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UM OLHAR POÉTICO PARA ONDE NINGUÉM OLHA

Beloní Cacique Braga


belonicacique@yahoo.com.br
Colégio Batista Mineiro
Comunicação de Relato de Experiência

No mundo moderno deixamos de olhar para tantos lugares... Olhamos para


tantos outros sem realmente ver. A busca a que nos propomos enquanto educadores
permeia a idéia de ver para conhecer, questionar, dialogar com o mundo e dele extrair
significância. Diálogo que se faz presente no meu exercício de docência na área de Arte
com meus alunos no Colégio Batista Mineiro.
A Proposta Pedagógica da escola, norteadora da nossa prática, tem o foco na
formação do indivíduo integral a saber:
A formação do educando se dará em dimensão integral, de modo a poder se
situar em sua realidade e possibilitar a construção de um futuro promissor;
valorização do binômio professor-aluno; uso de recursos, técnicas e métodos
constantemente aprimorados; manutenção de uma disciplina formativa e
consciente, fundamentada em princípios cristãos, objetivando proporcionar
um ambiente proveitoso e alegre ao processo Ensino-Aprendizagem.

Mediante esse enfoque, traçamos nossas ações. Convivo diretamente com 160
alunos de 5ª à 7ª séries, organizados em duas turmas por série que funcionam no turno
da manhã. São crianças e adolescentes de ambos os sexos com idade entre 10 a 13 anos.
Nosso trabalho inicia-se na aula inaugural. É um tempo-espaço de conversa com os
alunos, mapeamento das necessidades e intenções educativas. Geralmente procuro
sondar se eles desejam trabalhar por meio de uma proposta interativa, isto é,
desenvolver um tema único com intercâmbio de idéias e informações ao longo do
projeto com as outras turmas.
A discussão de um projeto coletivo já é uma proposta viável e experimentada
nos últimos quatro anos, mas requer uma ação docente permeada de seriedade e respeito
a fim de que todas as turmas opinem e a proposta da maioria seja colocada em ação. É
claro que essas conclusões se iniciam com os burburinhos da turma, que chegam até as
outras por intermédio da professora e pelos contatos dos alunos entre si, principalmente
por serem duas turmas por série com um bom relacionamento entre eles. A mediação
neste processo é difícil, pois como componente de todos os grupos participo com
minhas sugestões.
Nesse contexto iniciamos nossas conversas a partir da notícia publicada no
jornal local com a manchete “Um olhar poético para onde ninguém olha”1. Era uma
texto sobre a exposição do artista alemão Alex Fischer que trazia a nossa cidade seu
olhar para as tampas de bueiros dos locais pelos quais havia visitado. Olhar poético para
tampas de bueiros era uma ótima oportunidade de promover ações significativas para a
educação do olhar. Objetivávamos continuarmos nosso processo de alfabetização da
leitura de imagens na sala de aula, já iniciado no ano anterior.
Bastava um olhar estrangeiro para desnaturalizar um olhar que pode não ver
mais, que se encontra acostumado ao cotidiano. Segundo Martins2 esse olhar provoca
teorias, pois théoria em latim é a ação de ver, contemplar, assim como eidô é ver,
observar, conhecer, saber, informar-se. Os alunos foram convidados a visitar a
exposição e retornarem a sala com o relato do que fora visto. Pronto! Foi aí que tudo
começou.
O meu olhar de professora vislumbrava promover a educação e a nutrição
estética dos alunos; a instrumentalização dos alunos com atividades artísticas
significativas que abordassem a arte contemporânea; o (re) conhecimento do Museu
Universitário de Arte-Muna como espaço de história e de Arte; implantação de um
projeto semestral para o ensino que fosse significativo para os alunos e que permitisse
um envolvimento da maioria. Objetivava também, desafiar o olhar costumeiro, que vê
as coisas como são, e experimentar diferentes possibilidades de transformação da
imagem e no percurso de criação, que abriga uma multiplicidade de procedimentos e
soluções.
Contando a história: caminhos metodológicos
A visita ao museu foi motivação para continuarmos nossas conversas, digo
nossas, porque trabalhamos com a perspectiva de que todo o processo de construção de
idéias e ações contam com parceiros indispensáveis. A ida ao museu se deu de forma
tempestiva, pois a leitura da notícia no jornal aconteceu há duas semanas para o
encerramento e os alunos precisavam ser levados até lá. Os pais são figuras das quais
nenhuma escola pode abrir mão. Alguns conseguiriam agendar, mas outros tiveram
dificuldades, como justifica o aluno da 6ª série.

1
Publicada em 01 de março de 2006, Jornal Correio, Uberlândia - MG
2
“O que vemos com um olhar estrangeiro” - Texto da Profa. Dra. Mirian Celeste Martins escrito como memória e ampliação da
palestra e da oficina que ministrou no 16º Encontro Nacional da Rede Arte na Escola, em Pelotas (RS), em novembro de 2002.
Razão da minha ausência na exposição: Meus pais são advogados chefes e
trabalham praticamente o dia inteiro, pelo menos o tempo em que a
exposição estava aberta. Nos fins de semana nós viajamos.

No dia marcado para o relato da visita a exposição vários alunos não haviam
conseguido convencer os pais e o museu não abria no fim de semana quando as famílias
poderiam levá-los, enfim, houve um ar de tristeza. Nas turmas de quinta série a
meninada se mobilizou e nos convenceu de levá-los durante o horário de aulas.
Corremos muito, mas fomos. Recebemos o apoio dos monitores do museu que e da
equipe técnica e pedagógica da escola que sempre nos apóia.
As dificuldades que relatamos aconteceram em um dos momentos vividos na
construção do projeto que engloba muitas ações. Articulando os conteúdos propostos
retomamos semanalmente os objetivos e as atividades propostas. No relato em questão a
exposição e a ação do artista impactaram os alunos provocando o que mais desejávamos
para o momento: desestabilizar o olhar costumeiro e promover o olhar estrangeiro. Os
relatos dos alunos respaldam essa afirmação quando lemos:
“ No começo não estava nem um pouco interessada, quando cheguei... ai museu vi
aquela construção antiga, me deu desânimo total. Lá dentro tudo mudou, fui cada
vez me interagindo. As obras são muito bonitas... Só não gostei de uma que achei
muito simples...aluna 5ªsérie

Ao visitar a exposição vi que além das “telas”, o documento da sua obra é mostrado
em vídeo. Esse vídeo contém a data, o local e o horário onde foram produzidos.
Aluno 6ª série
Além dos relatos dos alunos lemos o depoimento do colunista3 no jornal local que se viu
envolvido por este olhar estrangeiro do qual me refiro:

Diante disso, por intermédio da produção artística deixada por Alex Fischer, é
possível trazer um novo despertar às pessoas, abrindo possibilidades de olhares
diferentes para enxergar novas perspectivas da realidade, mostrando que a vida social
- simbolizada pelos bueiros - deve ser valorizada em todos os seus sentidos e nos
mínimos detalhes.

O primeiro passo para implantação havia sido dado e a continuidade se deu de


maneira específica a cada série. A 5ª série foi privilegiada por ter visitado a exposição e
trouxe consigo o desejo de continuar o processo de frotagge. A técnica usada por Alex
Fischer. O detalhamento da técnica já havia sido lido na reportagem, trabalhada em sala
e experimentada no espaço físico da escola. Percorremos o ambiente escolar procurando
texturas a serem frotadas como os pisos da rampa e do pátio, os troncos de árvores do
pátio, os diversos objetos que compõe a arquitetura do prédio, e se brincássemos até as

3
Texto “A memória sob nossos pés” publicado em 03/03/2006 no jornal Correio de Eneilton Faria da Silva
pessoas seriam frotadas com giz de cera e papel. Era a experiência de copiar a moeda
com papel por cima e riscando com lápis, que agente mais velha, brincava quando era
criança.
Os alunos de 6ª série foram desafiados a criar imagens que logo foram nomeadas
de “bueiros inventados”, principalmente porque a única imagem colorida produzida por
Alex Fischer foi preferida, sem contar com os diversos desenhos dos bueiros ao redor
do mundo.
Enquanto isso acontecia procurava agir como mantenedora do projeto, porque
compartilho da idéia de Fernando Hernandez quando afirma que o professor é o
indivíduo mais experiente no grupo. Como tal, corri em busca de conhecimento sobre
como as tampas de bueiros são confeccionadas e ilustradas. Recebi depois de um mês
de busca o retorno de uma empresa de fundição Imperial a informação de que as
imagens são encomendadas pelos clientes feitas em ferro fundido após um longo
processo de gravação.
A 7ª série direcionou seu olhar para os objetos que ao perdem seu significado se
transformam em desobjetos, sem uso. Todos trouxeram para a sala objetos que viram
em casa e que perceberam que teriam perdido o valor. O processo de criação partiu da
apropriação dos objetos trazidos que foram incorporados ao trabalho plástico individual
que concluído, foi tema para o diálogo a partir das imagens e das idéias.
Em nossas andanças arteiras encontramos no poeta Manoel de Barros a poética
do olhar registradas em “Desobjeto” nos versos O menino que era esquerdo viu no meio
do quintal um pente. O pente estava próximo de não ser mais um pente. Estaria mais
perto de ser uma folha dentada. Dentada um tanto que já se havia incluído no chão que
nem uma pedra um caramujo um sapo. Era alguma coisa nova o pente. O chão teria
comido logo um pouco de seus dentes.
Os versos foram inspiradores durante a modelagem em argila de novos
desobjetos que por sua vez nos levaram a escrita de textos como este fragmento de uma
aluna da 7ª série:
Um dente possui uma função? Sim e não. Um aparelho dental ou um dente
possui uma função? Sim e por acaso é muito importante. Mas fora da boca os
depois perdem sua função. Foi exatamente esse ponto pensado em que me
levou a fazer esse trabalho, pois uma coisa com várias utilidades perde todas
elas fora do local em que as exerce.

Para compreender este relato só mesmo vendo o desobjeto em argila modelado


cuidadosamente: dentes interligados por um fio de nylon, sem função,mas somente para
os desavisados, e que não vivenciam a experiência do olhar. Sem perceber a jovem
aluna incorpora a lógica do velho poeta Manoel de Barros e conclui seu texto “ é
interessante pois alimenta a idéia de que um dente fora da boca passa a ser inútil fora
dela e que o local onde se encontra faz diferença”.
Os caminhos metodológicos encontram-se poeticamente apresentados com o
intuito de trazer a idéia que permeia nossa prática cotidiana. Organizamos-nos e
projetamos ações ligadas por um fio condutor e uma proposição igualmente apresentada
a todos. Mas a riqueza do caminho está no percurso, que de certa forma não se encontra
registrado em todos os seus detalhes, pois como apresentar ao leitor diálogos arteiros
sem as imagens geradas durante o nosso caminhar? Ao longo deste relato procurei
narrar detalhes, mas é certo que ao leitor cabe o entendimento daquilo que foi narrado.
Realizamos também desenhos com objetos trazidos de casa que, poeticamente,
nomeamos de desobjetos. Organizamos o projeto de pintura para as mesas que temos no
pátio da escola e que entendemos ser um lugar para o qual não olhávamos poeticamente.
Compreendemos a avaliação como um processo, contínuo, tecido ora junto, ora
só. Muitas vezes avaliado pelo professor junto a cada um enquanto produz. Durante a
aula percorria as mesas discutindo individualmente os projetos pessoais para os que já
tinham idéia e estimulava quem ainda estava atrás de uma. A cada aula na roda de
discussão gastamos 10 minutos para juntos estruturarmos não somente o desenrolar do
projeto, mas a conduta da turma, as relações pessoais e até o manuseio dos materiais e
uso da sala. Os conteúdos propostos são trabalhados durante todo o ano letivo e não são
exclusivos deste projeto.
Assim, a prática pedagógica tende a ser ampliada conscientes de sermos
eternamente aprendizes. Nossos alunos não possuem a dimensão do quanto eles são
mestres4 enquanto estamos juntos em sala e por meio de suas soluções estéticas, que são
convertidos em interação e até mesmo através da indisciplina. Amplio a minha prática
antes, durante e após os famosos 50 min h/a e em tantos outros como pontua Cicillini
(2002, p.49) ao discorrer sobre a prática pedagógica e o conhecimento escolar
afirmando que no momento em que faz suas reflexões - ao preparar suas aulas, ao
lecionar ou ao pensar sobre o que lecionou, o professor pode utilizar-se de todo o tipo
de conhecimentos disponíveis advindos dos diferentes padrões de produção social.

4
Uso a expressão mestres após ter defendido uma dissertação no Mestrado em Educação, exatamente
sobre a constituição de professores de Arte, defendendo que os saberes adquiridos na prática docente, nas
relações com os alunos e na formação continuada são mais relevantes do aparentam ser.
Amplio não só a minha prática, mas a minha vivência. Inclusive quando sou
questionada em áreas nas quais os meus saberes estão sendo construídos, organizados e
mobilizados na ação docente, nas experimentações de artista/professora, nas
experiências estéticas variadas. A aprendizagem gerada aqui fortalece os conceitos e
saberes pertinentes a metodologia utilizada como professora de maneira a aprimorar a
minha prática que vem sendo reflexiva. Os conteúdos, os objetivos e o “eixo” que
moveu todo o projeto são flexíveis. A proposta metodológica apresentada nesse relato
vem sendo objeto de reflexão e pesquisa pessoal.
Não há sombra de dúvidas que os alunos foram mais que parceiros neste
trabalho. São co-autores, e em muitos momentos foram eles que me direcionaram ou me
ajudaram a intuir caminhos. Os alunos trouxeram para as aulas uma discussão
interdisciplinar ao me apontarem questões de outras disciplinas e possibilitando fazer
conexão com a linguagem da Arte. Neste ponto é que me apaixono pelo conhecimento e
lembro-me quando Morin aponta para a necessidade de uma educação que promova
uma cabeça bem feita5 ao referir-se a fala de Montaigne “Mais vale uma cabeça bem -
feita que bem cheia”.
Ao leitor deste texto vale dizer que somos uma equipe que embora elegendo
uma temática de trabalho procuramos experimentar, brincar com materiais, mas acima
de tudo temos o foco na discussão sobre o que se encontra por trás, o que dizem as
entrelinhas. Nosso objetivo é conquistar essa garotada para um olhar mais sistematizado
e responsável sobre as produções artísticas utilizando principalmente a leitura de
imagens, mas também pela leitura do outro, do dia, da vida, de mundo.
Nosso empenho é de que aos leitores deste relato seja possível ler imagens
vividas no ensino e na aprendizagem de Arte por alunos e professores de uma escola,
representante do seguimento de ensino sobre o qual é cultivado o mito de que tudo dá
certo porque é particular. O projeto deu certo porque todos nós acreditamos e
investimos nele.

Assim termino com os versos cantados por Gonzaguinha Eu fico com a pureza
da resposta das crianças. É a vida, é bonita e é bonita . Viver, e não ter a vergonha de
ser feliz cantar e cantar e cantar.A beleza de ser um eterno aprendiz. Ah meu Deus eu
sei, eu sei que a vida devia ser bem melhor e será...”Ainda estamos aprendendo, graças

5
Citação de Montaigne “Mais vale uma cabeça bem- feita que bem cheia “5
a Deus. E toda parceria é bem-vinda. Porque a a vida devia ser bem melhor e será ... é
bonita e é bonita!

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Referências Bibliográficas

BARBOSA, Ana Mae. A imagem no ensino da Arte.São Paulo: Perspectiva,2001.

BARROS, Manoel. Memórias inventadas- infância. São Paulo: Planeta, 2003. p.3.
CICILLINI, Graça Aparecida, NOGUEIRA, Sandra Vidal (orgs). Educação escolar-
políticas, saberes e práticas pedagógicas. Uberlândia: Edufu, 2002

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia - saberes necessários à prática educativa.


São Paulo: Paz e Terra: 1997.

MARTINS, Mirian Celeste:PICOSQUE, Gisa: GUERRA, Maria Terezinha Telles.


Didática do ensino de Arte- A língua do mundo. Poetizar fruir e conhecer arte. São
Paulo: FTD.1998.

MORIN, Edgar. A cabeça bem feita-repensar a reforma-reformar o


pensamento.Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.2003.p.21

Jornal Correio- Uberlândia Minas Gerais disponível também em


www.jornalcorreio.com.br acesso às edições anteriores datadas em 01 de fevereiro e 03
de março de 2006.

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