessa perspectiva, tudo se parece passar como se o Ocidente se abatesse
sob o peso do questionamento de si próprio enquanto forma de organização política, civi-
lizacional e cultural. Isto é, o Ocidente é implicitamente uma forma de Estado e um con-
junto de valores e normas culturais que foi apresentado como modelo a perseguir e como
meta de desenvolvimento. Este modelo, sobretudo a partir de meados do século XX, foi
sendo posto em causa externa e internamente pelos intelectuais e pela acção política
que o foi denunciando como etnocêntrico, colonialista e falocêntrico. Esta denúncia do
modelo do Ocidente enquanto modelo de desenvolvimento foi dinamizada sob o impulso
daqueles a quem ele recusava o papel e a acção como sujeitos das suas próprias escolhas:
as mulheres, as outras culturas, as sociedades outras (por exemplo, os povos indígenas) e
estilos de vida que escaparam à normatividade das sociedades modernas. O mundo oci-
dental, sobretudo na segunda metade do século XX, exibiu claros sinais de descrença em
si mesmo.
Esta descrença em si mesmo, não nos parece, todavia, explicar tudo o que está a
acontecer em termos do aparente esgotamento da modernidade. Primeiro, porque nunca
como hoje o Ocidente (os Estados Unidos e a União Europeia e todos aqueles blocos
económicos e políticos que assumiram a modernidade como modelo sociocultural) foi
tão «único» em termos económicos, políticos e culturais; segundo, porque a descons-
trução do Ocidente como modelo não surge apenas como resultado da sua autocrítica, mas
também como o resultado daquilo a que mais adiante chamamos as «rebeliões das dife-
renças».
No que diz respeito ao primeiro aspecto, os diversos trabalhos e investigações sobre
as formas de globalização hegemónicas esclarecem o suficiente sobre o eventual fim da
história (Fukuyama, 1992) como mistificação da perpetuação da hegemonia das formas
económicas, culturais e políticas inventadas pelo Ocidente (e.g., Santos, 1995; Dale,
2002). Esta mistificação materializa-se na identificação da globalização com o capitalismo,
enquanto forma de organização económica, e com a democracia representativa, enquanto
forma de organização política.
No que diz respeito ao segundo aspecto, a assunção da voz e do protagonismo de acção
por parte daqueles e daquelas que, no decurso da modernidade e do desenvolvimento dos
estados-nação, viram a sua «soberania» (quer dizer, a afirmação de si) entregue aos meca-
nismos civis destes, parece marcar uma importante reconfiguração do contrato social e,
por maioria de razão, da cidadania. Neste caso, são as investigações das formas contra-
Cinco lugares do impacto de exclusão social 93

-hegemónicas de globalização que têm oferecido explicações sobre a emergência de uma


postura activa por parte das diferenças num mundo onde se está «condenado» a coabitar
com elas.
Quando falamos em rebeliões das diferenças (ver também Capítulo 5) queremos com
isso significar que estas rebelaram-se não só contra o jugo cultural e político, mas também
epistemológico da modernidade ocidental. Recusaram-se como «objectos» passivos do
conhecer, como o «primitivo» que a antropologia fixava como seu domínio de estudo,
como o «sem história» que a História determinava enquanto tal, como o «sem estado» que
urgia trazer ao desenvolvimento político, como o pensador mítico-mágico a que há que
levar as benesses intelectuais do pensamento científico, e como o pensamento prisioneiro
do concreto a que a psicologia opõe as riquezas do pensamento abstracto. Tudo ao mesmo
tempo que denunciam o ideal normativo do «normal» epistemológica e socialmente legi-
timado (e.g., a revolta das mulheres, das minorias sexuais, etc.).
As diferenças assumiram-se como agência e deixaram de aceitar passivamente os dis-
cursos sobre elas, mesmo os mais generosos, sendo o essencial dos seus programas a sua
assunção como sujeitos da sua enunciação, isto é, sujeitos do discurso sobre si próprias.
E, o que é mais, esse discurso (da diferença e não sobre a diferença) não é unificável numa
narrativa coerente, em que todos os outros se pudessem reconhecer e ver afirmados como
uma unidade. O que caracteriza actualmente as diferenças e as suas relações é precisa-
mente a sua heterogeneidade, a sua incontornável resistência a qualquer domesticação
epistemológica ou cultural. É por isso que se deve falar de rebeliões das diferenças e não
no singular, como se as diferenças fossem Um. Algum pós-modernismo parece mesmo
sugerir que, dada a perda dos centros (civilizacionais, éticos, estéticos, políticos), o jogo se
joga apenas em termos de diferenças. Quer dizer, o carácter relacional das diferenças é
definido não em relação ao Mesmo, mas em relação às próprias alteridades, tratando-se
assim de jogar um jogo (conflito-negociação) entre si. A cultura ocidental surge aí, então,
ela própria como diferença e não como o padrão a partir do qual a alteridade mesma é defi-
nida.
Efectivamente, indivíduos e grupos cuja diferença foi durante esse período delimitada,
dita e activada a partir da cidadania fundada no estado-nação assumem-se crescentemente
como alteridade, com assunção da sua própria voz e de voz própria. E fazem-no para além
do «direito» da cidadania configurado pela modernidade e para além da moral e da polí-
tica da «tolerância» (quem está em posição de tolerar quem?). Estas diferenças, baseadas
umas na etnia ou na raça, outras na preferência sexual ou estilo de vida, outras ainda na
religião – para mencionar apenas estas –, irrompem do interior das próprias sociedades
ocidentais. Não são uma «ameaça» que do exterior se impõe; surgem, antes, no nosso inte-
rior como reivindicação de soberania: o direito de gerir a vida individual e colectiva de
acordo com um quadro de referência próprio, o direito de educar os filhos segundo as suas
convicções, de tratar as doenças segundo determinados quadros de conceptualização da
clínica, etc. As condições de realização destas reivindicações de soberania serão considera-
das adiante.
94 «A Diferença Somos Nós»

A reconfiguração da cidadania individual e colectiva, efectivamente, parece estar a esca-


par inelutavelmente ao estado-nação, quer enquanto território, quer enquanto narrativa
identificadora, quer ainda enquanto dispositivo protector (em relação a este último, a
questão é saber como é que o estado-nação pode lidar com a promoção da «qualidade» que
deriva de formas de organização económica, que, paradoxalmente, constituem um risco
para o bem-estar dos indivíduos, contexto em que, como nos lembra Beck [1992], a indi-
vidualização se sobrepõe à individuação).
A soberania, enquanto poder exercido por delegação pelos órgãos do estado, em nome
dos indivíduos-cidadãos, encontra-se mitigada de duas formas principais. Por um lado, as
unidades supranacionais debilitam a soberania dos estados, que voluntariamente a cedem
a troco de bem-estar económico e de estabilidade política, o que, por sua vez, enfraquece
o sentimento de pertença dos indivíduos aos espaços nacionais. A título de exemplo,
Castells, num trabalho recente, afirma:

Veja-se, por exemplo, o caso de dois países que conheço bem, França e Espanha: 80
por cento da legislação em França e em Espanha tem de ir para aprovação da União
Europeia. Nesse sentido, elas não são Estados soberanos. (2001: 121)

Por outro lado, o local, os modos de vida alternativos e o factor étnico parecem estar a
emergir como importantes estruturadores da cidadania: em nome do local e da pertença
étnica ou a partir de dadas escolhas de estilo de vida ou outras, os indivíduos reivindicam
formas renovadas de cidadania, a qual, então, passa a ser pensada a partir das diferenças,
isto é, daquilo que distingue e não através das características comuns.
Sobretudo este último aspecto configura uma ressignificação da cidadania activa, como
se os indivíduos e os grupos reivindicassem de volta a soberania individual e colectiva de
que haviam prescindido pelo contrato social moderno. Esta transformação, como acima
referimos, é notável em comparação com as formas de cidadania resultantes desse mesmo
contrato que se fundavam precisamente no património comum. A atribuição de cidadania,
pelo contrato social moderno, era um acto fundado na legitimidade dos aparelhos do
estado enquanto guardião da nação. Esta, em termos básicos, era assumida como uma
comunidade de língua, território e/ ou religião. Essa «comunidade imaginada» (Anderson,
1983) outorgava ao estado o poder legítimo de, em nome daquilo que a todos era
«comum», atribuir direitos e deveres. Para se ser cidadão bastaria nascer no âmbito desta
comunidade3. As implicações da nova forma multicultural de cidadania só agora começam
a tornar-se visíveis e induzem a uma urgente reconceptualização do conceito de cidadania,
dos direitos e dos deveres dos actores sociais.
O contrato social da modernidade que exprime a troca acima referida (da pertença local
pela lealdade nacional) parece estar, pois, em via de reconfiguração. Esta está a ser levada

(3) Reconhecemos que nem todas as «comunidades» são do mesmo tipo. Morris (1994), por exemplo,
faz a distinção entre «comunidades de consentimento» (uma espécie de associação voluntária) e «comu-
nidades descendentes» (baseadas, por exemplo, na descendência matrilinear).
Cinco lugares do impacto de exclusão social 95

a cabo na tensão entre factores de ordem económica (como a restruturação do mercado


de trabalho), de ordem cultural (como o confronto entre modos de vida, por exemplo,
de origem étnica e aqueles fundados na universalidade normativa do estado-nação) e
de ordem política (como, por exemplo, os efeitos sobre as soberanias nacionais da cons-
trução europeia).
No contexto europeu, o contrato social emergente encontra-se delimitado por três
dimensões, que também são exigências: empregabilidade (que implica ser «formável» con-
tinuamente), identidade local (que implica poder exprimir diferenças) e cidadania euro-
peia (que envolve a construção de uma nova «comunidade imaginada»). Tudo se parece
passar como se a cidadania fosse determinada e, ao mesmo tempo, activamente se articu-
lasse com a recomposição do tecido económico europeu e global e com o reposiciona-
mento do estado-nação neste contexto.
As formas de cidadania emergentes caracterizam-se por uma forte marca de reflexivi-
dade social (Giddens, 1992), quer dizer, já não é só da ordem do atribuído, não resultando
imediatamente da pertença a qualquer categoria social nacional, surgindo, antes, na
ordem do reclamado. A soberania que os indivíduos e os grupos cediam no contrato social
moderno é agora reclamada de volta, isto é, eles querem decidir acerca do modo como
vivem, como se educam, como cuidam de si, como se reproduzem, etc.
No fundo, esta reclamação baseia-se num apelo no sentido de uma redistribuição eco-
nómica que é combinada, em doses variáveis, com um reconhecimento da diferença. Desta
forma, o que está em causa é o possível surgimento de uma forma de cidadania «recla-
mada» pelos indivíduos e pelos grupos contra as instituições e respectivas racionalidades.
Todavia, esta forma de cidadania emergente, fundada em factores culturais, tem como
pressuposto a satisfação da realização da cidadania de tipo social (tal como T. H. Marshall
a teorizou). Não que o reconhecimento das diferenças assim expressas esteja dependente
de uma «etapa» em que a questão da igualdade económica seja assegurada, mas, nos
actuais contextos, a reivindicação do reconhecimento cultural da diferença acontece, ao
mesmo tempo, da reclamação de igualdade económica.
A cidadania social de Marshall (1950) desenvolve-se na base de uma redistribuição eco-
nómica normalmente identificada com o Estado de Bem-estar. A justiça social depende de
um estado pró-activo, no que diz respeito a uma redistribuição da riqueza baseada no prin-
cípio da igualdade de oportunidades, um dos pilares da democracia representativa. O pro-
blema que se coloca hoje com a reestruturação do mercado de trabalho é o de saber até
que ponto a inclusão no contrato de trabalho (condição-base do contrato social moderno)
significa, de facto, acesso à cidadania. Por outras palavras, como tem enfatizado Bauman
(1992), a «libertação» do capital em relação ao trabalho, resultante, pelo menos em parte,
de um processo de re/ desterritorialização, em que o próprio território do capital é dester-
ritorializado (Santos [2001] dá o exemplo da bolsa de Nova Iorque), parece implicar, por
parte do estado, um alijar das suas preocupações com a realização de políticas redistribu-
tivas e, portanto, um pôr em causa do princípio da igualdade de oportunidades que se
encontra na base dessas políticas.
96 «A Diferença Somos Nós»

As implicações deste processo também podem ser vistas pela evolução do «individua-
lismo possessivo» para «um individualismo de despossessão» (Santos, 1995b). Como já se
disse acima, no contrato social moderno a essência da liberdade do homem encontra-se na
sua capacidade de procurar satisfações. Defende McPherson que,

(e)sta liberdade é devidamente limitada apenas por um princípio de utilidade [...] que
proíbe a violência contra os outros. A liberdade é, portanto, restrita à, e identificada com,
dominação das coisas, e não a dominação dos homens. A forma mais clara de dominação
das coisas é a relação de propriedade ou posse. A liberdade é, portanto, posse. Toda a
gente é livre, porque todos possuem pelo menos as suas capacidades. (1973: 199)

No entanto, a erosão do princípio de igualdade de oportunidades pela reestruturação e


re/ desterritorialização do mercado de trabalho produz uma situação em que, segundo
Santos,

Esta metamorfose do sistema de desigualdade em sistema de exclusão ocorre tanto a


nível nacional como a nível global. [...] A nível nacional, a exclusão é tanto mais séria
quanto até agora não se inventou nenhum substituto para a integração pelo trabalho. [...]
(T)raduz-se num individualismo extremo, oposto do individualismo possessivo, um indi-
vidualismo de despossessão, uma forma inabalável de destituição e de solidão. A erosão
da protecção institucional, que sendo uma causa, é também um efeito do novo darwi-
nismo social. Os indivíduos são convocados a serem responsáveis pelo seu destino,
pela sua sobrevivência e pela sua segurança, gestores individuais das suas trajectó-
rias sociais sem dependências nem planos predeterminados. [...] O indivíduo é chamado
a ser o senhor do seu destino quando tudo parece estar fora do seu controlo. A sua
responsabilização é a sua alienação; alienação que, ao contrário da alienação mar-
xista, não resulta da exploração do trabalho assalariado mas da ausência dela4. (1995b:
27-8).

Trata-se, em suma, do indivíduo despossuído das suas capacidades de posse, porque se


encontra num território em vias de desterritorialização. Essa desterritorialização está a
ter lugar no terreno da economia e no terreno cultural. No lado da economia, o processo,
na sua criação de novos territórios em que o trabalho não está presente, põe em causa o
contrato social através da reestruturação do mercado de trabalho (Magalhães e Stoer,
2001). No lado da cultura, não é o contrato social moderno que a cidadania reclamada pre-
tende, mas um novo em que a diferença, dita nas primeiras pessoas do singular e do
plural, se encontra vinculada. Para se armar perante esta nova situação, o indivíduo é obri-
gado a preparar-se permanentemente para o trabalho, adquirindo as competências neces-

(4) Robert Castel (1995) referiu-se a este fenómeno como «a nova questão social» no âmbito da qual
os excluídos já não são aqueles que, sendo explorados, são indispensáveis, mas, antes, aqueles que estão
em excesso, a mais. Neste sentido, ser explorado torna-se quase um privilégio.
Cinco lugares do impacto de exclusão social 97

sárias para um mercado de trabalho volátil (sobretudo, ao nível do trabalho genérico, cf.
Castells, citado em Magalhães e Stoer, 2001) baseado no curto prazo, e sabendo que
«nunca saberá o suficiente e jamais desenvolverá todas as capacidades e competências
necessárias» (Bernstein, citado em Bonal, 2002). Assim, o indivíduo torna-se vulnerável a
uma injustiça social que condiciona a sua própria cidadania.
A conclusão principal que se pode tirar desta análise é a necessidade de pensar as polí-
ticas de redistribuição na base não só dos «novos» territórios (local, regional, supranacio-
nal), mas também com base nos territórios desterritorializados. Isto é, pode defender-se,
na sequência do nosso argumento, que a cidadania social depende da regulação política de
todos os territórios, sem excepção. Mesmo os territórios desterritorializados (aqueles em
que, por exemplo, e como acima se disse, flui o capital financeiro) são politicamente mar-
cados e, como tal, exigem regulação. Na verdade, o facto de a cidadania social requerer
regulação política dos territórios sugere que a regulação pode ser também pensada como
emancipação (e não simplesmente como o seu pólo oposto). Nesse sentido, é interessante
o trabalho de M. Kaldor (1995), que tem proposto um modelo de construção europeia
baseado em temas (tais como direitos humanos, segurança, ambiente, gestão económica
e financeira) e não em território, e o de J. Habermas que, no seu apelo para a elaboração
de uma Constituição Europeia, defende que é necessário «encurralar os mercados»,
«enfrentar a tendência do capitalismo para produzir o caos ecológico» (Habermas, 1999,
2001). A proposta de Sousa Santos para uma globalização «de baixo para cima», com base
no «cosmopolitismo» (como alternativo aos «localismos globalizados») e no «patrimó-
nio comum da humanidade» (como alternativo aos «globalismos localizados»), também
vai nesse sentido. Assim como na mesma direcção parece apontar o conceito de «relação
de extraterritorialidade recíproca» proposta por Giorgio Agamben (1993). Em vez de
conceber a construção europeia como «uma impossível “Europa das Nações”», propõe o
espaço europeu como não coincidindo com os territórios nacionais homogéneos, nem
com a sua soma topográfica, mas como «a redescoberta da ancestral vocação das cida-
des europeias» organizadas no âmbito de «uma relação de extraterritorialidade recíproca»
(1993: 24-5).

«A diferença somos nós»

De facto, já não existe um lugar institucional suficientemente legitimado para enun-


ciar o que são as diferenças e quais os seus limites de expressão. As cidadanias surgem,
assim, elas próprias como diferenças cuja legitimidade reside nelas mesmas («como dife-
rentes, temos o direito de ser iguais»). A questão está em saber qual o limite dessa coinci-
dência da cidadania com a diferença. Por exemplo, até que ponto se pode justificar que o
estado exija o cumprimento da escolaridade obrigatória por parte das crianças ciganas ao
mesmo tempo que pretende reconhecer as práticas culturais de um grupo étnico? Ou,
outro exemplo ainda, até que ponto é socialmente legítimo que o que tem sido reconhe-
98 «A Diferença Somos Nós»

cido como «deficiência» (por exemplo, a surdez) seja reconfigurado como diferença e, por-
tanto, como identidade (diz uma mulher, surda e lésbica, empenhada no processo de ter
um filho surdo através de inseminação artificial, «para mim a surdez é uma identidade e
não uma deficiência», Público, 14 de Abril de 2002).
O contrato social moderno legitimava-se, diga-se mais uma vez, na pertença comuni-
tária e na imaginação daquilo que de comum unia os indivíduos e grupos nacionais. Numa
primeira fase, a saga nacional não só dava centralidade ao estado como regulador, mas
também colocava a nação e os nacionais num etnocentrismo legítimo: eram os nacionais,
a partir da sua indiscutível ontologia, quem determinava quem eram os seus «outros». Os
«outros» externos e os «outros» internos. Por exemplo, os «outros» externos dos portu-
gueses foram os espanhóis, os franceses e os ingleses, ora como inimigos fundadores, ora
como aliados incontornáveis. Os «outros» internos foram, por exemplo, os ciganos, que
desde o século XVI pontuam no território nacional, e os povos «descobertos», para falar
apenas destes. O discurso da modernização económica encontrará, porventura, outros
«outros» (por exemplo, o chamado «homem tradicional»), cuja diferença cultural os tor-
nava um obstáculo ao processo de «civilização» interna. Todavia, é sempre através do
estado-nação ou em torno dos seus motivos que os «outros», os «eles», são delimitados.
A metanarrativa da modernidade, por seu turno, baseada na Razão, na Humanidade e
na História, fundava, como acima se disse, a própria narrativa nacional. O que teve como
consequência que os «eles», os «outros», fossem também delimitados pelas formas domi-
nantes de racionalidade, de organização social e de representação do passado e do futuro,
pelo menos tal como as sociedades ocidentais as desenvolveram. Esta grande narrativa da
modernidade, portanto, legitimava, por um lado, a acção dos estados nacionais na sua cen-
tralidade; por outro, a determinação de quem são os «eles», de quem são os «outros».
Actualmente, mesmo os discursos e as práticas mais envolvidos com o respeito pela dife-
rença, pela alteridade, são frequentemente vítimas da matriz moderna de que partem.
Continuam a ser estes discursos o locus em que se determina o que é a diferença, o que é
a diferença aceitável (tolerada) e quem é verdadeiramente o Outro e o eventual «bom»
interlocutor. Com quem é que se deve dialogar? Será Le Pen um interlocutor menos válido
do que Malcolm X? Será que é possível distinguir entre a prática cultural da excisão e a
decisão de ter um filho surdo (ver acima)?
Com a emergência da «cidadania reclamada», e dado que esta dimana, em última ins-
tância, do carácter incompleto da «cidadania atribuída» do contrato social moderno, o
locus de determinação de quem é a diferença pluralizou-se de tal forma que já não há, apa-
rentemente, modo de recompor um acordo «nacional» ou mesmo «inter-nacional» sobre
esta questão. A incompletude da cidadania atribuída deriva do facto de ser intrinsecamente
incapaz de traduzir o reconhecimento em cidadania participada. Os ciganos, por exemplo,
se forem reconhecidos como cidadãos no sentido universal, vêem a sua participação limi-
tada pela ignorância da sua diferença cigana. Ao pluralizarem-se as vozes dos indivíduos e
dos grupos fazem com que a diferença surja reivindicada nas primeiras pessoas do singu-
lar e do plural: «a diferença somos nós»; a «diferença sou eu».
Cinco lugares do impacto de exclusão social 99

Conclusão

A recomposição do contrato social moderno e as formas emergentes de cidadania, a


que nos temos vindo a referir como cidadania reclamada, colocam subtis dilemas a todos
os envolvidos, aos diversos níveis, na gestão política da educação, sobretudo da educação
pública. Principalmente para aqueles que veêm na educação uma forma privilegiada de
mecanismo emancipatório, isto é, os que vêem nos sistemas educativos instrumentos
que podem contribuir (mais ou menos) para a autonomia dos indivíduos e dos grupos.
O dilema consiste em que o próprio projecto educativo é uma proposta de «Nós» para
«Eles», e todos os projectos partem, de uma forma ou de outra, da assunção optimista de
que as suas premissas são justas e os seus fins desejáveis. Quando «Eles» resistem ao pro-
jecto, não por dificuldades de teor pedagógico, mas por opção («nós não queremos a
“vossa” educação!»), os políticos e os educadores – principalmente os mais generosos –
ficam cada vez com mais frequência esmagados sob o peso dessa resistência que é, por-
tanto, uma recusa.
Veja-se o caso, para exemplificar, da relação entre as comunidades ciganas e a escola
em Portugal. Nos últimos anos, houve um aumento da frequência da escola por parte das
crianças daquela etnia. Muitos analistas referem esse incremento ao teor do contrato no
qual se baseia a atribuição do rendimento mínimo, isto é, este subsídio só é atribuído às
famílias que encaminhem os seus filhos para a escola. A finalidade (e a bondade) desta polí-
tica seria a de que, assim, se torna possível integrar, pela escolarização, as crianças ciga-
nas tornando-as, por seu turno, potencialmente, adultos mais integrados nos «nossos»
grupos sociais e nos mercados de trabalho. A integração no mercado de trabalho através
de escolarização constitui, como têm enfatizado Lenhardt e Offe (1984), o primeiro passo
na transição de «proletarização passiva» (situação da destruição progressiva das condições
de utilização da força de trabalho) para «proletarização activa», isto é, o primeiro passo
num processo de contratualização que inclui como componentes centrais quer a motiva-
ção para o trabalho assalariado (o «querer trabalhar»), quer a atribuição das condições e
das competências necessárias para que o trabalho assalariado possa realizar-se (o «poder
trabalhar»). O que acontece é que algumas vozes na comunidade cigana se erguem no
sentido de enfatizar que a troca «escola pelo rendimento mínimo» é não só uma forma
de chantagem cultural, como também a imposição de uma forma (e ética) de trabalho,
e que as comunidades ciganas têm o direito de educar os seus filhos de acordo com o
seu modo de vida e as normas, valores e preceitos (dentro dos quais se encontra o impe-
dimento da frequência da escola por parte das meninas a partir da sua primeira mens-
truação) que estão na sua base. A experiência de home schooling nos Estados Unidos
(ver Apple, 2000) mostra que existe uma variedade importante de indivíduos e gru-
pos sociais que prefere educar os seus filhos em casa em vez de arriscar efeitos even-
tualmente negativos da escola sobre as suas crenças, valores e modos de vida locais.
Também é verdade que esse movimento de escolarização doméstica se relaciona com e,
em muitos casos, simboliza uma frustração não tanto com o que existe na escola, mas
100 «A Diferença Somos Nós»

mais com aquilo que (diriam eles) não existe, por exemplo, a disciplina, o esforço, a ava-
liação selectiva, etc.
Tudo se parece, então, passar como se os «outros» já não tolerassem sequer a «tole-
rância» e a generosidade de que são objecto, precisamente por se recusarem como objecto
e pretenderem assumir a voz de sujeitos de si. Há nessa atitude uma evidente ligação com
a revolta de grupos sociais que, no passado, punham em causa o desenvolvimento da eco-
nomia capitalista e que reclamavam políticas de redistribuição baseadas, sobretudo (e
como acima já se afirmou) no princípio da igualdade de oportunidades. Como vimos, a res-
posta (ainda hoje não só muito incompleta como ameaçada de novo por um capitalismo
de casino individualista e imprevisível) desenvolveu-se através da atribuição, pelo estado-
-nação, de uma cidadania que era sobretudo social. Mas o que é de sublinhar aqui é a recla-
mação agora baseada numa política de reconhecimento da diferença, na reivindicação de
uma justiça que não seja simplesmente socioeconómica, mas também cultural. Esta recla-
mação, elaborada com base na(s) identidade(s), repõe uma exigência local que, na recusa
de ser identificada com o território nacional, se assume como identificável com múltiplos
locais estendidos pelo mundo fora.
Apanhados entre o olhar generoso e aparentemente descentrado face ao «outro» e a
recusa deste em ser alvo dessa preocupação, os políticos e os educadores parecem algo
desarmados e desorientados. Desarmados porque o sistema de ideias que suportava a sua
intenção e as suas acções parece abater-se sob o seu próprio peso; desorientados porque no
terreno confrontam-se com um sistema educativo cheio de «outros» e de «outras» apa-
rentemente surdos e indiferentes à generosidade das finalidades da educação.
As eventuais saídas dessa situação parecem passar por três considerações. Em primeiro
lugar, a «cidadania reclamada» só se pode sustentar sobre a consolidação da cidadania
moderna ou «atribuída». Isto é, as condições da realização das reivindicações de soberania
inerentes à «cidadania reclamada» dependem (e são simultâneas) de políticas de redistri-
buição: a razão é que não há «qualidade» sem que as questões de «quantidade» sejam
minimamente resolvidas. Em segundo lugar, o próprio «outro» tem de reconhecer a
«nossa» alteridade, pois neste conflito (diálogo) a diferença também somos nós. Todos nos
encontramos num lugar simultaneamente público e privado de transacções comerciais, de
lazer, de prazer, pleno de cores, de odores e de ruídos insubmissos (Stoer e Magalhães, 2000),
pelas mais variadas razões, como diferentes, e é enquanto tal que lá nos encontramos (ver
adiante, «O Lugar do território» e a discussão da metáfora do bazar). A «cidadania atri-
buída» não pode ofuscar este facto, o que tende a fazer quando as questões de «quanti-
dade» não são minimamente resolvidas, isto é, quando não há efectivas políticas de redis-
tribuição. Em terceiro lugar, a educação escolar tem que ser colocada nos guiões dos acto-
res sociais e culturais e não o contrário. Isto significa que a escola, ela própria, também
tem que se tornar «reclamada» e não simplesmente «atribuída». Por outras palavras, a
escola como meritocracia constitui talvez a mais importante política redistributiva da
sociedade democrática. Mas como política redistributiva, há já algum tempo parece ter
ficado enleada nas suas próprias malhas e ter estancado o seu desenvolvimento. A sua
Cinco lugares do impacto de exclusão social 101

renovação depende da sua capacidade de descentração, da sua assunção de lógicas de


desenvolvimento que não sejam restritas à lógica do território nacional. Assumir essas
outras lógicas é, por todos os efeitos, refundar a escola, e é aí que o apelo da «cidadania
reclamada» pode constituir uma das suas vertentes principais.

O LUGAR DA IDENTIDADE

Introdução

A questão da identificação e da identidade surge crescentemente como central na cul-


tura ocidental. Neste trabalho, focaremos a questão da construção das identidades, tendo
como pano de fundo a aceleração, flexibilização, informacionalização (Castells, 1996,
1997) e globalização dos sistemas de produção, distribuição e consumo e a reflexividade
que vêm emergindo como características centrais das sociedades e instituições contempo-
râneas (Giddens, 1992; Beck, 1992). Assim, procuraremos esclarecer quer o carácter rela-
cional dos processos de construção da identidade, quer a natureza não essencialista dos
selves contemporâneos. A identidade é um processo de criação de sentido pelos grupos e
pelos indivíduos. Neste sentido, o self – tanto o individual como o colectivo – é um pro-
cesso no qual a narração e a narratividade assumem um papel central.
Realçaremos, então, as diferenças que existem no processo de construção de identidade
de acordo com os contextos em que este processo tem lugar, por exemplo, em contextos
tradicionais e contextos pós-tradicionais. Simultaneamente, exploraremos a hipótese que
desenvolvemos num outro trabalho (cf. Magalhães, 2001) relacionada com o hibridismo
das identidades e com a crescente reflexividade que se encontra nas actuais trajectórias
biográficas.
As (im)possibilidades da construção de identidade encontram-se delimitadas por aquilo
que Santos (1995) denomina «espaços estruturais», que incluem o espaço doméstico, o
espaço de trabalho, o espaço da cidadania, o espaço comunitário, o espaço do mercado e o
espaço mundial e que representam, ao mesmo tempo, tanto um lugar relativo como cen-
tral na construção da identidade. O que quer dizer que estes espaços, ao mesmo tempo que
proporcionam as matérias-primas com as quais tanto os indivíduos como os grupos cons-
troem as suas identidades, são também relativos, devido ao facto de os «espaços estrutu-
rais» se encontrarem sempre, eles próprios, num contexto específico (isto é, variam de
acordo com o tempo e com o espaço). Procuramos, neste trabalho, desenvolver a ideia
segundo o qual os cinco «Lugares» (corpo, trabalho, cidadania, identidade e território)
igualmente activam e, ao mesmo tempo, (des)activam as (im)possibilidades proporciona-
das pelos «espaços estruturais». Por exemplo:

Danilo é cantoneiro. Falamos com ele enquanto, com a sachola, vai rapando as ervas
daninhas nas bermas ao longo do macadame: «[...] não cheguei a acabar a terceira
102 «A Diferença Somos Nós»

classe... Não tinha capacidade... para a escola... O professor embicava comigo... E eu com
ele... Não tinha capacidade... Mas também trabalhava mais que ele... Desde moço
pequeno que o meu pai me punha ao serviço... Ele era com ovelhas, ele era dar o penso
aos coelhos. Carregar o carro com o milho... Fazer as mêdas... Trabalhava mais que o pro-
fessor... Se – sei lá? – tivesse tido outra vida...». (Entrevista com Danilo realizada pelos
autores)

Danilo, por um lado, assume que «não era nada bom na escola», um «facto» que ele
utiliza para justificar a sua vida de trabalho árduo desde tenra idade. Por outro lado,
levanta a possibilidade de que, se tivesse tido oportunidade de escolher, a sua vida teria sido
outra... Como desenvolveremos a seguir, a história que conta sobre si mesmo transporta
frequentemente a sua história em negativo, a sua anti-história, a que inclui as possibilida-
des impossíveis de surgir como tal.
Os «Lugares», por sua vez, dado que são abstracções das possibilidades enquadradas
pelo tempo e pelo espaço, só ganham vida, enquanto tal, em contextos concretos. Estes
contextos incluem, como dissemos na introdução a este capítulo, a família, a escola, o hos-
pital, a prisão, o tribunal, a vizinhança, etc. É nestes contextos que as possibilidades e as
impossibilidades, traduzidas por «Lugares», são activadas ou desactivadas. Este processo
implica a gestão das escolhas disponíveis para os indivíduos e grupos e as estratégias para
assumir que algumas das escolhas se encontram para lá das nossas possibilidades. Cabe,
neste âmbito, recordar o caso do cantor Michael Jackson, que parece ter feito todo o
possível para se tornar «branco», o que teve, aliás, como efeito realçar a sua «negri-
tude». Outro exemplo, numa direcção oposta, refere-se àqueles que, recusando a genero-
sidade dos que lhes oferecem acesso à sociedade branca, proclamam que são «negros por
escolha».
Os «contextos» que activam os «Lugares» e que, por sua vez, activam os «espaços
estruturais», são, como dissemos antes, configurações espácio-temporais que apresentam
possibilidades que fazem nascer escolhas, tanto para o indivíduo como para os grupos. O
contexto da escola é um excelente exemplo deste processo: ao mesmo tempo que delimita
possibilidades, estas encontram-se, elas próprias, limitadas tanto em natureza como em
número. Por exemplo, um estudante que herdou um capital cultural apreciável (para usar
a expressão de Pierre Bourdieu) não só tem maior gama de oportunidades à sua frente,
mas também, como resultado destas oportunidades, um número mais elevado de escolhas
reais.
Os estados-nação modernos atribuíram a este contexto – a escola – um lugar privile-
giado na concretização do processo de formação da identidade. Como vimos em «O Lugar
da cidadania», espera-se da escola que produza indivíduos com uma ligação forte ao grupo
nacional identificado como sendo os cidadãos de um estado-nação. Este processo de acul-
turação, com as suas componentes diferenciadas – o processo de aprendizagem para ser
um bom trabalhador, um bom pai, um bom cidadão, aprender a ser disciplinado, a ser cos-
mopolita – fizeram da escola um contexto central para a unificação de todas as lógicas ine-
Cinco lugares do impacto de exclusão social 103

rentes aos «espaços estruturais». Neste sentido, a escola tornou-se o contexto privilegiado
da inclusão, o que levou certos autores, à luz da realidade da tendência para a exclusão ine-
rente à escola de massas – ligando ainda esta tendência à reprodução de desigualdades
sociais e culturais –, a falar em «ideologia da inclusão» que, apesar de surgir aparente-
mente fundamentada na promoção da igualdade, serve, de facto, às finalidades do mercado
(Correia, 2001).

A construção da identidade em contextos tradicionais

Em contextos tradicionais, a identidade parece depender de redes de nomes e de luga-


res. Identificar-se é referir-se à sua genealogia e desvendar o seu lugar de origem. Dubar
refere-se a essas formas de identificação comunitárias como sistemas de nomes e luga-
res (2000). O facto de espaço e tempo serem inseparáveis em contextos tradicionais tor-
nam-nos ainda mais fortes enquanto lugares identitários. Transmitem uma plenitude
de significado sem momentos vazios. Na verdade, todos os momentos e lugares possuem
um sentido de plenitude, permitindo às pessoas que passam por eles e que sejam dirigi-
das por eles, uma forte segurança de identidade. Determinado lugar é sempre um lugar
onde alguma coisa aconteceu, a propriedade de alguém, que leva a outro lugar, sagrado
ou profano e, por esta razão, encontra-se confundido com a história de alguma pessoa.
Acontece do mesmo com o tempo: é sempre tempo para alguma coisa; é sempre «antes»
ou «depois» da plantação, da procissão de São Miguel o Anjo, da colheita do trigo, da
matança do porco, do tempo das vindimas, etc. O espaço e o tempo descontextualizados
são produtos da modernidade, da urbanização, do relógio mecânico e do seu tempo uni-
versal.
As narrativas identitárias num contexto tradicional parecem construir e parecem estru-
turar-se na base do espaço doméstico incluindo a propriedade e a própria pessoa nas neces-
sidades familiares.

A construção da identidade no contexto da modernidade capitalista

A modernidade é uma forma de pensar e de organização de vida que, desde o século


XVII, se espalhou da Europa para espaços cada vez mais vastos. No século XIX, este para-
digma sociocultural relacionou-se com o capitalismo e os indivíduos/ cidadãos foram pro-
gressivamente reconfigurados como empregados ou trabalhadores, como assalariados em
geral. A identificação por via do lugar do trabalho, através da actividade laboral, tornou-se
progressivamente central para os discursos de identidade. As actividades laborais eviden-
ciaram-se como parte importante do sistema de produção capitalista; pressupõem um ope-
rário desqualificado, um artesão sem arte, um mestre sem mister, o trabalho como merca-
doria. Os discursos de identidade surgem cada vez mais organizados à volta desta activi-
104 «A Diferença Somos Nós»

dade ocupacional («sou um electricista», «sou um padeiro», etc. – ver «O Lugar do traba-
lho»). Cada indivíduo e as suas estratégias de vida desenvolvem-se progressivamente
na base de uma identidade criada dentro e através da actividade laboral e no lugar que
cada qual ocupa no mundo da produção como se este último moldasse as características
de cada um.
No romance Mulheres Apaixonadas, de D. H. Lawrence, a personagem Birkin afirma
que mesmo os desejos dos indivíduos se expressam na base da sua situação de classe:

[...] temos o ideal dum mundo perfeito, correcto, eficaz e decente. Mas, em seguida,
cobrimos a terra de imundíces; a vida é um pântano de insectos debatendo-nos
no charco, a fim de que o mineiro tenha um piano na sala e você um mordomo e um
automóvel na sua casa modernizada; e todos, como nação, podemos divertir-nos no
Ritz ou no Empire, com a Gaby Deslys e com os jornais de domingo. É lúgubre, meu
amigo!
[...]
– Não considera você o piano do mineiro (segundo a sua expressão) como o sím-
bolo de uma ambição verdadeira, o desejo de qualquer coisa mais alta na vida do ope-
rário?
– Mais alta? Sim. Perturbadoras alturas da grandeza absoluta! Eleva-o bastante aos
olhos do mineiro seu vizinho. Vê-se refractado no conceito deste último, como que
aumentado através da neblina... umas poucas de vezes o comprimento do piano... e fica
satisfeito. Vive para manter essa ilusão, que é a sua própria imagem reflectida na opinião
pública. Você não faz diferença. Se, aos olhos dos seus semelhantes é pessoa de impor-
tância, não é de menor importância com relação a si mesmo. Eis a razão pela qual tra-
balha tão afincadamente nas minas. Se for capaz de extrair carvão suficiente para cozi-
nhar cinco mil jantares por dia, é cinco vezes mais notável do que se produzisse apenas
para o seu próprio jantar. (Lawrence, 1970: 63-4)

O espaço do trabalho estruturado pelo industrialismo é dúbio no que concerne à for-


mação dos selves. Por um lado, ao organizar a actividade ocupacional sob a forma de car-
reiras, dá às pessoas uma dimensão «a longo termo» (Sennett, 2001), dado que elas pode-
riam articular com relativa segurança as suas narrativas identitárias. Por outro lado, pela
via do fordismo-taylorismo vista como uma forma de organização do processo de trabalho,
proporciona um contexto no qual o trabalho é significativamente desvalorizado (cf.: «O
Lugar do trabalho»).
Efectivamente, a função das carreiras como um tipo de «casulo protector», como «uma
defesa de protecção que filtra os perigos potenciais» (Giddens, 1991: 127) é crucial para a
construção de segurança e de sentido. Proporcionam uma confiança básica, isto é, a con-
fiança na continuidade dos outros e do mundo objectivo, uma confiança que funciona na
base da garantia da possibilidade de narrativas de identidade consistentes. Sennett, a partir
de uma entrevista com um americano em 1970, afirma:
Cinco lugares do impacto de exclusão social 105

O que mais me impressionara em Enrico e na sua geração fora a lineraridade do


tempo das suas vidas: ano após ano a trabalhar em empregos cujo dia-a-dia raramente
variava. E ao longo dessa linha de tempo, os resultados eram cumulativos: Enrico
e Flavia verificavam todas as semanas o aumento das suas poupanças e mediam a
sua domesticidade pelos melhoramentos e pelos acrescentos que tinham feito à sua
casa rural. Finalmente, o tempo em que viveram era previsível. As grandes convulsões
da Grande Depressão e da Segunda Grande Guerra tinham desaparecido, os sindica-
tos protegiam-lhes os empregos; embora tivesse apenas quarenta anos quando o
conheci, Enrico sabia exactamente quando se reformaria e quanto dinheiro teria.
(Sennett, 2001: 26)

O outro aspecto, a desqualificação do trabalho através da sua redução a um número


mínimo de gestos, parece, em compensação, corroer a segurança ontológica proporcio-
nada pela estabilidade da carreira profissional. O trabalhador industrial não assume a nar-
ração como quem controla o seu trabalho. Na verdade, o carácter de muito do trabalho
industrial encontra-se ameaçado pela repetição estupidificante e quase totalmente sem
sentido. No entanto, a falta de interesse resultante da rotinização das tarefas de produção
nas manufacturas parece ser compensada por algum tipo de capacidade de previsibilidade
que a inserção numa carreira proporciona aos sujeitos.
Quando o Lugar de trabalho passou do doméstico – onde se encontrava situado nas
sociedades pré-modernas – para o espaço industrial –, o seu lugar próprio numa sociedade
capitalista industrial –, esta mudança reconfigurou fortemente as identidades dos que
habitavam esse lugar. Todavia, as narrativas familiares encontram-se frequentemente
estruturadas à volta da história do trabalho de outros membros da família.

A pluralização da narrativa do estado-nação e dos espaços em que a identidade se forma

A modernidade, tanto no que respeita à emancipação como à regulação, prometeu a


desalienação dos indivíduos e a sua transformação em cidadãos com uma «consciência
esclarecida». Dessa forma, ser incluído na sociedade moderna pressupunha ser um indiví-
duo consciente, membro de uma nação e súbdito de um estado. Ter uma identidade era
pertencer a si próprio e ao estado-nação. Existia uma forte relação entre as autonarrativas
e as narrativas do estado-nação, isto é, o self correspondia aos desejos do estado-nação e
vice-versa (ver «O Lugar da cidadania»).
Nos contextos contemporâneos, a correspondência entre a autonarração e a narrativa
do estado começou a enfraquecer. A narrativa do estado-nação tem vindo a implodir por
duas ordens de razões. Em primeiro lugar, os estados-nação ocidentais, através da reflexão
sobre acontecimentos históricos – frequentemente realizada por intelectuais (ver, por
exemplo, os excelentes trabalhos de Immanuel Wallerstein (1990) e de Michel Foucault
bem como o trabalho inovador de Benedict Anderson, de 1983, em que ele cunha o termo
«comunidades imaginadas») –, desvelaram as narrativas do estado-nação como dispositi-
106 «A Diferença Somos Nós»

vos de legitimação dos seus aparentemente gloriosos feitos, mas que foram, muitas vezes,
e na prática, pouco mais do que a justificação da escravatura, da colonização, da explora-
ção capitalista, etc. Em resultado disto, o estado-nação enquanto mecanismo discursivo
capaz de reorganizar todos à volta da sua bandeira, começou a perceber a sua crescente
fragilidade. Em segundo lugar, como foi dito antes em «O Lugar da cidadania», as próprias
«diferenças» começaram a rebelar-se contra os ditames epistemológicos, sociológicos e
políticos do estado-nação. Com base na localidade e na diferença, as narrativas nacionais
foram desafiadas por outras narrativas, sendo elas ecológicas, feministas, referentes a iden-
tidades sexuais, estilos de vida, populações indígenas, etc. O resultado da confluência
destas duas razões foi um processo de enfraquecimento da narrativa nacional como ins-
trumento de legitimação para actos de violência, redistribuição da riqueza e de poder. Por
outras palavras, a pluralização das narrativas no interior do estado-nação teve lugar sem
ter desaparecido a própria narrativa do estado-nação.
A autonarração sentiu, por outro lado, o processo de pluralização dos espaços estrutu-
rais onde se forma a identidade. Neste sentido, cada lugar é mais heterogéneo e eventual-
mente fragmentado. Como dissemos antes em «O Lugar da cidadania», o espaço estrutural
delimitado pela acção do Estado está a ser reconfigurado pelo que nós designámos «a cida-
dania reclamada», isto é, a cidadania cujos contornos se desenvolvem com base na dife-
rença (por isso, a cidadania pode ser reclamada não só pela afirmação «sou francês», mas
também pela afirmação «sou homossexual») (ver também Magalhães e Stoer, 2003). Este
processo de reconfiguração apresenta claras implicações para o processo de pluralização
dos indivíduos: por exemplo, é mais ou menos importante para a estruturação do self ser
francês ou ser homossexual?
Como vimos em «O Lugar do trabalho», o trabalho, tal como é conceptualizado no
capitalismo moderno, é um processo que se está a reconfigurar. Ao tornarem-se flexíveis e
imprevisíveis, as carreiras profissionais já não constituem, como anteriormente, uma base
sólida sobre a qual a identidade se possa construir. As profissões articulam-se com trajec-
tórias de vida, mas não definem os indivíduos. No espaço doméstico, criam-se também
condições para a pluralização dos selves. Isto acontece, por exemplo, das seguintes formas:
desafios à «estrutura feudal» (Beck, 1992) da família; crescente complexidade do que é
considerado família; diferenças que invadem a família.
É ainda crucial para a formação de identidades a crescente importância daquilo que nós
referimos (na linha de Santos, 1995) como o lugar mundial. Por um lado, as identidades
do estado-nação são aspiradas para cima (sem necessariamente perderem a sua soberania)
por grandes identidades regionais em formação (tais como a União Europeia); por outro
lado, ao mesmo tempo que isto acontece, as identidades locais são também afectadas e
recompõem-se em relação às identidades mais amplas (frequentemente «a favor» ou «con-
tra»). O crescente protagonismo do espaço mundial não reduziu forçosamente o papel das
comunidades locais. O poder da comunidade, em vez de ser paradoxal (no que se refere à
globalização) torna-se, pelo contrário, uma das consequências do próprio processo de glo-
balização, quer dizer, é simultaneamente local e, neste sentido, está a lidar com um pro-
Cinco lugares do impacto de exclusão social 107

cesso de «glocalização». Tomemos, por exemplo, o caso das estátuas de Buda no Afeganistão
que se tornaram o centro de uma crise mundial devido à expressão das identidades reli-
giosas locais que quiseram, assim, fazer valer a sua diferença face à hegemonia ocidental.

O ornitorrinco como uma metáfora orientadora

Um dos companheiros do capitão Cook ofereceu um exemplar ao zoólogo Blumen-


bach que lhe deu o nome, que significa precisamente «bico de ave». Um «erro da natu-
reza!», um «erro de Deus!» disse-se então. O Ornithorhynchus é um mamífero da ordem
dos monotrematos que pode ser encontrado em pequenos cursos de água e nos lagos do
sudoeste da Austrália e da Tasmânia. Com cerca de 40 a 50 cm de comprimento é um oví-
paro. Tem, aliás, um bico córneo semelhante ao do pato, patas espalmadas e o rabo chato,
o que lhe permite cavar galerias e compartimentos perto da água. Aliás, por isso os autóc-
tones lhe chamavam «toupeira-de-água». (Magalhães e Stoer, 2003: 2)

O ornitorrinco não é a combinação de um pato com um castor que, por sua vez, tem
semelhanças com uma toupeira. Não é uma colagem, mas, antes, uma entidade própria.
Neste sentido, é interessante distinguir, nos três textos que a seguir apresentamos, entre
os personagens de Cissako, Maalouf e Maya.

«Em França devemos viver como os franceses»

Cissako gosta de viver aqui (em Paris). Mas, se pudesse escolher, vivia no Mali, junto
da sua família gigante que partilha a mesma casa: três mulheres e onze filhos entre os
dois e os vinte e três anos. Por ele, a família não era tão grande, uma mulher bastava-lhe.
Mas os pais insistiam para que casasse de novo e ele, bom filho, não quis contrariá-los:
casou uma vez, mais outra e mais outra. «No Mali é assim, temos de seguir a tradição e
respeitar a palavra dos mais velhos», diz Cissako. Este africano que chegou a Paris em
1979 é um fiel seguidor da tradição africana que aprendeu e nem estes vinte anos em
França o fizeram mudar de opinião em relação a temas como a excisão. Ele mandou exci-
sar as oito filhas uma semana após o nascimento e explica o porquê: «se as mulheres não
forem excisadas em pequenas, desejam os homem e, aí, nós já não conseguimos ter três
mulheres [...] Temos de manter a nossa tradição familiar e conjugal» [...].
O tema da excisão é quente em França como em qualquer país que acolha no seu seio
comunidades com práticas culturais que violem o que está definido como «direitos
humanos». Cissako sabe-o e é por isso que defende que, em França, as comunidades
estrangeiras não devem praticar a excisão. «Quem tenha filhas em França deve ir ime-
diatamente ao seu país fazer a excisão, enquanto elas ainda são pequenas, e depois voltar.
[...] Em França, devemos viver como os franceses», remata. E é isso mesmo que faz sem-
pre que sai do foyer: despe a longa túnica azul com que nos recebe e enfia umas calças
claras, com camisa bem engomada e blusão beige. «Sempre que ando na rua, visto-me
como os ocidentais, porque não tenho que dar nas vistas, devo ser como a maioria. No
foyer é outra coisa, é como se estivesse em minha casa», explica. (Godinho, 2002)
108 «A Diferença Somos Nós»

«Tornar-me-ia mais autêntico se amputasse uma parte de mim mesmo?»

Desde que deixei o Líbano, em 1976, para me instalar em França, perguntam-me


muitas vezes, com as melhores intenções do mundo, se me sinto «mais francês» ou «mais
libanês»; respondo invariavelmente: «Um e outro!». Não por um qualquer desejo de equi-
líbrio ou equidade, mas porque, se respondesse de outro modo, estaria a mentir. Aquilo
que faz que eu seja eu e não outrem é o facto de me encontrar na ombreira de dois países,
de duas ou três línguas, de várias tradições culturais. É isso precisamente o que define a
minha identidade. Tornar-me-ia mais autêntico se amputasse uma parte de mim mesmo?
Aos que me fazem a pergunta, explico pois, pacientemente, que nasci no Líbano, aí
vivi até aos 27 anos, que árabe é a minha língua materna, que foi na tradição árabe que
descobri Dumas, Dickens e As viagens de Gulliver, e que foi na minha aldeia das monta-
nhas, a aldeia dos meus antepassados, que conheci as primeiras alegrias de menino e ouvi
certas histórias em que me iria inspirar, mais tarde, para os meus romances. Como pode-
ria esquecê-lo? (Maalouf, 1999: 9)

«Sou um camaleão!»

Maya é uma japonesa nascida em Tóquio que, «aos quinze anos já tinha aprendido
como ser japonesa». Foi para os Estados Unidos de onde o seu pai era natural, depois foi
dois anos para Taiwan, apaixonou-se por um inglês e foi viver para Londres. Elegeu Paris
entre todas as cidades que conhecia por lhe parecer a que melhor enquadrava as suas
múltiplas vidas:
Agora, entre todas as cidades do mundo, Maya escolheu Paris, onde «tudo o que faço
está bem. Em França vale tudo!». Claro que as coisas são assim porque não tentou ser
francesa. «Gosto de me considerar uma cigana... Sinto que sou feita de cores diferentes.
Não sei dizer que parte é que sou: a americana ou a japonesa. Sou a soma, sou o total».
Passou a ser apresentadora para a televisão japonesa. Quando entrevista um ocidental em
inglês, é completamente ocidental, mas quando coloca a maquilhagem e apresenta a
entrevista em japonês, na NHK, os seus olhos iluminam-se de uma maneira diferente, a
linguagem transforma as suas expressões faciais e parece ser uma pessoa diferente. «Sou
um camaleão», diz. A vantagem está em que se sente confortável numa muito maior
gama de caracteres. (Zeldin, 1996: 48)

A identidade de Cissako parece ser uma bricolage de diferentes selves: está perfeita-
mente consciente que o seu self mali existe independentemente do seu self francês. Parece,
no entanto, manipular os contextos de acordo com os seus desejos, isto é, parece «usar»
os contextos para construir a sua própria identidade. Todavia, poder-se-ia argumentar que
o que se passa neste caso é exactamente o contrário: podemos analisar o caso em termos
de serem os contextos que determinam que self é que Cissako assume num determinado
momento. Não é Cissako que manipula os contextos; são antes os contextos que manipu-
lam Cissako.
Maalouf, por sua vez, considera-se também produto de um processo de bricolage.
Declara veementemente que, em todos os contextos, todo ele está presente. Mais: insiste
Cinco lugares do impacto de exclusão social 109

que nenhuma parte de si pode ser alienada sem ele perder a sua identidade. Podemos afir-
mar, assim, que Maalouf manifesta a existência de uma luta com os diferentes contextos e
está ansioso por impor o seu controlo sob eles.
Finalmente, Maya afirma ser um «camaleão», assumindo naturalmente que a sua apa-
rência muda em conformidade com o contexto. Neste sentido, vive todos os contextos
como se não houvesse tensões entre o contexto e os seus diferentes selves. Todavia, não
existem «selves verdadeiros», como algumas teorias psicanalíticas parecem sugerir. Pelo
contrário, é o grau de reflexibilidade de Maya que aqui está em jogo. Podemos entender
esta posição de Maya através da afirmação de teor psicanalítico: «em lugar do Id colocar o
Ego». Assim, a pluralização de identidades não pode ser reduzida à existência de persona-
lidades múltiplas, um fenómeno do foro do Id e não do Ego: podemos, dessa forma, argu-
mentar que a identidade múltipla de Maya parece ter sido por ela levada a tal ponto que se
tornou, não um camaleão como ela diz, mas, sim, um ornitorrinco!

Conclusão

Em contextos pós-fordistas, podemos argumentar que a construção da identidade


acontece crescentemente «de baixo para cima», no sentido em que ela é determinada
menos pelos espaços que contextualizam essa construção e mais pela iniciativa dos
que proporcionam agência a esses espaços. A construção de narrativas de identidade activa
e/ ou integra espaços identitários no projecto do self como um fornecedor de sentido.
No outro lado desse processo, encontra-se a construção das «identidades de exclusão»
que conscientemente rejeitam esses espaços. Em nome de uma narrativa identitária.
Por exemplo, Malcolm X declarava a sua identidade com base na sua negritude, que
ele considerava superior à identidade branca apesar de ter sido essa a base da sua exclu-
são como negro da sociedade americana. Outro exemplo pode ser encontrado no caso
dos ciganos em Portugal, que desejavam produzir um dicionário da língua Caló (uma
variante ibérica do romeno). O dicionário deveria servir para facilitar o diálogo entre
duas comunidades falando línguas diferentes – a comunidade cigana Romani e a comu-
nidade portuguesa –, ainda que partilhando o mesmo espaço de cidadania. Um grupo
de ciganos criticou, no entanto, o projecto, por ele pôr em risco as estratégias de sobre-
vivência ciganas. Disse um membro deste último grupo: «O secretismo da linguagem
Caló é vital para a sobrevivência do grupo. O que está em jogo não é só uma questão de
diálogo e comunicação». Em resultado disto, o estatuto de «não-cidadão» (Agamben,
1993), ou o estatuto de cidadão não participante, foi considerado melhor opção do
que autorizar o grupo dominante a ter acesso aos meios de comunicação do grupo subor-
dinado.
Argumenta-se aqui que as identidades construídas em contextos pós-fordistas corres-
pondem crescentemente a uma relação reflexiva que os selves mantêm uns com os outros
e, neste sentido, o indivíduo e/ ou o grupo é a história que cada self conta a respeito de si
110 «A Diferença Somos Nós»

próprio. Estas histórias desempenham um papel fundacional e, por isso, ontológico, dado
que dão sentido e legitimidade à posição e à acção social dos indivíduos.
Esta afirmação poderia ser vista como profundamente idealista se a entendêssemos
como a redução de um contexto e das suas respectivas determinações estruturais (através
das quais os indivíduos se confrontam a si próprios) à sua tradução em discurso. No
entanto, as determinações e constrangimentos surgem dos contextos, ao mesmo tempo
como elementos narrativos e como o lado «negativo» da narrativa. Este facto é particu-
larmente evidente nas justificações dadas pelos sujeitos nas suas narrativas para as esco-
lhas que fizeram. Como Sarup sugere, as histórias que contamos sobre nós próprios e
acerca das escolhas que fizemos deixam por detrás como que um negativo de uma foto-
grafia, todas as outras histórias e escolhas que nós não contamos, que não fizemos e que
nem sequer surgiram como possibilidades:

[...] penso que se pode dizer que a identidade não é auto-suficiente; é necessaria-
mente completada por uma certa ausência, sem a qual não existe. Parece útil perguntar
às identidades o que é que elas implicam e o que é que não dizem. Ou à volta ou no limiar,
o explícito requer o implícito. Tal como no discurso, para se dizer alguma coisa, há
outras coisas que não devem ser ditas; poderíamos dizer assim: para se ser alguma coisa
há outras que se não pode ser. O que é importante na identidade não é aquilo que se pode
dizer, mas sobretudo aquilo que se não pode ser. (Sarup, 1996: 24)

O que faz da identidade um assunto tão central como «Lugar» é a sua crescente refle-
xividade. Os indivíduos e os grupos parecem estar cada vez mais conscientes do processo
de formação identitária e das suas possibilidades de intervir sobre ele. Por outro lado, onde
antes encontrávamos certezas – «Sou da classe média, branco, anglo-saxónico, protes-
tante, sexo masculino e urbano» – surgem agora incertezas. «Sou da classe média?», «Sou
anglo-saxónico?», «Sou branco?», «Sou urbano?». Quer dizer, sou, ou quero ser, alguma
dessas identidades ou todas elas? A pluralização de identidades, que referimos antes, leva-
-nos a uma situação em que é necessário «(h)abitar pelo menos duas identidades, falar
(pelo menos) duas línguas de cultura, traduzir e negociar entre elas. As culturas do hibri-
dismo são um dos tipos distintivos das identidades que se produzem na era da moderni-
dade tardia [...]» (Hall, 1992: 310).

O LUGAR DO TERRITÓRIO

Território como constructo social

Ao abordar o «Lugar do território», parece importante encarar o território como uma


construção social. Isso significa, em primeiro lugar, que não estamos perante um conceito
neutro, como se se tratasse de um conceito universal e único para aqueles que o enun-
Cinco lugares do impacto de exclusão social 111

ciam. Por exemplo, os gregos concebiam o seu território como um espaço delimitado pela
polis. A dimensão da cidade e o número dos seus habitantes deveria ser tal que, do seu
ponto mais elevado, pudessem ser abarcados com o olhar. Na Idade Média, o território, nas
sociedades ocidentais, foi visto do ângulo da identidade com o cristianismo. A palavra de
Deus e a cidade de Deus eram território cristianizado. O trabalho de Santo Agostinho De
Civitate Dei defende que a história da humanidade se fez da luta entre duas cidades ou
reinos: a cidade da Terra e a cidade de Deus, o reino da carne e o reino do espírito. Em
ambos os casos – para os gregos e para os tempos medievais –, o território é determinado
pela sua apropriação por parte da comunidade e é, pois, político nesse sentido.
O tempo e o espaço em sociedades tradicionais foram organizados na base de dualida-
des tais como o tempo/ espaço sagrados e o tempo/ espaço profanos. A sociedade determi-
naria, então, certos momentos e certos espaços como centrais para a vida da comunidade.
A própria vida dos indivíduos estava organizada à volta de momentos especiais (segmentos
de tempo) e espaços (segmentos de espaço). Neste sentido, o tempo e o espaço estavam
estruturalmente organizados na base de rituais que tinham a repetição como a sua finali-
dade. É a repetição do acto fundador, tanto da sociedade como dos sistemas de crenças, que
sublinha o tempo e o espaço sagrados. O tempo e o espaço profanos são definidos com base
no que não é sagrado, isto é, o que é profano é o que constitui o outro lado do sagrado e é
definido em relação a ele. Tanto o espaço e o tempo sagrados como os espaços e os tempos
profanos ocupam todo o tempo e todo o espaço, o que significa que, nas sociedades tradi-
cionais, não existem momentos nem espaços vazios. O território, neste sentido, encontra-
-se impregnado de significações simbólicas para a comunidade que, pelo seu lado, converte
o território na «nossa» terra.
Nesse contexto, o estranho e o território exterior à comunidade são uma ameaça, por
exemplo, de caos, e são entendidos na maioria dos casos como tendo um estatuto inferior.
Ser incluído é ser parte da árvore familiar, da comunidade, parte da sua história genealó-
gica e, desta forma, identificável com um lugar e com um nome. Deste modo, nas socie-
dades sedentárias, os nómadas são vistos como uma ameaça potencial; mais tarde, no
estado-nação, sofreram pressões de um estado normalizador, que os quis integrar no seu
ímpeto regularizador. Os povos nómadas foram frequentemente vistos como perigosos, e
não só porque eram inidentificáveis em termos de nome e em termos de espaço. A inclu-
são/ exclusão na comunidade verifica-se pela atribuição de um lugar hierárquico ao indi-
víduo ou ao grupo. Assim, o território não-homogéneo é, em si próprio, uma fonte de
inclusão/ exclusão. Desde que se nasce num determinado lugar, existe a expectativa de que
lá se permaneça ou se seja obrigado a lá ficar.

O território homogéneo

Nos tempos modernos, o território era equivalente ao que era determinado pelas
fronteira físicas do estado-nação. Este conceito de território estruturou, durante mais
112 «A Diferença Somos Nós»

de dois séculos, a relação entre o tempo e o espaço nas sociedades ocidentais, particu-
larmente quando o capitalismo se entrelaçou com a modernidade. Não só o tempo se
tornou dinheiro, como também o próprio dinheiro acabou por circular internacio-
nalmente, ligando territórios, descontextualizando, como Giddens afirma, o tempo do
espaço.
Na verdade, as narrativas nacionais atribuem ao território um papel fundador que se
encontra ilustrado na referência comum feita ao território nacional como «território
paterno» ou «terra-mãe». É interessante notar como o patriotismo – o amor pelo seu país
– se opõe à reivindicação das nações modernas de ser racionalmente construídas e etnica-
mente plurais. O caso dos Balcãs realça esta contradição entre o estado-nação racional-
mente construído e o desejo de eliminar grupos étnicos competidores. Neste sentido,
pode-se argumentar, por exemplo, que a Sérvia, em nome da diferença dos sérvios, dese-
jou «limpar» o seu território dos «outros» competidores.
No paradigma sociocultural da modernidade, o espaço global é concebido como um
«espaço nações», isto é, não existe território que não possa ser concebido como território
nacional e, neste sentido, todo o território é totalmente incluído. Por outras palavras, não
existe espaço para as designadas «terras de ninguém» – e quando elas existem, por exem-
plo sob a forma de «zonas desmilitarizadas» constituídas por zonas entre as fronteiras de
estados-nação, deixam de ser território dos estados-nação sob a condição de se tornarem
efectivamente «terras de ninguém». Mesmo a Lua, tocada pelo primeiro homem em 1969,
foi imediatamente reivindicada através do símbolo da bandeira americana. De facto, é inte-
ressante verificar como o território se tornou tão importante na modernidade: ao rece-
bermos um bilhete-postal do estrangeiro, a primeira pergunta que fazemos é: «de onde
veio?» significando: «que país controla esse território?».
A segunda característica importante do território no contexto da modernidade é a sua
natureza homogénea. Por acção do estado, através do seu aparelho e agentes, o território
nacional e tudo o que constitui a sua superfície são homogeneizados pelas normas judi-
ciais, educacionais, de saúde, de habitação e de ambiente que constituem a sua base e as
suas regras de governação. A nacionalização do território corresponde à territorialização
do estado em dois sentidos: em primeiro lugar, o estado apropria-se simbólica e efectiva-
mente do território e, em segundo lugar, o que é local é convertido em nacional (ver «O
Lugar da cidadania»).
Ser homogéneo significa, enquanto projecto político e no sentido republicano: (i) ser
o mesmo em todos os locais, portanto os espaços e edifícios públicos assemelham-se inten-
cionalmente por todo o território («o mesmo estado, para todos os cidadãos no mesmo ter-
ritório»); (ii) ser geométrico, significando que em todos os pontos do território nacional
se encontra uma equidade qualitativa (a diferença entre Londres e Manchester tem a ver,
em termos matriciais, com a diferença em quilómetros e não com a qualidade dos servi-
ços estatais). Neste sentido, todos os locais no território nacional são equivalentes.
Finalmente, significa que a organização racional do território nacional é como se de um
todo se tratasse e não na base de considerações locais.
Cinco lugares do impacto de exclusão social 113

No que respeita à inclusão/ exclusão, o território nacional define a fronteira entre o que
é exterior – e, logo, estranho – e o que é interior – e, por isso, pertencente ao espaço nacio-
nal. Quanto ao primeiro aspecto, a regulação pelo sistema inter-estadual atribui ao estado-
-nação o papel de lidar com os que são actualmente cidadãos de outros estados-nação e
formalmente «estrangeiros» e, assim, potenciais criadores de caos. Em relação ao segundo
aspecto, a acção homogeneizadora do estado e dos seus agentes (professores, médicos,
enfermeiros, assistentes sociais, polícia, juízes, etc.) tenta assegurar uma distribuição
racional (que implica uma mobilidade interna) (ver Gouldner, 1970). A regulação do fluxo
e a distribuição da população no território nacional implica o controlo de todos os que
podem potencialmente escapar ao amplexo de cuidados por parte do estado; por exemplo,
aqueles que cometem «más acções» e crimes, aqueles que circulam erraticamente (os
ciganos, por exemplo), os que chegam ilegalmente do estrangeiro (refugiados e migran-
tes) e os que questionam o que, na verdade, é importante para a vida (por exemplo, os
doentes mentais). Esse controlo implica a criação de territórios internos, ainda que mar-
ginalizados (asilos, prisões, alojamentos sociais, hospitais psiquiátricos, etc.), de forma a
reabilitar os indivíduos enquanto cidadãos «saudáveis» e assegurar o ordenamento racio-
nal das relações sociais. Todos os territórios, como territórios potencialmente homogé-
neos, vêem a diferença e a diversidade como uma ameaça que, no mínimo, deve ser disci-
plinada. Esta disciplina da diferença é articulada, de uma forma mais ou menos evidente,
com as necessidades do mercado de trabalho e com as preocupações com o crescimento
económico. Assim, não chega ser um bom cidadão nacional, é necessário ser também um
bom trabalhador (ver «O Lugar do trabalho»).

A des/ reterritorialização do território

Podemos afirmar que o que tem sido designado «globalização neoliberal» implica um
processo de desterritorialização, especialmente, como lembra Santos (2001), no que res-
peita às relações sociais (ver «O Lugar da cidadania»). Como vimos antes, a chamada «eco-
nomia do conhecimento» funciona mais na base da informação e da comunicação e menos
na base de produtos materiais. Santos sugere que a «economia do conhecimento» usa
meios sem materialidade e, por isso, é independente dos territórios. Todavia, ao mesmo
tempo que isto deve ser reconhecido, é também verdade que se verifica uma nova afirma-
ção das relações sociais baseadas na territorialização.

Com a intensificação da interdependência e da interacção globais, as relações sociais


parecem, de modo geral, cada vez mais desterritorializadas, ultrapassando as fronteiras
até agora policiadas pelos costumes, o nacionalismo, a língua, a ideologia e, muitas vezes,
por tudo isto. Neste processo, o Estado-nação, cuja principal característica é, provavel-
mente, a territorialidade, converte-se numa unidade de interacção relativamente obso-
leta, ou pelo menos, relativamente descentrada. Por outro lado, porém, e aparentemente
em contradição com esta tendência, assiste-se a um desabrochar de novas identidades
114 «A Diferença Somos Nós»

regionais e locais alicerçadas numa revalorização do direito às raízes (em contraposição


com o direito à escolha). Este localismo, simultaneamente novo e antigo, outrora consi-
derado pré-moderno e hoje em dia reclassificado como pós-moderno, é com frequência
adoptado por grupos de indivíduos «translocalizados», não podendo por isso ser expli-
cado por um genius loci ou um sentido de lugar único. Contudo, assenta sempre na ideia
de território, seja ele imaginário ou simbólico, real ou hiper-real. A dialéctica estabelece-
-se, portanto, entre territorialização e desterritorialização. (Santos, 1993: 18)

Com o advento da «sociedade em rede» e do «capitalismo informacional», o tempo e o


espaço são, em larga medida, absorvidos por uma realidade electrónica que se estende para
lá de um território físico: o território é um espaço virtual em que circula o dinheiro não
como entidade física cujo valor é garantido por sistemas bancários nacionais, mas, pelo
contrário, como bytes de informação circulando a uma velocidade enorme. Neste sentido,
o próprio dinheiro deixa de ser palpável. Esses não-territórios obtêm a sua consistência
máxima como «não-lugares», tais como os paraísos off-shore.
A reconfiguração em curso do território actual não só cria territórios desterritoriali-
zados (identificados acima como espaços virtuais), mas também remodela a natureza e a
significação da soberania definida nacionalmente (ver «O Lugar da cidadania»). Por sua vez,
a organização do tempo, inicialmente baseada no império (por exemplo o «tempo médio
de Greenwich»), torna-se actualmente muito importante para o horário de abertura e de
encerramento dos principais mercados bolsistas pelo mundo afora. Esta nova organização
do tempo é articulada com novas formas de regulação do estado-nação que, quanto mais
estão em sintonia com a globalização da circulação do capital, mais permitem a certos
estados-nação dominar não só os seus vizinhos, mas também a cena internacional. Com a
criação de um espaço virtual e territórios desterritorializados, surgiram novas formas de
exclusão/ inclusão territorial, como, por exemplo, o acesso ao mercado bolsista e à capa-
cidade de nele investir, ou àqueles capazes de circular de um território para o outro como
«trabalhadores autoprogramados», enquanto outros se encontram confinados ao «traba-
lho genérico» e ficam prisioneiros dos territórios nacionais mesmo locais (ver «O Lugar
do trabalho»).
A remodelação do conceito de território do estado-nação é baseada na emergência de
identidades novas, reforçadas e muitas vezes reinventadas, e de reivindicações expressas ao
nível local. Neste sentido, o que era um território nacional, republicano e homogéneo,
transforma-se numa bricolage de locais diversos, competitivos e potencialmente separa-
dos, não necessariamente organizados com base num território físico, mas, por exemplo,
em identidades e estilos de vida partilhados (e.g. a comunidade gay). Sem dúvida, o
aumento da imigração desempenha, neste processo de heterogeneização, um papel central
devido ao seu efeito sobre a organização do espaço nacional do estado-nação. Espaços
como China Town (e el gran Broadway, referidos por Mike Davis [1987] na sua análise de
Los Angeles, entre outros exemplos), que sob a regulação do território pelo estado-nação
não ocuparam um papel central, assumem agora o papel crucial de eixo organizador do
Cinco lugares do impacto de exclusão social 115

espaço. Este fenómeno tende a transformar os antigos territórios «modernos» em espaços


fragmentados que diferentes identidades tentaram ocupar (São Francisco é tão ou mais
conhecida como a «capital gay mundial» do que como uma grande cidade norte-ameri-
cana). Também, neste sentido, o espaço europeu e a própria construção política da Europa
aumentam a pertinência deste processo de heterogeneização, apanhado entre duas lógicas,
uma baseada na «moderna» homogeneidade – que implica pensar a Europa como um
grande estado-nação (em competição com outros grandes estados-nação) – e a outra
baseada no que poderíamos chamar um conceito-bricolage de unidade, em que a Europa
é pensada como uma unidade com base na diversidade.
Esta última lógica aponta para uma Europa na qual as diferenças são entendidas como
inerentes e tentam comunicar na base da sua aparente incomensurabilidade e não na base
de uma aparente igualdade de uma herança europeia partilhada. No Capítulo 7, referimo-
-nos a esta acção comum por uma metáfora do bazar como um território. Como vere-
mos, o bazar não é um mero lugar de troca de mercadorias, ainda que seja obviamente
importante sob esta perspectiva. Esta troca é só um dos motivos para a existência do
bazar; ele é também um lugar de encontro para as diferenças e para a negociação entre
elas. Neste processo de negociação, não existe nenhum actor nem diferença privilegia-
dos. Todos os actores constituem diferenças, inclusive nós próprios (ver «O Lugar da cida-
dania»).
Outros, como Nóvoa e Lawn (2002), referem-se à «fabricação da Europa» através de um
processo de formação de redes, «ligando estruturas sociais, redes e actores a nível local,
nacional e europeu» que podem «descrever e explorar a formação de novas entidades euro-
peias com políticas emergentes de redes, conduzindo ao surgimento de um espaço educa-
tivo europeu, um conceito indiferenciado mas significativo em política educacional» (ibi-
dem, 4). O bazar é, então, um centro de reunião e de múltiplos e diversificados poderes que
não se baseiam só em poderes emanados dos territórios nacionais (e das suas hierarquias
globalmente informadas), mas, pelo contrário, definindo-se a si próprios com base em
identidades. Estes poderes são, pois, conflituais, não só entre si, mas também em relação
às lógicas previamente estabelecidas, tais como aquelas definidas pelos territórios dos esta-
dos-nação (por exemplo, o processo de «um consumidor ambientalmente consciente»
pode entrar em conflito com os processos estabelecidos de produção, distribuição e con-
sumo da economia nacional).
A fragmentação dos territórios do estado-nação, no sentido em que nos referimos aqui,
e a criação de territórios desterritorializados são evidentes na clivagem entre inclusão e
exclusão. No que respeita à primeira, a inclusão resulta aparentemente de processos de
identidade locais que se desenvolvem na base da proclamação da diferença como única, o
que constitui, de facto, o ponto de apoio para um processo voluntariamente induzido de
exclusão – por exemplo, quando na base da tradição cultural uma comunidade decide desa-
fiar a lei do estado-nação. Existem também formas de exclusão resultantes do processo de
fragmentação do estado-nação independentes do controlo da comunidade – por exemplo,
os efeitos do desemprego originados pela transferência de firmas de uma área para outra
116 «A Diferença Somos Nós»

em demanda de maiores lucros. Finalmente, existem formas mistas de inclusão/ exclusão


territorial que combinam os dois processos já referidos acima: el gran Broadway, tal como
os das favelas do Rio de Janeiro, podem ser vistos simultaneamente como «exclusão refle-
xiva» (baseada na identidade) e exclusão estrutural (baseada em factores económicos,
incluindo os processos de migração economicamente determinados).
Desta forma, o valor do mapeamento da exclusão social, tal como é proposto por Aldaíza
Sposati (1996), reside, antes de mais, em tornar consciente que cada um está representado
no mapa e, ainda, em conseguir aceder às realidades da desigualdade e da diversidade cul-
tural, isto é, os mapas são instrumentos de reflexividade institucional, cujo objectivo é
implicar os cidadãos, decisores políticos e actores sociais chave em processos de desvela-
mento e acção sobre a exclusão social. Todavia, o mapeamento da exclusão social não deve
ser confundido com actos de «engenharia social», nos quais as pessoas são vistas como
cidadãos cuja cidadania lhes foi outorgada, mas, antes, como parceiros pró-activos no pro-
cesso de negociação que associamos à metáfora do bazar (ver Capítulo 7).

Conclusão

Nas sociedades pré-modernas, o território era definido pela comunidade local. A exclu-
são social resulta aí do facto de não se pertencer a essa comunidade. Assim, o que provém
de fora da comunidade e do seu território é encarado como uma ameaça. As sociedades
tradicionais apropriaram-se do tempo e do espaço da mesma forma que se apropriaram
dos indivíduos por meio de processos de socialização. Por outras palavras, os indivíduos
são, nas sociedades tradicionais, definidos pelo seu enquadramento cultural, sendo este
expresso por símbolos sociais que significam a sua comunidade. Ser incluído é reconhe-
cer esses símbolos como organizadores do tempo e do espaço, e a vida dos indivíduos
como parte dos rituais diários da sociedade. Isso significa que a inclusão tende a ser ou
total ou o seu oposto, isto é, exclusão. Não existe posição intermédia. Os territórios são
independentes uns dos outros, porque o que os define são as comunidades locais. Na polis,
no caso dos gregos, as mulheres, os estrangeiros (os que nasceram fora da cidade) e
os escravos não eram cidadãos não porque fossem excluídos tout court, mas, antes,
porque tinham um estatuto inferior. Ser excluído era ser um marginal, desconhecido ou
«bárbaro».
Com o advento do estado-nação, o território torna-se nacional em escala global. O
espaço do estado-nação é homogéneo no sentido de que as particularidades são sacrifica-
das, de forma a que o universalismo possa assumir um papel de liderança no projecto de
desenvolvimento da modernização. O que contribui para este projecto é visto como válido,
tal como acontece com a escola pública baseada no princípio da igualdade de oportunida-
des. As instituições do estado-nação, tal como a escola pública, esforçam-se por se tornarem
universais e por se promoverem na base do que Dale refere como «uma cultura mundial
comum» (2000). O que, pelo contrário, sai fora da norma nacional é visto como ameaça-
Cinco lugares do impacto de exclusão social 117

dor para o território e, dessa forma, disfuncional. Como resultado, o estranho tende a ser
empurrado para as margens da sociedade, para territórios «especiais» construídos com o
objectivo de reeducar, recuperar e reintegrar indivíduos no território depois de terem
reconhecido e de terem aceitado que se desviaram da norma.
Nos territórios heterogéneos e hiper-reais da sociedade em rede, ser incluído é fazer
parte de uma rede. O acesso à comunicação e à informação decide o território – o territó-
rio físico nacional confunde-se com territórios fragmentados e virtuais, desenvolvido na
base de identidades locais e culturais e no fluxo do dinheiro. Dado que se encontra cada
vez mais baseado neste fluxo de dinheiro e no capital financeiro, o capitalismo desterrito-
rializa radicalmente, por um lado, a produção, a distribuição e o consumo e, por outro,
identidades, o que significa que vão sendo criadas condições para que as identidades já não
sejam potencialmente baseadas num local, mas, antes, cada vez mais fundadas nos estilos
de vida e nas crenças partilhadas. Assim, a relocalização que a desterritorialização aparen-
temente implica não é um retorno ao lugar do território tradicional. É, antes, um lugar
reinventado, frequentemente sem território. O regresso dos intelectuais da classe média
aos espaços rurais e o seu empenho ambiental, visível, por exemplo, em Portugal, mas não
só, não é o regresso a um lugar tradicional. É, pelo contrário, uma filiação em princípios
ecológicos na forma de um estilo de vida partilhado pelos que fazem parte da rede de sim-
patizantes do «verde» (Castells, 1997). Nas palavras de Giddens (1990), trata-se de uma
«reinvenção da tradição».
Em suma, a definição de território é determinada pelo paradigma do qual ele faz parte
e a partir do qual é interpretado. Nas sociedades e culturas pré-modernas, o território era
a comunidade local e o sistema de crenças que a constituem. No paradigma de sociedade
e de cultura modernas, o território é o estado-nação, é o sistema de trabalho e de emprego
assalariado que se encontra na sua base. O território emergente das sociedades pós-moder-
nas é virtual, heterogéneo, «glocal» e desenvolvido por meio de sistemas em rede. A exclu-
são social é, no primeiro caso, estar fora dos valores e símbolos partilhados; no segundo
caso, é ser incluído num processo de reabilitação, porque o estado sempre «recupera» os
seus súbditos quer como cidadãos, quer como trabalhadores assalaridos, e, no terceiro
caso, ser excluído é, para dizer de um modo simples, não fazer parte das redes.

CONCLUSÃO

Os Lugares são as instâncias em que o impacto dos espaços estruturais acontece, isto
é, o corpo, o trabalho, a cidadania, a identidade e o território são os lugares onde poten-
cialmente se activa a agência social e os constrangimentos sociais que a delimitam e a ins-
piram. Neste sentido, são lugares onde os projectos individuais e sociais interagem entre
si, fornecendo, dessa maneira, quer a capacidade desses projectos se desenharem, quer os
limites que inevitavelmente influenciam a sua eventual realização. Os Lugares são, então,
acima de tudo, o ponto em que a agência individual e social acontecem, dado que são pre-
118 «A Diferença Somos Nós»

cisamente o ponto de onde dimana aquilo que torna os sujeitos efectivamente sujeitos (e,
nesse sentido, por seu turno, os espaços estruturais são o ponto de onde dimana aquilo
que torna as estruturas estruturas). São os lugares onde os projectos nascem e vivem,
onde a mudança social assume a forma de agência, quer essa mudança social aconteça,
ou não. Por exemplo, um militante ecologista não deixa de permanecer «verde» apenas
porque a possibilidade de realizar políticas fundadas na preservação ambiental está, num
dado momento e lugar, para além do alcance da sociedade. De facto, a preservação do
ambiente manifesta-se sob diferentes formas. No âmbito do paradigma moderno era even-
tualmente vista como um projecto político susceptível de ser gerido sob a forma do modelo
da engenharia social. Nas sociedades pós-fordistas, «ser verde» é, em si mesmo, uma pos-
tura identitária, quer dizer, é uma escolha social e/ ou individual que não tem que ter
necessariamente uma base histórica ou científica que a justifique. É esta postura que está
no cerne daquilo a que se vem chamando os «novos movimentos sociais». Por outras pala-
vras, os contextos sociais estão impregnados pelas posturas reflexivas daqueles e daquelas
que promovem novas formas de identidade, novas formas de cidadania, novas formas de
posicionamento no mundo do trabalho, novas formas de pensar e de viver o território e
novas formas de assunção do corpo por parte dos indivíduos e dos grupos. Tudo se parece
passar de acordo com o enunciado de Giddens (1990) segundo o qual nós, os ocidentais,
vivemos numa sociedade crescentemente sociológica.
Os cinco Lugares que organizam esta parte do livro só se tornam reais nos contextos –
família, escola, prisões, fábrica, igreja, bairro, lazer, etc. – nos quais se manifestam. Por
exemplo, a cidadania reclamada só acontece em dados contextos, precisamente naqueles
em que a cidadania atribuída é reflexivamente questionada pelos actores sociais, exigindo,
nomeadamente no caso da educação, que esta aconteça de acordo com as normas e os valo-
res do grupo étnico ao qual as crianças pertencem ou de acordo com os valores conside-
rados fundadores para os cidadãos que reclamam (veja-se, a título de ilustração, o caso das
lésbicas surdas que assumem a surdez como uma forma de identidade, Mundy: 2002). Os
Lugares, efectivamente, apenas têm significado sociológico nos contextos onde são, por
assim dizer, vividos.
Madan Sarup, como já se mencionou no «Lugar da Identidade», compara as determi-
nações estruturais com o negativo de uma fotografia, como se se tratasse do negativo das
possibilidades de escolha que, nos diferentes contextos sociais, se oferecem aos actores. É
este fundo «negativo» que torna algumas possibilidades realizáveis e outras irrealizáveis e,
mesmo, impossíveis de conceber. A formulação de um desejo, para dizer de outra forma,
não garante a sua realização, nem há qualquer garantia de que o próprio desejo seja for-
mulado. (E se esta formulação for válida, tanto para a dimensão individual como para a
social, traz interessantes matizes à ideia de Marx segundo a qual nenhuma época levanta
um problema que não possa resolver…). O desejo de uma família da classe trabalhadora
de que o filho ou filha se torne um cientista nuclear pode nem sequer se assumir como
enunciado do desejável. Neste trabalho pensamos que ficou claro que adoptamos os seis
espaços estruturais propostos por Santos – o espaço doméstico, o espaço do trabalho, o da
Cinco lugares do impacto de exclusão social 119

cidadania, o do mercado, o da comunidade e o mundial – para desenvolver a metáfora do


negativo fotográfico de Sarup. Aliás, o próprio conceito de Santos de estrutura social como
sendo a sedimentação da acção bem sucedida – isto é, «estruturas são apenas sedimenta-
ções provisórias de cursos reiterados de acção bem sucedidos» (1995: 404) – foi também
central no desenvolvimento do conceito de agência social presente nos cinco Lugares.
A seguir, apresenta-se um quadro que pretende sumariar as relações entre os Lugares
e os fenómenos exclusão/ inclusão no âmbito dos três paradigmas que nos serviram de
referência ao longo desta parte do trabalho.

Quadro 2: Os cinco Lugares de impacto da Exclusão Social/ Inclusão Social

Lugares Paradigma Inclusão Exclusão


Pré-modernidade Comunidade Estranho
Corpo Modernidade Normalizado Reabilitável
Pós-Modernidade Corpo como agência Inactivo
Pré-modernidade Artesão/ comunidade Invalidez
Trabalho Modernidade Assalariado Não-assalariado
Pós-modernidade Trabalho em rede Fora de rede
Pré-modernidade Da cidade Estrangeiros
Cidadania Modernidade Atribuída Etnicidade fictícia1
Pós-modernidade Reclamada Despossessão
Pré-modernidade Local Sem identidade
Identidade Modernidade Individual/ papel Estilos de vida
Pós-modernidade Estilos de vida Despossuídos
Pré-modernidade Comunidade Caos
Território Modernidade Estado-nação Terra-de-ninguém
Pós-modernidade Virtual/ hetero Fora da Rede

Os Lugares articulam, nos três paradigmas socioculturais identificados, formas dife-


rentes de inclusão/ exclusão. Assim, o Lugar do corpo, no paradigma que aqui designamos
pré-moderno, delimita o processo de inclusão/ exclusão a partir da comunidade. Ser incluído
significa um corpo apropriado pela comunidade, sendo a exclusão aquilo que escapa ao
controlo desta, isto é, aquilo que se perfila como o estranho. No paradigma moderno, o
corpo é normalizado no sentido médico e no sentido social, sendo a exclusão um fenó-
meno que surge como da ordem da reabilitação, isto é, o corpo é potencialmente recupe-

(5) «Etnicidades fictícias» são aquelas que, segundo Balibar (1991), são próprias de meros súbditos,
permanentemente «em desenvolvimento», e não cidadãos em pleno dentro do espaço da União Europeia
(por exemplo, a comunidade turca na Alemanha ou a comunidade portuguesa em França, até muito recen-
temente). Assim, a etnicidade dos imigrantes é confundida com a sua menoridade em termos de direitos
e deveres, surgindo o reforço da etnicidade não como algo de real, mas como reflexo de uma situação de
exclusão.
120 «A Diferença Somos Nós»

rável. No paradigma emergente, identificado como pós-moderno, o corpo incluído é o


corpo que se agencia a si próprio, enquanto o excluído é aquele que surge como não plás-
tico, não moldável, isto é, como inactivo em relação a si mesmo.
O Lugar do trabalho, no paradigma pré-moderno, delimita a inclusão de uma forma
dupla: por um lado, ser incluído significa participar no trabalho como artesão, nos ofícios;
por outro, significa articular-se com a comunidade. Essas duas formas de inclusão podem
estar, ou não, conexas entre si. A exclusão, por seu turno, parece resultar da não partici-
pação em nenhuma das duas instâncias referidas, como é o caso da invalidez absoluta. No
âmbito do paradigma moderno, já a inclusão surge ligada ao processo de trabalho assala-
riado, quer dizer, ser incluído significa estar integrado na estrutura ocupacional, sendo a
exclusão, então, o estar fora dessa estrutura. No contexto da pós-modernidade, a inclusão
surge, frequentemente, como a integração no trabalho em rede, isto é, o que funda a rela-
ção com o trabalho não é tanto a relação salarial que define o «empregrado», mas o poten-
cial de empregabilidade que as relações, os conhecimentos e os contactos proporcionam
aos indivíduos. A exclusão, em contrapartida, surge marcada pela situação inversa, estar
fora da rede.
No que diz respeito à cidadania, em verdade a pré-modernidade define a inclusão mais
em termos da cidade do que em termos do que chamamos hoje a cidadania. De facto, ser
incluído na cidade (polis) tem um significado ligado à localização desta, o local, e ao facto
de o cidadão (polites) ter voz activa no governo da cidade. Ser da cidade, neste sentido, é
ser incluído; a exclusão era da ordem da não pertença à cidade no sentido político da pala-
vra (da polis e do polites). No paradigma moderno, a inclusão através da cidadania dimana
do contrato social; por este o estado atribui um conjunto de direitos e de deveres aos indi-
víduos no acto pelo qual estes se tornam cidadãos. Por seu turno, a exclusão surge ligada
àquilo a que Balibar (1991) chama «etnicidades fictícias», isto é, alguns «cidadãos» não
são cidadãos na sua plenitude porque ainda se encontram, por assim dizer, «em desenvol-
vimento» (ver nota de rodapé 5). É importante dizer-se que a inclusão como cidadão/
cidadã está, nesse paradigma, ligada ao posicionamento dos indivíduos na estrutura sala-
rial, não bastando por isso a atribuição de cidadania pelo estado pelo contrato social, sendo
também crucial a sua articulação com o mercado de trabalho. Em contexto de pós-moder-
nidade, a cidadania surge crescentemente ligada à reclamação dos direitos e ao exercício dos
deveres a partir da assunção da incomensurabilidade das diferenças por parte dos indivíduos
e dos grupos. A inclusão, neste contexto, corresponde à assunção de uma forma de cidada-
nia que dimana dos próprios actores sociais e não já da sua atribuição por parte do estado.
A exclusão está, por seu turno, ligada à despossessão, quer dizer, se não forem os indiví-
duos e os grupos a desenhar os guiões sociais e políticos próprios, ninguém o fará por eles.
Em contextos pré-modernos, as identidades surgiam construídas em torno do local; ser
alguém era estar incluído numa rede de sociabilidades e numa pertença local (ser de algum
sítio). A ausência de identidade é estar fora dessa rede de sociabilidades e não ser de sítio
nenhum. Diferentemente, a modernidade delimita as identidades pessoais e colectivas em
torno da organização estatal e nacional das sociedades. A identidade dos indivíduos e dos
Cinco lugares do impacto de exclusão social 121

grupos passa, então, pela sua identificação com o exercício de papéis e de funções que arti-
culem necessidades sociais. A exclusão, por sua vez, está no desafiar da homogeneidade
identitária impressa pela lógica nacional. Em termos modernos, tudo o que desafie a
norma médica e social e assuma a incomensurabilidade de um dado estilo de vida é colo-
cado na ordem da exclusão. Ao contrário, a assunção e a reclamação desta incomensura-
bilidade das diferenças parece ser o que emerge como lógica de construção identitária no
paradigma pós-moderno. Ser alguém é verberar a sua diferença e agir socialmente a partir
dela. Ser excluído, em compensação, é não assumir essa diferença específica e, em muitos
casos, ficar condenado à condição de despossuído, despossuído de identidade e das poten-
cialidades que permitem a reclamação.
No que diz respeito ao Lugar do território, a comunidade, em termos pré-modernos,
surge como o princípio de inclusão. O território é sempre o território que a comunidade
define como o «seu», sendo o território excluído aquele que é do âmbito do inorganizado,
do caos, do alheio à comunidade. A modernidade introduziu uma lógica fundada no estado-
-nação para a definição do território. O território nacional é o único que tem sentido claro,
sendo difícil sequer imaginar territórios que não sejam de dado estado. Neste sentido, a
exclusão territorial tem a sua melhor expressão nas terras-de-ninguém. No paradigma pós-
-moderno, o território parece estar a ser reconfigurado de duas formas. Primeiro, pela sua
virtualização; segundo, pela sua heterogeneização. Por um lado, o espaço criado pelos dis-
positivos tecnológicos, postos à disposição dos indivíduos e dos grupos, torna-se forte-
mente virtual. Por outro lado, assiste-se a uma forte heterogeneização desses espaços e
territórios, dado que, ao contrário da lógica da homogeneidade nacional, são produzidos a
partir da e para difundir e afirmar a diferença (eventualmente) incomensurável dos seus
criadores. A inclusão consiste, pois, na inserção num desses espaços diferenciados, e a
exclusão num posicionamento fora da rede das diferenças e das suas interacções.
Os cinco Lugares estruturam-se pelas tensões que os constituem e pela simultaneidade
que caracteriza a sua leitura na nossa época. Consequentemente, a activação destas tensões
é, por excelência, política, no sentido em que a simultaneidade de opções e de raízes está
presente em todos os processos em que a emancipação/ regulação, agência/ estrutura e o
self como sujeito/ tecnologia-do-self são potencialidades/ limites mobilizados, sobretudo,
pelos processos políticos. Na medida em que estamos inseridos nestas dualidades, somos
obrigados a lidar com elas, sendo impossível vivê-las como se não fossem nem uma coisa
nem outra.
A natureza política dos Lugares é particularmente evidente no paradigma emergente
da pós-modernidade/ pós-fordismo devido ao facto de que, aí, as tensões parecem ser maxi-
mamente activadas. Tal parece ficar a dever-se à natureza sociológica da época e da socie-
dade em que vivemos, quer dizer, quanto mais sabemos acerca dos processos individuais e
sociais, maior é a nossa tendência para construir os guiões da acção social. É este facto que
provoca, de uma forma sem precedentes, as tensões entre estrutura e agência. Estas ten-
sões traduzem-se nos cinco Lugares das seguintes formas:
122 «A Diferença Somos Nós»

• Corpo: a tensão é entre o corpo enquanto foco de agência e o corpo enquanto tecno-
logia do self. Isto significa que, por um lado, o corpo é, enquanto parte indeslindável
do próprio self, senhor de si próprio e não um destino imposto aos indivíduos. Por
outro lado, significa que o corpo enquanto agência é apenas outra forma de controlo
do corpo, por exemplo, quando o mercado determina e configura as necessidades
individuais como mercadorias («é exactamente esse nariz que condiz com a minha
auto-imagem!!»);
• Trabalho: a tensão, neste Lugar, acontece entre aquilo a que Castells chama «traba-
lho autoprogramável» e a dissolução do trabalho em competências. Por outras pala-
vras, posicionar-se no Lugar do trabalho como trabalhador assume hoje em dia um
significado bastante diferente do de há três décadas atrás, dado que já não se é edu-
cado e socializado para se ser membro de uma ocupação tipificada, mas, antes, para
se ser, desejavelmente, detentor de um conjunto de competências transferíveis em
que a principal competência é a competência de continuamente adquirir novas com-
petências (trainability). Quem ocupa uma posição no mundo do trabalho autopro-
gramável detém um lugar privilegiado, sobretudo quando comparado com quem está
colocado no Lugar do trabalho no âmbito do trabalho genérico.
• Cidadania: a tensão, aqui, é entre a afirmação e reclamação de «a diferença somos
nós» e a fragmentação e a incomensurabilidade das diferenças que têm de viver em
conjunto num mesmo mundo. Esta tensão sublinha o carácter relacional da forma
como as diferenças são correlativas, dependentes, portanto, entre si. Sem pretender
ignorar as tensões derivadas da desigual distribuição social do poder, esta tensão tra-
duz-se na exigência aparentemente paradoxal segundo a qual somos simultanea-
mente obrigados a viver entre diferenças e a viver a nossa própria diferença;
• Identidade: neste Lugar a tensão é entre a crescente hibridização das identidades e
o risco de aniquilação dessas mesmas identidades. Na medida em que os diferentes
selves se tornam heterogéneos de acordo com projectos mais ou menos reflexivos, as
identidades parecem distender-se entre dois pólos: o pólo esquizóide e o pólo narci-
sista. Por exemplo, a tensão entre aqueles indivíduos que organizam a sua diferença
em torno de apenas um único eixo (ser gay, ou ser de «Esquerda», para dar apenas
estes exemplos) e aqueles outros que a organizam em torno de múltiplos eixos (o
indivíduo que, durante o dia, se envolve no cuidar de uma criança, que, à tarde, é pre-
sidente de uma associação de emigrantes, e que, à noite, assume a identidade de um
pastor evangelista, sem solução de continuidade);
• Território: a tensão que estrutura este Lugar é aquela entre territórios virtuais e ter-
ritórios heterogéneos, sendo que, no primeiro tipo de territórios, as diferenças tendem
a ser diluídas no hiperespaço da comunicação/ informação e, no caso do segundo tipo,
as diferenças são instaladas nos seus «próprios» territórios. A possibilidade de comu-
nicar de uma forma eficiente para além dos territórios físicos não dilui a diferença
real que esses territórios contêm em si mesmos e entre si. A luta política dos índios
Chiapas assumiu a Internet como uma das suas estratégias centrais, permitindo-lhes
Cinco lugares do impacto de exclusão social 123

divulgar a sua diferença, as suas exigências e a sua luta a nível mundial. Contudo, dado
que ter mais informação não corresponde a saber mais, o reconhecimento dessa luta
não conduz necessariamente à sua compreensão.

Estas tensões que atravessam os cinco Lugares estão na base da forma como, contem-
poraneamente, a exclusão/ inclusão social se revela. Também enfatizam a dimensão polí-
tica destes fenómenos e o facto de que não há fórmulas universais, ou soluções-receita
para a acção, mas, antes, que todos os indivíduos, todos os cidadãos, são chamados a agir
no sentido de assumirem a sua parte na construção dos seus próprios mundos.
Em conclusão, a nossa noção de agência, que constitui um dos conceitos fundamen-
tais, baseia-se em quatro considerações. Primeira: a agência política surge cada vez menos
como «engenharia social», no sentido em que não é possível já conceber a existência de
um engenheiro social que possa com clareza, com brancura social e de forma epistemolo-
gicamente transparente, traçar um mapa referindo direcções universalmente consensuais.
A nossa experiência histórica de engenharia social parece ter frequentemente conduzido a
efeitos perversos, como a vitimização dos excluídos, em vez de ter suscitado a assunção por
parte destes do processo de os tornar sujeitos da sua própria inclusão. Em segundo lugar,
a agência política não se encontra predeterminada por um projecto que generosamente
inclua todos os indivíduos no seu âmbito, incluindo aqueles que tenham sido excluídos.
Por outras palavras, os processos de exclusão/ inclusão devem ser geridos com base na
própria diferença e não em quaisquer discursos sobre ela, sobretudo aqueles que, estabe-
lecendo o projecto político com vista a corrigir as injustiças sociais, sacrificam no mesmo
passe as exigências das próprias «diferenças» (incluindo a nossa própria diferença). Em
terceiro lugar, a agência política depende da assunção de uma certa modéstia no que diz
respeito à questão da mudança social. Com alguma frequência, o mundo que generosa-
mente queremos construir para os outros é precisamente o mesmo em que nós próprios
queremos ser incluídos. Assim, lutar pela inclusão é lutar pela afirmação da diferença pró-
pria e não por um «mundo» próprio. Em quarto lugar, e finalmente, se o enunciado «a
diferença somos nós» tem o efeito de reduzir a diferença entre as diferenças pela recusa de
reconhecer que as próprias diferenças são desiguais, em vez de fazer o contrário, tudo
aquilo que defendemos neste livro cairia pela base.
5
CAPÍTULO

A incomensurabilidade da diferença
e o anti-antietnocentrismo

Este capítulo debruça-se sobre a emergência da diferença como conceito e como prá-
tica. Procuramos identificar aqui, no quadro do debate mais amplo sobre a universalidade,
ou não, dos projectos políticos, a substância relacional do conceito de diferença. Partindo
do debate entre o antropólogo americano Clifford Geertz e o filósofo, também americano,
Richard Rorty, sobre os limites do etnocentrismo e do relativismo, procura-se enfatizar que
o «diálogo» entre as diferenças culturais está longe de possuir um carácter «benigno»,
como algum multiculturalismo mais conservador poderia fazer crer. Introduz-se aqui,
também, o conceito de «bazar» como organizador da perspectiva política segundo a qual
as diferenças são da ordem do relacional e não produto de uma determinação a partir de
um centro epistemológica e sociologicamente privilegiado.

O «ANTI-ANTI-RELATIVISMO» DE CLIFFORD GEERTZ

No artigo «Anti-Anti-Relativismo», Clifford Geertz (1984) afirma que o objectivo do seu


trabalho não é o de defender o relativismo, «que de qualquer forma é um termo esvaziado,
um brado de guerra do passado», mas, em vez disso, «combater o anti-relativismo» – para
«exorcisar demónios».
O estilo «através do espelho» do título deste artigo pretende, afirma Geertz, sugerir
mais um esforço de se contrapor a um ponto de vista do que defender a concepção a que
ele se contrapõe. Isto é, tal como se pode ser anti-anticomunista sem se defender o comu-
nismo, ou anti-antiaborto sem se defender o aborto, pode ser-se anti-anti-relativista sem
se defender o relativismo.
Na sua argumentação, Geertz mostra como os ataques ao relativismo, pelos anti-rela-
tivistas, têm, muitas vezes, levado a imaginar que a única maneira de derrotar o relati-
vismo é colocar a moralidade além da cultura e o conhecimento além de ambas (1984: 18).
O medo do relativismo
126 «A Diferença Somos Nós»

(…) levou a uma posição em que a diversidade cultural, no espaço e no tempo, reduz-
-se a uma série de expressões, algumas saudáveis e outras não, de uma realidade subja-
cente estabelecida, a natureza essencial do homem (...). (1984: 14)1

Assim,

(…) um conceito generalizador, esquemático e ávido por conteúdos, moldável a qual-


quer forma que apareça (...), transforma-se na base sobre a qual passa a repousar defini-
tivamente a compreensão da conduta humana, do homicídio, do suicídio, do estupro...
da derrogação da cultura ocidental. (ibidem)

Para escapar a esta imposição, para escapar aos «ditames universais da lógica (“natu-
reza essencial do homem”) e da ciência (“conceito generalizador”)» (Shweder, 1997: 164),
Geertz propõe o anti-anti-relativismo, ou, por outras palavras, apoia-se na ideia de que é
possível defender o relativismo sem se cair nos excessos do relativismo.

A INCOMENSURABILIDADE DA DIFERENÇA

Richard Rorty, num artigo dirigido àquele outro já citado de Geertz, define a inco-
mensurabilidade da diferença da seguinte maneira: trata-se, «para nós» (sic), de uma ten-
tativa de comunicação entre «nós» e «pessoas que não podem ser consideradas como pos-
síveis parceiros de conversa», isto é, trata-se de «pessoas (...) consideradas (por nós) como
irrecuperáveis». Na verdade, não vale a pena fazer o esforço para falar com, ou tentar com-
preender, estas pessoas: «são irremediavelmente loucas, estúpidas, primitivas, pecadoras»
(Rorty, 1991: 203). Alguns, sustenta Rorty, pensarão nos judeus ou nos ateus desta
maneira; outros pensarão assim dos nazis ou dos fundamentalistas religiosos. Outros
ainda, podemos nós (os autores deste trabalho) acrescentar, pensarão desta maneira dos
ciganos ou dos africanos.
Rorty afirma que os liberais (burgueses) ficam assustados quando dão por si a pensar
desta maneira. Porquê? Porque assumem que, no fundo, prefeririam morrer a serem con-
siderados etnocentristas (o etnocentrismo é visto como o extremo oposto do pensamento
liberal). Contudo, é precisamente o etnocentrismo que subjaz a tais considerações. Os libe-
rais de mais pura convicção (designados por Rorty como os wet liberals) são aqueles que
levam esta argumentação até as suas últimas consequências, isto é, combatem o etnocen-
trismo até ao ponto de assumirem, eles próprios, uma posição relativista, assim «procu-
rando (nesse processo) ter mentes tão abertas que até arriscam a que os seus cérebros
caiam por fora dos seus crânios» (1991: 203)!

(1) Ver, como possível exemplificação desta posição, o artigo de M. Spiro (1998).
A incomensurabilidade da diferença e o anti-antietnocentrismo 127

O anti-antietnocentrismo de Richard Rorty

Para Rorty, a argumentação dos wet liberals provoca nele uma reacção: aquilo que
denomina como o anti-antietnocentrismo! Isto é, o relativismo resultante do anti-etno-
centrismo dos liberais de mais pura convicção parece, em primeiro lugar, conduzir a um
beco sem saída. Como é sabido, a relativização das culturas tende a acabar na sua separa-
ção, cada cultura assumindo a diferença que a distingue de todas as outras. Além da fossi-
lização da cultura à qual esse processo parece conduzir, é manifestamente impossível a sua
realização numa época de globalização em que as culturas são «condenadas» a confrontar-
-se umas com as outras. Em segundo lugar, o relativismo dos wet liberals obriga a que se
relativizem os valores até ao ponto de se pôr em questão todos os valores.
O anti-antietnocentrismo de Rorty desenvolve-se na base de uma distinção entre o que
o mesmo denomina de etnocentrismo hard («venenoso»; «vicioso»), em que o outro é
simplesmente rejeitado em razão da sua diferença, e etnocentrismo soft, que se baseia no
reconhecimento do outro sem a transformação desse reconhecimento numa hermenêu-
tica de conhecimento. Rorty ilustra esta última forma de etnocentrismo, que exprime o
conteúdo da sua postura anti-antietnocentrista, através da metáfora de uma comunidade
constituída por casas que têm as suas janelas abertas para o exterior, comunidade essa sem
pretensões de ser a melhor ou a mais racional das comunidades, mas que, ao mesmo
tempo, defende os seus valores como os únicos capazes de orientar o seu projecto.

O caso do índio americano bêbado e a máquina de hemodiálise

Para Geertz, o anti-antietnocentrismo de Rorty baseia-se numa lógica incapaz de lidar


com o «peso» da determinação estrutural já sedimentada, por exemplo, na história do
Ocidente. Numa tentativa de explicar o que está em causa, Geertz conta o «caso do índio
americano bêbado e a máquina de hemodiálise» que, em síntese, relata o seguinte:

(…) um índio americano com uma doença de rins inscreve-se para tratamento numa
máquina de hemodiálise. Ao mesmo tempo, ignora a ordem dos médicos para não inge-
rir mais bebidas alcoólicas. Poucos anos depois morre, presumivelmente por causa da
sua recusa de parar de beber. (citado em Rorty, 1991: 204)

Segundo Geertz, a morte do índio constitui um dilema moral não só para os médicos,
confrontados com valores e comportamentos hostis aos seus, como para todo o pensa-
mento iluminista. No fundo, trata-se, afirma Geertz, de «um caso duro com um fim duro».
Isto é, o que faz o índio beber relaciona-se com relações sociais baseadas num poder insti-
tuído que é incapaz, como sustenta Shweder, de «defender a co-igualdade de “quadros” de
compreensão fundamentalmente diferentes» (ibidem). Tal como o índio cuja incapacidade
para parar de beber é condenada (não só pelos médicos, como também pela sociedade envol-
vente em geral), independentemente deste facto ter sido (ou não) a razão da sua morte,
128 «A Diferença Somos Nós»

(…) quando a pena capital é assumida como «correcta» (ou «errada») independen-
temente do facto de dissuadir (ou não) o crime, quando o incesto entre irmão-irmã é
assumido como «errado», independentemente do facto de se produzir (ou não) uma des-
cendência mutante, quando as empresas continuam a utilizar entrevistas para seleccio-
nar os seus empregados, independentemente do facto de as entrevistas ajudarem (ou
não) a predizer o seu desempenho laboral, em suma, quando parece estar em causa
muito mais do que considerar os factos em si, aquilo que está em causa é provavelmente
uma questão de enquadramento não-racional. (…)

Isto é, citando de novo Shweder, a perspectiva antinormativa romântica é a de que

(…) não há padrões que colham um respeito universal e que ditem o que se deve
pensar e como se deve agir. (Shweder, 1997: 163-64) (sublinhados nossos)

Richard Rorty, por outro lado, declara encorajador o final da história do índio ameri-
cano bêbado, isto é, os médicos provaram que a justiça nos EUA funciona porque as deci-
sões são tomadas não com base em «cunhas», ou com base no poder político, mas com
base nas necessidades dos cidadãos. O índio, cidadão americano, precisava de tratamento,
foi inscrito na lista de espera dos cidadãos que aguardavam o mesmo tipo de tratamento
e, quando chegou a sua vez, foi tratado como todos os outros.
Rorty também defende que a solução para este caso (como acima vimos, «duro», nas
palavras de Geertz) não passa pela adopção por parte dos médicos dos valores e comporta-
mentos dos índios. Segundo Rorty, se os médicos tivessem manifestado solidariedade para
com o índio até ao ponto de assumirem os valores dele, teriam negligenciado os seus
papéis específicos na sociedade vigente. Isto é, os médicos tinham que actuar em nome de
justiça para todos, justiça essa crucial para que a sociedade funcione. Se tivessem assu-
mido o quadro cultural do índio teriam posto em causa os direitos dos cidadãos, a maior
parte dos quais pertencente a quadros culturais diferentes.
Rorty defende ainda que Geertz, no seu papel de antropólogo, conseguiu tornar o índio
(eventualmente alcoólico) numa parte importante da sociedade ocidental. A ciência da
antropologia e, mais especificamente, o trabalho dos antropólogos nos Estados Unidos aju-
daram a conseguir tornar o índio americano, mesmo no contexto de relações sociais desi-
guais, num «parceiro de conversa», isto é, num cidadão americano.
Resumindo, na base da argumentação de Rorty encontra-se o que o próprio concebe
como uma distinção entre agentes de amor e agentes de justiça. Qualquer sociedade
democrática moderna tem necessidade de ambos, os primeiros como connaisseurs da
diversidade, cuja preocupação principal é com a inclusão com base na diferença, e os
segundos como guardiões de universalidade, cuja tarefa orientadora é a promoção da cida-
dania fundada no princípio de igualdade de oportunidades (cf. Rorty, 1991).
A incomensurabilidade da diferença e o anti-antietnocentrismo 129

A aproximação do anti-antietnocentrismo ao anti-anti-relativismo

A defesa do anti-antietnocentrismo, segundo Rorty, implica que se deixe cair a distin-


ção entre julgamento racional e viés cultural – os limites têm que ser decididos caso a
caso; não há uma razão superior (por exemplo, um Deus ou uma ciência) que possa solu-
cionar a questão de quais os valores «correctos». Assim, o anti-antietnocentrismo apro-
xima-se do anti-anti-relativismo de Geertz, sendo, também, um protesto contra a persis-
tência da retórica do Iluminismo numa época em que o reconhecimento da diferença
torna essa retórica enganadora e impotente.
Quer o anti-anti-relativismo, quer o anti-antietnocentrismo defendem que os projec-
tos políticos, em vez de serem universais, podem ser locais e culturalmente determinados
e, mesmo assim, serem a melhor aposta para o futuro da humanidade. No caso de Rorty,
este facto leva-o a defender ideais baseados nos valores e nas práticas dos países que ele
denomina como «as democracias do Atlântico do Norte»2.

O que diferencia o anti-anti-relativismo do anti-antietnocentrismo

Apesar de uma certa aproximação, talvez o que seja mais interessante explorar é o que
diferencia o anti-anti-relativismo do anti-antietnocentrismo. No fundo, a incomensurabi-
lidade da diferença parece ser mais incomensurável para Geertz do que para Rorty. Este
último consegue resolver «um caso duro com um fim duro» através da funcionalidade que
atribui à separação entre os «agentes de amor» e os «agentes de justiça», isto é, a distinção
entre estes agentes e os seus respectivos papéis específicos torna o sistema funcional. Este
facto acaba por ser o mais importante da questão, mesmo quando implica um lugar subal-
terno para certos quadros culturais. Por outras palavras, não basta tratar o índio americano
como cidadão, com direitos iguais aos outros cidadãos. Neste sentido, pode dizer-se que
Geertz nos obriga a fazer mea culpa e a confrontar um poder que, embora possa ser hoje
em dia mais plural, continua a ser altamente polarizado, entre aqueles que historicamente
detêm o poder e aqueles que dele foram afastados. Mais, obriga-nos a reconhecer que os
efeitos desse poder mudaram de natureza; é um poder que não só discrimina como exclui.
O anti-anti-relativismo de Geertz, diferentemente do anti-antietnocentrismo de Rorty,
também nos obriga a conviver com a diferença (incomensurável) ao mesmo tempo que a
analisamos. No caso de Rorty, a diferença impõe-se-nos; não somos nós que vamos gene-
rosamente à procura dela. Assim sendo, a diferença, na análise de Rorty, pode não invadir
o lugar a partir do qual se pensa a diferença; podemos ganhar algum espaço de reflexão
eventualmente necessária, em primeiro lugar, para melhor a compreender e, em segundo
lugar, para melhor lidar com a sua incomensurabilidade. Com o anti-anti-relativismo de
Geertz, não, somos obrigados de olhar para a diferença enquanto lidamos com ela. Como

(2) Ver a interessante crítica desta posição de Rorty no trabalho de M. Billig (1993).
130 «A Diferença Somos Nós»

resultado, arrisca-se ser precipitado no diagnóstico, paternalista no tratamento, e even-


tualmente superficial na relação desenvolvida.

Pensar a diferença na sua incomensurabilidade

Quais são as implicações e os contributos desta discussão para a relação com as dife-
renças, e, concretamente, para as pensar? Este é o ponto em que a questão socioantropo-
lógica se torna essencialmente epistemológica e vice-versa. De facto, neste contexto,
parece-nos relevante o exercício de trazer para um nível explícito os mecanismos, ao
mesmo tempo cognitivos e ideológicos, pelos quais as diferenças são pensadas3.
Todas as sociedades, todos os grupos sociais, ao construírem os seus mecanismos de
socialização e enculturação assumem quadros culturais (Shweder, 1997) dentro dos quais
os indivíduos se reconhecem, e são reconhecidos, como pertencentes a esse grupo, a essa
sociedade. Apresentam-se, assim, valores, padrões de comportamento e de atitudes que
delimitam o «nosso» como «normal», sendo o conhecimento produzido e transmitido
também enquadrado culturalmente. Todavia, todas as sociedades e todas as culturas, ten-
dencialmente, apresentam como universais esses valores, padrões de atitudes e acervo de
conhecimentos. O «normal» torna-se normativo ao disponibilizar-se como base dos juízos
éticos, estéticos, políticos e epistemológicos descontextualizados.
A consciência crítica destas aquisições das ciências sociais e humanas tem-se traduzido
em propostas teóricas e práticas que, por seu turno, se têm organizado, sobretudo, sob a
designação do já referido relativismo. Todavia, aquilo que vulgarmente esta designação
cobre não parece esgotar-se na consciência do carácter contextual fornecido às práticas
sociais (incluindo aí obviamente o conhecimento) pelos quadros culturais. Primeiro,
porque o enquadramento cultural do conhecimento não faz dele algo de totalmente rela-
tivo (Spiro, 1998) (e.g., todos os seres humanos de todas as culturas reconhecerão que se
se perfurar o ventre com uma faca e o golpe for bastante profundo, se corre perigo de vida);
segundo, porque o isolamento das diferenças culturais na sua própria especificidade, se
resolve o problema da especificidade, não resolve o problema do seu matricial carácter
relacional4. Quer dizer, se o relativismo corresponde sobretudo à consciência da incomen-
surabilidade da diferença, a sua crítica poderá corresponder ao enfatizar do carácter rela-
cional desta. Do nosso ponto de vista, é no cruzamento destas duas perspectivas que o pen-
sar das diferenças se deve colocar, isto é, na resultante das críticas ao etnocentrismo e ao
relativismo, tal como o anti-anti-relativismo e o anti-antietnocentrismo as formulam.

(3) Não se trata de defender que a relação real com a diferença é determinada pelo modo como ela é
pensada, apenas assumimos aqui o pensar a diferença como objecto de análise, procurando relevar a arti-
culação do pensar as diferenças com a relação real.
(4) Como é o caso de algum multiculturalismo que, na ânsia de sublinhar as diferenças culturais, erra-
dica o carácter relacional destas, como se um cigano nascido e criado em Portugal tivesse mais em comum
com um cigano vivendo na Roménia do que com os outros portugueses (Magalhães, 1998: 105-110).
A incomensurabilidade da diferença e o anti-antietnocentrismo 131

O desafio que, neste ponto, nos solicita radica-se, então, no modo como pensamos as
diferenças, sendo os dispositivos, as categorias gnoseológicas e, no fim, o quadro cultural,
com e dentro dos quais aquilo que é diferente é tratado, o centro do nosso problema. Dito
de outra forma, trata-se de saber como pensar as diferenças no duplo registo de connais-
seurs da diversidade e de críticos da sua hipóstase.
Assim, se propuséssemos ao leitor que pensasse, digamos, num magomatório, o que é
que aconteceria em termos de processo mental? A primeira coisa que, quase indubitavel-
mente, faria, era procurar no «armazém» da sua memória o vocábulo para lhe determinar
o significado. Depois, e na eventualidade de aí nada ter encontrado, procuraria palavras
semelhantes para delimitar uma área de significados (coisas, pessoas, ideias...) que lhe per-
mitisse circunscrever um possível sentido. O passo seguinte, se baldados os esforços mencio-
nados, seria o de procurar, por exemplo, num dicionário – uma memória mais colectiva – a
palavra estranha. Ainda na eventualidade de fracasso, perguntaria à pessoa que enunciou
magomatório, «o que é?», «o que é que quer dizer com isso?», etc. Esta, porventura, diria
tratar-se de um objecto arredondado, côncavo, de cerca de meio metro de diâmetro e com cerca
de seis centímetros de espessura e, a maior parte das vezes, de cor azulada, etc. O leitor reini-
ciaria então o processo mental, procurando, por analogia, e partindo sempre das suas catego-
rias lógicas e gnoseológicas, dentro das representações disponíveis na sua mente, o conjunto
conceptual de objectos que pudessem dar a chave para o significado ou sentido do vocábulo.
Não se preocupe o leitor mais com magomatório, pois foi uma palavra inventada por
nós para sublinhar o facto de que quando aquilo que é diferente surge às mentes, estas pro-
curam nos seus acervos e dispositivos cognitivos algo que, de algum modo, o reduza aos
seus quadros («Ah! É isso!!!»), a aprisione nos seus territórios de sentido. E o exemplo é
«suave», pois a palavra tem, intencionalmente, aparência de possuir um significado codifi-
cado. Exemplos mais «duros» poderiam ser adiantados, assumindo significantes mais distan-
tes dos nossos códigos fonéticos e semânticos. Mas, mesmo aí, a sua diferença seria também
pensada por analogia, por semelhança, em função, portanto, do Mesmo. Este é o conjunto
de códigos, categorias e representações organizadas que, embora de uso individual, são
disponibilizados e legitimados pelo grupo social. O Mesmo é delimitado e ao mesmo tempo
delimita os quadros culturais. E é na medida em que as práticas sociais são indeslindáveis
destes quadros culturais e mentais, dentro dos quais os actores sociais são socializados e
enculturados, que acabam por reflectir aquela redução da alteridade ao Mesmo.

As rebeliões das diferenças

Como já se viu no capítulo anterior, estas aquisições da antropologia cultural, da socio-


logia, da psicologia, da epistemologia, da sociologia do conhecimento, etc., não são apenas
o produto da consciência e autocrítica da ciência ocidental, são também o produto da
rebelião das diferenças, melhor, das rebeliões das diferenças. Assim, como a diferença se
pluralizou em torno de eixos não-sincrónicos (McCarthy, 1990), de classe, de género e de
132 «A Diferença Somos Nós»

etnia, as «rebeliões» também se multiplicaram num conceito desagregado, quer de reforma,


quer de revolução, sendo os movimentos sociais ligados à emergência de estilos de vida alter-
nativos, como o movimento ecologista, o movimento gay e das lésbicas, entre outros, disso
exemplo. Não se justifica, assim, falar num projecto ou programa unificado de «rebeliões»
das diferenças, mas de rebeliões desagregadas e heterogéneas entre si e nos seus projectos.
O quadro dominante da cultura europeia, delimitado pelo paradigma sociocultural da
modernidade, assumiu-se a si próprio como «universal», isto é, como norma para a huma-
nidade, para as organizações sociais e para o conhecimento. Para a primeira, estabeleceu
o ideal normativo de Homem a partir do homem europeu, branco, masculino, urbano e
erudito; para as segundas, pelo menos a partir do século XVIII, o modelo do estado-nação
(idealmente democrático e liberal); para o terceiro, entronizou como forma de conhe-
cimento, universal por excelência, a ciência e a sua racionalidade cognitivo-instrumental
(Santos, 1994; 1995). Estas três dimensões eram, de alguma forma, agregadas pela
História enquanto fluxo de desenvolvimento cujo fim (telos) estruturante consistiria na
reunião dos três Homem-Estado-Conhecimento (ciência) numa união que, para utilizar
uma expressão hegeliana, correspondia à realização da Razão.
Foi dentro desta matriz que o Ocidente articulou as diferenças e as relações que com
elas manteve, e até certo ponto, mantém. As diferenças de «humanidade», quer dizer, de
raça e de etnia, começaram por ser lidas enquanto primitividade; as diferenças relaciona-
das com a organização social (ao nível da produção, do consumo, do exercício do poder, da
estruturação das relações sociais, etc.) foram perspectivadas em termos evolucionistas,
isto é, tratava-se de sociedades que, por «qualquer» desajuste em relação à grande torrente
evolutiva, tinham permanecido no «congelador» da História (sendo algumas mesmo
designadas como sociedades sem história). Finalmente, as relacionadas com modos de
conhecer diferentes foram remetidas para uma espécie de pré-história do pensamento
racional, sob a designação de pensamento mítico-mágico, pré-lógico. Em comum, e para
a questão que aqui nos interessa, estas três dimensões das diferenças têm o facto de elas
próprias serem delimitadas como «objectos» do próprio conhecimento científico pelas
ciências sociais e humanas.
Quer dizer, as diferenças foram delimitadas pelo pensamento ocidental, tal como este
foi modelado pela matriz sociocultural da modernidade, como objectos do conhecimento
científico, tendo sido, ao lado da natureza, os homens e mulheres «outros», as suas socie-
dades e respectivos quadros culturais, remetidos para a condição silenciosa de objectos do
conhecer ou para a pura e simples «anormalidade» (como era o caso relativo a preferên-
cias sexuais que não as convencionadas como padrão).
Quando falamos em rebeliões das diferenças queremos com isso significar que não foi
apenas a autocrítica e a desconstrução que o pensamento ocidental fez de si mesmo
que estão na origem do facto, sobretudo a partir da segunda metade do século XX, de a
questão das diferenças, na sua pluralidade e heterogeneidade, se ter tornado central.
Concomitantemente, estas rebelaram-se não só contra o jugo cultural e político, mas
também epistemológico, da modernidade ocidental, recusando-se como «objectos» passi-
A incomensurabilidade da diferença e o anti-antietnocentrismo 133

vos do conhecer. No próximo capítulo, referiremos este carácter relacional sob o enun-
ciado «a diferença somos nós» através da tematização de quatro modelos diferentes da
relação com a diferença.

A questão do multiculturalismo

O multiculturalismo pretende, enquanto pensamento e prática, elaborar propostas de


acção social e política em que as diferenças, sobretudo as de teor cultural, sejam geridas
tendo em conta o contexto civilizacional e epistemológico acima referido. Todavia, este
campo teórico-práxico não só não é homogéneo como é susceptível de desvios tão gravo-
sos para o pensar e o conviver com as diferenças como o mais puro monoculturalismo. Por
exemplo, o multiculturalismo benigno (Cortesão e Stoer, 1999) ao incorporar, no máximo,
apenas o relativismo enquanto crítica do etnocentrismo do pensamento ocidental, torna
tão-só visível a estreiteza dos quadros culturais e a exiguidade das categorias que preten-
dem dar conta das diferenças. A sua estratégia epistemológica, portanto, fixa-se em torno
do sujeito que pensa a diferença e não na própria diferença, e as suas estratégias de acção
parecem centrar-se no valor táctico que a «compreensão» da alteridade possui para a con-
secução de projectos em que ela é «incluída», de alguma forma ainda enquanto objecto de
«preocupação» e não enquanto sujeito da acção social.
Algum multiculturalismo corre o risco quer da hipóstase das diferenças, pela «natura-
lização» das alteridades culturais (Chavez, 1994), quer o de resumir a relação com as dife-
renças à integração na cultura dominante. Ambas as perspectivas criam formas epistemo-
lógico-práxicas extremas que, mais do que deslocar a discussão e as práticas sociais para
um novo terreno, parecem afundá-las, depois de inverter os termos, na velha e poeirenta
relação entre o Mesmo e o Outro. É o caso da malcolmização (em referência a Malcolm X)
da relação das comunidades negras com as brancas e da lepenização (em referência a Le
Pen) da relação das comunidades brancas com as negras, no caso da primeira perspectiva,
e das políticas de integração a qualquer preço, da segunda.
Pensar as diferenças, não a partir do discurso – sobretudo se «científico» – sobre elas,
mas a partir delas, requer uma atitude epistemológica e política renovada que eventual-
mente é possível encontrar algures entre o anti-anti-relativismo e o anti-antietnocen-
trismo. Santos, por seu turno, propõe a hermenêutica diatópica (Santos, 1995) como base
para essa mudança, sendo o essencial da relação não a auto-suficiência do sujeito cultural
que a enuncia, mas antes a consciência da sua incompletude, da incompletude dos qua-
dros culturais, da sua epistemologia e dos seus saberes, da sua ética e da sua moral, dos
seus dispositivos e dos padrões das relações sociais estabelecidas.
Esta renovação do multiculturalismo repõe, eventualmente, o jogo de relações com a
diferença cultural no jogo mais amplo que é o dos processos sociais e, mais do que alargar
pela autocrítica os quadros culturais e epistemológicos que estruturam e pensam essas
relações, permite estabelecer como sujeitos do discurso (científico, ético, político e esté-
134 «A Diferença Somos Nós»

tico) as próprias diferenças. Desta forma, estas já não surgem no horizonte delimitado pelo
máximo de consciência do tolerável, questionando-se antes a própria natureza arrogante
da tolerância, enquanto máximo de consciência possível daquilo que é susceptível de ser
aceite.
Se Geertz e Rorty coincidem, até certo ponto, na crítica do relativismo e do etnocen-
trismo, as consequências políticas das suas formas de pensar a diferença afastam-nos. A
posição de Geertz permite que a diferença se instale simultaneamente nas relações sociais
e no próprio acto de a pensar. A posição de Rorty parece remeter para uma relação prag-
mática com a diferença, tanto ao nível social como epistemológico, pragmatismo esse que
não só não coloca em causa a legitimidade da existência de tempos e de lugares onde os
actores sociais afirmam e assumem a radicalidade da sua diferença, como sugere que, por-
ventura, há «um» – precisamente o ocidental – mais legítimo e justo.

O mundo como um bazar de Kuwait

Na sua reflexão sobre os novos contornos da diversidade e das diferenças, Geertz sus-
tenta que o mundo, numa época de globalização, parece cada vez mais uma enorme cola-
gem, isto é, «em cada uma das suas localidades, o mundo parece cada vez mais um bazar
do Kuwait do que um clube inglês exclusivo» (citado em Rorty, 1991: 209) (sublinhado
nosso). Por outras palavras, a diversidade e a diferença parecem estar a substituir a homo-
geneidade e a uniformidade; o eixo das relações sociais torna-se mais horizontal do que
vertical, quer dizer privilegia-se as relações entre culturas a partir da sua igualdade e não
as relações hierarquizadas entre elas. Rorty partilha esta visão de Geertz e defende que as
suas implicações reforçam o anti-antietnocentrismo e as vantagens políticas das institui-
ções liberais, que se constroem com base: i) na distinção entre os agentes de amor e os
agentes de justiça (precisa-se de ambos em toda a sua especificidade), e ii) na construção
de um mundo cujo modelo é o de um bazar, rodeado de clubes exclusivos (mas com as
janelas abertas ao exterior!).
O bazar, sustenta Rorty, não é uma «comunidade» (os seus valores e comportamentos
são demasiado diversos) mas, sim, uma sociedade civil. Os wet liberals ficam horrorizados
pela exclusividade das comunidades (os ditos «clubes» privados) que parece atraiçoar o
espírito do Iluminismo. Mas, diz Rorty, é possível dissociar a liberdade e a igualdade da fra-
ternidade, e, na lógica do defendido pelos agentes de amor (pelos connaisseurs da diversi-
dade), pode concordar-se com Levi-Strauss que a exclusividade é uma condição necessária
e apropriada ao desenvolvimento pessoal (1991: 210). Por outras palavras, tal como acima
se anunciou, pode defender-se que a exclusividade é essencial para produzir os tão neces-
sários agentes de justiça que têm a responsabilidade de manter o bazar aberto, funcio-
nando. Na verdade, questionamos o facto do Iluminismo ter desejado uma cidade mundial
com cidadãos e aspirações comuns. Assim, parece não ser necessário basear a sociedade
em certos ideais morais. Bastaria a justiça. Neste sentido, a síntese política do amor e da
A incomensurabilidade da diferença e o anti-antietnocentrismo 135

justiça talvez seja, afirma Rorty, a colagem cuidadosa do «narcisismo privado» (a referên-
cia a um quadro cultural especifíco) com o «pragmatismo público» (a necessidade de se
viver em tempos e espaços públicos comuns) (1991: 210).
Parece mais do que evidente que o anti-anti-relativismo de Geertz não pode coadunar-
-se com o anti-antietnocentrismo de Rorty. Dissociar a fraternidade da liberdade e da
igualdade é, como anteriormente se referiu, condenar o índio americano (bêbado ou não)
a um quadro cultural subalterno. Na sua defesa de comunidades exclusivas, Rorty parece
subestimar os efeitos do processo de ocidentalização, processo esse que, associado com a
globalização, rasga todas as culturas. Tem-se testemunhado nos últimos tempos o aumento
de violência que se reclama de uma comunidade, que apela a uma identidade, que visa o
reestabelecimento do unanimismo perdido ou a criação de uma nova homogeneidade.
Trata-se, paradoxalmente, de uma guerra pela explosão da diferença para poder proclamar,
posteriormente, a diferença, isto é, destrói-se o multiculturalismo local (como, por exem-
plo, a prática de «limpeza étnica») para poder defender-se a diferença a nível nacional ou
regional.
Não é a questão de atraiçoar o espírito do Iluminismo que está em causa com a pro-
posta de Rorty, é a questão de uma promessa de modernidade não cumprida: a realidade
de um mundo (cada vez mais) desigual que o anti-antietnocentrismo de Rorty parece ter
tendência para naturalizar.
6
CAPÍTULO

Contributos para a reconfiguração


da educação inter/ multicultural

Este capítulo pretende conduzir para a análise política as consequências dos argumen-
tos desenvolvidos nos capítulos anteriores. Assim, apresenta quatro modelos que preten-
dem dar conta do modo como as sociedades ocidentais conceptualizaram, numa perspec-
tiva simultaneamente diacrónica e sincrónica, a sua relação com as diferenças – internas
e externas – e procura identificar, por trás das intenções explícitas das políticas e das prá-
ticas da relação com as diferenças, o «lugar» epistemológico e sociológico que marca essas
políticas e essas práticas. Na segunda parte do capítulo, procura-se relacionar estes mode-
los, assumidos como modelos heurísticos, com o campo mais específico da educação inter/
multicultural.

MODELOS DE CONCEPTUALIZAÇÃO E DE LEGITIMAÇÃO DA RELAÇÃO COM AS


DIFERENÇAS

Como se viu no capítulo anterior, a cultura ocidental viveu secularmente – com raros
interregnos críticos – numa espécie de autocontemplação da sua própria superioridade
ética e política. Esta superioridade foi justificada das mais diversas formas, desde a narra-
tiva religiosa que afirmava a superioridade do nosso Deus sobre todos os outros, até à,
eventualmente mais sofisticada, narrativa filosófica que justificava o modelo ocidental
como sendo a realização na história do próprio espírito universal, como em Hegel. A ten-
dência foi sempre para postular a nossa forma de pensar e de conhecer como sendo a mais
universal (e, por isso, a mais verdadeira) e a nossa forma de organização social e política
como sendo a mais «desenvolvida» e, logo, a mais legítima como cânone. As outras epis-
temologias e organizações sociais – as diferenças – eram julgadas a partir desta posição.
Na verdade, a segurança do Ocidente em si próprio tem vindo a ser posta em causa num
movimento em que nos olhamos no espelho da nossa própria face civilizacional. Um dos
138 «A Diferença Somos Nós»

indícios que poderíamos seleccionar para ilustrar o modo como a sociedade e a cultura
europeias foram caminhando até este ponto de insegurança civilizacional são os modelos
de conceptualização e de legitimação de relação com as diferenças (internas e externas)
que elas desenvolveram.

Figura 1: Quatro modelos da conceptualização/ legitimação da diferença

Modelo etnocêntrico: Fundado na boa consciência civilizacional do Ocidente. A


alteridade não só é julgada a partir dos cânones estabele-
O outro é diferente devido ao seu estado cidos como normais, como esta normalidade se torna nor-
de desenvolvimento (cognitivo e cultural) mativa, isto é, a forma de pensar, de viver e de organizar a
vida das sociedades ocidentais é obviamente postulada
como superior à das outras sociedades e culturas. A histó-
ria torna-se, assim, num processo de juízo civilizacional
feito a partir do ponto fixo: o BEMCHUC (brancos, organi-
zados socialmente pelo estado, masculinos, cristãos, hete-
rosexuais e tendencialmente urbanos e cosmopolitas).

Modelo da tolerância: Os «outros» são identificados no nosso seio e fora de nós.


Já não sendo susceptíveis de ser colonial e exoticamente
O outro é diferente, mas a sua diferença colocados fora do nosso convívio, urgia que lhes fosse
é lida através de um padrão que reconhece atribuído um «lugar». A cultura da tolerância surge como
essa diferença como legítima (a ser a acção daquele que tolera sobre aquele que é tolerado,
tolerada) portanto, objecto da acção moral e política que o «coloca»
entre «Nós». A inspiração cristã e humanista não chega
para esconder a arrogância ética e epistemológica daquele
que diz que tolera.

Modelo da generosidade: Fundado na má consciência do Ocidente enquanto para-


digma social. O mundo confortável que construímos para
O outro é diferente e essa diferença nós, entre muros, faz-nos sentir culpados pela vida deso-
é assumida como uma construção do lada dos «outros». A culpa, pela autocrítica que lhe subjaz,
próprio Ocidente torna-se em programa político: cuidar do «outro». O pro-
blema do «outro» é o nosso problema, dado que historica-
mente este foi continuamente menorizado. Supõe-se que
a sua emancipação é a nossa emancipação. São os «sem
voz» que têm que falar, mesmo que não queiram.

Modelo relacional: Recusa da boa e da má consciência prisioneiras do «jogo


de soma zero»: quem é que foi o mais oprimido e quem foi
O outro é diferente e nós também somos! o mais opressor? «Nós» e «Eles» somos partes de uma
A diferença está na relação entre relação, o que torna a nossa posição mais frágil: já não
diferentes. somos o «Nós» que tem a legitimidade universal de deter-
minar quem são os «Eles». Mas ao assumirmos que a dife-
rença também somos nós (o «nós» transforma-se em
«eles»), é a nossa própria alteridade que se expõe na rela-
ção. Recusa da acção unilateral, por mais generosa que
seja, sobre a alteridade, como se esta tivesse como natu-
reza ser por nós cuidada e agida.
Contributos para a reconfiguração da educação inter/ multicultural 139

Estes modelos destinam-se à análise da referida conceptualização e dos discursos que


legitimam as relações com as diferenças e foram construídos uns sobre os outros. Nesse
sentido, os seus ingredientes encontram-se frequentemente misturados e não existem per
se, isto é, são activados em dados contextos articulando ao mesmo tempo as lógicas dos
diferentes actores envolvidos e os factores estruturais que os enquadram na sua acção.
Falar em reconhecimento da diferença, sem ter em conta políticas educativas e sociais
de redistribuição, parece corresponder a cair na armadilha do capitalismo flexível. Por
outro lado, falar de redistribuição sem ter em conta o reconhecimento das diferenças na
sua «“incomensurabilidade” é permanecer presa de uma concepção estatista de cidadania,
convivendo desconfortavelmente com a reclamação “a diferença somos nós!”».

AS PONTES E AS MARGENS: A EDUCAÇÃO INTER/ MULTICULTURAL NO FIO DA


NAVALHA

No ponto que se segue, gostaríamos de assumir os quatro modelos – etnocêntrico, da


tolerância, da generosidade, relacional – no sentido de considerar heuristicamente a sua
relação com a educação inter/ multicultural.
Efectivamente, o modelo etnocêntrico de relação com a diferença, inspirado na já men-
cionada centralidade civilizacional do Ocidente, fundava uma educação segura de si
mesma na transmissão de valores e de saberes assumidos como indiscutíveis e universais.
O currículo nacional e os curricula disciplinares reflectiam essa segurança e davam como
indiscutível que o processo de educação era o processo pelo qual as crianças e os jovens se
tornavam «civilizados» e parte da grande cultura ocidental. Este modelo relaciona(va)-se
com a educação inter/ multicultural através da sua rejeição, isto é, ele constitui, por exce-
lência, no domínio da educação, a abordagem monocultural (Stoer e Cortesão, 1999).
O modelo da tolerância reflectiu-se, e ainda se reflecte, também de uma forma clara, na
estruturação da educação nas sociedades europeias, dando origem ao que temos denomi-
nado o multiculturalismo educacional «benigno» (Stoer, 2000b). Este modelo, com base
na noção de um handicap sobretudo cultural das crianças e dos jovens das minorias étni-
cas e das classes trabalhadoras (diferentemente da educação compensatória que tem base
num handicap social e que se enquadra no modelo etnocêntrico), contempla a compensa-
ção cultural e pedagógica dessas crianças e jovens através da acção de uma educação inter/
multicultural promovida pela escola e pelos professores. Ser tolerante é, neste sentido,
reconhecer a diferença sem a querer conhecer, ou, por outras palavras, querer «resolver»
a questão da diferença através de uma preocupação com «estilos de vida», relegando para
segundo lugar as «oportunidades na vida».
O modelo da generosidade é aquele que porventura levou mais longe, até hoje, a rela-
ção com a diferença. Trata-se, efectivamente, de uma proposta para a construção de uma
educação inter/ multicultural «crítica», que combate a redução das diferenças à sua com-
ponente folclórica e que se opõe, sobretudo, à educação inter/ multicultural «benigna».
140 «A Diferença Somos Nós»

Neste sentido, promove-se o desenvolvimento de dispositivos de diferenciação pedagógica


capazes de servir o fim de incluir o mais plenamente possível aqueles e aquelas que a acção
da escola tinha precisamente contribuído para excluir. Aqui, em vez da «resolução» da ques-
tão da diferença através de técnicas educativas imbuídas de racionalidade instrumental,
assume-se a necessidade de construir pontes entre culturas conceptualizadas como «incom-
pletas». O outro tem que ser conhecido através da educação e não simplesmente reconhecido
e, mais, o conhecimento do outro funciona como um autoconhecimento emancipatório.
O modelo relacional, fundado na assunção de que «a diferença somos nós», parece
conter potencialidades extremamente ricas para o repensar da educação inter/ multicul-
tural. Para começar, toma como ponto de partida a proposta de pensar a diferença na sua
incomensurabilidade, isto é, ao assumirmos que a diferença também somos nós (transfor-
mando assim o «nós» num «eles»), é a nossa própria alteridade que se expõe na relação.
Assim, é a própria alteridade que assume agência, que se torna pró-activa. No que diz res-
peito à educação inter/ multicultural, isto pode implicar estar simultaneamente na ponte e
nas margens. Por outras palavras, a educação inter/ multicultural realiza-se sendo, por um
lado, o lugar do encontro/ confronto de diferenças e da sua negociação e, por outro, o lugar
ele próprio agenciado pela diferença, isto é, é a própria educação escolar que é colocada
nos guiões dos actores sociais e culturais e não o contrário. A nossa diferença exprime-se
através da educação inter/ multicultural não como aquela que traz consigo a luz, a matriz,
a generosidade, mas como aquela que traz a sua própria alteridade. As margens do nosso
lado, da nossa diferença, podem traduzir-se num projecto de gestão da diferença, mas
nunca na sua dominação.
É com base nesta relativização do nosso «Nós» que a educação inter/ multicultural se
poderá eventualmente reconfigurar, situando-se no fio da navalha. Os curricula, os dispo-
sitivos e os processos de ensino-aprendizagem devem repercutir essa perspectiva segundo
a qual se assume, relacionalmente, a incomensurável diferença dos outros e da nossa pró-
pria, ao mesmo tempo que não se deve evitar soçobrar nos braços do voluntarismo e da
ingenuidade, por exemplo em relação às características extremamente selectivas dos novos
mercados de trabalho. O fio da navalha surge como uma metáfora interessante dado que é
o carácter conflitual, agonístico, que é sublinhado. As políticas curriculares, parece-nos,
ganhariam em assumir-se como terreno de dissenso, de confronto cultural, e menos como
reduto último de identidades (mesmo a identidade nacional) que disfarçam sob o manto
de um consenso sem conteúdo a perda da sua legitimidade social.

A RECONFIGURAÇÃO DA EDUCAÇÃO INTERCULTURAL

Num trabalho recente que foi elaborado para proporcionar um «catálogo analítico de
materiais de formação para a diversidade», L. Cortesão et al. (2000) apresentam quatro
perspectivas susceptíveis de ser identificadas no campo da formação em educação inter/
multicultural (ver Figura 2).
Contributos para a reconfiguração da educação inter/ multicultural 141

Figura 2: Quatro perspectivas face à Formação em Educação Inter/ multicultural

1. A Perspectiva Assimilacionista: visa contribuir para o que se admite ser uma boa e harmónica inte-
gração dos grupos minoritários na sociedade dominante. (…) Esta proposta decorre (…) de se admi-
tir que as regras e os valores da sociedade dominante são válidos, indiscutíveis e próprios de uma cul-
tura superior. Assim sendo, os grupos minoritários só lucrarão em aceitar e absorver essa cultura, tor-
nando-se semelhantes aos indivíduos maioritários (em termos de poder) na sociedade. (…) Trata-se de
uma postura informada por um evidente etnocentrismo que nem questiona a universalidade dos pró-
prios valores e normas (…) nem percepciona o sofrimento que decorre da sua arbitrária imposição a
grupos cujas raízes culturais são bastante diferentes.

2. O Multiculturalismo Benigno, ou condescendente: é o que, com mais frequência, informa as propos-


tas de actuação em relação com o «outro diferente». Trata-se de uma perspectiva que conduz a que
esse «outro» seja olhado de forma benevolente, considerando, à partida, as suas características como
passíveis de serem aceites. As atitudes de tolerância face à diferença estão na base deste tipo de posi-
ção. Uma tolerância «passiva» que, de forma «bondosa», aceita, um tanto acriticamente, que os outros
tenham outras normas, outros valores, embora esses não sejam os que uma sociedade mais evoluída e
dominante foi escolhendo para si.

3. O Multiculturalismo Crítico: decorre de uma posição teórica que, como o seu nome indica, se alicerça
na teoria crítica. Neste quadro estimula-se, constantemente, a existência de atitudes interrogativas,
questionantes do significado real de todas as situações e soluções, mesmo as que o senso comum con-
sidera como obviamente aceitáveis. (…) Quando se consideram questões de formação multicultural
num quadro teórico com estas características, as relações entre grupos diferentes têm portanto de ser
analisadas, numa constante preocupação de desocultação. Procura-se identificar significados, por
vezes menos explícitos, da relação entre grupos com estatutos diferentes e que usufruem também de
situações diferentes de poder de decisão.

4. A Acção Anti-Racista: diz respeito a propostas de formação que pretendem ser desencadeadoras de ati-
tudes activas de luta contra a discriminação e a exclusão em todas as suas formas. Este tipo de preo-
cupação (que pressupõe o exercício de uma perspectiva crítica) pretende estimular o formando a assu-
mir atitudes explícitas de intervenção no problema de discriminação e/ ou exclusão com que se depara
no seu quotidiano.
[Fonte: Cortesão, Luiza, et al., 2000: 25-26]

É interessante confrontar estas quatro perspectivas, que parecem representar bem o


estado-da-arte no que diz respeito à teorização da educação inter/ multicultural, com os
quatro modelos de conceputalização/ legitimação da diferença acima referidos. Neste sen-
tido, podemos constatar o seguinte:

1. a matriz fundadora da escola para todos, pública, estatal, moderna, republicana,


monocultural, é o modelo etnocêntrico que se traduz na perspectiva assimilacio-
nista;
2. o modelo da tolerância traduz-se na perspectiva do multiculturalismo benigno que
exprime a lógica estruturadora máxima da escola moderna face ao outro, perante as
diferenças;
3. o modelo de generosidade é traduzido na perspectiva do multiculturalismo crítico,
que surge como a resposta contra-hegemónica da modernidade ao incumprimento
das suas próprias promessas. Por isso, não deixa de ser enquadrado pela epistemolo-
142 «A Diferença Somos Nós»

gia moderna e a sua tendência para pensar a diferença, não a partir do seu próprio
discurso, mas através do discurso – sobretudo «emancipatório» – sobre ela;
4. o modelo relacional, pelo contrário, não se traduz na perspectiva da acção anti-
-racista que não é mais do que «o exercício de uma perspectiva crítica». Neste sen-
tido, esta perspectiva constitui o pólo oposto da estruturação da escola pelo modelo
etnocêntrico/ perspectiva assimilacionista, isto é, o oposto da escola da reprodução.
Esta escola é a escola da emancipação que se torna possível devido à agência do
sujeito «iluminado» (através da pedagogia crítica). A narrativa libertadora desta
perspectiva já se revelava fortemente presente no multiculturalismo crítico, atin-
gindo, na acção anti-racista, a sua concretização.

De facto, o modelo relacional enfatiza que o duplo multiculturalismo crítico/ acção


anti-racista não consegue renovar o inter/ multiculturalismo, repondo o jogo de relações
com a diferença cultural no jogo mais amplo dos processos sociais e, mais do que alargar
pela autocrítica os quadros culturais e epistemológicos que estruturam e pensam essas
relações, estabelece como sujeito do discurso (científico, ético, político e estético) as pró-
prias diferenças. Na verdade, são as rebeliões das diferenças que estão aqui em causa, dife-
renças que se rebeleram contra o jugo cultural, político e epistemológico da modernidade
ocidental.
O modelo relacional baseia-se numa forma de agência bastante mais modesta do que a
agência da perspectiva do multiculturalismo crítico. Em vez de ser «emancipatória», é
reflexiva e, em vez de propor o domínio da mudança, propõe uma matriz tripla para lidar
com a mudança (ver Capítulo 1). Neste modelo, os ideias emancipatórias surgem como
heterogéneas e, por vezes, mesmo conflituantes entre si (por exemplo, ser mulher e assu-
mir os direitos de cidadania e ser simultaneamente muçulmana tradicionalista emigrada
numa sociedade como a francesa).

CONCLUSÃO

A reconfiguração da educação inter/ multicultural implica desafiar a estratégia episte-


mológica que se fixa em torno do sujeito que pensa a diferença e não na própria diferença,
e em que as suas estratégias de acção parecem centrar-se no valor táctico que a «com-
preensão» da alteridade possui para a consecução de projectos em que ela é «integrada»,
de alguma forma ainda enquanto objecto de «preocupação» e não como agente da própria
acção social. Como já se disse, pensar as diferenças, não a partir do discurso – sobretudo
se «científico» – sobre elas, mas a partir delas, requer uma atitude epistemológica e polí-
tica renovada que eventualmente é possível encontrar no que temos denominado o modelo
relacional.
PA R T E III
Novas Formas de Regulação
e a «Diferença» no âmbito
da Construção Europeia
INTRODUÇÃO

Nesta última parte do livro, procuramos levar até à questão da construção euro-
peia as consequências da assunção de «a diferença somos nós». Trata-se de identi-
ficar, nesse processo, não só o impacto da alteração do paradigma da elaboração
de políticas e da sua implementação (objecto da primeira parte), mas também as
consequências da perda do centro epistemológico e sociológico a partir do qual
tradicionalmente a Europa definiu os seus «outros». Como se viu, estes foram de
ordem externa e interna, sendo o nosso objectivo perspectivar a alteridade grupal
e individual a partir da criação de diferenças que dimanam de relações e não de
qualquer privilégio epistemológico ou histórico. Neste sentido, «a diferença somos
nós» enquando perspectiva epistemológica e política tem, no caso em apreço,
como paralelo «a Europa somos nós».
Da mesma forma que a linearidade da acção política foi posta em causa pela
crescente reflexividade dos actores sociais, e que o privilégio de determinação de
quem são os outros se foi fragilizando, a Europa surge como uma possibilidade de
agência política que não só escapa aos cânones modernos de elaboração de políti-
cas como desafia a imaginação sociológica. É por isso que referiremos as metáfo-
ras para analisar a forma pela qual o processo está a ser pensado. Da Europa como
«meganação» à Europa como afirmação de «racionalidades mínimas», procurare-
mos identificar possibilidades estimulantes para a repensar.
Na sequência da Cimeira de Lisboa de 2000, a Comissão Europeia assumiu como
objectivo central tornar a Europa o mais competitivo espaço do globo, identificando
como principal meio para tal desígnio o conhecimento. Esta assunção parece impli-
car uma reconfiguração do mandato endereçado aos sistemas educativos. A estes
é pedido não só que formem bons cidadãos e bons trabalhadores como também,
e sobretudo, cidadãos em permanente processo de aprendizagem (learning citi-
zens). Paralelamente, embora de uma forma não obrigatoriamente conflitual, novos
estilos de vida e de reclamação política a partir das diferenças específicas dos indi-
víduos e dos grupos parecem articular um conhecimento e projectos educativos
que dimanam dessa mesma alteridade. Esta última parte pretende mostrar que
entre a Europa do conhecimento, a Europa enquanto unidade política, a Europa
como projecto ecológico, a Europa da livre circulação de pessoas e mercadorias, a
Europa como riqueza cultural das nações, etc., e aquilo que lhe se opõe corre uma
espécie de fio de navalha, no sentido em que as formas emergentes de regulação
encerram importantes potencialidades de agência social e individual.
7
CAPÍTULO

A Europa como um bazar:


educação na Europa do conhecimento

O espaço europeu e a construção política da Europa vêem-se crescentemente confron-


tados com um processo de heterogeneização que se desenvolve espartilhado entre duas
lógicas. Uma baseada na lógica moderna da homogeneidade que implica pensar a Europa
como um grande estado-nação (em competição com outros grandes estados-nação), e
outra baseada no que se poderia designar um conceito de unidade bricolada no âmbito da
qual a Europa seria pensada como uma unidade com base na diversidade.
Esta última lógica aponta para uma Europa onde as diferenças se reúnem no sentido
de tentarem conviver com base na sua incomensurabilidade e não com base numa mítica
herança comum europeia. No Capítulo 5, referimo-nos a este encontro através da utiliza-
ção da metáfora do bazar.
Desenvolve-se aqui esta metáfora enquanto possibilidade de reconfiguração das rela-
ções dentro e entre os estados-nação modernos e os cidadãos. Nesse sentido, questionar-
-se-á como é que as formas de recomposição do estado-nação e sua produção/ construção
supranacional se relacionam com os processos de construção europeia e com as novas
formas emergentes de cidadania a que nos referimos em «O Lugar de cidadania», no Capí-
tulo 4. Paralelamente, e à medida que são exploradas algumas metáforas que presidem a
perspectivas sobre a construção europeia, procuraremos cruzar esta construção política da
Europa com o contexto da chamada «sociedade e economia do conhecimento». Neste
âmbito, tentaremos destacar algumas implicações deste processo cruzado de reconfigura-
ção política da Europa com a centralidade do conhecimento e da informação para o campo
de educação.

QUATRO METÁFORAS PARA A CONSTRUÇÃO DA EUROPA

Se toda a linguagem tem uma matriz metafórica (Ricoeur, s/d) e sendo mesmo da ordem
da poética a estrutura da linguagem científica, em termos sociológicos as metáforas têm
148 «A Diferença Somos Nós»

também consequências. Quer dizer, os termos em que o socius é pensado e dito repercute-
-se sobre ele próprio. Os exemplos são muitos, desde a metáfora biológica de Spencer da
sociedade como organismo à mais recente «rede» para designar a forma como os grupos
e as sociedades se desenvolvem.
Diz A. Mons que

[...] o processo metafórico nas suas variantes, nas suas cristalizações entre a imagem,
o território, na comunicação, introduz-nos numa economia ficcional que se sobrepõe
cada vez mais a uma economia material. Qual das duas disposições determina a outra
hoje em dia? Na verdade é impossível dizer, visto que elas formam um entrelaçado per-
feito na complexidade das permutas. As metáforas visíveis dos «campos» projectam-se
irresistivelmente para uma poética do social, através dos efeitos de colagem, de sobrepo-
sição de representações, de invisibilidade, de virtualidade, de explosão de sentido. (Mons,
s/d: 8)

É neste sentido que pensamos ser importante a análise de algumas metáforas que têm
servido para organizar as nossas visões da construção europeia como tarefa colectiva.
Identificamos neste trabalho três – a bandeira, a associação e a rede – e propomos uma
quarta – o bazar – no sentido de levar mais longe a análise do processo em causa. De facto,
a construção europeia não corresponde a um projecto único ou a uma intenção unitária,
isto é, existem diversas Europas nas nossas cabeças quando acerca dela falamos. Esta plu-
ralidade pode ser identificada através das metáforas que lhe dão corpo nos discursos polí-
ticos. Na verdade, a Europa tem sido ela própria uma metáfora, uma figura da mitologia
grega, e pensada politicamente através de metáforas. É possível mesmo dizer que tem exis-
tido apenas através dessas metáforas; em certo sentido a Europa é criada por estas metá-
foras.

A Europa como bandeira

A mais conhecida destas metáforas pode dizer-se que é a da «bandeira». Os estados-


-nação, cujas origens remontam à Idade Média, assumiram este tipo de organização sobre-
tudo a partir do século XVIII. Em muitos sentidos pode dizer-se que são entidades políti-
cas imaginadas (Anderson, 1983), não porque tivessem inventado as nações, mas porque
traduziram a nacionalidade nessa forma de organização política. A bandeira é a tradução
simbólica da unidade que se pretende construir em torno de um território, de uma língua,
de uma religião, de uma cultura. A sua força aglutinadora nas entidades nacionais parece
sobreviver nos próprios movimentos anticolonialistas cujos primeiros actos fundadores
passaram pela criação de uma bandeira, de um sistema educativo e de umas forças arma-
das abarcando todo o terrtório nacional e tornando-se quase sinónimos dele. A metáfora
da bandeira conserva, assim, matricialmente, a marca do nacional configurado pelo
estado. Até agora, a história da Europa tem sido a história dos estados-nação europeus,
A Europa como um bazar: educação na Europa do conhecimento 149

com matizes que vão desde estados à procura de uma nação (é o caso de Espanha) até
nações à procura de um estado (o Ulster, por exemplo). Tem também sido a história do
conflito entre estados-nação, quer em nome do território, quer em nome da religião, quer
em nome de mercados. A Europa captada pela metáfora da bandeira é uma Europa ensan-
guentada (ver Coulby, 1997). Desde o século XII que o sangue corre em nome de Deus, da
terra-mãe e dos mercados, mas é com a Idade Moderna que a bandeira mais se intensifica
como enformadora da acção política. Organizadas pelo estado, as sociedades internamente
homogeneizam-se e externamente criam sociedades de nações cuja forma de convivência
vai desde o conflito até à criação das Nações Unidas.
Os estados-nação, ainda sob o signo da metáfora da bandeira, criaram sistemas educa-
tivos como forma privilegiada de formar os indivíduos «pertencentes» à sua esfera de regu-
lação. Como já se sugeriu, nascer num determinado território, sendo razão formal a
partir da qual é atribuída a condição de cidadão, sobretudo após a combinação do capita-
lismo com os sistemas nacionais, não é suficiente para se aceder plenamente à cidadania.
De facto, o capitalismo requer que aquele que nasce em territítório nacional seja integrado
numa relação salarial. Só assim é que se é reconhecido pelo estado como sujeito detentor
de direitos e deveres. É assim que o conhecimento e a cultura são configurados a partir do
nível nacional. As universidades modernas foram concebidas como centros de produção,
conservação e difusão de conhecimento para a consolidação do projecto nacional, quer
em termos económicos, quer em termos culturais. Tanto a universidade humboldtiana,
como a universidade napoleónica, ao mesmo tempo que celebravam o carácter universal
do conhecimento, enfatizavam a sua matriz nacional. Os sistemas educativos criados no
âmbito da consolidação do estado-nação são o dispositivo difusor desse conhecimento e
desse carácter nacional numa tensão entre a universalidade do primeiro e a particulari-
dade do segundo.
O papel do conhecimento neste paradigma sociocultural de modernidade reflecte esta
tensão entre a formação de um sujeito universal e um cidadão nacional. Quando combi-
nado com o capitalismo, este paradigma impõe ao conhecimento uma terceira dimensão
que se traduz quer no input científico no processo produtivo, quer na organização cientí-
fica desse mesmo processo. No período de capitalismo organizado, ou fordista, o processo
de trabalho inclui o conhecimento nestas duas vertentes, mas o processo produtivo em si
não tem como factor central o conhecimento. Trata-se de um processo centrado no traba-
lho, na transformação de matérias-primas e na organização desse mesmo processo. O
conhecimento surge como dependente do trabalho e não como o cerne deste.
Assim, o conhecimento e a cidadania enformados pela metáfora da bandeira parecem
convergir na tarefa funcional de criar bons cidadãos e bons trabalhadores, implicados no
fortalecimento e prosperidade do estado-nação. Os projectos de crescimento industrial
confundem-se, durante o período do fordismo, com os projectos de crescimento e de afir-
mação nacionais. Em termos gerais, à educação é remetido um triplo mandato: fazer cir-
cular o conhecimento como formador do indivíduo, como formador do trabalhador e como
formador do cidadão.
150 «A Diferença Somos Nós»

A Europa pensada a partir desta metáfora é a Europa que herdámos. Surge como a ten-
tação de pensar a Europa a partir do modelo dos estados-nação, tal como os conhecemos.
Isto reflecte-se ainda em formas aparentemente mitigadas, através do conflito «civilizado»
das línguas nacionais-oficiais, no lugar que se ocupa na «fila das nações» europeias, isto é,
o «estar na cauda», o «estar atrás dos gregos», «antes dos alemães», «depois dos france-
ses»... são tropos políticos poderosos. A Europa deverá ser uma meganação que engloba
todas as outras e, de algum modo, as regionaliza, como questiona Anne-Marie Thiesse
(2000)? Ou deverá ser uma construção de um novo tipo? De facto, parece que nem o sím-
bolo da bandeira das estrelas, nem a moeda única, nem a promessa de uma constituição
europeia veiculam, por si só, um modelo político capaz de reconfigurar o sentimento de
pertença nacional, proporcionando as bases de uma forma reinventada de cidadania. Actual-
mente, a ingenuidade é algo que nos é reflexivamente vedado. Ninguém se pode dar ao
luxo da inocência: a construção da Europa dificilmente se poderá fundar na afirmação de
um terriório «mãe» (Vaterland ou Motherland), numa religião (seja ela a cristã) ou numa
língua (seja ela a língua franca – o inglês europeu– ou outra). A Europa das nações poderá,
antes, aproveitar o deslocamento e a reconfiguração do poder político para outro centro –
Bruxelas, Estrasburgo... – para reequacionar o caso corso, o caso basco, o caso belga, etc.,
com novos actores para além de Londres, Madrid...
Por um lado, dizem Held e McGrew, os cépticos «ao contrário de considerarem que os
governos nacionais estão a ficar imobilizados pelos imperativos internacionais, apontam,
antes, para a activa promoção e regulação das actividades entre fronteiras» (2002: 105),
por outro, Hedley Bull enfatiza, precisamente, a necessidade de se desenvolver uma alter-
nativa aos sistemas estatais tais como os conhecemos até hoje.
Eu não me proponho especular sobre como é que se configurariam essas alternati-
vas não históricas. Não é evidentemente possível confinar as variedades de possíveis
formas futuras dentro de uma lista finita de sistemas políticos, e por isso não se pode
tomar a sério as tentativas de ditar leis de transformação de um dado tipo de sistema polí-
tico universal para outro. (...) Mas a nossa visão de possíveis alternativas ao sistema dos
estados deve ter em consideração as limitações da nossa própria imaginação e a nossa
incapacidade para transcender a experiência passada. (Bull, 2002: 466)

É neste sentido de alargamento das possibilidades sociológicas que é importante con-


frontar outras concepções do desenvolvimento da Europa para reconfigurar a própria
estrutura de soberania dos estados-nação. A futura constituição europeia (ver Convenção
Europeia, Esboço de um Tratado que Estabelece uma Constituição para a Europa, 18 de
Julho de 2003) encontra-se, assim, numa posição historicamente muito peculiar, pois o
seu vício e a sua tentação podem advir do facto de se procurar no passado o seu modelo
futuro. É que alguns falam da Europa até aos Urais, outros limitam-na ao cristianismo e,
outros ainda, a uma certa versão do nome de Deus...
A questão da soberania política na UE pode já ser contemplada a partir deste aparente
desencontro entre os sistemas estatais do passado e um novo modo de soberania emer-
A Europa como um bazar: educação na Europa do conhecimento 151

gente, como se pode ver na definição das «categorias de competências» (art. 11.º), de
«competência exclusiva» (art. 12.º) e das «áreas de competência partilhada» (art. 13.º)
(ibidem) da proposta de Constituição para a Europa, pois a forma como o exercício dessa
soberania se vem configurando é de alguma forma excepcional. Citando Keohane, «(...) a
Comunidade Europeia não é de modo algum um estado soberano, embora constitua um
híbrido sem precedentes, ao qual já não se aplica o conceito tradicional de soberania»
(2000: 116). O mesmo autor enfatiza que está em causa uma nova forma de inter-relacio-
namento entre os diferentes estados-nação europeus, isto é, a própria interdependência «é
caracterizada por uma contínua discordância dentro de e entre os países, dado que os inte-
resses dos indivíduos, dos grupos e das empresas estão frequentemente em conflito entre
si» (ibidem).

A Europa como Associação em torno de temas

É neste sentido que se torna necessário procurar noutras metáforas a Europa. Mary
Kaldor (1995) identificou quatro características principais dos estados-nação, essa «forma
particular de estado que teve a sua origem durante o século XIX»: identidade política –
baseada na cidadania que, por seu turno, estava ligada à cultura do território; cultura
«vertical e homogeneizadora»; moeda, «consist(indo) numa moeda nacional controlada
por um banco central»; «violência organizada» – sob «a forma de forças armadas nacio-
nais, que representam a sua única forma legítima» (sublinhado no original) (1995: 71-73).
Segundo Kaldor, «o estado-nação teve uma vida curta», tornando-se evidente na última
parte do século XX que se tinha tornado «demasiado amplo para proteger as culturas»,
«demasiado amplo para proporcionar um processo eficiente de tomada de decisão»,
«demasiado pequeno para impedir as guerras» (ibidem: 74-75). Foi sendo, então, substi-
tuído por aquilo a que a autora chama um «sistema de blocos, que assumiu as seguintes
características: identidade política (…) fundada na pertença nacional ao bloco, que, por
seu turno, se baseava na ideologia (isto é, um compromisso com a democracia parlamen-
tar e com o capitalismo no Ocidente ou com o socialismo no Leste)»; «uma cultura hori-
zontal comum ligando as elites»; uma forma peculiar de moeda que «para o bloco oci-
dental (…) era hegemónica»; e «forças armadas» (…) «organizadas sob estrutras integra-
das de comando» (ibidem: 75-76). Relativamente ao «sistema de blocos», que foi também
de curta duração, pergunta Kaldor:

Em que sentido prefiguraram os blocos novas formas de estado? Eles não eram meras
alianças de estados-nação. O sistema de blocos marcou um corte decisivo com o estado-
-nação, pois a noção de uma comunidade ideológica não se baseava tanto numa comu-
nidade fundada no território ou na cultura de uma comunidade, mas num universalismo
a priori, se não mesmo de facto, do bloco, na construção de novas culturas horizontais
de elites, na criação, em teoria, de uma moeda internacional e, acima de tudo, nas limi-
tações das forças armadas nacionais. (Kaldor, 1995: 77)
152 «A Diferença Somos Nós»

A revolução causada pelas tecnologias da informação dos anos 1970 e 1980 tiveram um
impacto significativo nas características das formas de poder de estado. A identidade polí-
tica na forma de «identidade do bloco (…) desapareceu com o fim da Guerra Fria»; a cul-
tura tornou-se «comunicação transnacional (que) torna possível todos os tipos de novas
redes horizontais, que poderão não ser necessariamente redes de elites»; a moeda hege-
mónica foi posta em questão e enfraquecida pelo «crescimento da liquidez internacional e
pelo aumento da dimensão e da velocidade dos fluxos de capital»; e «o carácter da guerra
mudou também dramaticamente. (…) O monopólio da violência organizada foi erodido
simultaneamente pela transnacionalização e privativação», e, parafraseando ainda a autora,
por se ter tornado um espectáculo global (ibidem: 80-83).
Embora Kaldor reconheça que a construção europeia poderá significar o retorno às
formas de organização política do estado-nação, argumenta que «na era pós-blocos, tal
seria anacrónico e mesmo periogoso» (ibidem: 69). Propõe, então, dois modelos possíveis
para o futuro, um baseado naquilo que poderia ser uma combinação dos modelos do
estado-nação e dos blocos e outro baseado num «novo conjunto de estruturas horizontais
do estado». Será este último que poderá alimentar a nossa imaginação para a concepção
de novas possibilidades em relação à construção europeia. As características deste modelo
são as seguintes: identidade política baseada numa «associação voluntária fundada em
temas e não no território» (exemplos desses temas poderão ser «direitos humanos, segu-
rança, o meio ambiente, a gestão económica e financeira»); cultura horizontalmente
baseada «num compromisso para resolver certos problemas globais comuns, isto é, verde/
paz/ desenvolvimento/ direitos humanos»; moeda baseada numa «genuína forma de
dinheiro internacional, garantida por instituições monetárias internacionais que prestem
democraticamente contas»; e violência organizada numa «série de redes de alianças de
segurança, incluindo unidades multinacionais e um complexo quadro de inspecção mútua
que transforme as forças armadas nacionais em relíquias culturais» (ibidem: 88).
O que se pretende aqui não é a recuperação das propostas já elaboradas por diversos
analistas e sociólogos, que acabam por esvaziar os temas da identidade política sob o peso
da necessidade de associação em torno de um tema «mestre», a «emancipação da huma-
nidade», a «conscientização dos sujeitos sociais», «a utopia da igualdade», para dar apenas
estes exemplos. Pelo contrário, a associação em torno de temas surge aqui sob formas
híbridas de regulação e de emancipação. Não é o carácter «superior» (em termos éticos e
políticos) do tema da identidade política que o legitima como tal, mas, antes, o seu carác-
ter de agregador de interesses e de vontades (uma «associação voluntária») que podem ser
reclamados por parte dos cidadãos. Ora, estas reclamações nem sempre coincidem com as
dos ideais utópicos herdados do século XIX. Como sugere Kaldor, podem surgir também
na reclamação de livre circulação de mercadorias e de medidas de padronização de produ-
tos e modos de consumo em nome da gestão eficiente. À partida não está garantido o
carácter emancipatório ou regulatório de quaisquer medidas políticas do âmbito de qual-
quer tema. Por exemplo, a normalização dos depósitos de água dos autoclismos pode ser
vista como a intrusão dos burocratas de Bruxelas na mais íntima zona dos nossos lares, ou
A Europa como um bazar: educação na Europa do conhecimento 153

como uma racionalização dos gastos e controlo do desperdício de água. No sentido oposto,
políticas desenhadas a partir de um tema assumido à partida como emancipatório, por
exemplo a abertura ao público de zonas verdes como zonas de lazer, podem redundar no
seu perverso oposto, a destruição dessas mesmas zonas verdes, dando eventualmente origem
à sua interdição.
No que diz respeito à dimensão cultural referida por Kaldor, o questionamento do
patriarcado, a afirmação das diferenças de estilos de vida e a preocupação «verde» surgem
não como temas europeus, per se, mas com um forte potencial de agregação cultural da
Europa. Os temas quer de identidade política, quer de dimensão cultural são, como se
sabe, o campo, por excelência, dos novos movimentos sociais que têm uma projecção global.
Ora, sendo a Europa também uma questão de identidade, uma questão de pertença, seja o
que for que tal possa significar, os «temas» parecem acabar por recusar à Europa aquilo
que ela própria, como diferença em relação aos outros espaços, necessita. Todavia, esta
«diferença» é uma possibilidade de ser assumida como uma opção dos estados-nação que
dela pretendem fazer parte.

Ao contrário das identidades e histórias nacionais, tal como foram codificadas no


ardente processo da construção do estado e da nação, a Europa não se pode dar ao luxo
de discriminar particularismos e marcadores de autenticidade. Ela deriva a sua legitimi-
dades de princípios universalísticos e do futuro que projecta. E o futuro, ou a aspiração
por esse futuro, estão agora imbricados com os futuros dos outros, o que faz da Europa
uma identidade mais ampla do que a própria Europa. (Soysal, 2002: 62)

Esta opção por «fazer parte» surge como uma reconfiguração do próprio estado-nação,
sobretudo no que concerne à sua soberania. A participação através de temas como o Euro
ou a defesa do ambiente tem como contrapartida oferecer uma parte da sua soberania para
o desenvolvimento do próprio tema, como é sugerido pelos princípios da concessão, da
subsidariedade e da proporcionalidade insertos na Proposta da Constituição para a Europa
(2003, ver art. 9.º). Por exemplo, prescindindo da utilização de dadas formas de energia se
tal for compensador em termos da realização do tema da preservação do meio ambiente.
É no aparente paradoxo entre o carácter universalista das perspectivas «temáticas» e o
carácter «local» da Europa, e entre a dimensão da identidade política e a dimensão cultu-
ral dos temas, que esta poderá potencialmente afirmar-se, por um lado, através da recon-
figuração da sua política interna e externa, isto é, não assumindo uma acção política com
base no modelo dos blocos, pois, para falar como Habermas, a UE dificilmente poderá ter
como objectivo principal a confrontação com o poder económico americano ou outro, que
a tornaria particularista (1999: 58); por outro lado, com a participação do estado-nação no
tema podem ser desencadeadas dinâmicas que conduzam à sua própria reterritorialização.
Dado que os territórios são simultaneamente reais e virtuais, é possível e necessário repen-
sar as diferentes políticas (quer as da diferença, quer as da redistribuição) com base não
só nos «novos territórios» (local, regional, supranacional) – a Europa, por exemplo – mas
154 «A Diferença Somos Nós»

também com base nos territórios desterritorializados. A este título, a associação em torno
dos temas pode surgir como forma deste tipo de território desterritorializado: o ambiente,
ser mulher, os direitos humanos, a moeda única europeia, liberdade de circulação de mer-
cadorias e de pessoas, etc. Os estados «voluntariamente associados» têm, a propósito dos
temas, uma oportunidade de se reterritorializarem novamente em torno do novo tipo de
reinvindações dos seus cidadãos.
Se, como diz Giddens, vivemos numa sociedade marcadamente sociológica, reflexiva,
no sentido em que as práticas pessoais e institucionais são permanentemente configura-
das pelo conhecimento que acerca delas fomos construindo, também é verdade que esta
reflexividade se estende à afirmação de identidades mais particularistas, mesmo locais, que
as racionalidades mais cosmopolitas e de pendor universalista não podem ignorar. Estes
particularismos, não sendo redutíveis aos nacionalismos, mais ou menos localistas, inte-
gram-nos em importantes constelações conflituais: a defesa da economia nacional e a defesa
do ambiente; a afirmação identitária a partir de dados estilos de vida e a defesa das tradi-
cões culturais, etc. Assim, a metáfora da bandeira parece proporcionar algo que os temas
não podem proporcionar: um intenso sentido de pertença. Embora as causas temáticas (os
direitos das mulheres, o ambiente, as identidades sexuais) possam proporcionar impor-
tantes âmbitos de identificação e de forte militância, parece que a nacionalidade continua
a despertar fortes sentimentos de defesa e de ataque a partir dela.
O conhecimento, nesta metáfora, surge, em primeiro lugar, como uma espécie de lite-
racia política, no sentido em que deve servir os projectos reflexivos dos indivíduos e dos
grupos. Em segundo lugar, o conhecimento surge como um factor crucial no processo
produtivo e assume uma dimensão global/ local. No que se refere ao primeiro aspecto, já
acima falámos da tensão entre individualização e individuação. É aqui que esta tensão se
torna particularmente evidente. Ao mesmo tempo que o conhecimento potencia a reflexi-
vidade dos indivíduos e dos grupos e a sua capacidade de agência, o processo produtivo,
referido no segundo aspecto, articula essa mesma reflexividade. Os processos produtivos
não só se globalizam, como fazem apelo a um novo tipo de trabalhador, como aquele iden-
tificado por Stephen Ball com base em entrevistas a responsáveis pela indústria e mundo
de negócios ingleses (1990; ver também Guile, 2002). As competências de comunicação,
inovação e de cooperação são apresentadas ao mesmo tempo como indicadores de bem-
-estar dos indivíduos e como factores importantes para o próprio processo produtivo e
competitividade económica.
O conhecimento aparece, assim, como um instrumento dos indivíduos e dos grupos
para a consecução dos seus próprios projectos e crescentemente como factor produtivo
importante. A distância entre individuação e individualização é subtil, não sendo fácil
identificar se estes conceitos correspondem àqueles outros, de matriz moderna, de desa-
lienação e alienação.
A cidadania, da mesma forma, surge recombinada entre preocupações, por assim dizer,
reflexivas e as novas sociabilidades. Por exemplo, a preocupação com a defesa do ambiente
tem implicações ao nível dos quotidianos, quer em termos locais, quer termos globais,
A Europa como um bazar: educação na Europa do conhecimento 155

fazendo com que o risco e a confiança, como diria Giddens, sejam permanentemente tidos
em conta nas diferentes tomadas de decisão e de acção. Tudo se parece passar, ainda para
utilizar uma expressão de Giddens (1992), como se o carro de Jagrená, que se sabe ingo-
vernável, tivesse constantamente de ser alvo dos esforços dos cidadãos, enquanto tal, para
o manter nos caminhos minimamente previstos. Ser cidadão, neste sentido, é contribuir
o mais activamente possível para a governabilidade das sociedades de risco.
Uma Europa configurada pela metáfora da associação em torno dos temas parece atri-
buir ao conhecimento uma tarefa cosmopolita e de reconfiguração da cidadania nacional
em torno de causas e de escolhas dos indivíduos e dos grupos. Por outro lado, as compe-
tências solicitadas à escolarização, ao mesmo tempo que formam o indivíduo como actor
reflexivo, colocam-no num mercado de trabalho reconfigurado pelo capitalismo flexível (e
de casino – ver Harvey, 1989). E se os temas têm na base a assunção de uma cidadania fun-
dada numa literacia política cosmopolita, também expõem os indivíduos e os grupos aos
fluxos globais de capital não regulados e dificilmente reguláveis.

A Europa como estado em rede

Do que ficou dito, parece-nos claro que a Europa é algo que surge aos cidadãos, aos
sociólogos e à acção política como sendo da ordem do «constituinte» e não do «consti-
tuído». A agência dos actores sociais e a sua reflexividade são cruciais para a agenda da
Europa como uma das oportunidades da mais recente e estimulante invenção sociológica.
É neste sentido que, antes de retomarmos a metáfora do «bazar», pensamos ser impor-
tante falar da Europa como um dos primeiros estados em rede.
Portanto, entre os modelos desejáveis e a realidade em curso, o estado em rede surge
como uma metáfora política interessante de aprofundar. Por um lado, tem implícita uma
linguagem e uma gramática que, ao mesmo tempo que surgem padronizadas e algo fixas,
aparecem também como susceptíveis de ser agenciadas. Por outro lado, a rede é uma teia
de relações que não se esgota na tecnicidade dos processos informáticos e de difusão de
informação. A rede, neste último sentido, tem actores privilegiados e potencialmente hege-
mónicos; não é um «lugar branco» no sentido em que é marcada epistemológica e politi-
camente (veja-se o caso da Microsoft e a predominância do inglês como linguagem de trân-
sito informático). Estes dois aspectos fazem da rede um lugar de agência política marcado
não definitivamente pela lógica top-down, dado que proporcionam, nos seus interstícios,
importantes possiblidades de afirmação individual e grupal, a diferentes níveis, local, regio-
nal, nacional e global. As redes não são, portanto, um lugar político idílico. Para seguirmos
a definição de Castells:

As redes constituem a nova morfologia das nossas sociedades, e a difusão da lógica da


rede modifica substancialmente a operação e os produtos nos processos de produção,
experiência, poder e cultura. Enquanto que a forma de rede de organização social existiu
noutros tempos e noutros espaços, o paradigma da nova tecnologia de informação for-
156 «A Diferença Somos Nós»

nece o material de base para a sua expansão hegemónica por toda a estrutura social.
Mais, defendo que esta lógica da rede induz uma determinação social de um nível mais
elevado do que aquela dos interesses sociais específicos expressos através das redes: o
poder dos fluxos assume supremacia sobre os fluxos de poder. (...) As redes são estrutu-
ras abertas, com o potencial de se expandirem sem limites, integrando novos nós desde
que sejam capazes de comunicar dentro da rede, nomeadamente desde que partilhem os
mesmos códigos de comunicação (por exemplo, valores ou objectivos de desempenho).
Uma estrutura social com base na rede é um sistema altamente dinâmico e aberto, sus-
ceptível de inovar sem ameaçar o seu próprio equilíbrio. (Castells, 1996: 469-70)

Como metáfora para a reorganização da Europa, a rede surge fundada não só em fluxos
de poder como também em fluxos de informação e conhecimento. Estes fluxos já não são
nem produzidos, nem controlados, pelas instituições nacionais encarregues da produção
e difusão dessa mesma informação e conhecimento, isto é, principalmente as instituições
do sistema educativo. Efectivamente, a informação e o conhecimento, como funções
essenciais das instituições educativas estão a ser colocados fora do sistema escolar, como
enfatiza Carnoy, quando diz que a função da selecção das escolas terá que ser relativizada,
devendo a produção e difusão de conhecimento e de competências, pelo contrário, ser
enfatizadas. Diz ainda que o estado terá de transformar toda uma burocracia escolar, e que
se essa transformação não acontecer, a própria legitimação do estado estará em risco,
assim como estará em risco a capacidade deste para sustentar o desenvolvimento econó-
mico num ambiente global (Carnoy, 2001: 32).
A razão para esta urgência de reconfiguração é que, ao mesmo tempo que o estado-
-nação, a metáfora da bandeira, vê diluída a sua legitimidade face aos poderes dos média,
das reterritorializações regionais (NAFTA, ASEAN, etc.), das reclamações locais e mesmo
da redistribuição dos poderes jurídicos (por exemplo, os tribunais supranacionais, como o
Tribunal Penal Internacional e o Tribunal Europeu de Justiça), a informação e o conheci-
mento transformaram-se em factores centrais de produção, fazendo com que o desenvol-
vimento económico seja deles dependente, como acima já se disse. Assim, a literacia polí-
tica, necessária ao exercício da cidadania, no âmbito da metáfora política da rede, comple-
xifica-se em relação às duas metáforas anteriores.
O conhecimento na primeira metáfora, a da bandeira, era visto como factor de forma-
ção do indivíduo, do cidadão e do trabalhador. Na segunda metáfora, o conhecimento era
enquadrado como forma de participação política por excelência nos debates cosmopolitas.
Nesta metáfora, a da rede, a literacia política necessita de ser desenvolvida exigentemente
a dois níveis diferentes: a um primeiro nível, o cidadão deve possuir as competências (lite-
racia digital) que lhe permitam integrar a rede enquanto fluxo de informação e de conhe-
cimento para ter um lugar no mercado de trabalho, assim reconfigurado; a um segundo
nível, necessita de assumir um grau importante de reflexividade (literacia política) para se
localizar, enquanto identidade, num contexto onde o próprio exercício de cidadania é
objecto de reclamação. Estas duas formas de literacia não se opõem, como poderiam fazer
crer aqueles diagnósticos que vêem nos actuais desenvolvimentos das sociedades ociden-
A Europa como um bazar: educação na Europa do conhecimento 157

tais uma espéce de aprisionamento do indivíduo em si próprio. Como Castells tem refe-
rido, existem duas formas de exclusão face à rede: a primeira relaciona-se com o acesso,
ou não, à rede, enquanto que a segunda se desenvolve com base na qualidade da pessoa
como utilizador da rede, isto é, é crucial saber se se trata de um mero utilizador passivo
ou de um utilizador interventor.
O modelo político enformado por esta metáfora, embora seja aberto e pleno de possi-
bilidades de agenciamento por parte dos actores sociais, não deixa de ser claramente mar-
cado por uma lógica que, como se disse acima, é predominantemente de cima para baixo.
O que está aqui em causa não é apenas a questão da literacia, ou iliteracia, digital, é o con-
dicionamento da própria cidadania a essa literacia. Ser analfabeto digital significa ser, por-
tanto, duplamente excluído, quer como utente da gramática universal da informática, quer
como cidadão que reclama cidadania a partir da sua própria diferença, ou identidade.
Castells refere-se à Europa como um estado em rede:

(...) existe um estado europeu. Não é constituído pela Comissão Europeia. A


Comissão Europeia é uma burocracia que muitas pessoas detestam e de que desconfiam e
que claramente não tem poder. O poder encontra-se no Conselho Europeu de Ministros,
chefes de Governo de todos os países que se encontram todos os 3 meses, tomando deci-
sões para serem tomadas pela Comissão Europeia. Funciona como um estado em rede.
É, até ao presente, o único estado claramente organizado em rede. (Castells, 2001: 121)

Outros, como Nóvoa e Lawn (2002), referem-se à «fabricação da Europa» através de um


processo de formação de redes, «ligando estruturas sociais, redes e actores a nível local,
nacional e europeu» que podem «descrever e explorar a formação de novas entidades euro-
peias com políticas emergentes de redes, conduzindo ao surgimento de um espaço educa-
tivo europeu, um conceito indiferenciado mas significativo em política educacional» (ibidem,
4). Neste sentido, e como já dissemos no Capítulo 4, a Europa surge como um centro de
reunião e de múltiplos e diversificados poderes que não se baseiam só no poder que dimana
da dimensão nacional, mas, pelo contrário, se definem a si próprios com base em identi-
dades1. Estes poderes são, pois, conflituais, como já se disse, não só entre si mas também
em relação a lógicas previamente estabelecidas, tais como aquelas definidas pelos territó-
rios do estados-nação (por exemplo, o «consumidor ambientalmente consciente» pode
entrar em conflito com os processos estabelecidos de produção, distribuição e consumo do
estado-nação de pertença).
Carnoy, na esteira de Castells, num trabalho recente sobre o «papel do estado na nova
economia global» (2001), deu alguns passos para a conceptualização do «estado em rede».
Trata-se de um estado

(1) É evidente que não se deve ser ingénuo face ao surgimento de um espaço educativo europeu. Como
enfatiza R. Dale (2003), na base das «boas intenções» é possível identificar os interesses ligados à reorga-
nização do sistema produtivo e as suas implicações políticas.
158 «A Diferença Somos Nós»

(…) constituído por instituições comuns, activadas pela negociação e iteração inter-
activa ao longo da cadeia dos processos de tomada de decisão: governos nacionais, gover-
nos co-nacionais, órgãos supranacionais, instituições internacionais, governos de nacio-
nalidades, governos regionais, governos locais e ONGs (…). (…) Estas novas funções do
estado em rede implicam que todos os nós interajam e sejam igualmente necessários
para o desempenho das funções do estado. Trata-se de um estado cuja eficiência é defi-
nida em termos da sua capacidade para criar e manter redes – redes globais, regionais e
locais – e através dessas redes promover o crescimento económico e desenvolver novas
formas de integração social. (Carnoy, 2001: 31)

Estas novas formas de integração social, que efectivamente correspondem a uma nova
forma de regulação, estão relacionadas com dois importantes aspectos: em primeiro lugar,
resultam de um novo papel desempenhado pelo conhecimento no processo produtivo,
«criando condições para o crescimento económico (…) e gerindo e compensando os efei-
tos globais criadores de desigualdade ao nível local» (ibidem); em segundo lugar, elas pro-
porcionam a oportunidade para a articulação do estado em rede com aquilo que noutro
trabalho chamámos «formas híbridas de regulação» (Stoer e Rodrigues, 1998), devido ao
facto de elas combinarem uma lógica política horizontal com a de tipo vertical. No que
concerne ao primeiro, o que está em questão são, em grande medida, os efeitos do pro-
cesso de tradução do conhecimento em competências. No Capítulo 3, desenvolvemos este
argumento mais circunstanciadamente, ligando-o à reconfiguração do mandato político
endereçado à educação e às suas implicações no contexto da sociedade do conhecimento e
da informação, onde ocorrem pressões de «cima para baixo» e de «baixo para cima» sobre
o estado-nação e sobre os cidadãos. Relativamente ao segundo, o que está em causa é a
articulação de um espaço em que a justiça redistributiva e a justiça ligada ao reconheci-
mento das diferenças se desenvolvam com um estado cuja legitimidade tem vindo a ser
desafiada por importantes transformações económicas e pelo desenvolvimento de uma
nova ontologia social (ver Capítulo 4). Por outras palavras, a emergência da Europa como
um «estado em rede» aparentemente significa o surgimento de um estado que assume a
tarefa de se tornar capaz de providenciar as condições necessárias para o desenvolvimento
de uma política social que se baseie ela própria na capacidade dos cidadãos lidarem com as
possibilidades e os riscos inerentes ao capitalismo flexível.

A Europa como Bazar

Durante muito tempo, e actualmente com bastante frequência, relacionou-se directa-


mente o exercício da cidadania com as questões da igualdade, sobretudo igualdade no
campo da redistribuição. Não se trata de negar aqui que a determinação de classe é impor-
tante, mas antes de enfatizar que o que é delimitado pelo capitalismo flexível é a amplitude
da reflexividade e da agência dos indivíduos e dos grupos. Como diz Beck (1992), todos os
A Europa como um bazar: educação na Europa do conhecimento 159

sociólogos que têm trabalhado com a questão da classe social sabem que a reflexividade,
enquanto capacidade de escolher, é uma capacidade aprendida e que está ligada às origens
sociais e familiares específicas, isto é, o efeito de classe dá origem àquilo a que ele chama
uma nova desigualdade, a desigualdade na forma como se lida com o risco e a reflexividade
(ibidem, 98). O conhecimento surge ao mesmo tempo como factor central de produção –
sobretudo aquele que é susceptível de ser traduzido em linguagem máquina –, e – o conhe-
cimento sobre a vida individual e colectiva principalmente – como um dos esteios das
actuais formas de cidadania, profundamente marcadas pelas identidades individuais e gru-
pais dos cidadãos. Por exemplo, ser mulher, de um dado grupo étnico, assumir dado estilo
de vida ou dada identidade sexual, são crescentemente factores que enformam o exercício
da cidadania e que se escoram, em princípio, na reflexividade. Estas duas formas do papel
e do desenvolvimento do conhecimento não parecem ser contraditórias com o carácter
universal e mais ou menos homogéneo da informação bytificada que circula globalmente.
Referimos no Capítulo 5 o debate entre o filósofo Richard Rorty e o antropólogo Clifford
Geertz sobre a organização das sociedades ocidentais modernas. Como dissemos, o segundo
propõe a metáfora do «bazar do Kuwait» para dar conta da simultânea tendência para a
fragmentação e agregação dessas sociedades. Geertz fala concretamente sobre como, numa
época de globalização, as comunidades locais se assemelham crescentemente a uma
enorme colagem, isto é, em cada uma das suas localidades, o mundo parece-se cada vez
mais «um bazar do Kuwait do que um exclusivo clube inglês» (ibidem, 47). Este último
representa a incomensurabilidade das diferenças locais/ culturais: a «portuguesidade» dos
portugueses, a «englishness» dos ingleses, o carácter árabe dos próprios árabes, etc.
A ideia do «bazar do Kuwait», como estruturadora de uma nova concepção das socie-
dades e das sociabilidades actuais, surge enquadrada pelas seguintes preocupações:

1. o bazar não é uma grande narrativa que possa estruturar uma espéce de nova utopia
política. Em vez disso, tem um valor pragmático no sentido em que é proposto por
europeus para pensar o contexto e a construção europeias;
2. o bazar é um espaço público (político, social, cultural...) regulado e susceptível de
regulação;
3. se reconfigurado como estado em rede, o estado pode ser um importante agente de
distribuição de justiça social e de difusão do reconhecimento da diferença, assim
como um importante instrumento de implementação da justiça redistributiva;
4. a soberania que as diferenças reclamam do estado não corresponde à dissolução
deste enquanto agente de justiça (sobretudo redistributiva), mas diz respeito à legi-
timidade das diferenças regularem as suas próprias vidas;
5. no bazar não se discute a legitimidade das diferenças, apenas se negoceia as formas
de convivência e as regras de convivialidade comum, assumindo que «poderemos
viver em conjunto» (Touraine, 1998);
6. esta negociação não é uma fase a ultrapassar, mas um estado permanente: a demo-
cracia já não é um «estádio», mas um fim em si mesmo (ou sem fim);
160 «A Diferença Somos Nós»

7. o bazar, o espaço público regulado, é um espaço em que a justiça redistributiva e a


justiça ligada ao reconhecimento das diferenças constituem uma geometria variável:
a variação depende do poder e do conflito entre as diferenças;
8. esta geometria variável é ao mesmo tempo consensual e arbitrária, portanto frágil.

O que está em causa nesta definição política do bazar é o facto de ela colocar a questão
do poder, enfatizando que as diferenças se afirmam como um «campo de batalha ideoló-
gico» (Wallerstein, 1990), isto é, articulando as questões da discriminação, racismo ou
exclusão com aquelas derivadas da desigualdade na distribuição da riqueza e vice-versa. O
bazar, enquanto metáfora política, pela agência que pressupõe por parte dos actores
sociais, integrando embora a lógica «de cima para baixo» da rede, relativiza-a com a ênfase
que coloca na lógica «de baixo para cima» da cidadania reclamada. Neste sentido, o bazar
enquanto metáfora política parece-nos incluir as virtualidades das metáforas anterior-
mente referidas. Da primeira, a bandeira, inclui o reconhecimento de que a questão da
identidade nacional não pode ser ignorada mas, antes, articulada como diferença. Da
segunda, integra o cosmopolitismo e a preocupação universal com aquilo que a todos os
seres humanos diz respeito. Da terceira, assume que a rede é um âmbito da agência dos
actores sociais, da gramática informacional e da lógica do capitalismo flexível.
O bazar enquanto unidade política pressupõe a reflexividade dos cidadãos, considera-
dos quer individual, quer colectivamente. Enquanto conjunto negociado de regras de con-
vivência, ele é o outro lado daquilo que Rorty chama os «clubes privados». Quer dizer, o
bazar é o lugar em que a cidadania se expressa através da comunidade das regras gerais,
que não violam a diferença dos cidadãos. É na qualidade de diferentes que os cidadãos se
podem congregar neste espaço político, diferentemente do que acontecia com o exercício
da cidadania em contextos modernos, em que os cidadãos se encontravam nos espaços e
nos tempos públicos com base naquilo que tinham em comum, a religião, a língua, o ter-
ritório, etc.2
O conhecimento, a informação e as competências para deles se servir, surgem, assim,
como ingredientes básicos da actual cidadania. Até muito recentemente estes três factores
tinham como sede privilegiada a escola, enquanto espaço de distruibuição de conheci-
mento e informação e de formação. Actualmente, parece que a produção de conhecimento,
da informação e das competências se estão a afastar da escola como locus privilegiado,

(2) John Rex, no seu texto clássico sobre «o conceito da sociedade multicultural» (1988), fala de uma
«cultura cívica e laica como uma componente comum e necessária de todas as culturas, nas sociedades
industriais avançadas» (1988: 206). Assim o multiculturalismo para Rex «só pode ser tolerado se não
ameaçar uma cultura cívica partilhada incluindo, evidentemente, a ideia de igualdade de oportunidade»
(ibid.). É precisamente esta utopia de uma «cultural cívica partilhada» que, no nosso ver, as diferenças
rejeitam. Os pensamentos sofisticados de Rex sobre o que poderia constituir uma sociedade multicultural
estão contextualizados por uma visão moderna do racional desenvolvimento industrial. É a crítica dessa
visão que está na base das «rebeliões das diferenças». Ver também a crítica de Rex feita por Parekh (2000)
do que ele designa «teorias procedimentalistas e de assimilação cívica».
A Europa como um bazar: educação na Europa do conhecimento 161

relocalizando-se na sociedade como um todo. A ideia da sociedade do conhecimento, mais


do que um chavão jornalístico, surge sublinhando o potencial reflexivo que, ao mesmo
tempo que está ao nosso dispor, pode consistir numa ameaça ao exercício da nossa própria
reflexividade.

CONCLUSÃO

Se a primeira destas perspectivas, a Europa das identidades nacionais, se caracteriza


por uma forte ênfase na territorialização e por se fundar na identidade nacional (descrita
quase sempre como homogénea), se a segunda perspectiva, a da associação em torno dos
temas, se caracteriza por uma forte chamada de atenção para as causas cosmopolitas e des-
territorializadas, e se a terceira perspectiva sublinha a centralidade da circulação do
conhecimento/ informação e, sobretudo, o papel do conhecimento como factor crucial na
produção, fica a sensação de que cada uma delas oferece à construção da agenda política
para a Europa aquilo que as outras de alguma forma não lhe podem oferecer. Por outras
palavras, se todas elas têm qualquer coisa para contribuir sem nenhuma delas, por si só,
esgotar a reflexão sobre o tema, também é verdade que parece faltar a cada uma o que a
outra pode proporcionar. É neste sentido que ganha, a nosso ver, força a metáfora do bazar,
pois pretende assumir precisamente o conjunto dos efeitos combinados das três perspec-
tivas.
Da primeira, parafraseando A. Touraine, podemos dizer que a agenda política da cons-
trução europeia não precisa de basear a sua arquitectura no modelo do estado-nação, mas
numa forma de estado capaz de gerir a riqueza cultural das suas nações. A ênfase na iden-
tidade nacional pode ser articulada com os temas da segunda perspectiva, quer dizer, se na
primeira o foco é o território e a cultura nacionais, na segunda a agenda fica enriquecida
com as preocupações cosmopolitas.
Frequentemente, a terceira perspectiva, a do estado em rede, é apresentada como a
«única» e a mais «realista», no sentido em que o informacionalismo e a «sociedade do
conhecimento» se tornaram quase lugares comuns ou cânones de desenvolvimento. Na
sequência da Cimeira de Lisboa (2000) não só o conhecimento foi trazido para a ribalta da
elaboração da agenda das diferentes políticas sectoriais, como se tornou, ele próprio, um
forte organizador dessas políticas. Ter um lugar nesta rede europeia tornou-se um objec-
tivo tão fundamental que, para dar um exemplo, as agências nacionais de investigação
científica, nas suas declarações institucionais, parecem quase fazer depender a sua própria
existência do facto de «pertencer» à rede (cf. o processo de criação das European Networks).
Esta perspectiva sobre a Europa fundada no conhecimento como factor central de pro-
dução e na circulação da informação, processos estes fortemente desterritorializados, ofe-
rece, apesar do seu desgaste pela retórica política, amplas possibilidades. No âmbito das
políticas educativas, por exemplo, esta centralidade tornou-se particularmente evidente,
reconfigurando, mesmo, como argumentámos no Capítulo 2, o mandato político para a
162 «A Diferença Somos Nós»

educação. Todavia, pode defender-se que essas possibilidades em vez de terem sido explo-
radas através das implicações da reconfiguração do capitalismo onde o conhecimento
assume, como já se disse, um lugar central no processo produtivo, o que tem acontecido
é a conceptualização da rede como uma espécie de «lugar branco», ponto de consenso e
convergência de tudo e de todos. Ser europeu, ser cidadão deste tipo de estado, pode, efec-
tivamente, significar mais do que um mero reescalonamento da cidadania atribuída pelos
estados nacionais.
É por isso que nos parece fazer sentido a utilização da metáfora do bazar para pers-
pectivar a Europa. A Europa, como rede, já o dissemos, corresponde à emergência de uma
nova forma de regulação que congrega os contributos das três perspectivas para a concep-
tualização da Europa. A metáfora do bazar possui fortes implicações que derivam da sua
própria definição específica (ver acima). Estas implicações centram-se essencialmente em
torno da questão da relação entre a justiça redistributiva e a justiça baseada no reconhe-
cimento da diferença e da questão da reconfiguração da cidadania, isto é, da transição da
«cidadania atribuída» para a «cidadania reclamada», que, por seu turno, implica o redese-
nho das políticas da diferença baseado na perspectiva, acima explicitada, «a diferença
somos nós».
A concepção do bazar, como metáfora política para a construção da Europa, incorpora
e mediatiza as três perspectivas e metáforas fundadoras (a bandeira, a associação e a rede),
sem nelas se esgotar. O que o bazar poderá trazer de novo para a discussão é que, fundado
no enunciado «a diferença somos nós»

1. significa a possibilidade do surgimento de um estado capaz de reconquistar a sua


legitimação através de um processo em que «facilita a criação de comunidades novas
e de identidades novas baseadas nessas comunidades» (Carnoy, 2001: 32), no sentido
em que não é possível identificar uma «comunidade» privilegiada como actor cen-
tral do novo espaço político3;
2. a sua realização política, como acima enfatizámos, é de geometria variável, quer dizer,
na medida em que depende da relação entre aquilo que é consensual e aquilo que é,
eventualmente, da ordem do arbitrário, a sua configuração é sempre frágil (veja-se
o exemplo do uso e abuso dos critérios de convergência de gestão financeira por esta-
dos-membro mais poderosos) e renegociável;
3. o bazar não se configura como uma estrutura ossificada, ou tendendo para a fixação
de harmonias, trata-se, antes, de processos contínuos, instáveis, conflituais, em que
a negociação, o consenso através do dissenso e vice-versa, ocuparão sempre um lugar
político central.

(3) Este aspecto é pleno de consequências para o campo da educação. Devido ao facto desta estar pro-
gressivamente a escapar à acção educativa do estado, para se transferir para o âmbito da «formação» e do
ambiente do mercado, o desafio que se coloca ao estado em rede é o de como tornar a posicionar-se no
campo educativo. Eventualmente, fá-lo-á assumindo a promoção da «educação ao longo da vida» em con-
trapeso à «formação contínua».
A Europa como um bazar: educação na Europa do conhecimento 163

Terminamos este capítulo sublinhando uma dúvida: será que a Europa como bazar tem
a potencialidade de desempenhar as funções que a Europa das bandeiras, da associação em
torno de temas e da rede parecem desempenhar de uma forma eficaz? Será que é capaz de
desenvolver, no âmbito da sua própria especificidade enquanto metáfora política, o senti-
mento de pertença da primeira, de promover o cosmopolitismo universalista da segunda,
e as formas de produção capazes de sustentar estilos de vida diversificados e a potencial
sofisticação da terceira? Obviamente que não há uma resposta fácil a estas questões, mas
a ideia do bazar parece trazer para a ribalta da discussão uma preocupação com formas de
cidadania ligadas ao local, mas de dimensão global, fundadas em discursos na primeira
pessoa do singular e do plural (a cacofonia do bazar pode não ser sinónimo de confusão,
mas expressão de diferenças) e de formas de convivência estruturadas com base nas pró-
prias diferenças. Nesse sentido, o bazar como metáfora política para a construção da
Europa parece incorporar as diferentes metáforas, mediando as suas legítimas especifici-
dades sem as destruir em qualquer síntese superadora.
C A P ÍCONCLUSÃO
TULO

O tema deste livro corresponde a um esforço para repensar as «políticas da diferença»


à luz das mudanças promovidas pelas chamadas Sociedade e Economia do Conhecimento.
Estas mudanças estão ligadas à redefinição dos paradigmas do conhecimento, das relações
sociais, da gestão política e da governação, assim como da afirmação das identidades muito
para além do tipo das identidades nacionais. Colocamo-nos sob a égide do conceito de dife-
rença e da preocupação da política enquanto forma de gerir, através da utilização do saber-
-poder, as relações sociais e as reivindicações que provêm de novas formas de exercício da
cidadania.
A configuração das políticas de redistribuição nos diferentes sectores (saúde, habita-
ção, educação, etc.) tem-se vindo a confrontar com reivindicações e com mandatos
que complexificam exponencialmente a gestão política da redistribuição. Não se trata
de dizer que estão esgotadas as tradicionais políticas sociais fundadas na consecução
dos objectivos da igualdade, mas de enfatizar que essa perspectiva tem de abarcar outros
aspectos que estão para além, e para aquém, do desejo de igualdade económica. Tudo
se parece passar como se o desejo político de igualdade se visse filtrado por um conjunto
de condições que reformulam esse desígnio: «trata-me como igual, mas deixa-me ser
quem sou!».
Este livro representa o nosso contributo para o repensar da igualdade num contexto
em que a definição da cidadania se faz crescentemente a partir daquilo que, em termos
individuais e grupais, nos distingue dos outros concidadãos. A situação surge como algo
paradoxal: ao mesmo tempo que as reivindicações de maior justiça redistributiva crescem
em quantidade, a assunção das diferenças de tipo cultural surge como organizador, quali-
tativo, da própria cidadania. Ao longo deste livro, procurámos identificar as teias com que
este paradoxo se tem vindo a tecer. Neste sentido, ele é um contributo para repensar as
políticas sociais em geral e as da educação em particular. Aliás, inicialmente, o nosso pro-
jecto foi o de escrever a síntese das nossas investigações sob o título Unthinking Educa-
tion, o que, a ser traduzido para português, seria qualquer coisa como «Desconstruir a
166 «A Diferença Somos Nós»

Educação». Tratava-se, então, de identificar os desafios, ameaças e oportunidades que se


colocavam aos actores sociais envolvidos na educação num contexto em que esta, ao mesmo
tempo que se desenvolvia como «educação para todos», era contestada por aqueles outros
que a discutiam no seu projecto universalista que os ignorava como diferentes. Todavia, à
medida que fomos avançando no projecto, verificámos que a generosidade presente nas
políticas de inclusão através da educação era igualmente contestada noutras políticas sec-
toriais, o que nos fez alargar o âmbito do nosso trabalho. A isto acresceu que, depois de
termos identificado a textura epistemólogica e política subjacente aos diferentes modelos
políticos de gestão da relação com as diferenças, chegámos a uma postura (mais analítica
do que normativa, é certo) segundo a qual deixou de haver um centro privilegiado a partir
do qual as diferenças eram definidas. Essa perda de privilégio cognitivo e político condu-
ziu-nos à perspectiva de «a diferença somos nós», quer dizer, o nosso «nós» é produto do
conflito com os outros «nós».
O que surge como central no «modelo relacional» (ver Capítulo 6) e na reclamação
de que «a diferença somos nós», é o carácter não-essencialista da abordagem política da
diferença. Significa isso que, ao contrário da ideia da diferença como uma lista de carac-
terísticas essenciais, não há, de facto, uma substância que, impregnando dados grupos
sociais, os torne – aos grupos e aos indivíduos – uma diferença específica, como a «racio-
nalidade» para a «humanidade». A afirmação da incontornável englishness dos ingleses
e da portuguesidade dos portugueses encontra aqui o seu terreno de eleição. Elevado a
uma maior dimensão, o «Nós» ocidental seria também presa de uma essência que, embora
desenvolvendo-se na história – «no princípio era a Grécia…» –, realizar-se-ia, actual-
mente, no seu eventual fim, como diz Fukuyama (2005), isto é, nas democracias liberais
e no capitalismo como modo de produção, distribuição e consumo. Como já referimos,
o que o «modelo relacional» faz é deslocar as diferenças das «essências» para os proces-
sos que as constituem como tal. Assim, «ser português» hoje não é a mesma coisa que
«ser português» no século XIX, e «ser português» num futuro não muito longínquo. De
facto, aquilo que estrutura os indivíduos e grupos em Portugal como portugueses tem
uma consistência dúctil, mais próxima de algumas formas de sedimentação do que da rigi-
dez do betão.
Também nos parece fundamental tornar a sublinhar o carácter agonístico, conflitual,
das relações reconfiguradas no âmbito do «modelo relacional», isto é, o nosso «nós»
desenvolve-se através do conflito com os outros «nós». Neste sentido, assumiu-se como
ponto de partida pensar a diferença na sua incomensurabilidade. Assim, ao dizer que a
diferença também somos nós, é a nossa própria alteridade, como afirmámos ao longo das
últimas duas partes deste livro, que se expõe na relação. O objectivo não é o de «emanci-
par» a diferença, acabando com ela, num amplo mesmo de igualdades que não foram nego-
ciadas, mas, ao contrário, lidar com a diferença através de um processo de negociação sem
fim. O «modelo relacional» arma-se face à sua dissolução na «relação entre diferentes»
tendo sempre em conta a história como elemento importante na narrativa identitária. A
reconfiguração das identidades nos actuais contextos sociais não só não recusa esse ingre-
Conclusão 167

diente fundamental como afirma que os espaços de relação, onde eventualmente possamos
viver em conjunto, são espaços e tempos em que o conflito não surge como um obstáculo
à reinvenção das comunidades, mas como o próprio terreno a partir do qual o próprio con-
trato social é renegociado.
Ao ser reclamada pelas diferentes «diferenças», a educação também se pluraliza e dife-
rencia. Esta diversificação, contudo, longe de pôr necessariamente em causa o carácter
público das instituições educativas, até o pode aprofundar, no sentido em que a tradicio-
nal influência (desde a Revolução Francesa) do domínio económico sobre a educação
(através da origem social dos indivíduos) é, pelo menos em parte, reconfigurada pela colo-
cação da questão dos direitos culturais dos indivíduos e dos grupos. Como podem o estado
e as suas instituições interiorizar (e aproveitar) esta nova situação da «educação recla-
mada»?
Não se trata de fazer o elogio da fragmentação da educação em projectos incomensu-
ráveis, mas de enfatizar o facto de a educação estar a ser colocada nos guiões e nos pro-
jectos pessoais e grupais. O projecto de uma educação universal, tal como foi desenhado
no âmbito do projecto da modernidade e implementado de «cima para baixo» pelo apare-
lho estatal, parece efectivamente estar a ser relativizado por uma lógica que sugere um
desenvolvimento de «baixo para cima», quer dizer, a partir dos interesses, projectos e von-
tades dos indivíduos e dos grupos. Neste sentido, a «educação reclamada» é ao mesmo
tempo um conjunto de ameaças e de oportunidades. Ameaças, porque o risco é o da con-
denação dos cidadãos a tornarem-se definitivamente indivíduos (esvaziando, assim, qual-
quer política educativa e/ ou social enquanto projecto de responsabilidade colectiva pela
satisfação das necessidades individuais: o indivíduo é responsável pela sua educação,
saúde, segurança, etc.); oportunidades, porque permite colocar a educação nos projectos
«glocais» dos indivíduos e dos grupos.
Entre as ameaças e oportunidades não é uma quase-cidadania que parece emergir, mas
uma concepção de «quase-sujeito», como diz Beck, Bonss e Lau (2003). Os direitos e os
deveres que definem o cidadão não estão a ser explicitamente contestados (é, por exemplo,
na retórica política dominante, em nome da cidadania e da luta contra o peso burocrati-
zante do aparelho do estado, que os utentes dos serviços de saúde são transformados em
clientes). O que está a acontecer, a nosso ver, é que, entre a individualização e a indivi-
duação se perfila uma outra figura molecular das actuais sociedades ocidentais, a de quase-
-sujeito, que «é simultaneamente o resultado e o produtor das suas redes, situação, loca-
lização e forma» (ibid.: 25).
A «educação reclamada», assim, parece encontrar-se entre a pressão da universalidade
de um projecto educativo para todos, em que o conhecimento é organizado em termos de
competências flexíveis e/ ou transferíveis, e a particularidade das necessidades e dos pro-
jectos reflexivos dos cidadãos – portanto, como um campo de importantes possibilidades
de agência política.
Como já se disse, não é nossa intenção sugerir a perspectiva política da criação de con-
textos educacionais fragmentados, quer dizer, uma escola para ciganos, uma escola para
168 «A Diferença Somos Nós»

gays1, etc. Antes, o nosso objectivo é o de enfatizar que as reclamações de cidadania não
podem ser julgadas a partir de um centro, de um «nós», mais sabedor e seguro acerca do
que convém aos «outros». Estes «outros», no fundo, na perspectiva que desenvolvemos,
surgem como um parceiro integral, cujo controlo político já não é desejável nem possível
exercer, a não ser ao custo da perda do seu estatuto de sujeito. Porém, o reconhecimento
do carácter integral do «parceiro de conversa» política não significa nem a sua reificação,
nem a perda da nossa própria diferença. Por exemplo, se alguém diz que a dada comuni-
dade mais convém desenvolver contextos educativos próprios, tal não significa que o pro-
jecto de uma educação para todos tenha deixado de ser indefensável, pelo contrário, o que
ele tem é de ser politicamente gerido com a consciência reflexiva de que se trata de um
projecto conflitual. A fragilidade da perspectiva de «a diferença somos nós» reside no facto
dessa consciência assumir a limitação de ser a consciência do «nós», por mais universal
que seja a dimensão ética, ou política, que a enforma. Em suma, gerir as políticas sociais
é procurar, no fio da navalha, lidar com a incomensurabilidade das diferenças num mundo,
e particularmente na Europa, onde estamos definitivamente «condenados» a viver em con-
junto.

(1) Veja-se a notícia do jornal Público de 4 de Agosto de 2003 que informava acerca da inauguração
em Nova Iorque de uma escola pública de ensino secundário gay, sob o argumento dos seus fundadores
de que essa era uma forma de criar as melhores condições para os jovens com essa identidade sexual serem
bem sucedidos nos seus estudos.
BIBLIOGRAFIA
CAP ÍTULO

ABRANTES, Paulo (2001), «Nota de Apresentação», in Ministério da Educação (Portugal), Currículo


Nacional do Ensino Básico: competências essenciais, Lisboa: Ministério da Educação/ Departa-
mento de Educação Básica.
AGAMBEN, Giorgio (1993), «Beyond Human Rights», in Giorgio Agamben (Org.), Means Without
End: Notes on Politics, Minneapolis: University of Minnesota Press.
ALALUF, M. (1993), Formation Professionelle et Emploi: Transformation des Acteurs et Effects de
Structures, Bruxelas: Point d’Appui.
ALVES, R. (2000), Por uma Educação Romântica, Vila Nova de Famalicão: Centro de Formação
Camilo Castelo Branco.
AMIN, Ash (1994), «Post Fordism: Models, Fantasies and Phantoms of Transition», in Ash Amin
(Org.) Post-Fordism, a Reader, Oxford: Blackwell, 1, 39.
ANDERSON, Benedict (1983), Imagined Communities, Londres: Verso.
APPLE, Michael (1993), Official Knowledge: democratic education in a conservative age, Londres:
Routledge.
APPLE, Michael (1998), «Educating the “Right” Way: Schools and the Conservative Alliance»,
Comunicação apresentada na Universidade do Minho, Fevereiro.
APPLE, Michael (2000), «Away with All Teachers: the cultural politics of home schooling»,
International Studies in Sociology of Education, 10, 1, 61-80.
ARCHER, Margaret (1979), Social Origins of Educational Systems, Londres: Sage.
ARCHER, Margaret (1991), «Sociology for One World: Unity and Diversity», International Socio-
logy, 6, 2, 131-148.
ARGYLE, M. (1972), «Non-Verbal Communication in Human Social Interaction», in R. A. Hinde
(Org.) Non-Verbal Communication, Cambridge: Cambridge University Press.
BALIBAR, Étienne (1991), «Es Gibt Keinen Staat in Europa: Racism and Politics in Europe Today»,
New Left Review, 186, 5-19.
BALL, Stephen J. (1990), Politics and Policy Making in Education, Londres: Routledge.
BALL, Stephen J. (1994), «Some Reflections on Policy Theory: a brief response to Hatcher and
Troyna», Journal of Education Policy, 9, 2, 171-182.
BANBURY, M. e HEBERT, C. (1992), «Do You See What I Mean? Body Language in Classroom
Interactions», Teaching Exceptional Children, Winter: 34-38.
170 «A Diferença Somos Nós»

BARNETT, Ronald (1997), Higher Education: a critical business, Buckingham: The Society for
Research into Higher Education and Open University Press.
BARRETO, António (2001a), «Um Ministro de Outros Tempos», Público, 25 de Março.
BARRETO, António (2001b), «Ainda a Avaliação das Escolas», Público, 8 de Abril.
BARROSO, João (1996), Autonomia e Gestão das Escolas, Lisboa: Ministério da Educação.
BARROSO, João (1996a), Avaliação do Novo Regime de Administração Escolar, Lisboa: Ministério
da Educação.
BAUMAN, Zygmunt (1992), Intimations of Postmodernity, Londres: Routledge.
BAUMAN, Zigmunt (2001), The Individualized Society, Cambridge: Polity Press.
BECK, Ulrich (1992), The Risk Society, Londres: Sage Publications.
BECK, Ulrich (1994), «The Reinvention of Politics: Towards a Theory of Reflexive Modernization»,
in Beck, Ulrich, Giddens, Anthony, Lash, Scott (Orgs.), Reflexive modernisation. Politics, tradi-
tion and aesthetics in the modern social order, Oxford: Blackwell Publishers, 1-55.
BECK, Ulrich; BONSS, Wolfgang e LAU, Christoph (2003), «The Theory of Reflexive Modernization:
Problematic, Hypothesis and Research Programme», Theory, Culture & Society, 20, 2, 1-33.
BECK, Ulrich; GIDDENS, Anthony e LASH, Scott (1994), Reflexive modernization. Politics, tradi-
tion and aesthetics in the modern social order, Oxford: Blackwell Publishers.
BECKER, Howard (1963), Outsiders: Studies in the Sociology of Deviance, Nova Iorque: Free Press.
BERNSTEIN, Basil (1990), The Structuring of Pedagogic Discourse, Volume IV, Class, Codes and
Control, Londres: Routledge.
BERNSTEIN, Basil (1996), Pedagogy, Symbolic Control and Identity, Londres: Taylor & Francis.
BERNSTEIN, Basil (2001), «Das pedagogias aos conhecimentos», Educação, Sociedade & Culturas,
15, 9-17.
BILLIG, Michael (1993), «Nationalism and Richard Rorty: The Text as a Flag for Pax Americana»,
New Left Review, 202, 69-84.
BONAL, Xavier (2001), «Captured by the Totally Pedagogised Society: teachers and teaching in the
knowledge economy», artigo policopiado.
BONAL, Xavier (2002), «Plus ça change… The World Bank Global Education Policy and the Post-
-Washington Consensus», International Studies in Sociology of Education, 12, 1, 3-21.
BOT, Yvon le (1997), «Le Temps des Guerres Communautaires», in Michel Wieviorka (org.), Une
Société Fragmentée? Le Multiculturalisme en Débat, Paris: Éditions La Découverte, 173-197.
BOUDON, Raymond (1977), Effets pervers et ordre social, Paris: PUF.
BOWRING, Finn (2000), «Social Exclusion: limitations of the debate», Critical Social Policy, 64,
307-330.
BRAVERMAN, Harry (1974), Labor and Monopoly Capital, Nova Iorque: Monthly Review Press.
BULL, Hedley (2002), «Beyond the States Systems?», in David Held and Anthony McCrew, The
Global Transformations Reader: an introduction to the globalization debate, Oxford: Blackwell
Publishers.
BUTLER, Judith (1993), Bodies that Matter. On the Discursive Limits of «Sex», Nova Iorque: Rou-
tledge.
CANDEIAS, António (2002), «État Nation et Éducation dans le Contexte Européen: une approche
socio-historique», in Jean-Marc Ferry e Séverine De Proost (Orgs.), L’école au Défi de l’Europe,
Bruxelas: Editions Université de Bruxelles, 17-33.
CARNOY, Martin (2001), «The Role of the State in the New Global Economy», in Johan Muller, Nico
Cloete e Shireen Badat (Orgs.), Challanges of Globalisation: South African Debates with Manuel
Castells, Cidade do Cabo: Maskew Miller Longman, 22-34.
CASTEL, Robert (1995), Les Métamorphoses de la Question Sociale. Une chronique du salariat,
Paris: Fayard.
Bibliografia 171

CASTELLS, Manuel (1996), The Rise of the Network Society, Oxford: Blackwell.
CASTELLS, Manuel (1997), The Power of Identity, Oxford: Blackwell.
CASTELLS, Manuel (1998), End of Millennium, Oxford: Blackwell.
CASTELLS, Manuel (2001), «Growing Identity Organically», in Johan Muller, Nico Cloete e Shireen
Badat (Orgs.), Challenges of Globalisation, Cidade de Cabo: Maskew Miller Longman.
CASTILHO, Santana ( 2001), «Os Pedabobos», Público, 6 de Outubro.
CHAVEZ, L. (1994), «Demystifying Multiculturalism», National Review, Fevereiro, 26-34.
CODD, John (1988), «The Construction and Deconstruction of Educational Policy Documents»,
Journal of Education Policy, 3, 3, 235-247.
COELHO, Eduardo Prado (1997), «Rorty Encontra Derrida», O Público, 24 de Maio.
COHEN, Albert (1955), Delinquent Boys, Nova Iorque: Free Press.
Comissão Europeia (1998), Ensinar e Aprender: Rumo à Sociedade Cognitiva, Luxemburgo: SEPO-
-CE.
CORREIA, José Alberto (2000), As Ideologias Educativas em Portugal nos Últimos 25 Anos, Porto:
Edições ASA.
CORREIA, José Alberto e MATOS, Manuel (2001), Solidões e Solidariedades nos Quotidianos dos
Professores, Porto: Edições ASA.
CORREIA, José Alberto e MATOS, Manuel (2002), «Da Crise da Escola ao Escolocentrismo», in
Stephen R. Stoer, Luiza Cortesão e José Alberto Correia (Orgs.), Transnacionalização da
Educação: da crise da educação à «educação» da crise, Porto: Edições Afrontamento, 91-117.
CORTESÃO, Luiza (1998), «Práticas Educativas Face à Diversidade e Investigação Acção», Relatório
para Provas de Agregação, Porto: Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da
Universidade do Porto.
CORTESÃO, Luiza; MAGALHÃES, António M. e STOER, Stephen R. (2000), «Mapeando decisões no
campo da educação no âmbito da realização das políticas educativas», Educação, Sociedade &
Culturas, 14, 45-58.
CORTESÃO, Luiza e STOER, Stephen R. (1999), «Acerca do trabalho do professor: da tradução à pro-
dução do conhecimento no processo educativo», Revista Brasileira de Educação, 11, 33-45.
CORTESÃO, Luiza e STOER, Stephen R. (2001), «Cartografando a Transnacionalização do Campo
Educativo: o Caso Português», in Boaventura Sousa Santos (Org.), Globalização: Fatalidade ou
Utopia?, Porto: Edições Afrontamento.
CRITCHLEY, Simon (1997), «Deconstruction and pragmatism: is Derrida a private ironist or a
public liveral?», in Chantal Mouffe (Org.), Deconstruction and Pragmatism, Simon Critchley,
Jacques Derrida, Ernesto Laclau and Richard Rorty, Londres: Routledge.
CROSSLEY, Nick (1996), «Body subject/Body Power: Agency, Inscription and Control in Foucault
and Merleau-Ponty», Body & Society, 2 (2), 99-116.
DALE, Roger (1986), Policy-making in education, E333, module 1: Introducing Education Policy:
principles and perspectives, Milton Keynes: Open University.
DALE, Roger (1989), The State and Education Policy, Milton Keynes: Open University Press.
DALE, Roger (2000), «Globalization and Education: Demonstrating a “Common World Educational
Culture” or Locating a “Globally Structured Educational Agenda”?», Educational Theory, 50, 4,
427-448.
DALE, Roger (2001), «The Work of International Organisations: Making National Education
Systems Part of the Solution Rather than Part of the Problem», Comunicação proferida na
International Meeting (da rede temática GENIE), Nicosia, Outubro.
DALE, Roger (2002), «Globalização e Educação: Demonstrando a Existência de uma “Cultura
Educacional Mundial Comum” ou Localizando uma “Agenda Globalmente Estruturada para a
Educação”?», Educação, Sociedade & Culturas, 16, 133-169.
172 «A Diferença Somos Nós»

DALE, Roger (2003), «The Lisbon Declaration, the Reconceptualisation of Governance and the
Reconfiguration of European Educational Space», Comunicação apresentada no Seminário
RAPPE «Governance, Regulation and Equity in European Education Systems», Institute of
Education, Universidade de Londres, 20 de Março.
DAVIS, Mike (1987), «Chinatown, Part Two? The “Internationalization” of Downtown Los Angeles»,
New Left Review, 164, 65-86.
DERRIDA, Jacques (1996), «Remarks on Deconstruction and Pragmatism», in Chantal Mouffe (Org.),
Deconstruction and Pragmatism, Simon Critchley, Jacques Derrida, Ernesto Laclau and
Richard Rorty, Londres: Routledge.
DUBAR, Claude (2000), La Crise des Identités, Paris: PUF.
DURKHEIM, Émile (1978), Educação e Sociedade, Porto: Rés Editora.
EMERENCIANO, Paulo (2001), «Perigo de Banca Rota Após 2006», entrevista a Henrique Medina
Carreira, O Expresso, Dossier Economia, Dezembro.
FALLON, April (1990), «Culture in the Mirror: Socio-Cultural Determinants of Body Image», in
Clash & Pluzinsky (Orgs.), «Body Images: development, deviance and Change», Nova Iorque:
Guilford Press.
FERGUSON, H. (1997a), «Me and My Shadows: on the Accumulation of Body Image in Western
Society. Part One: The Image and the Image of the Body in Pre-modern Society», Body &
Society, 3, 3, 1-31.
FERGUSON, H. (1997b), «Me and My Shadows. Part Two: The Corporeal Forms of Modernity», Body
& Society, 3, 4, 1-31.
FERNANDES, José Manuel (2000), «As Provas de Aferição, o Ministério e Nós, os Outros Todos»,
Público, 28 de Dezembro.
FOUCAULT, Michel (s/d), As Palavras e as Coisas, Lisboa: Portugalia Editora.
FOUCAULT, Michel (1976), The Birth of the Clinic, Londres: Tavistock.
FOUCAULT, Michel (1979), Discipline and Punish, Harmondsworth: Penguin.
FREIRE, Paulo (1972), Pedagogy of the Oppressed, Harmondsworth: Penguin Books.
FUKUYAMA, Francis (1992), O Fim da História e o Último Homem, Lisboa: Gradiva.
GARFINKEL, P. E. e GARNER, D. M. (1982), «Anorexia Nervosa: A multidimensional Perspective»,
Nova Iorque: Brunner/ Mazel.
GEERTZ, Clifford (1984), «Anti Anti-Relativismo», Revista Brasileira de Ciências Sociais, 8,3, 5-19.
GELLNER, Ernest (1983), Nations and Nationalism, Oxford: Blackwell.
GIBBONS, Michael; LIMOGES, Camille; NOWOTNY, Helga; SCHWARTZMAN, Simon; SCOTT, Peter
e TROW, Martin (1997), The New Production of Knowledge: The Dynamics of Science and
Research in Contemporary Societies, Londres: Sage.
GIDDENS, A. (1990), The Consequences of Modernity, Cambridge: Polity Press.
GIDDENS, Anthony (1991), Modernity and Self-identity – self and society in the late modern age,
Oxford: Blackwell.
GIDDENS, A. (1992a), As Consequências da Modernidade, Oeiras: Celta Editora.
GIDDENS, Anthony (1992b), The Transformation of Intimacy – sexuality, love and eroticism in
modern societies, Cambridge: Polity Press.
GIDDENS, Anthony (1994), «Living in a Post-Traditional Society», in Beck, Ulrich, Giddens,
Anthony, Lash, Scott (Orgs.), Reflexive modernisation. Politics, tradition and aesthetics in the
modern social order, Oxford: Blackwell Publishers, 56-109.
GODINHO, Luísa (2002), «Paris Multicultural», Pública, 15 de Dezembro, 34-46.
GOFFMAN, Irving (1961), Asylums, Londres: Pelican Books.
GOFFMAN, Irving (1963), Stigma, Londres: Pelican Books.
GOULDNER, Alvin (1970), The Coming Crisis of Western Sociology, Londres: Heinemann.
Bibliografia 173

GUILE, David (2002), «Skill and Work Experience in the European Knowledge Economy», Journal
of Education and Work, 15, 3, 251-276.
HABERMAS, Jurgen (1999), «The European Nation-State and Pressures of Globalization», New Left
Review, 235, 46-59.
HABERMAS, Jurgen (2001), «Why Europe Needs a Constitution», New Left Review (Second Series),
11, 5-26.
HALL, Stuart (1992), «The Question of Cultural Identity», in Stuart Hall, David Held e Tony McGrew
(Orgs.), Modernity and its Futures, Cambridge: Polity Press/Open University Press, 273-316.
HARVEY, David (1989), The Condition of Postmodernity: An Inquiry into the Origins of Cultural
Change, Oxford: Blackwell.
HEGEL, George W. Friedrich. (1965), Introduction aux leçons sur la philosophie de l'histoire, Paris:
N.R.F.
HELD, David e MCCREW, Anthony (2002), The Global Transformations Reader: an introduction to
the globalization debate, Oxford: Blackwell.
HINDE, Robert (Org.) (1972), «Non-Verbal Communication», Cambridge University Press, Cam-
bridge.
JOHNSTONE, David (2001), An introduction to Disability Studies, Londres: David Fulton Publishers.
KALDOR, Mary (1995), «European Institutions, Nation-States and Nationalism», in Archibugi,
Daniele e Held, David (1995), Cosmopolitan Democracy, Cambridge: Polity Press, 68-95.
KELLNER, D. (1990), «The Postmodern Turn: positions, problems and propects», in Ritzer (Org.),
Frontiers of Social Theory: the new syntheses, 281-281, Nova Iorque: Columbia University Press.
KOGAN, Maurice (1979), «Different Frameworks for educational policy-making and analysis»,
Educational Analysis, 1, 2,
LAROCHE, H. (s/d), «A Tomada de Decisão», in N. Aubert, J.-P. Gruère, et al., Management II, Porto:
Rés Editora.
LASH, Scott (1994), «Reflexivity and its Doubles: Structure, Aesthetics, Community», in Ulrich
Beck, Anthony Giddens e Scott Lash (Orgs.), Reflexive Modernization, Cambridge: Polity Press,
110-173.
LASH, Scott (2003), «Reflexivity as Non-Linearity», Theory, Culture & Society, 20, 2, 49-57.
LAWRENCE, D. H. (1970), Mulheres Apaixonadas, Lisboa: Círculo de Leitores.
LENHARDT, Gero e OFFE, Claus (1984), «Teoria do Estado e Política Social», in Claus Offe (Org.),
Problemas Estruturais do Estado Capitalista, Rio de Janeiro: Tempo Brazileiro, 10-53.
LEVIN, D. (1989), «The Body Politic: The Embodiment of Praxis in Foucault and Habermas», Praxis
International 9 (1/2), 112-132.
LIMA, Augusto Mesquitela; MARTINEZ, Benito e FILHO, João Lopes (1982), Introdução à Antro-
pologia Cultural, Lisboa: Editorial Presença.
LYOTARD, Jean François (1989), A Condição Pós-Moderna, Lisboa: Gradiva.
MAALOUF, Amin (1999), As Identidades Assassinas, Lisboa: Difel.
MAGALHÃES, António M. (1998), A Escola na Transição Pós-Moderna, Lisboa: Instituto de Inovação
Educacional.
MAGALHÃES, António M. (2001), «O Síndroma de Cassandra: reflexividade, a construção de identi-
dades individuais e a escola», in Stephen R. Stoer, Luiza Cortesão e José Alberto Correia (Orgs.),
Transnacionalização da Educação: da crise da educação à «educação» da crise, Porto: Edições
Afrontamento.
MAGALHÃES, António M. e STOER, Stephen R. (1998), Orgulhosamente Filhos de Rousseau, Porto:
Profedições.
MAGALHÃES, António M. e STOER, Stephen R. (2001), A Escola para Todos e a Excelência
Académica, Porto: Profedições.
174 «A Diferença Somos Nós»

MAGALHÃES, António M. e STOER, Stephen R. (2002), «A Nova Classe Média e a Reconfiguração do


Mandato Endereçado ao Sistema Educativo», Educação, Sociedade & Culturas, 18, 25-40.
MAGALHÃES, António M. e STOER, Stephen R. (2003a), «Performance, Citizenship and the
Knowledge Society: a new mandate for European education policy», Globalisation, Societies and
Education, 1, 1, 41-66.
MAGALHÃES, António M. e STOER, Stephen R. (2003b), «A Reconfiguração do Discurso Político: É
Possível Falar a Partir de um “Não-Lugar” ou de um “Lugar Branco”?», A Página, Outubro.
MAGALHÃES, António M. e STOER, Stephen R. (2005), «Knowledge in the Bazaar: Pro-Active
Citizenship in the Learning Society», in Michael Kuhn e Ronald Sultana (Orgs.), Homo Sapiens
Europeus? – Creating the European Learning Citizen, Nova Iorque: Peter Lang.
MALCOLM X (1966), The Autobiography of Malcolm X, Londres: Penguin Books.
MARSHALL, T. H. (1950), Citizenship and Social Class and Other Essays, Cambridge: Cambridge
University Press.
MATOS, Luís Salgado (2001), «A Escola e a Família», Público, 20 de Agosto.
MATOS, Manuel (2002), «O que É a Sociedade de Informação», Educação, Sociedade & Culturas, 18,
7-23.
MATZA, David (1964), Delinquency and Drift, Nova Iorque: Wiley.
MAUSS, Marcel (1979), «Body Techniques», in Sociology and Psychology: Essays, Londres:
Routledge and Kegan Paul.
MCCARTHY, Cameron (1988), «Rethinking Liberal and Radical Perspectives on Radical Inequality in
Schooling: Making the Case for Nonsynchrony», Harvard Educational Review, 58, 3 265-279.
MCPHERSON, C. B. (1973), Democratic Theory, Londres: Oxford University Press.
MILLER, F. W. (1986), Nonverbal Communication (2ª Edição), Washington, DC: National Education
Association.
Ministério da Educação (Portugal) (2001), Currículo Nacional do Ensino Básico: competências
essenciais, Lisboa: Ministério da Educação – Departamento de Educação Básica.
MOHANTY, S. P. (1989), «Us and Them: On the Philosophical Bases of Political Criticism», Yale
Journal of Criticism, 2, 2, 1-31.
MÓNICA, Filomena (1997), Os Filhos de Rousseau, Lisboa: Relógio d’Água.
MÓNICA, Filomena (2001), «Os Filhos dos Pobres e os Filhos dos Ricos na Escola Democrática»,
Público, 16 de Março.
MONS, Alain (s/d), A Metáfora Social: imagem, território, comunicação, Porto: Rés Editora.
MOREIRA, Vital (2001), «A Deseducação Secundária», Público, 4 de Setembro.
MORGAN (1976), A Sociedade Primitiva I e II, Lisboa: Editoral Presença.
MORRIS, Paul (1994), «Community Beyond Tradition», in Paul Heelas, Scott Lash e Paul Morris
(Orgs.), Detraditionalization. Critical Reflections on Authority and Identity, Cambridge:
Blackwell, 223-249.
MUNDY, Liza (2002), «Um Mundo só Delas», Público, 14 de Abril.
NÓVOA, António (1998), «L’Europe et L’Éducation (Analyse Socio-Historique des Politiques Éduca-
tives Européennes)», in A. Nóvoa, Histoire & Comparaison (Essais sur l’Éducation), Lisboa:
Educa, 85-120.
NÓVOA, António e LAWN, Martin (2002), Fabricating Europe, The formation of an education space,
Dordrecht: Kluwer Academic Publishers.
NUYEN, A. T. (1992), «Lyotard on the Death of the Professor», Educational Theory, 42, 25-37.
PAREKH, Bhikhu (2000), Rethinking Multiculturalism, Londres: Macmillan.
PAUGAM, Serge (1991), La Desqualification Sociale, Paris: Presses Universitaires de France.
PAUGAM, Serge (1996), L’exclusion. L’etat des Savoirs, Paris: Éditions La Découverte.
PAUGAM, Serge (s/d), «O Debate em Torno de um Conceito: Pobreza, Exclusão e Desqualificação
Bibliografia 175

Social – resumindo o debate europeu», in Por Uma Sociologia da Exclusão Social – o debate
com Serge Paugam, São Paulo: educ.
PAULSTON, Rolland G. (1993), «Mapping Discourse in Comparative Education Texts», Compare, 23,
2, 101-114.
PAULSTON, Rolland G. (1999), «Mapping Comparative Education after Postmodernity»,
Comparative Education Review, 43, 4, 438-463.
PAULSTON, Rolland G. e LIEBMAN, Martin (1994), «An Invitation of Postmodern Social Carto-
graphy», Comparative Education Review, 38, 215-32.
PERRENOUD, Philippe (2001), Porquê Construir Competências a Partir da Escola?, Porto: Edições ASA.
PINTO, Mário (2001a), «Uma Vitória Catalisadora da Reforma Escolar?», Público, 3 de Setembro.
PINTO, Mário (2001b), «Responsabilidade Pessoal: educação e avaliação», Público, 4 de Abril.
POPKEWITZ, Thomas e LINDBLAD, Sverker (2000), «Educational Governance and Social Inclusion
and Exclusion: some conceptual difficulties and problematics in policy and research», Discourse:
studies in the cultural politics of education, 21, 1, 5-44.
POWER, Sally e GEWIRTZ, Sharon (2001), «Reading Education Action Zones», Journal of Edu-
cation Policy, 16, 1, 39-51.
PROUT, A. (2000), The Body, Childhood and Society, Londres: Macmillan Press.
RADLEY, A. (1995), «The Elusory Body and Social Constructionist Theory», Body & Society, 1 (2)
3-23.
REX, John (1988), Raça e Etnia, Lisboa: Editorial Estampa.
RIBEIRO, Agostinho (2003), O Corpo que Somos, Porto: Notícias Editorial.
ROBERTSON, Susan; BONAL, Xavier e DALE, Roger (2003), «GATS and the Education Service
Industry: The politics of scale and global territorialization», Comparative Education Review, 46,
3, 472-96.
ROBERTSON, Susan e DALE, Roger (2001), «Regulação e Risco na Governação da Educação. Gestão
dos Problemas de Legitimação e Coesão Social em Educação nos Estados Competitivos»,
Educação Sociedade & Culturas, 15, 117-147.
RODRIGUES, David (1998), «O Corpo como Lugar de Cura» («Body as the locus of Cure»), Edu-
cação Especial e Reabilitação, 4 (2).
RORTY, Richard (1991), «On Ethnocentrism: a reply to Clifford Geertz», in Richard Rorty, Objec-
tivity, Relativism and Truth, Cambridge: Cambridge University Press, 203-210.
RORTY, Richard (1999), Para Realizar a América. O Pensamento de Esquerda no Século XX na
América, Rio de Janerio: DP&A Editora.
RORTY, Richard (2000), «Sobre o Etnocentrismo: uma resposta a Clifford Geertz», Educação,
Sociedade e Culturas, 13, 213-224.
ROUSSEAU, Jean-Jacques (1981), O Contrato Social, Lisboa: Edições Europa-América.
SANTOS, Boaventura de Sousa (1987), Um Discurso sobre as Ciências, Porto: Edições Afrontamento.
SANTOS, Boaventura de Sousa (1989), Introdução a Uma Ciência Pós-Moderna, Porto: Edições
Afrontamento.
SANTOS, Boaventura de Sousa (1991), «Ciência», in Manuel M. Carrilho (Org.), Dicionário do
Pensamento Contemporâneo, Lisboa: Publicações Dom Quixote.
SANTOS, Boaventura de Sousa (1994), Pela Mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade,
Porto: Edições Afrontamento.
SANTOS, Boaventura de Sousa (1993), «O Estado, as Relações Salariais e o Bem-Estar Social na
Semiperiferia: o caso português», in B. S. Santos (Org.), Portugal: um Retrato Singular, Porto:
Edições Afrontamento, 15-56.
SANTOS, Boaventura de Sousa (1995a), Toward a New Common Sense. Law, Science and Politics in
the Paradigmatic Transition, Nova Iorque: Routledge.
176 «A Diferença Somos Nós»

SANTOS, Boaventura de Sousa (1995b), «A Construção Multicultural da Igualdade e da Diferença»,


Palestra proferida no VII Congresso Brasileiro de Sociologia, realizado no Instituto de Filosofia
e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, de 4 a 6 de Setembro.
SANTOS, Boaventura de Sousa (1997), «Por uma Concepção Multicultural de Direitos Humanos»,
Revista Crítica de Ciências Sociais, 48, 1-32.
SANTOS, Boaventura de Sousa (1998), Reinventar a Democracia, Lisboa: Fundação Mário Soares/
/Gradiva Publicações.
SANTOS, Boaventura de Sousa (2000), «Contexto e Princípios de uma Discussão sobre as Políticas
Sociais em Portugal», Comunicação apresentada no seminário internacional «Políticas e
Instrumentos na Luta Contra a Pobreza na União Europeia: o rendimento mínimo garantido»,
Fevereiro, Almancil, Portugal.
SANTOS, Boaventura de Sousa (2001), «A Territorialização/ desterritorialização da Exclusão/ inclu-
são Social no Processo de Construção de uma Cultura Emancipatória», Comunicação proferida
no Seminário «Estudos Territoriais de Desigualdades Sociais», 16-17 Maio, Pontifícia Universi-
dade Católica, São Paulo.
SARUP, Madan (1996), Identity, Culture and the PostModern World, Edimburgo: Edinburgh Univer-
sity Press.
SENNETT, Richard (1998), The Corrosion of Character. The Personal Consequences of Work in New
Capitalism, Nova Iorque: W. W. Norton Press.
SHWEDER, Richard A. (1997), «A Rebelião Romântica da Antropologia Contra o Iluminismo, ou de
Como Há Mais Coisas no Pensamento para Além da Razão e da Evidência», Educação, Sociedade
& Culturas, 8, 135-188.
SOJA, Edward W. (1989), Postmodern Geographies, Londres: Verso.
SOMERS, Margaret R. e GIBSON, G. D. (1996), «Reclaiming the Epistemological “Other”: narrative
and the social constitution of identity», in Craig Calhoun (Org.) Social Theory and the Politics
of Identity, Oxford: Blackwell.
SPIRO, Melford E. (1998), «Algumas Reflexões sobre o Determinismo e o Relativismo Culturais com
Especial Referência à Emoção e à Razão», Educação, Sociedade & Culturas, 9, 197-230.
SPOSATI, Aldaíza (1996), Mapa da Exclusão/Inclusão Social da Cidade de São Paulo, São Paulo:
educ (PUC-SP).
STOER, Stephen R. (1994), «Construindo A Escola Democrática Através do “Campo da Recontex-
tualização Pedagógica”», Educação, Sociedade & Culturas, 1, 7-28.
STOER, Stephen R. (1998), «Educação e “Exclusão Social Latente”: Portugal e Europa», in Hen-
rique Gomes de Araújo, Paula Mota Santos e Paulo Castro Seixas (Orgs.), Nós e os Outros:
A Exclusão em Portugal e na Europa, Porto: Sociedade Portuguesa de Antropologia e Etno-
logia.
STOER, Stephen R. (2000a), «Prefácio», António M. Magalhães, Nem Todos Podem Ser Doutores?!,
Porto: profedições.
STOER, Stephen R. (2000b), «Educação e o Combate ao Pluralismo Cultural Benigno», in José
Clóvis de Azevedo, Pablo Gentili, Andréa King e Cátia Simon (Orgs.), Utopia e Democracia na
Educação Cidadã, Porto Alegre: Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
STOER, Stephen R. (2001), «Desocultando o Vôo das Andorinhas. Educação Inter/multicultural
Crítica como um Movimento Social», in Stephen R. Stoer, Luiza Cortesão e José Alberto Correia
(Orgs.), Transnacionalização de Educação: da crise da educação à «educação» da crise, Porto:
Edições Afrontamento.
STOER, Stephen R. e ARAÚJO, Helena Costa (1992), Escola e Aprendizagem para o Trabalho num
País da (Semi)periferia Europeia, Lisboa: Edições Escher (2ª Edição, Lisboa: Instituto de Ino-
vação Educacional, 2002).
Bibliografia 177

STOER, Stephen R. e CORTESÃO, Luiza (1999), Levantando a Pedra. Da Pedagogia Inter/Multicul-


tural às Políticas Educativas numa Época de Transnacionalização, Porto: Edições Afrontamento.
STOER, Stephen R. e CORTESÃO, Luiza (2000), «Multiculturalism and Educational Policy in a
Global Context (European Perspectives)», in Nicholas C. Burbules e Carlos Alberto Torres
(Orgs.), Globalization and Education: Critical Perspectives, Nova Iorque: Routledge, 253-274.
STOER, Stephen; CORTESÃO, Luiza, e MAGALHÃES, António M. (1998), «A Questão da Impossibi-
lidade Racional de Decidir e o Despacho sobre os Currículos Alternativos», in Albano Estrela e
Júlia Ferreira, La Décision en Education/A Decisão em Educação, Lisboa: Association Franco-
phone Internationale de Recherche en Sciences de l’Éducation (AFIRSE).
STOER, Stephen R. e MAGALHÃES, António M. (2001), «A Incomensurabilidade da Diferença e o
Anti-anti-etnocentrismo», in David Rodrigues (Org.), Educação e Diferença, Porto: Porto
Editora, 35-48.
STOER, Stephen R. e MAGALHÃES, António M. (2003a), «A Reconfiguração do Contrato Social
Moderno. Novas Cidadanias e Educação», in David Rodrigues (Org.), Perspectivas sobre a
Inclusão, Porto: Porto Editora, 13-24.
STOER, Stephen R. e MAGALHÃES, António M. (2003b), «Educação, Conhecimento e a Sociedade
em Rede», Educação e Sociedade, 24, 85, 1179-1202.
STOER, Stephen R. e MAGALHÃES, António M. (2004), «Education, Knowledge and the Network
Society», Globalisation, Societies and Education, 2, 3.
STOER, Stephen R. e MAGALHÃES, António M. (2005), «A Europa como um Bazar, Contributo para
a Análise da Reconfiguração dos Estados-nação no Contexto Europeu e das Novas Formas de
“Viver em Conjunto”», in António Teodoro e Carlos Alberto Torres (Orgs.), Educação Crítica e
Utopia, Porto: Edições Afrontamento.
STOER, Stephen R.; MAGALHÃES, António M. e RODRIGUES, David (2004), Os Lugares da Exclu-
são Social, São Paulo: Cortez Editora.
STOER, Stephen R. e RODRIGUES, Fernanda (com a colaboração de Helena Barbieri) (2000),
«Territórios Educativos de Intervenção Prioritária: Análise do Contributo das Parcerias», in Ana
Maria Bettencourt, et al., Territórios Educativos de Intervenção Prioritária, Lisboa: Instituto de
Inovação Educacional, 171-194.
STOER, Stephen R.; RODRIGUES, David, e MAGALHÃES, António M. (2003), Theories of Social
Exclusion, Frankfurt am Main: Peter Lang.
SWAIN, J. e FRENCH, J. (2000), «Towards an Affirmation Model of Disability», Disability and Society,
15 (4) 569-82.
TAYLOR, Laurie (1971), Deviance and Society, Londres: Pelican Books.
THIESSE, Anne-Marie (2000), A Criação das Identidades Nacionais, Lisboa: Temas e Debates.
THOMPSON, Paul (1989), The Nature of Work: An Introduction to Debates on the Labour Process,
Londres: Macmillan.
TITIEV, M. (1963), Introduction to Cultural Anthropology, Nova Iorque: Holt Rinehart and Winston
Inc.
TOURAINE, Alain (1981), O Pós-Socialismo, Porto: Edições Afrontamento.
TOURAINE, Alain (1997), Pourrons-Nous Vivre Ensemble? Égaux et différents, Paris: Fayard.
TOURAINE, Alain (1998), Iguais e Diferentes. Poderemos Viver Juntos?, Lisboa: Instituto Piaget.
VALENTE, Guilherme e FIOLHAIS, Carlos (2001a), «A Governante que não Quer Ser Avaliada»,
Público, 24 de Janeiro.
VALENTE, Guilherme e FIOLHAIS, Carlos (2001b), «O Horror dos Melhores e a Utilidade da Escola»,
Público, 26 de Abril.
VALENTE, Guilherme Valente (2001), «Outro Ministro que Nunca Existiu», Público, 29 de Setembro.
VALENTE, Vasco Pulido (2001), «Fanáticos» Diário de Notícias, 26 de Janeiro.
178 «A Diferença Somos Nós»

VISVANATHAN, Shiv (2001), «The Grand Sociology of Manuel Castells» in Johan Muller, Nico Cloete
e Shireen Badat (Orgs.), Challanges of Globalisation: South African Debates with Manuel
Castells, Cidade do Cabo: Maskew Miller/Longman, 35-49.
WALLERSTEIN, Immanuel (1990), «Culture as the Ideological Battleground of the Modern World
System», in Mike Featherstone (Org.), Global Culture, Londres: Sage, 31-55.
World Health Organisation (2001), International Classification of Functioning, Disability and
Health, Nova Iorque: United Nations.
YOUNG, Jock (1971), The Drugtakers, Londres: Paladin.
ZELDIN, Theodore (1996), História Íntima da Humanidade, Lisboa: Círculo de Leitores.

Você também pode gostar