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21/10/2021 09:02 SciELO - Brasil - Genética, Ética e Estado: (Genetics, Ethics and State) Genética, Ética e Estado: (Genetics,

o: (Genetics, Ethics and State)

Brasil

 Sumário
Brazilian Journal of Genetics 
Texto
(PT)

• Braz. J. Genet. 20 (3)


• Set 1997 •
https://doi.org/10.1590/S0100-84551997000300027
 

COPIAR
Genética, Ética e Estado: (Genetics, Ethics and
State)
Bernardo Beiguelman

POINT OF VIEW

Genética, Ética e Estado

(Genetics, Ethics and State)

Bernardo Beiguelman

Professor do Curso de Pós-Graduação em Genética, UNICAMP.

Rua Angelina Maffei Vita, 408, apto 41, 01455-070 São Paulo, SP, Brasil.

Fone/Fax: (55) (11) 210-3352. E-mail: bernardo@uol.com.br.

O final deste século está marcado pela entrada do mundo na era biotecnológica, que nos
empurra para uma civilização eugênica, preocupada com a tecnologia necessária à
manipulação de nosso genoma e em nos pressionar para menosprezar o efeito do ambiente, a
fim de aceitar que não somos mais do que nosso genótipo. Tudo na sociedade humana,
inclusive a criminalidade ou o uso de drogas, é apresentado pelos meios de comunicação como
conseqüência de um destino genético, para levar a crer que os governos não podem se
responsabilizar pela falta de sorte de uma parte da população. Não passa uma semana sem
que seja anunciada a descoberta de um novo gene responsável por alguma característica da
personalidade, fazendo-nos recordar o início deste século, quando Charles Benedict Davenport,
de seu laboratório em Cold Spring Harbor, postulava, sem qualquer análise crítica, que
caracteres tão complexos como o temperamento violento, o hábito nômade ou a deficiência
mental tinham herança monogênica (Dunn, 1962).

Assistimos estender-se para a reprodução humana os mesmos princípios tecnológicos


empregados industrialmente - controle de qualidade, projetos e previsibilidade do produto - o
que provoca uma profunda alteração na relação entre pais e filhos. O preconceito e a
intolerância para com os incapacitados são alardeados sem qualquer constrangimento e força-
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O desenvolvimento das aplicações derivadas do mapeamento e seqüenciamento do genoma


humano está fazendo, por sua vez, com que aumente, muito rapidamente, o número de
Brasil
pessoas incluídas entre as potencialmente doentes. O próprio conceito de doença está sendo
alterado, pois ele poderá não mais restringir-se a um conjunto de sinais e sintomas, mas
estender-se a predisposições genéticas
Brazilianpara a manifestação
Journal of Geneticsde futuras sintomatologias. Não

estamos longe do momento em que se falará em doença circunstancial, e se poderá fazer, já na
infância, a avaliação do estado de saúde dos adultos, o que, evidentemente, poderá afetar as
pessoas em suas possibilidades de trabalho, seguro, matrícula em escolas e participação em
associações.

Esse quadro preocupante tem estimulado em vários países, principalmente nos do hemisfério
norte, mas também na América Latina (Knoppers e Chadwick, 1994; Pessini e de
Barchifontaine, 1996; Penchaszadeh, 1997), com justa razão, discussões sobre as normas
éticas e legais que deveriam ser seguidas na prática da genética médica em nível individual e
nas ações em nível populacional. Evidentemente, existem diferenças entre as correntes
bioéticas oriundas dos países hegemônicos e aquelas que se formam em países em
desenvolvimento, as quais são influenciadas pela diversidade de estrutura socioeconômica e
religiosa desses países, pelo tipo de atendimento médico ao alcance de suas populações e
pelos problemas de saúde pública que enfrentam. Assim, por exemplo, nos primeiros, as ações
de saúde estão voltadas para as moléstias degenerativas e crônicas associadas à longevidade,
bem como para o controle da reprodução humana, a fim de buscar melhor qualidade de vida. Já
nos países em desenvolvimento, as doenças infecciosas e carenciais ainda constituem
problemas prioritários. Entretanto, apesar das diversidades, todas as correntes bioéticas
parecem estar apoiadas em cinco princípios básicos consensuais, isto é, os princípios
paradigmáticos de autonomia, privacidade, justiça, qualidade e eqüidade (Knoppers e
Chadwick, 1994), que passaremos a comentar, em seguida.

De acordo com o princípio da autonomia as pessoas devem apresentar-se voluntariamente para


os exames genéticos, dando, para tanto, seu consentimento consciente, livre e esclarecido,
após terem recebido informações detalhadas em linguagem acessível e ser-lhes assegurado o
aconselhamento genético. Esse aconselhamento não pode ser diretivo, pois todo o indivíduo
deve ter preservado seu direito de tomar decisões conscientes sobre seu estado de saúde e
sobre sua reprodução. Com isso, fica claro que o resultado do diagnóstico pré-natal de
alterações genéticas ou congênitas não-genéticas não deve ser utilizado pelo geneticista para
influenciar seus pacientes na decisão sobre a interrupção ou não da gravidez ou sobre uma
eventual terapia, pois essa decisão deve ser tomada exclusivamente pelos casais, com o apoio,
quando necessário, de seus familiares próximos.

De acordo com o princípio da autonomia, as pessoas devem ter o direito de decidir se querem
ou não submeter-se a exames genéticos e à detecção pré-sintomática de doenças, mesmo
àquelas que as expõem a risco de morte precoce, como é o caso da hipercolesterolemia
familial. Ainda que tenham consentido em se submeter a esses exames, as pessoas devem ter
o direito de retirar seu consentimento a qualquer momento, ou de não querer saber o resultado,
no seu todo ou em parte, pois esse resultado pertence exclusivamente aos indivíduos
examinados. Nos casos de prevenção de doenças facilmente detectáveis em recém-nascidos e
cujo tratamento, a partir do período neonatal, traz benefícios indubitáveis, como a fenilcetonúria
ou o hipotireoidismo congênito, abre-se uma exceção a este princípio em programas de triagem
sem autorização explícita dos genitores. Entretanto, no concernente a exames genéticos
preditivos cujos resultados não possibilitam medidas terapêuticas ou preventivas, parece certo
que, a não ser em situações excepcionais, restritas a casais que necessitam tomar medidas
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Segundo o princípio da privacidade, a informação genética e os resultados dos exames das


pessoas devem ser confidenciais e continuar como tais mesmo depois da morte. Sem
Brasil
autorização explícita dos indivíduos examinados, essas informações jamais poderão ser
reveladas a outras pessoas ou instituições públicas ou privadas, tais como escolas,
associações, empresas ou companhias deJournal
Brazilian seguro.ofDe acordo com esse princípio, não se pode
Genetics 
fazer o uso de amostras de material biológico de pacientes, o que inclui, evidentemente, o DNA,
sem sua autorização expressa, a não ser que se preserve o seu anonimato. Em casos de
elucidação de crimes ou de investigação de paternidade, o princípio da privacidade poderá ser
quebrado por ordem judicial, mas é discutível abrir-se exceção aos casos de alto risco de
transmissão ou de manifestação familial de doença genética, nos quais a pessoa examinada se
recusa a comunicar, voluntariamente, essa situação aos seus familiares sob risco. Uma outra
questão bastante discutível é a da exclusão fortuita da paternidade de alguém numa
investigação feita com outros objetivos. Nesse caso, parece que a postura ética mais adequada
é a de silenciar a respeito de uma informação não solicitada, priorizando-se, assim, o direito de
privacidade da informação genética da mulher. A preocupação de não causar dano também
deve conduzir ao silêncio a respeito de um diagnóstico preditivo de uma doença grave para a
qual ainda não existe tratamento. Essa postura ética parece ser a mais adequada, pois a
informação ao paciente poderá gerar danos psicológicos e estigmatização, sem trazer qualquer
benefício médico.

Pelo princípio da justiça, devem ser preservados os direitos das pessoas juridicamente
incapazes, tais como crianças, deficientes mentais ou culturais e indivíduos com problemas
psiquiátricos, bem como as gerações vindouras. De acordo com este princípio, as crianças não
podem ser submetidas a rastreamento pré-sintomático de doenças genéticas de manifestação
tardia, sendo que em alguns países já é proibida por lei qualquer tentativa de alteração das
células germinativas.

De acordo com o princípio da qualidade, os exames laboratoriais de citogenética, genética


bioquímica e genética molecular, que são fundamentais para a investigação de alterações
genéticas, deverão ter sempre sua especificidade e sensibilidade sob controle. Isso significa,
portanto, que deveriam existir processos contínuos de auto-avaliação e avaliação externa do
nível profissional, técnico e ético dos laboratórios dedicados a esses exames, e, evidentemente,
de regulamentação para a formação de pessoal recrutado para esses serviços laboratoriais. O
princípio da qualidade requer, ainda, que os exames genéticos solicitados tenham realmente
uma indicação clínica e que não sejam pedidos de modo indiscriminado.

O princípio da eqüidade determina que o acesso aos exames genéticos deve ser independente
da origem racial, geográfica ou da classe econômica das pessoas, isto é, de sua capacidade de
pagar o atendimento recebido.

Dentre esses princípios éticos, o mais ferido no Brasil e, provavelmente, também em outros
países latinoamericanos é o princípio da eqüidade, pois, entre nós, ainda não é satisfeita a
responsabilidade ética de assegurar às pessoas o acesso aos serviços de genética médica em
função do risco genético ou das possibilidades de prevenção e(ou) tratamento de
cromossomopatias ou heredopatias. Assim, em decorrência da exigüidade de centros
universitários, onde o atendimento é gratuito, o acesso aos serviços de genética médica ainda
depende muito da capacidade econômica das pessoas. Por outro lado, considerando que a
distribuição econômica tem conotações raciais, com os negróides compondo a fração mais
pobre da população, fica claro que a discriminação racial somente deixa de existir nas clínicas
universitárias.
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No concernente ao princípio da qualidade, é preocupante no Brasil, e possivelmente em outros
países latinoamericanos, nossa
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qualidade dos exames
genéticos, que incluem o diagnóstico pré-natal de cromossomopatias e de heredopatias, feitos
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por laboratórios públicos ou particulares, e o controle da qualidade do pessoal técnico


responsável por esses exames.
Brasil
Já no que diz respeito aos princípios de autonomia, privacidade e justiça, pode-se afirmar que
no Brasil houve grandes avanços, com a participação ativa de representantes de toda a
Brazilian Journal of Genetics
sociedade brasileira, seja em congressos de bioética, seja emreuniões promovidas pela
Fundação Oswaldo Cruz do Rio de Janeiro. Tanto a Resolução No. 196/96 do Conselho
Nacional de Saúde, que dá diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo
seres humanos, quanto a Lei Nacional de Bio-Segurança, que regulamenta experimentos com
organismos geneticamente modificados, são exemplos claros da preocupação da sociedade
brasileira com o respeito aos princípios da autonomia, privacidade e justiça. Todas as
instituições, incluindo as faculdades e os institutos das universidades brasileiras, passaram a
ter, obrigatoriamente, um Comitê de Ética, para fazer cumprir a regulamentação das pesquisas
com seres humanos, e um Comitê de Bio-Segurança, para experimentos com organismos
geneticamente modificados. Assim, uma eventual manipulação genética de seres humanos
deve, obrigatoriamente, ser aprovada pelos dois Comitês, de Ética e de Bio-Segurança. Como
se vê, apesar de não haver um código de ética preparado por geneticistas brasileiros, existem
códigos bioéticos brasileiros mais gerais, que trazem em seu bojo todas as diretrizes
necessárias ao cumprimento dos princípios de autonomia, privacidade e justiça.

Esses cuidados com a observância dos princípios bioéticos refletem uma preocupação
internacional, que se iniciou com a elaboração do Código de Nurenberg (1947) e da Declaração
dos Direitos do Homem (1948) e continuou com a Declaração de Helsinque (1964), suas
versões seguintes (1975, 1983, 1989) e as Propostas das Diretrizes Éticas Internacionais para
Pesquisas Biomédicas em Seres Humanos (CIOMS/OMS, 1982,1983). Poder-se-ia, pois, supor
que essa é uma atitude universal, o que, infelizmente, não é verdade, visto que no dia 1o. de
junho de 1995 foi promulgada na República Popular da China uma Lei de Proteção à Saúde
Materna e Infantil, a qual inclui dois artigos (números 10 e 16), que constituem motivo de grande
’
preocupação (O Brien, 1996). O teor desses artigos é o seguinte:

Art. 10. Ao diagnosticar alguma doença genética de natureza séria, que, do ponto de vista
médico, é considerada inadequada para a geração de filhos, os médicos devem, após o exame
físico pré-matrimonial num homem e numa mulher que pretendem casar, explicar-lhes a
situação e dar aconselhamento médico tanto ao homem quanto à mulher. Os dois poderão
casar somente se as duas partes concordarem em se submeter a medidas anticoncepcionais de
longa duração ou a uma cirurgia para esterilização.

Art. 16. Se um médico detectar ou suspeitar que um casal em idade reprodutiva sofre de uma
doença genética de natureza séria, ele deve dar aconselhamento médico a esse casal, que
deve tomar medidas de acordo com o aconselhamento feito pelo médico.

Nessa lei não existe qualquer indicação daquilo que será considerado uma doença genética de
natureza séria, e, dificilmente, dois geneticistas concordarão a respeito das doenças genéticas
que devem ser catalogadas como de natureza séria. Além disso, essa lei impede os casais de
fazer sua própria escolha, baseados em informação e aconselhamento, ou seja, de ter
autonomia em suas decisões, e possibilita a obrigatoriedade de testes para o diagnóstico pré-
natal de anomalias fetais e interrupção obrigatória da gestação quando houver suspeita de uma
dessas anomalias, bem como a esterilização compulsória de casais que tiverem gerado uma
criança com um defeito congênito, que, evidentemente, pode não ter causa genética.

Ninguém desconhece a necessidade urgente da República Popular da China de controlar o


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na espécie humana, concluiremos, imediatamente, que essa lei chinesa colide frontalmente com
os princípios éticos de consenso internacional, que não admitem coerção com respeito a
Brasil
diferenças reais ou imaginárias entre doenças e populações.

A legislação sobre assuntos de natureza genética tem uma história trágica, que traz luz sobre a
Brazilian Journal of Genetics
questão do perigo de substituir a escolha reprodutiva consciente pela coerção. A análise
histórica não é feita apenas para nos dar uma visão intelectual e estética mais satisfatória do
que a fornecida pelo estado atual do conhecimento. Sua finalidade precípua, como já disse o
grande geneticista e pensador Leslie Clarence Dunn (1962), é o uso das lições do passado para
nortear a nossa conduta no presente e no futuro. Deter-nos-emos, por isso, em dois exemplos
históricos, o dos Estados Unidos e o da Alemanha nazista, que nos deixaram lembranças muito
amargas dos movimentos eugênicos.

Na primeira metade deste século a legislação eugênica nos Estados Unidos determinou a
esterilização compulsória de numerosos indivíduos, além do que serviu para impedir a
imigração de caucasóides mediterrâneos e do leste europeu. Foi assim que, até 1933, já havia
sido promulgadas sessenta e três diferentes leis de esterilização em 26 estados norte-
americanos, as quais visavam à esterilização de deficientes mentais, epiléticos, pacientes
psiquiátricos, vários tipos de criminosos classificados como pessoas socialmente inadaptadas
(social misfits) e até doentes de lepra e de sífilis (Whitney, 1933). Até 1933, mais de 15 mil
pessoas, a metade das quais residentes na Califórnia, foram oficialmente esterilizadas com
base nessa legislação, mas sabia-se que esse número era muito maior, porque numerosos
casos não eram notificados (Landman, 1933). Os Estados Unidos foram, portanto, os pioneiros
da política oficial de esterilização compulsória, iniciada em 9 de março de 1907 no Estado de
Indiana. Posteriormente, tal legislação foi adotada no Canadá, na Província de Alberta, em
1928; na Dinamarca, Finlândia e no cantão suiço de Vaud, em 1929; no Estado mexicano de
Vera Cruz, em 1932, e em 14 de julho de 1933 na Alemanha nazista (Landman, 1933; Müller-
Hill, 1988).

Entre 1915 e 1930, por sua vez, 30 estados norte-americanos promulgaram leis de
miscigenação, impedindo alguns tipos de casamentos inter-raciais e, em 1924, a entrada de
imigrantes do leste europeu e dos países mediterrâneos foi drasticamente limitada pela
promulgação da Lei de Restrição da Imigração (Lei Johnson), aprovada com base na
justificativa de que esses imigrantes procediam de populações geneticamente inferiores às
nórdicas e anglo-saxônicas. A essa época havia nos Estados Unidos ampla circulação de livros
com conteúdo racista de apelo popular, como os de Madison Grant (The passing of the great
race) ou de Lothrop Stoddard (This rising tide of color against white supremacy), tendo o
primeiro recebido resenha elogiosa na revista Science, publicação oficial da American
Association for the Advancement of Science, e nenhuma crítica contrária por parte de
geneticistas (Allen, 1975).

Nesse período, o Journal of Heredity, publicação oficial da American Genetics Association,


apoiava abertamente o movimento eugênico, e geneticistas muito influentes como Charles
Benedict Davenport procuravam dar roupagem científica a esse movimento. Entretanto, a
“ ”
argumentação científica utilizada como justificativa da Lei de Restrição da Imigração, que
perdurou até 1965, foi o relatório de cerca de 700 páginas preparado por Harry Hamilton
Laughlin, que era chefe do Escritório de Registro Eugênico (Eugenics Record Office), criado por
Davenport em 1907 em Cold Spring Harbor, pouco tempo depois da fundação do seu
Laboratório de Evolução Experimental. A reação dos geneticistas a essa lei foi tardia e tímida, e
incluiu manifestos de Herbert Spencer Jennings e William Ernest Castle, por sinal dois ex-
eugenistas,
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considerado o mais importante geneticista dessa época, não expressou qualquer reação pública
(Allen, 1975). nossa Política de Privacidade. OK

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Na Alemanha nazista o movimento eugênico resultou em perversidades indescritíveis, conforme


a abundante documentação recolhida por Benno Müller-Hill (1988), a qual foi muito importante
Brasil
para a elaboração deste trabalho. Esse movimento contou com a participação voluntária e a
entusiástica ferocidade de geneticistas de grande projeção, como Eugen Fischer, Fritz Lenz,
Otmar von Verschuer e Ernst Rüdin, para citar
Brazilian apenas
Journal os mais renomados.
of Genetics 
No dia 7 de abril de 1933, ou seja, logo após Adolf Hitler tornar-se chanceler do Reich (30 de
janeiro de 1933), foi aprovada a lei racista para a demissão de todos os funcionários públicos
judeus ou meio-judeus, a qual, poucos dias depois, foi estendida aos empregados de empresas
privadas (25 de abril de 1933). Como já foi mencionado antes, no dia 14 de julho de 1933 foi
sancionada a lei de esterilização compulsória para os indivíduos com defeitos mentais “
congênitos, esquizofrenia, psicose maníaco-depressiva, epilepsia hereditária, coréia de
Huntington, cegueira hereditária, surdez hereditária, malformações graves e alcoolismo grave . ”
“ ”
O material científico extraído das pessoas esterilizadas era processado nos laboratórios
chefiados por Eugen Fischer, Otmar von Verschuer e Ernst Rüdin.

Até 31 de agosto de 1939, quando essa lei foi suspensa, foram esterilizadas entre 300 e 400 mil
pessoas, mas somente foram registradas as esterilizações entre 1934 e 1936 (198.869). Além
desses pacientes, todas as 385 crianças mestiças de alemães com negros foram levadas pela
Gestapo, na primavera européia de 1937, para clínicas universitárias e esterilizadas
cirurgicamente. Esse crime hediondo, praticado sem a costumeira aparência legal, foi realizado
sob a coordenação dos geneticistas Wolfgang Abel e H. Schade, mas já vinha sendo planejado,
desde 1935, por Eugen Fischer, Fritz Lenz, Ernst Rüdin e H.F.K. Günther, este último professor
da Universidade de Jena (depois de 1945 passou a usar o pseudônimo L. Winter).

“
A promulgação da Lei de proteção ao sangue alemão e ao casamento alemão , em 15 de ”
setembro de 1935, proibiu os casamentos entre súditos alemães e judeus (ainda que com seus
ancestrais mais remotos nascidos na Alemanha), bem como relações sexuais extraconjugais
entre judeus e súditos alemães ou seus afins. Ela deu início a um trabalho incessante dos
geneticistas para a formação de um inventário heredo-biológico e para a emissão de laudos
“ ”
sobre a investigação da proporção de sangue judeu em alemães que queriam provar não
terem ascendência judaica. Os únicos protestos documentados de modo tristemente irônico
foram os de T. Mollison, professor da Unive sidade de Munique, que reclamou ao Ministério do
Interior a cobrança dos gastos com a produção de laudos raciais, muito trabalhosos, e de von
Verschuer, quando lecionava na Universidade de Frankfurt (14 de outubro de 1937). Este último
enviou um protesto ao Ministro da Justiça por não ter sido levado em conta um laudo racial seu,
em conseqüência do que o indivíduo sob suspeita foi considerado não-judeu. Alguns meses
antes (20 de maio de 1937) von Verschuer havia encaminhado a Alfred Rosenberg, que foi
Ministro do Reich dos Territórios Ocupados do Leste, um trabalho denominado Propostas “
para a identificação prática de judeus e de judeus mestiços . ”
A lei de esterilização foi suspensa para dar lugar ao assassinato com base na Lei da “
”
eutanásia , preparada pelos professores Fritz Lenz e M. de Crinis, de Berlim, Friedrich Manz,
de Koenigsberg, Berthold Kihn, de Jena, Kurt Pohlish, de Bonn, Carl Schneider, de Heidelberg,
além de diretores de clínicas e outros médicos. Um mês depois da promulgação dessa lei, os
professores W. Heyde, F. Mauz, P. Nitsche, F. Panse, K. Pohlish, Reisch, Carl Schneider, W.
Villinger e Zucker e mais 39 médicos já haviam examinado 283.000 prontuários e recomendado
a morte de 75.000 pacientes. Nas províncias centrais e ocidentais do Reich 70.723 desses
pacientes foram mortos por monóxido de carbono, fornecido pela IG-Fraben, enquanto na
Pomerânia, Prússia Ocidental e Polônia ocupada pelos alemães empregou-se o fuzilamento de
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Com a conquista de numerosos países europeus pela Alemanha nazista, a questão do


extermínio dos judeus passou a ser o ponto central da atenção dos geneticistas alemães.
Brasil
Assim, nos dias 26 a 28 de março de 1941, foi promovida por Heinrich Himmler, comandante
das SS, no Instituto para a Investigação da Questão Judaica, em Frankfurt, uma reunião para o
genocídio dos judeus da Europa por morte violenta, pois a extinção pela fome em guetos e
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campos de trabalho seria um processo muito lento. Eugen Fischer e H.F.K. Günther foram
convidados de honra dessa reunião, da qual Otmar von Verschuer publicou uma resenha a
respeito em Der Erbarzt, uma revista médica para assuntos de hereditariedade.

Poucos meses depois, no dia 31 de julho de 1941, Hermann Göring encarregou a SS de dar
início à destruição dos judeus da Europa. No começo isso era feito por fuzilamento da
população civil judia, mas logo recorreram ao pessoal médico, que havia adquirido experiência
na matança de pacientes por intermédio de monóxido de carbono.

No dia 20 de janeiro de 1942 foi promovida a Conferência de Wansee, para a discussão dos
detalhes do extermínio da população judia européia, e dela participaram especialistas, como
Bruno Schultz, que dava aulas de genética humana para o pessoal médico que classificava os
judeus nos campos de extermínio. Aqui é importante assinalar que o primeiro curso de genética
antropológica para médicos da SS foi dado já em 1934 por Eugen Fischer, no Kaiser Wilhem
Institut de Berlim.

Daí por diante os judeus de toda a Europa passaram a ser submetidos ao assassinato em
massa mais aterrador da história da humanidade, passando a ser mortos por Zyklon B
(prussiato), produzido pela firma Degesh, filial da IG-Farben, que, depois da Segunda Guerra
Mundial, passou a ser a Hoechst e a BASF. Além disso, a partir de 30 de maio de 1943, o
assistente predileto de Otmar von Verschuer, o diabolicamente famoso Dr. J. Mengele, passou a
realizar experimentos sob a orientação de seu professor e a colher material para ele e para a
Dra. K. Magnussen, enquanto, na mesma época, Robert Ritter e seus colaboradores fizeram,
nos próprios campos de Bialystock e de Auschwitz, o estudo genético-clínico dos ciganos que
iriam ser exterminados.

Não vamos descrever aqui as atrocidades praticadas por médicos nos campos de extermínio,
nem os resultados, que todos conhecem: o bárbaro assassinato de seis milhões de judeus, de
um número desconhecido de ciganos, mas seguramente superior a trinta mil, um número
desconhecido de doentes mentais, mas seguramente superior a setenta e cinco mil, e uma
quantidade desconhecida de homossexuais, comunistas e opositores do nazismo, classificados,
por isso, como associais.

Terminada a Segunda Grande Guerra, os geneticistas alemães alegaram que nada sabiam a
respeito. Ninguém participara das atrocidades cometidas. Ninguém viu os incontáveis comboios
com os judeus empilhados em vagões de carga, atravessando a Europa a caminho dos grandes
matadouros humanos da Polônia. Nem mesmo os funcionários das estradas de ferro
responsáveis pelo transporte sabiam de alguma coisa! Como não perceber em todas as cidades
européias sob a Alemanha nazista a caçada impiedosa aos judeus para levá-los a uma viagem
sem volta às câmaras de gás e aos fornos crematórios?

O mundo também preferiu aceitar a versão mentirosa de que os torpes crimes perpetrados
contra a humanidade pelos nazistas foram obra de alguns poucos loucos, em vez de reconhecer
que o genocídio levado a cabo pelos nazistas teve a participação efetiva, voluntária e
disciplinada da maioria dos médicos alemães. Para trabalhar na seleção dos prisioneiros em
campos de concentração e de extermínio era obrigatório ser diplomado em Medicina e ter curso
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Ninguém puniu Eugen Fischer, nem Otmar von Verschuer, nem Fritz Lenz, nem Ernst Rüdin,
nem Rober Ritter e sua assistente S. Ehrhardt, nem Bruno Schultz, nem Wolfgang Abel e tantos
Brasil
outros facínoras. Esses e tantos outros canalhas apostaram na conspiração do silêncio que se
fez sobre seus crimes e ganharam.
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E agora, em relação à China? Os geneticistas e as sociedades de genética também manterão
silêncio? Será que os geneticistas de todo mundo irão participar, tranqüilamente, em agosto de
1998, do XVIII Congresso Internacional de Genética em Beijing? Agora não existe mais a
desculpa da ausência de lições históricas. O silêncio dos geneticistas e de suas associações
nacionais diante da legislação eugênica chinesa será traduzido como indiferença e os
envergonhará para sempre perante as gerações futuras. Será que os protestos contra a
legislação eugênica chinesa se restringirão ao documento solitário assinado por Alfred
Knudson, Bernardo Beiguelman, Eduardo Castilla, Ei Matsunaga, Francisco Salzano, Henrique
Krieger, Margareta Mikkelsen, Newton Morton, Pedro Cabello? Será a Sociedade de Genética
do Reino Unido a única associação de geneticistas a se manifestar claramente, pedindo a sua
exclusão da International Genetics Federation, caso o Congresso Internacional de Genética seja
realizado em Beijing, sem a modificação da legislação eugênica atual? Não posso acreditar.
Não devo acreditar. Não quero acreditar que se vá deixar tudo começar novamente.

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21/10/2021 09:02 SciELO - Brasil - Genética, Ética e Estado: (Genetics, Ethics and State) Genética, Ética e Estado: (Genetics, Ethics and State)
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