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“Museu da minha família”: reflexões de uma experiência pedagógica

Karina Nymara Brito Ribeiro1 - IDSM

Eixo– Formação de professores, pluralidade cultural


e práticas pedagógicas

Agência Financiadora: não contou com financiamento

Resumo:
Este relato de experiência tem por objetivo apresentar algumas reflexões a respeito da
importância de práticas pedagógicas que favoreçam questões de cidadania no ambiente
escolar. Essas reflexões depreenderam de uma atividade intitulada “Museu da minha
Família” realizada em sala de aula com educandos do 3º ano do Ensino Fundamental I da
Escolar Renascer na cidade de Macapá. Como resultados, essa atividade instigou os
educandos a pensarem nas suas diferenças e mudarem de postura perante elas.

Palavras-chave: Práticas pedagógicas. Cidadania. Escola.

Introdução

A Escola Renascer2 está localizada na zona norte de Macapá, Estado do Amapá.


Atua na Educação Infantil e Ensino Fundamental I e II. Os estudantes são provenientes dos
bairros localizados nos arredores da instituição, nem todos são de classe média e a maioria
são adventistas. Quando trabalhei como professora do Ensino Fundamental I e II, ministrei
a “Disciplina Cidadania Moral e Ética” – que objetiva ser centrada na formação de
indivíduos cientes dos seus direitos e deveres, inclusive com compromisso e respeito à
diversidade.
A política pedagógica desta instituição se firmou no enfrentamento ao racismo, ao
preconceito e as práticas conexas. Quando a coordenação pedagógica tinha registros sobre
estes tipos de ações, encaminhava aos professores que lecionavam na turma a necessidade
de realização de atividades que viessem a eliminar ou a sanar esses comportamentos.
Como a turma do 3 ano do Ensino Fundamental I apresentou esses registros, onde as
diferenças sempre entravam nos conflitos em forma de xingamentos, a coordenação
pedagógica solicitou que cada professora realizasse uma atividade e a longo prazo
atuassem nesse caminho. As reflexões aqui apresentadas resultaram dessa experiência em
sala de aula com os educandos do 3 ano do Ensino Fundamental I.

1
Mestra em Preservação do Patrimônio Cultural pelo IPHAN. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa em
Arqueologia e Gestão do Patrimônio Cultural da Amazônia do Instituto de Desenvolvimento Sustentável
Mamirauá - IDSM. E-mail: knymara@gmail.com
2
Nome fictício de uma Escola privada na zona norte de Macapá, Estado do Amapá.
A atividade que denominei de “Museu da minha família” foi realizada no 4º
bimestre do ano letivo de 2017, numa perspectiva intercultural que de acordo com Vera
Candau (2009, p59), busca promover uma “educação para o reconhecimento do ‘outro’,
para o diálogo entre diferentes grupos sociais e culturais”. A relevância dessa perspectiva
no espaço escolar é reforçada por Andrea Kamensky e José Meiby (2016, p.09) que
reuniram relatos de professores da educação básica e apontaram o espaço escolar como
“arena para uma disputa entre o que se configura como padrão de cidadania e os entraves
carregados por tradições resistentes”.
Assim, ao pensar uma educação para negociação cultural estamos também
dialogando com temas associados a cidadania. Para Jaime Pinsky e Carla Pinsky (2016)
cidadania deve ser pensada como um conceito histórico que varia no tempo e no espaço.
Isso porque ser cidadão, ter direito civis, políticos e sociais, no Brasil atual é bem diferente
do que no passado. Nesse caminho busco apresentar algumas reflexões a respeito da
importância de práticas pedagógicas que favoreçam questões de cidadania no ambiente
escolar e que, a longo prazo, esses exercícios possam contribuir para dirimir os conflitos
que emergem das diferenças, sejam elas, étnicas, de gênero, econômicas, físicas, culturais,
religiosas e outros.

Metodologia
A escola, por ter dificuldade de lidar com a pluralidade, sempre busca estabelecer
uma monocultura escolar, o que promove o pensamento de que as diferenças são um
problema a ser resolvido e impossibilita de estas entrarem no planejamento e na seleção de
conteúdo a ser ministrado. Neste cenário, faz-se necessário a busca pela efetivação de uma
educação para a negociação cultural, que “enfrente os conflitos provocados pela assimetria
de poder entre os diferentes grupos socioculturais em nossa sociedade, e seja capaz de
favorecer a construção de um projeto comum, pelo qual as diferenças são dialeticamente
integradas” (CANDAU, 2009, p.59).
No anseio de seguir esta perspectiva que se apresenta como caminho necessário
para construção de uma sociedade em que as diferenças não sejam colocadas como
desigualdades estruturei a atividade “Museu da Minha Família”, que surgiu de um insight
do livro de Armando Moraes e Maria Costa (2016), no qual orientam a realização de uma
exposição em sala de aula com objetos antigos disponibilizados por familiares e vizinhos
dos educandos. Autores como Flavio Silveira e Manuel Lima Filho (2009), que entendem
os objetos como aglutinadores de histórias e memórias individuais e coletivas, foram
fundamentais para a elaboração desta atividade e para perceber que os educandos poderiam
tocar no mundo do outro por meio dos objetos.
A atividade proposta ocorreu em duas aulas consecutivas, sendo que na aula
anterior houve uma preparação; solicitei que cada educando, com auxílio de um membro
familiar, selecionasse três objetos de suas famílias; expliquei que esses objetos iriam
compor uma exposição museológica, a ser montada na sala de aula. Como os educandos já
haviam visitados mais de um museu, inclusive museus locais, como o Museu Sacaca – que
possui um acervo diversificado com peças da área da zoologia, botânica, microbiologia,
artefatos etnográficos e arqueológicos de povos amazônicos – eles já dispunham de uma
ideia do que era exposto nesses tipos de espaços.
No dia marcado para trazerem os objetos familiares, ainda no início da aula, pude
conversar com alguns membros das famílias que ajudaram na escolha dos objetos, os
relatos tocavam em dois pontos similares: a euforia com que os educandos trataram da
referida atividade e a dificuldade que tiveram para selecionar os objetos que entrariam na
exposição. A maioria optou por objetos que pertencem as suas famílias há mais de duas
gerações, como relógios, pulseiras, caixa de música, fotografias, brinquedos, etc. Apenas
um educando escolheu um brinquedo com um uso mais recente.
Para o início da atividade em sala de aula aconselhei os educandos a organizarem
sobre suas mesas os objetos escolhidos de uma forma que os visitantes pudessem visualizá-
los. A cada objeto tirado das mochilas se via o cuidado no manuseio. Alguns estenderam
pequenas toalhas sobre a mesa antes de deixar amostra seus objetos de família. Já outros
tinham o cuidado de encontrar um melhor ângulo para posicionar os seus artefatos. Após
isso, na segunda etapa foram convidados para participarem como visitantes da exposição
educando de outra turma (4º ano do Ensino Fundamental I) e funcionários da escola. Já na
terceira etapa, os visitantes deixaram a sala e ficaram apenas os educandos da turma do 3º
ano, esses foram reversando o papel de expositores e visitantes até que todos tivessem
experenciado ambos os papéis.

Resultados e discussões
Antes da abertura da exposição conversei com os educandos para que realizassem
uma pequena apresentação dos objetos e depois escutassem com atenção as perguntas que
os visitantes eventualmente fariam. Eles mesmos estavam com olhos curiosos sobre as
mesas dos colegas, e, também ansiosos para contarem as histórias de suas famílias que
aqueles tais objetos portavam. Aos poucos os visitantes, que também estavam curiosos,
foram chegando. A maioria das perguntas que pude anotar naquele momento versavam
sobre a origem da peça e sua função prática, mas logo o visitante entendia que estes
objetos não eram valorizados apenas por suas funções práticas, a família daquele expositor
os guardava por outros motivos.
A título de exemplo, Melissa3 – que trouxe para a exposição uma fotografia, uma
boneca e uma caixa de música – explicou que a fotografia era o único registro visual do
seu bisavô materno; ela descreveu que o retrato era muito importante para sua família, e
que sua mãe o deixava na parede da sala para todos verem e não esquecerem dele. Quanto
a boneca de pano, ela fora confeccionada por sua avó que deu de presente a sua mãe. Já a
caixa de música que tinha um formato retangular e ornamentos que destoava do que a
maioria dos visitantes já tinham visto, foi comprada em “um lugar de coisas antigas” por
sua avó paterna.
Um segundo exemplo é de Rafael4, ele colocou em exposição uma fotografia e um
boneco de super-herói da Marvel. Durante sua apresentação explicou que aquela fotografia
era importante para sua família, pois tinha sido o último registro fotográfico de seu pai
antes de morrer e que o boneco de super-herói foi o último presente que recebeu dele. Na
terceira etapa da atividade, após os visitantes deixarem a sala, propus uma dinâmica
diferente para a turma. Em grupos de cinco pessoas alguns expositores se tornariam
visitantes até que todos tivessem a oportunidade de conhecer os objetos familiares dos
outros.
Observei que nessa etapa os expositores ficaram mais à vontade para falar sobre os
objetos e as perguntas foram mais fluidas. Alguns, ao ver a caixa de música de Melissa
perguntaram, o porquê esse “troço” era tão importante já que era tão estranho e feio.
Melissa expressou uma cara de reprovação e disse que o objeto não era feio e sim
diferente. Contou que desde pequenina a sua avó colocava a caixa para tocar música para
ela e mesmo que a caixa não funcione mais, o objeto a faz rememorar a sua avó, que hoje
pouco se encontram. Já Rafael foi instigado a falar sobre o boneco de super-herói quebrado
que guarda com carinho por ser a única lembrança do pai falecido há alguns anos. Ao
contar que o pai havia morrido em um acidente de trânsito e que todas as noites abraça o
boneco e lembra dele, Rafael se emocionou e não conteve o pranto. Em volta dele se
formou uma roda de afeto e apoio até que suas lágrimas cessassem.

3
Nomes fictícios.
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Nomes fictícios.
Observei que para aqueles que visitavam sua exposição o boneco deixou de ser
apenas um objeto quebrado, os visitantes o tocavam com mais cuidado e pareciam
expressar respeito por ele. Essa mudança também foi percebida com outros objetos em
exposição na sala de aula como fotografias que registravam contextos culturais e religiosos
que não faziam parte da vida familiar de outros educandos. Naquele momento todos
queriam ser compreendidos e por isso buscavam compreender o mundo do outro permeado
por aqueles objetos.
No final da atividade reuni os educandos para fazermos uma avaliação em
conjunto. Perguntei o que eles tinham aprendido com essa atividade. Então, responderam
que passaram a conhecer mais a história de cada um dos colegas e sua própria história.
Essa avaliação, me deixou bastante feliz, pois o objetivo da atividade versava no exercício
de falar e escutar o outro com intento de tocarem o mundo do outro. Essa atividade de
tocar o mundo do outro resultou em mudanças significativas nas relações interpessoais
entre os educandos. Após ela a postura dos educandos mudou perante o outro, e
diminuíram as queixas motivadas pela questão da diferença como ofensas.

Considerações finais
Considero que essa experiência ressaltou as diferenças entre os educandos e entre suas
famílias de uma perspectiva que valoriza os diversos mundos e sentidos atribuídos a eles.
O exercício de escutar e ser escutado possibilitou a desconstrução de ideias negativas sobre
o mundo do outro e permitiu que cada um sentisse o que é estar no lugar do outro.

Referências

CANDAU, V.M. Educação escolar e culturas: Multiculturalismo, universalismo e


currículo. In. CANDAU, V.M. (org) Rio de Janeiro: Forma & Ação, 2009, p.47 a 60.

KAMENSKY, A. & MEIBY, J (org). Diários e experiências: relações étnico-raciais:


vivências e histórias de vida na educação básica. São Paulo: Editora Pontocom, 2016.

MORAES, A & COSTA, M. Cidadania Moral e Ética (Manual do educador) 2º ano Ensino
Fundamental. Editora Totalle, 2016.

PINSKY, J. & PINSKY, C. História da Cidadania. 6ª ed.,3ª reimpressão. – São Paulo:


Contexto, 2016.

SILVEIRA, F. L. & LIMA FILHO, M. Por uma antropologia do objeto documental: entre
a ‘alma das coisas’ e a coisificação do objeto. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre,
ano 11, nº 2005, p37-50.

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