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Fernando Scherer
Material de aula – Disciplina Introdução à Filosofia e Disciplina Teoria Política I
Nascimento da Filosofia
1. Introdução e contextualização
A questão do início histórico da filosofia e da ciência teórica foi alvo de discussões
durante um longo período. Elas se concentravam em duas correntes: a orientalista e a
ocidentalista. A primeira defendia que as antigas civilizações orientais teriam dado origem a
uma sabedoria que os gregos posteriormente assimilaram e desenvolveram. A segunda
considera que a filosofia e a ciência teórica teve sua origem na Grécia, mais precisamente no
decorrer do século VI a. C. e é denominada de ocidentalista. Os gregos do século V e IV a. C.
estavam certos de que a filosofia e a ciência tinham se originado em sua civilização, por
exemplo, Platão. Num período mais tardio após a inclusão da Grécia nos impérios Macedônio,
Romano, a afirmação a respeito da originalidade grega no campo científico-filosófico é
relativizada, eles próprios não a defendem de maneira absoluta, talvez por questões político-
culturais são levados a verem sua cultura de modo diferente. Passa-se a aceitar a tese
orientalista de que a Grécia apenas desenvolveu um conhecimento transmitido por povos do
Oriente. Dessa maneira o historiador dos filósofos gregos Diógenes Laércio em sua obra Vida
dos Filósofos se refere à filosofia entre persas e egípcios. Mas é com os neoplatônicos, os
primeiros escritores cristãos que a tese orientalista é defendida com mais rigor. Mesmo no
século XIX a discussão a respeito da origem da filosofia e da ciência teórica ainda permanecia.
Nesse século eram defensores do orientalismo Roth e Gladisch, e do ocidentalismo Zeller e
Theodor Hopfener, por exemplo.
No entanto, com o desenvolvimento das pesquisas arqueológicas e o crescimento do
interesse pela mentalidade “arcaica” houve uma mudança radical nessa discussão. A
arqueologia forneceu novas possibilidades de explicações que apresentavam um grau de
evidência maior e o estudo da mentalidade “arcaica” procurou mostrar que o problema da
origem da filosofia, na verdade estava principalmente ligado em compreender como houve a
passagem de uma visão mítica-poética para uma visão teórica.
Todavia, o problema a respeito da origem da filosofia e da ciência teórica ainda
continua em aberto na dependência de novas descobertas arqueológicas. Apesar disso, a
maioria dos historiadores da filosofia na contemporaneidade defendem a origem do
conhecimento teórico e da filosofia na Grécia do século VI a. C.. A justificativa consiste em
afirmar que em povos orientais houve descobertas esparsas quanto à ciência empírica, mas
não uma busca de uma compreensão racional que atribuísse unidade aos conhecimentos
adquiridos. Essa mentalidade haveria surgido a partir de uma racionalização que ocorreu
lentamente e no contexto da decadência micênica e a combinação de circunstâncias históricas,
que veremos a seguir, possibilitou o surgimento da ciência teórica e da filosofia.
3. Do mito à filosofia
Historiadores da filosofia explicam o surgimento da mentalidade filosófica-científica a
partir da tese de que houve uma racionalização gradual do mito até essa nova mentalidade. A
primeira documentação a respeito da mentalidade mítica dos gregos se encontra nas epopeias
homéricas, as quais foram escritas entre os séculos X e VIII a. C.. Elas surgiram no contexto das
novas colônias nas ilhas e nas costas da Ásia menor. Elas foram constituídas por lendas,
misturando-as com relatos fabulosos sobre expedições marítimas, sobre as culturas orientais,
sobre a decadência dos micênicos, sobre guerras, entre outros eventos. Elas eram organizadas
em forma de poema. Entre esses inúmeros poemas foram conservados a Ilíada e a Odisséia de
Homero. Não se sabe historicamente ao certo se elas foram escritas por uma pessoa chamada
Homero, ou se foi ele que organizou diversos cantos, poemas existentes. No entanto, é certo
que estes foram escritos em épocas diferentes.
As epopeias homéricas relatam sobre a polis, sobre mitos gregos. Elas apresentam um
início de racionalização, de uma ordem no interior dos mitos. Os deuses passam a serem
organizados em cosmos de forma hierárquica, de forma que a cada um cabe um tipo de poder,
a fim de não haver uma sobreposição destes. Eles passam a serem antropomórficos,
semelhantes ao homem com sentimentos e passam a serem compreensíveis mesmo sendo
forças superiores que intervêm nos acontecimentos humanos, na natureza. Também aqueles
deuses que representam forças da natureza são concebidos de forma antropomórfica. Dessa
maneira, os deuses não são mais forças misteriosas, incompreensíveis e por isso,
aterrorizadores. As práticas mágicas e os deuses com formas monstruosas são excluídas por
Homero. Eles passam a serem acessíveis. Há uma substituição nas epopeias homéricas do
misterioso presente nas formas de religiosidade anteriores pela inteligibilidade dos deuses por
agirem e terem forma exterior semelhante ao homem. Eles são definidos em oposição ao
homem, como sendo imortais e celestes. Eles não são eternos, pois também nascem, de
maneira que se pode saber de quem ele é filho.
Mesmo havendo um politeísmo, há uma ordem do divino fundamentada em Zeus que
assim como numa sociedade patriarcal, assume a figura de pai dos outros deuses e organiza o
olimpo a fim de evitar conflito entre os deuses, unificando assim o divino, permitindo uma
unidade na ação divina. O homem na concepção homérica é constituído de um “duplo”, o qual
se desprende em caso de morte, ou nos sonhos. Esse “duplo” (psyché) desprendido do corpo
permanece semelhante quanto à aparência ao corpo em que esteve abrigado, no entanto
perde as qualidades espirituais. Com isso, Homero faz com que as pessoas percam o medo dos
mortos.
Em Homero a noção de virtude (areté) está ligada à força física e apenas nos escritos
finais ganha um caráter moral. A Areté é atributo de uma classe privilegiada, os nobres
(aristoi), ligado à honra, e que é transmitido pelo nascimento. Nesse contexto, Homero faz
questão de apresentar a ascendência dos heróis. Homero humaniza os deuses através do
antropomorfismo, criando uma unidade por meio do modelo patriarcal aplicado à concepção
divina, permitindo uma maior racionalização da religiosidade.
Hesíodo viveu no séc. VIII a.C. e suas obras principais são O trabalho e os dias e a
Teogonia. Na última descreve o surgimento dos deuses através de procriações, traça a
genealogia dos deuses. Eles têm uma origem em comum a partir de ascendentes primordiais.
Nessa genealogia dos deuses se percebe a presença da noção de causalidade como exigência
para a existência dos deuses e tenta-se por conta disto explicar a sua origem. Ele parte da tese
de que tudo tem origem, inclusive os deuses. No início, existia conforme Hesíodo o Caos, após
vieram a Terra e o amor (Eros). Da Terra nascem a sombra em forma de um par: Erebo e Noite.
Da Sombra nasce a luz em forma de um par: Éter e Luz do Dia. Também são filhos da Terra o
céu, as montanhas e o mar. Segue-se a apresentação da descendência da Terra, e assim por
diante, até o nascimento de Zeus.
Hesíodo explica a condição humana a partir do mito de Prometeu e Epimeteu.
Segundo o mito Prometeu rouba o fogo de Zeus para entregá-lo aos homens e é castigado por
Zeus por esse ato indevido. Seu castigo consiste em que uma águia devorará o seu fígado
eternamente. Além disso, também os homens são castigados. Zeus cria Pandora, uma mulher,
um ser à imagem e semelhança das deusas imortais, que leva consigo uma jarra da qual escapa
todos os males e fica presa a esperança. Ele entrega Pandora a Epimeteu, irmão de Prometeu,
como presente dos deuses do olimpo. Hesíodo não exalta a mulher, como o fazia Homero, ao
contrário a apresenta como um castigo aos homens, como mais um ser para ser alimentado e
também como responsável pelos males. Sendo exigido ao homem mais sacrifícios, trabalho.
Em Hesíodo a virtude é filha do trabalho e do esforço.
Houve uma progressiva racionalização na cultura grega, que culminou no séc. VI a. C.
na Jônia, Ilha grega da Ásia menor, com o surgimento de uma nova mentalidade, que não se
satisfazia com o mito e procurava uma explicação racional. Trata-se de uma mentalidade
filosófica-científica, teórica; uma racionalidade capaz de produzir conhecimento teórico
nascida num contexto de grandes transformações econômicas e culturais que quebraram com
as instituições antigas e com a tradição. O primeiro representante dessa nova mentalidade é
Tales de Mileto, considerado também o primeiro filósofo. Sua preocupação foi explicar a
natureza, sua origem racionalmente a partir de um primeiro princípio que originasse tudo. Ele
concebeu a água como sendo esse princípio originário. Mileto era uma cidade da Jônia na Ásia
menor.
Após Tales, outros filósofos procuram dar uma explicação racional para a origem do
mundo físico (Physis).
Bibliografia:
VERNANT, Jean Pierre. As origens do pensamento grego. Rio de Janeiro: Difel, 2002.