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AnWm Psicológica (1988).

1 (V): 121-140

Transição da oralidade para a escrita


em crianças de meios
socioeconórnicos diferentes (*)
MARIA RAQUEL DELGADO
MARTINS (**)
DULCE REBELO (**)
LUCINDA ATALAIA (**)
MARIA DO CARMO LACERDA
MARQUES (**)
CONCEJÇÃO COSTA (**)

O Grupo da CEFEPE apresenta os resul- assim formar-se em factor de segregação e,


tados de um trabalho de investigação sobre consequentemente, de insucesso escolar.
problemas de aprendizagem e ensino da Iín-
gua materna, numa perspectiva de formação
permanente de professores, investigadores e INTRODUCÂO
técnicos de educação.
A investigação propõe-se caracterizar A nossa experiência assenta em pressu-
comparativamente a linguagem oral na pré- postos teóricos que nos fornecem a base das
-primária e a linguagem escrita no primeiro hipjteses formuladas.
ano de escolaridade de crianças de dois Numerosos são os linguístas, psicólogos e
meios sócio-económicos e culturais diferen- soci6logos que incidem a sua atenção
ciados. sobre a linguagem infantil, abrangendo prin-
Os resultados obtidos apontam para uma cipalmente o período que vai desde as pri-
meiras manifestações falantes até ii aquisi-
clivagem na escrita, levando a questionar
ção da escrita. Em geral os estudos têm
sobre 05 factores que possam explicar as
dificuldades desta aprendizagem. Tendo em
conta a importância da aquisição da escrita
para o desenvolvimento da criança e sua (*) Comunicação apresentada no 3." Congresso
integração escolar fazem-se sugestões de Internacional Aprendizagem / Desenvolvimento-
ordem pedagógica que possam contribuir - Linguagem e Educação, promovido pelo Insti-
para uma mudança de atitude no ensino. tuto Piaget de 25-29 de Março de 1985, em
Lisboa. Trabalho subsidiado pela Fundação Ca-
A aprendizagem/emino da língua escrita louste Gulbenkian.
deverá valorizar os elementos diferenciado- (**) Grupo de Língua do Centro de Formação
res de ordem linguística e cultural, evitando Educacional Permanente (CEFEPE).

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como objectivo averiguar quais as relações nica, etc.) deve seir considerado uma activi-
entre a linguagem e o pensamento, a génese dade cognitiva. Portanto, a actividade cogni-
dos mecanismos verbais de recepção e de tiva (pensamento) orienta as produçijes ver-
produção, percepção na oralidade e a per- bais. Para o psicólogo de Genebra é a fun-
cepção e a motricidade na língua escrita. ção de representação da linguagem que é
Estes e outros temas são submetidos a uma posta em evidência. Por outro lado, o desen-
exploração sistemática no intuito de com- volvimento cognitivo é condição prévia para
preender os comportamentos Iinguísticos de o desenvolvimento das interacç6es sociais.
crianças em idade pré-escolar e escolar e Partindo do individual para o social ele op6e
a linguagem egocêntrica a linguagem socia-
descortinar que processos psicológicos inter-
lizada. Só a segunda (linguagem dos adultos)
vêm na aquisição da língua, quer a nível da
é explicitamente destinada a alguém, só esta
oralidade quer a nível da escrita. é para comunicar. Digamos que para Piaget
Diversas correntes de pensamento tentam o objecto é neutro face ao indivíduo. A lin-
explicitar como se adquire a linguagem, OU guagem socializada só aparece, por conse-
pelo menos como ela aparece. guinte, a volta dos seis, sete anos.
Sociólogos como Bourdieu e Passeron (') O psicólogo Vigotsky(3) vai mais longe.
consideram que o «banho de linguagem)) em A linguagem aparece quando, ao longo das
que mergulha a criança desde os seus pn- diferentes etapas do desenvolvimento hu-
meiros dias de vida vai condicionar o seu mano, se dá a fusão de dois filões: o pensa-
desenvolvimento mental, ou seja, as catego- mento pré-verbal e a comunicação pré-inte-
rias do pensamento são produzidas pelas es- lectual. Todo o sistema cognitivo complexo
truturas linguísticas ouvidas e integradas no se desenvolve socialmente e se constrói ao
seu próprio sistema linguístico. Para Pia- nível da histhia humana. Assim, ao contrá-
get (") as estruturas do pensamentto são inde- rio do psicólogo genebrino, Vigotsky consi-
pendentes da linguagem, mais ainda, prece- dera que a linguagem 6 sempre comunica-
dem-na. Existe uma ((capacidade cognitiva tiva, pois a verbalização explícita que a
supriores)), resultante da aplicação de leis criança usa em relação a si própria é equi-
valente a usada pelos adultos que deste modo
biológicas, que vai permitir o pensamento
actuam sobre o comportamento infantil.
conceptual. Ao longo da sua evolução, o Mais tarde a criança irá intenorizar a ver-
indivíduo em contacto permanente com o balização explícita. Primeiramente talo o
meio físico e social constrói primeiro ima- sistema cognitivo complexo existe nas rela-
gens «mentais», depois símbolos e só depois ções entre as pessoas. Há, portanto uma
signos linguísticos. Assim, a linguagem é origem interpsiquica que se transforma em
uma das diversas manifestações da função intra-psíquica (na mente do sujeito), pas-
simbólica, elaborada pelo homem no quadro sando a linguagem social a linguagem inte-
das interacções do meio físico e social. rior. Esta passagem faz-se por meio de sis-
O comportamento verbal, tal como os ou- temas de signos que permitem controlar o
tros comportamentos (perceEão, menernó- funcionamento do exterior para o interior.
Vygotsky fala do trabalha, instrumento de
que o homem se serve para transformar a
natureza.
(') Bourdieu et Passeron - Revue Française
de Socidogie, 1966, pp. 325-347.
C) Piaget, J., prefácio de Les Relations
Temporelles dans le Languge de 1'Enfant. E. Fer- (') Vygotsky, N. S . - Thaught und Language,
reiro, Draz, Genève, 1971. Mit Press, Mass, 1967,

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'O ser humano desenvolve-se no mundo ser activo que na prática linguística, e não
dos objectos criados pelos homens para sa- só, coastrói progressivamente o seu próprio
tisfazer exigências especificamente humanas. sistema, a sua linguagem, mediante situa-
As relages da criança com o mundo dos ções proporcionadas pelo adulto que exerce
objectos caracterizam-se por dois aspectos o seu contrclo, até a própia criança exercer
essenciais: 1." - A criança adapta-se ao igualmente o seu controlo, pois a linguagem
mundo que a cerca activamente, ((apro- possui em si os meios necessários para o
priando-se)) de todas as aquisições da huma- exercício desse controlo, na medida em que
nidade, assimilando-as, integrando-as. 2." - é um instrumento auto-reflexivo. Na ver-
Tudo quanto a criança assimila ao longo do dade, todos conhecemos situações favoráveis
seu desenvolvimento (os objeotos e sua utili- ao desenvolvimento de certas capacidades
zação, as relações humanas, a linguagem)
linguísticas, assim como sabemos que certos
lhe é veiculado pelos adultos. Assim a acti-
signos se revelam instrumentos úteis quando
vidade infantil individual não se desenvolve
se pretende afinar determinadas capacidades
isoladamente, mas no contacto com os adul-
tos que lhe facilitam a apropriação das ca- da linguagem escrita.
pacidad es humanas. A revolução provocada pela psicologia
A visão de Vygotsky sobre o apareci- vygotskyana influenciou numerosos investi-
mento e subsequente evolução da linguagem gadores que passaram a dar maior atenção
é uma das mais fecundas para a compreensão a criança ccmo ser evclutivo que, vivendo
do comportamento verbal das crianças. Há em sociedade entre os homens, se constrói
uma relação complexa entre desenvolvi- recebendo e participando, pondo em movi-
mento e aprendizagem, pois esta encontra-se mento as suas potencialidades, e çomuni-
no próprio seio daquele, mas também a cando. A linguagem avulta nessa comunica-
aprendizagem determina a orientação do ção já que ela específica a natureza humana.
desenvolvimento. A actividade linguística Como a linguagem surge bem cedo nas
permite estabelecer a unidade dos dois as- manifestações infantis e não é visível o
pectos da linguagem: a representação e a modo como ocorre o fenómeno, procura-se,
comunicação, mas não apenas através do dentro de outras correntes, dar um passo em
emprego das palavras. Há que considerar frente em relação a Piaget e fundamentar
o contexto, a situação da actividade linguís- o aparecimento da expressão verbal de outra
tica, as condições da produção do discurso, o forma. Chomsky, que revolucionou a lin-
produto da actividade linguística, que é o gulstica, assinala o facto) de todo o sujeito
texto, e o que aparece nesse texto. Deste falante ser capaz de produzir e compreender
modo o texto, oral ou esclrito, implica sem- um número infinito de frases utilizando um
pre os conteúdos, os referentes, o fim que número finito de unidades (fonemas, morfe-
pretende atingir. Como existem diferentes mas, lexemas). Cada locutor é criador da
(textose contextos torna-se importante obser- sua própria linguagem, distinguindo perfei-
var quais os meios linguísticos utilizados tamente na sua língua as frases gramaticais
pelo locutor para transmitir o que pretende daquelas que o não são. A linguagem é au-
dizer, e é a partir daí que será possível deter- tónclna, nada tendo a ver com os ((meca-
minar o grau em que se encontra o desen- nismos cognitivos inatos)). Se é fácil a uma
volvimento linguístico da criança como indi- criança adquirir as estruturas profundas da
víduo. língua, isso deve-se a existência de «univer-.
A base da experiência que levámos a cabo sais lingdísticos)) inatos. Mediante um «dis-
assenta no reconhecimento do sujeito como pusitivo de aquisição)) (o célebre L. A. D..-

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Language Acquisitirrn Device) o falante in- escolar. Entre elas sobressai a defendida pelo
fantil desenvolve «sistemas de performance)) sociólogo Bernstein ('). Comparando as pro-
para pôr em acção a competência da língua. duções verbais de dois grupos sociais distin-
Para Chomsky, portanto, a capacidade lin- tos que revelam diferenças, Bernstein faz
guística é determinada geneticamente. O uma apreciação valorativa da linguagem uti-
meio linguistico onde vive a criança é ape- lizada que resulta do emprego de dois códi-
nas u m campo de experiência, que lhe pos- gos. Todos os que usam o (código restrito))
sibilita encontrar exemplos de categorias exprimem-se numa linguagem essencial-
universais e de as integrar no seu sistema. mente descritiva, pouco demonstrativa, com
Não privilegiámos esta corrente porque sintaxe pobre, ende predomina a corrente
tratando-se de crianças em fase de evolução afectiva, onde não há expressões que de-
linguística nos parece bastante difícil admi- signem a pessoa, tais como ((parece-meque»,
tir que elas possuam já a «intuição linguís- «penso que». Os outros, pelo contrário,
tica)) dos adultos, que dominam a língua, usando o «código elaborado)), apresentam
assim como não é possível reconstituir a gra- uma linguagem centrada nas relações entre
mática generativa da linguagem infantil, a as coisas, explícita e demonstrativa, com
partir de um «corpus)) de enunciados pro- grande riqueza sintática, onde numerosas
duzidos pelas crianças, na medida em que expressões designam o locutor. Conside-
Chomsky demonstrou que a gramática não rando que há uma estreita ligação entre a
se elabora com base num «corpus», pois utilização dos códigos e o desenvolvimento
seria a negação da criatividade ilimitada do cognitivo, o sociólogo referido atribui aos
fate. utentes do código restrito)) menor capaci-
Até aqui as teorias apresentadas procuram dade de abstracção e de generalização. Na
compreender a emergência da linguagem, esteira desta teoria realizaram-se várias ex-
estudá-la na sua relação com as actividades periências a fim de confirmar as hipóteses
cognitivas e detectar as possíveis influências de Bernstein. Verifica-se, no entanto, que os
mútuas que irão reflectir-se no comporta- resultados obtidos nem sempre são conver-
mento verbal da criança, ser em evolução. gentes, bastando por vezes mudar de método
Duas posições são claras: a que põe em evi- para se obter alterações consideráveis.
dência a continuidade funcional dos meca- Alguns autores reprovam a Bernstein o
nismos interactivos e dos seus fundamentos ter estudado as produções verbais sem ana-
biológicos, e a que dá relevo A fusão de duas lisar as condições em que se realizam e sem
raízes de desenvolvimento- o pré-verbal da atender ao seu conteúdo.
inteligência e o pré-intelectual da linguagem, O facto de se encontrarem diferenças en-
permitindo a alteração qualitativa do pr6- tre enunciados produzidos por utentes dife-
prio desenvolvimento que passa de biológico rentes não nos autoriza a confundir níveis
a sócio-histórico. de língua com os níveis sociais. Na realidade
Numa outra linha de orientação se fun- níveis ou registos não são índice de estrati-
damentam as teorias que tentam averiguar f i a ç ã o social, mas apenas a descrição da
as causas dos insucessos iinguísticos das linguagem usada em determinadas circuns-
crianças logo que iniciam a sua actividade tâncias para exprimir determinado con-
teúdo.
2
De acordo com estes pressupostos não
(') Bernstein, B. - ((Pubiic Language: Some nos parece ser o mais interessante, ou o mais
socioiogical implications of a linguistic form)),
British J . Soc., 1959 (lO), pp. 311-326. importante, determo-nos na enunciação das

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relações das variáveis sociológicas com as da linguagem, e de que expusemos alguns
((performances))linguísticas. Para nós, a lin- dos aspectos principais, e na firme convic-
guagem não é uma peça única e o que cada ção de que cada criança faz a sua cami-
criança constrói é um repertório de condu- nhada pessoal, aprendendo não a dominar
tas linguísticas, cada uma com a sua especi- um código geral mas um projecto cognitivo,
ficidade. Daí o considerarmos que em qual- elaborámos as diferentes fases do nosso tra-
quer análise da oralidade ou da escrita se balho. Decidimos não pretender confirmar
deverá isolar as condições e as situações em ou infirmar o que outros já observaram ou
que se manifestam os comportamentos lin- disseram. A partir de algumas hipóteses
guísticos. Os objectivos da linguagem, assim resolvemos registar o que se passa com as
como as suas funções, são múltiplos e va- crianças, oriundas de meios sociais diferen-
riam segundo as situações e tudo o mais que tes, na oralidade e na escrita, tendo como
entra na relação dos interlocutores, se se ponto comum uma experiência de educação
trata de comunicação directa, ou segundo pré-escolar.
as intenções que se devem explicitar se se As ilaçks que tiramos têm em conta as
trata de comunicação diferida. condições criadas e a situação experimental
As tendências, as teorias linguísticas, so- vivida pelas crianças.
ciológicas e psicológicas que se encontram
na base de estudos e trabalhos experimen-
tais sobre a aquisição da linguagem e seu
desenvolvimento, dentro ou fora da escola, METODOLOGIA
pretendem saber como se processa a apren-
dizagem da língua maternal-oral e escrita- Entre os objectivos que o Grupo se pro-
mas as conclusões a que chegam os seus põe atingir, são de salientar sobretudo dois:
autores são condicionadas pelas suas con-
cepções sobre a linguagem, a criança, a es-
cola e a sua função. -questionar problemas que ocorrem na
aprendizagem e no ensino da língua
A incursão no domínio das aprendiza- materna e reflectir sobre eles segundo
gens, particularmente no que concerne a metdologia adequada;
língua oral e a língm egcrita, é sempre ei-
-contribuir pela natureza do seu próprio
vada de espinhos, pois sobre esta problemá-
trabalho para a formação dos professo-
tica existem muitas ideias feitas, sem qual-
res que, deste modo, se inserem num
quer fundamentação teórica ou prática,
contexto de investigação.
preconceitos adquiridos ao longo de gera-
ções que pretendem invalidar, por comodi-
dade, tudo quanto de novo se descobriu
O grupo formado por investigadores, pro-
fessores de ensino primário e de ensino espe-
sobre a criança e seu desenvolvimento cogni-
tivo. cial e educadores de infância desenvolvem
uma actividade que se pretende formativa
Cientes das dificuldades e dos modestos e tem por isso de seguir um certo ritmo,
recursos de que dispunhamos, encetámos a pautado pela informação e explicitação, pela
nossa investigação com um grupo de crian- análise em conjunto dos dados da pesquisa,
ças cujas características definimos adiante. pela discussão das diferentes opiniões, a fim
Tendo em mente a informação colhida atra- de todos os participantes se envolverem na
vés das teorias existentes sobre a aquisição problemática em análise. Mais do que des-

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cobrir soluções imediatas, procura-se que dos casos, do pai e da mãe classe social A
cada um, e todos, descubram a metodologia (Quadro 1). O outro grupo que designamos
conveniente para pensar as questões da lin- por CV era constituído por crianças que
guagem em termos de situações possíveis e frequentavam a pré-primária de uma «cre-
não defenidas a piori. che» de um bairro, cujos pais eram operá-
Julgamos que esta nossa atitude é válida rios ou desempregados, classe social C (Qua-
por se revelar um elemento de apoio na for- dro 2).
mação dos professores de língua materna. Constituiram-se assim dois grupos de
Entendemos «formação» não apenas como crianças de 15 crianças que obedeciam
preparação inicial, mas sobretudo como acti- aos critérios de diferenciação sociocultural
vidade permanente de actualização, onde a enunciados.
teoria e a prática se enriquecem mutua- As idades das crianças variam entre 5, 6
mente, a caminho de uma competência que e 6,6 e estão caracterizadas quanto ao sexo,
envolve toda a personalidade do indivíduo. morada, profissão do pai e da mãe e número
A competência, alicerçada em novos sabe- de filhos por casal, nos referidos quadros.
res que se integram em saberes anteriores, Os dois grupos foram testados quanto a
qualificando o educador, vai beneficiar o competência oral em situação pré-primária
educando. e acompanhados nas escolas primárias onde
Dadas as condições de trabalho do grupo se inscreveram ((normalmente)) e aí testados
e 05 objectivos que pretendiamos atingir, a quanto ao nível de aprendizagem da escrita
metodologia não obedeceu a critérios rigo- no fim do 1." ano de escolaridade: Note-se
rosos de programação, decorrendo antes que o grupo socialmente mais favorecido
uma atitude de reflexão e formação perma- (JIP) permaneceu em conjunto na mesma
nente que permitiam reformular em cada instituição, excepto 3 crianças, enquanto
fase a orientação a seguir. que no outro grupo (CV> se dispersou por
Ao escolhermos como tema de estudo e várias escolas, perdendo-se, assim, 6 crian-
experimentação a transição da oralidade ças. (Quadro 3)
para a escrita, em crianças de meios xo- Tendo em conta os estudos teóricos e ex-
cioeconómicas diferentes, o nosso primeiro perimentais sobre a aquisição da língua
objectivo era verificar se haviam diferenças materna, já referidos, julgamos dever ter
significativas de competência linguística en- em conta que existem ou podem existir dife-
tre crianças de dois meios socioculturais e renças linguísticas entre dois grupos sociais
econ6micos diferentes. O segundo objectivo a dois níveis:
era acompanhar as mesmas crianças no pri-
meiro ano de escolaridade obrigatória (1." -diferenças de competência gramatical:
ano da 1." fase) para detectar a evolução as citadas diferenças entre o emprego
dos dois grupos de aprendizagem da leitura de certas categorias gramaticais, de
e da escrita. certas categorias gramaticais, de certas
Para tal, optámos por dois grupos da pré- estruturas sintácticas:
-primária que no ano seguinte iriam ingres-
sar no 1." ano. Um dos grupos que passa- -e diferenças a nível de extenção de
mos a designar por JIP, frequentava uma vocabuláriodependente da vivência es-
escola particular, do meio social caracteri- pecífica de cada grupo, mas revelando
zado por profissões liberais, na maior parte a mesma ((competência linguística)).

I26
QUADRO i
Curmterização socioeconómica do grupo J . I . P .
CLASSE A

Alunos Idade Número


Profissão do pai Profissão da mãe
JIP Julho 1977 de filhos

A1 [M.! João C.] ...... Engenheiro Professora 2


A2 [Margarida] ........ Advogado Economista 1
A3 [Joana] ............... Assistente I. S. T. 2
A4 [Marta] .............. Arquitecto Prof. Ciclo Preparatório 3
A5 [Teresa] ............. Médico Empreg. escritório 2
A6 [Luís] ................. Arquitecto
A7 [Martim] ............ Prof. Ensino Secundário Empreg. bancária
A8 [Pedro] ............... Advogado Prof. Ensino Secundário
A9 [Miguel] ............ Engenheiro Estudante de Medicina
A10 [Filipe] ............... Programador Bacteriologista
A11 [M." João P.] ...... Oficial do Exército Enfermeira-chefe
A12 [Raquel] ............. Oficial da Força Aérea Bióloga-As. I. N. S.
A13 [Carlos] .............. Oficial do Exército Doméstica

QUADRO 2
Caracterização socioeconómica do grupo C . V ,
CLASSE C

Alunos Idade Número


cv Julho 1977 Profissão do pai Profissão da mãe
de filhos

C1 [Jovita] ............... Canalizador Maleira 2


C2 [Ana Paula] ........ Faz obras Trabalhadora a dias 1
C3 [Elizabete] .......... I.? contínuo Empregada domkstica 4
C4 [M." Cristina] ...... Guarda N. Republ. Empregada domkstica 2
C5 [Paula Crist.] ...... Serv. const. civil Trab. mercearia 4
C6 [Leonel] ............. Confeiteiro 3
C7 [Carlos Man.] ...... Estofador 2
C8 [Rui] ................. Motorista Doméstica 2
C9 [Vasco] ............... Taberneiro Doméstica 7
CIO [Manuel] ............ 3

QUADRO 3 Para tentar neutralizar este segundo nível


População estudada de diferenciação, e analisar somente a com-
petência gramatical, decidimos pedir às
Pré-primária Primária crianças que descrevessem um quadro,
representando cenas de rua, experiência co-
mum a todas as crianças estudadas. Apesar
J. I.P. 7 9 16 6 7 13 de constituir uma situação limitadora de
C. V. 11 5 16 5 5 10 certos aspectos de discursos, permite con-
Total 18 14 32 11 12 23 tudo eliminar as variáveis culturais que ou-
tras situações de discurso consentem.

127
Além do mais, a forma de recolha desta QUADRO 4
descrição de uma gravura permitia uma Exemplo de análise em unidades frbsicas
do discurso oral
certa relação e interação discursiva entre a
criança e o entrevistador. Com efeito, o en- ALUNO cg ESCOLA C. V. TIPO = g IDADE = 6,s

trevistador além de perguntar o nome a


Pergunta Resposta da criança
criança e a de solicitar a descrição, ia inter-
vindo quer apoiando, incitando a continua-
PD .
(. .)
ção da descrição, quer pedindo para escla- E posso dizer o sinaleiro
recer quando não era intelegível o que era (...I um carro
SE a bicicleta
dito. Estas intervenções, as mesmas para uma camioneta
SE
todas as crianças proporcionaram a avalia- SE e uma mota
ção de uma certa capacidade de diálogo, de .
(. .) e ali tá um carreira
SE um autocarro
comunicação entre a criança e o entrevista- ali tá uma ambulância
(...I
dor, aspecto que virá a ser estudado mais A e ali tão duas ames
tarde. SE e ali há uma caminha de bebé
(...I o miúdo quer ver o balão
Sendo o código ord o único existente A e um
antes da aprendizagem- da leitura e da es- SE 1 e um homem a subir as escadas
crita, foi fácil eslcolher, apesar de poder (-4 e uma mulher a telefonar
(...) e um miúdo com uma viola
assumir formas diferentes, a descrição do PE é um miúdo e uma viola
quadro, pelas razões já apontadas. No 1."
ano de escolaridade, porém, deve-se ter em A I
(*O*)
e uma senhora que foi às compras
e um miúdo que vai beber água
conta, além da Iinguagem oral, a aprendiza-
gem do código escrito, leitura e escrita.
Nesta fase, optámos, entre os vários ma- PD E (...) SE A PE C/E S/B
teriais recolhidos, pela análise da escrita, por
1 1 7 6 3 1 6 13
ser esta uma das aprendizagens consideradas
fundamentais no quadro tradicional ((esco-
lar» e quase sempre indicador do sucesso
escolar. Por conseguinte apresentaremos
As recolhas de material foram sempre fei-
nesta comuni%So alguns aspectos que nos tas pelo mesmo elemento do pp,segundo
parecem mais revelantes deste estudo, a regras fixadas pelo gnipo. foram
saber: feitas no local de cada grupo, nas respeci
tivas escolas.
O material foi integralmente recolhido
1-descrição oral de um quadro, por 16 Por gravação magnética.
crianças de dois grupos socioeconó-
micos e culturais diferenciados, no
Tratamento de dados
fim da pré-primária.

128
..

Fig. 1 -Gravura utilizada para a produção oral e para a produção escrita

A transcrição gráfica, além de apontar Por parte da intervenção da criança foram


com rigor os actos elucotórios da criança, anotadas as seguintes particularidades gerais
também registava a intervenção do entre- da sua elocução:
vistador, tendo em vista uma análise das ) palavra ou segmento de fra-
relações intercomunicativas durante a prova -(
se não intelegívd.
de descrição do quadro.
-(............) silêncio da criança.
Assim, foram anotados, por parte do en-
trevistador: Assim, foi feita uma primeira transcrição
-a pergunta directa (PD). Por exemplo: total da prova, com as intervenções do en-
..((o V. vai então olhar para a gravura trevistado e do entrevistador. Após caracte-
e vai dizer o que vê na gravura.)) rização das intervenções do entrevistador,
-a intervenção de estímulo, (E) solici- isto é das perguntas (P), foi elaborada uma
tando uma continuação na descrição. segunda transcrição das respostas (P), desta
Por exemplo: ...((Começa por onde qui- vez caracterizadas pelo tipo de intervenção
ser e diz como quiser)). imediata anterior. (Quadro 5)
-a intervenção de apoio ( A ) ao que foi
dito, marcando a relação de diálogo QUADRO 5
entre o entrevistador e o entrevistado. Resultados da análise em unidades frásicas
Por exemplo: ...((Muito bem». C/E S/E Unidades frásicas
- O pedido de esclarecimento (PE) quan- Total média Total Média Total MUia
do-o entrevistador não compreendia o c. v. 86 5,6 319 21,2 405 27,8
que tinha sido dito pela criança. Por J. I. P. 55 3,6 171 11,4 226 15,O
exemplo: ...((Diga mais alto que não C/E = Resposta precedida de estimulo.
ouvi». S/E = Resposta não precedida de estímulo.

129
Assim, uma unidade de elocução podia mentos gramaticais de uma ((possível frase))
ser consequência de uma inter-acção com o podendo-se por estas razões admitir como
entrevistador, ou ser espontânea por parte unidades frásicas:
da criança.
O texto do exemplo da transcrição inte- -elementos de enumeração não con-
gral foi pois transcrito segundo este método tendo sintagma verbal.
como se apresenta neste quadro. Isto é, cada - e 1 e m e n t o s começados por «ali»,
unidade é precedida pela indicação do tipo «aqui»... seguidas de um sintagma no-
de intervenção imediatamente anterior. minal.
Esta metodologia de transcrição e análise
das respostas visava avaliar o tipo de inte- Considera-se assim como unidade frásica
racção comunicativa possível durante a pro- todo o segmento que contenha uma unidade
va. Com efeito, tratando-se de uma prova semântica independentemente da sua estru-
de descrição de uma gravura, seria de espe- tura gramatical.
rar uma resposta seguida por parte da crian- Portanto, são consideradas como unidades
ça, em que enunciasse aquilo que via na frásicas no texto dado como exemplo:
gravura. Visava igualmente avaliar a quan-
tidade de discurso espontâneo quanto a des- ((Possodizer o sinaleiro,
crição da gravura.
um carro,
A hipótese posta a partida é que as crian- a 'bicicleta,
ças com maior facilidade de elocução e com e uma mota,
mais vocabulário ((disponível))para a descri- e ali há uma carreira.
ção da gravura deveriam necessitar de me-
nos estímulo e apoio para o fazer que as A primeira unidade serve de suporte as 4
outras crianças. Esta hipjtese conduziu a unidades seguintes, estando elidida a parte
análise numa primeira fase.
da frase: ((Posso dizer...))
Esta metodologia de segmentação permite
Análise das unidades discursivas avaliar as unidades frásicas e a sua natureza
assim como a sua correspondência com os
Como já o referimos anteriormente, as elementos lexicais introduzidos na descrição
respostas dos sujeitos foram segmentadas em da gravura.
((unidades frásicasw. Os critérios que leva- As unidades assim definidas foram carac-
ram a essa segmentação são de duas ordens: terizadas pelas formas de interacção entre-
de ordem pico-linguístico e gramatical. vistador-entrevistado que descrevemos ante-
Numa perspectiva psicolinguística pode- riorment e.
-se admitir que, pedida uma descrição de O quadro 6 apresenta os resultados rela-
uma gravura, o sujeito se limite a uma enun- tivos a quantidade de unidades frásicas, por
ciação de elementos que vai discriminando instituição, e por sujeito.
no conjunto da gravura, sem ter por isso Se agruparmos seguidamente as unidades
necessidade de construir frases completas. frásicas segundo o tipo de estímulo e de inte-
Além do mais a imagem estando presente o racção com o entrevistador, podemos consi-
entrevistador e para o entrevistado a utili- derar dois tipos de respostas:
zação de deíticos é suficiente para a locali-
zação daquilo que se vai designando. -as unidades frásicas espontâneas, não
Gramaticalmente estas condições de enun- solicitadas pelo entrevistador ou não
ciação justificam a elisão de parte dos ele- resultantes de apoio deste e que cha-

130
maremos de resposta ((Sem estímulo)) Análise comparada dos resultados ordl
(S/E) e as que foram provocadas ou se /escrita
seguiram a esse tipo de intervenção por
parte do entrevistador e que chamare- Após a análise dos aspectos do discurso
mos de «Com estímulo)) (C/E). oral relativos aos dois grupos considerados,
passamos agora a análise comparada da des-
Se observarmos os dados relativos a quan- crição oral da gravura com a da descrição
tidade de unidades frásicas produzidas, p- escrita da mesma gravura e da escrita sobre
demos concluir O seguiate: tema livre ...
O grupo JIP apresenta um total de 226 Os textos escritos foram divididos em uni-
unidades em média de 15 midzdes por dades frásicas pelos mesmos critérios que o
criança, enquanto que o grupo CV apre- discurso oral, no entanto outros critérios
senta um total de 405 unidades com uma foram acrescentados tendo em conta os as-
média de 27,6 unidades por criança. (Qua- pectos específicos da produção escrita reco-
dro 6). lhida. Teremos assim:
No total dessas respostas, no grupo do CV
as unidades «Sem estímulo)) representam -ausência de produção escrita (O)
319, ou seja, uma média de 21,2 respostas ao -- unidades frásicas (UF)
lado das respostas «Com estímulo)) que só -palavras isoladas (PI)
contam 86, ou seja, uma média de 5,6. -grafismo (6)
No JIP dentro do total de respostas 171 Os resultados desta análise comparada
são «Sem estímulo)) e 55 são «Com estí- são apresentados no quadro 7 para o grupo
mulo)). JIP e no (Quadro 8) para o grupo CV.

QUADRO 6
Resultados comparados da produção oral e escrita do grupo JIP

JIP Produção oral Produção escrita

Escrita Gravura Escrita Livre


Unidade frásica
U. F. P. I. U. P. P. I.

A1 [M. João C.] ............ 28 1 2 1 O


A11 [M. João P.] ............ 14 12 O 2 O
A2 [Margarida] ............. 17 2 O 2 O
A3 [Joana] .................... 8 7 O 1 O
A12 [Raquel] .................. 9 6 O 2 O
A4 [Marta] .................... 16 O 3 3 O
A5 [Teresa] ................... 10 6 O 2 O
A6 [Luís A.] ................. 31 8 O 6 O
A10 [Filipe] .................... 4 8 O 3 O
A8 [Pedro] .................... 6 7 O 2 O
A7 [Martim] .................. 6 11 O 3 O
A13 [Carlos] .................... 21 8 O 7 O
A9 [Miguel] .................. 27 1 3 3 O

Total ............... 197 77 8 37 O

Média (base 13) ......... 14,3 599 8

U. F. = Unidade Frásica P. I. = Palavra Isolada


O = Ausência de escrita a) = Grafismo

I31
QUADRO 7
Resultados comparados da produção oral e escrita do grupo CV

c. v. Produção oral Produção escrita

Unidade frásica Escrita Gravura Escrita Livre


U. F. P. I. U. F. P. I.

C1 [Jovita] ..................... 15 O O 6
C2 [A. Paula] ................. 23 O 16 32
C3 [Elizabete] ................. 28 1 17 23
C4 [M. Cristina] ............... 15 10 O O
C5 [Paula C.] .................. 23 2 10 O
C6 [Leonel] ..................... 17 O O 3
C7 [Carlos] ..................... 34 O O 6
C8 Dui] ......................... 17 1 6 6
C9 [Vasco] ..................... 19 6 6 7
Total............... 191 14 49 11 71

Média (base 9) ........... 21 13 524 192 798

U. F. = Unidade Frásica P. I. = Palavra Isolada


O = Ausência de escrita a) = Grafismo
Nota: C10 -Não existe produção escrita deste aluno por se encontrar ausente da escola.

Se analisarmos os resultados relativos i% de produção, 3 situaçGes de grafismo e 4


escrita verificamos que todos os alunos do situações de produção exclusiva de palavras
JIP têm produção escrita quer na gravura isdadas. No texto sobre gravura, só uma
quer no texto livre e todos, excepto uma criança C4 produz texto exclusivamente
têm unidades frásicas. No texto livre deste com unidades frásicas, enquanto no texto
grupo, existe sempre escrita e com estru- livre duas, C4 e C5, o fazem. E só uma
turação de frases de uma até sete unidades. criança C4 tem produção escrita nas duas
Podemos ainda verificar que esta produção situações, constituída apenas por unidades
escrita não tem relação com a produção frásicas.
oral anteriormente referida. Sobre a mesma Se considerarmos os textos a que chama-
gravura, a produção oral e escrita pode ser mos de grafismo, podemos pôr em evidên-
equivalente (8/9, 9/7, 6/7), noutros casos cia alguns aspectos que nos parecem rele-
o número de unidades no oral é dos mais vantes no processo de aprendizagem dentro
elevados enquanto no escrito é reduzido do mesmo grupo C.V. Assim, os textos 1
(28/1, 31/8, 27/1), e finalmente noutros e 2, sobre tema livre (com ausência de
casos acontece o inverso, o número de uni- escrita sobre a gravura) mostram uma
dades da escrita é superior ao do oral (6/11, aprendizagem da produção de grafemas, que
4/8). I3 ainda de notar que, na escrita livre, se associam sem formar unidades com sen-
todas as crianças têm escrita estruturada tido. No entanto, o primeiro destes textos
em frase, pelo menos em uma unidade. parece tender para a «imagem)>de palavras
Se analisarmos os resultados do grupo e parágrafos da escrita, enquanto o segundo
C.V. verificamos, como já foi afirmado, tende a reproduzir uma sequência gráfica
maior número de unidades frásicas no oral. a «imagem» da cadeia sonora da fala. Nos
No entanto, do total dos 18 textos pedidos dois casos parece pois, poder afirmar-se que
aos alunos, existem 3 situações de ausência não está adquirido o sentido da escrita,

I32
apesar de saberem ((desenhar todas as le- isoladas, os textos sobre tema livre São com-
tras». O texto 3 evidencia uma fase dife- postos sempre por unidades frásicas que
rente em que a palavra gráfica já aparece podem atingir grande complexidade linguís-
a par de grafismos marcados com asterístico. tica e narrativa (texto 7). A escrita do
Ainda permanece a função de desenho, pela grupo JIP revela além do sentido adquirido
combinação dos grafemas e sua disposição do código um certo «prazer» da escrita e
na página. O texto 4 mostra já formas de das sonoridades que lhe correspondem no
escrita adquirida, apesar de ainda associar oral (texto 7: destaque gráfico das paiavras
palavras isoladas a uma unidade frásica. cabeçudo, oreZhudo).
Finalmente o texto 5 revela uma produ- Como já referimos, a metodologia deste
ção sobre a gravura onde a escrita é estru- trabalho não nos permite tirar conclusões
turada em unidades frásicas, com sentido definitivas quanto aos resultados obtidos.
e associada ao tema, revelando além de Podemos contudo afirmar que se os dois
mais, domínio de certas regras do código grupos não apresentam diferenças ao nível
escrito, domínio do espaço da página, dos da produção oral no ano pé-primário, apa-
parágrafos, das maiúsculas. rece uma clivagem muito marcada ao nível
Os erros de ortografia que se detectam da produção escrita no fim do primeiro ano
nestes escritos (como nos textos do outro de escolaridade. Uma análise dos textos
grupo) estão relacionados com o código produzidos revelam aquisição do código es-
oral, reproduzindo com grande fidelidade crito em todos os sujeitos do grupo JIP e
características fonéticas, desde grandes uni- não aquisição desse código nos alunos do
dades sequenciais de fala (texto 2 ) até carac- grupo C . V. exceptcu numa criança. Esta afir-
terísticas segmentais (tá por está, jwnd mação é feita com base na produção estru-
por jornad, felore9 por flores, sedas por turada em frases, nas duas situações de
escadas). Esta análise dos escritos deste escrita propostas.
grupo parece igualmente apontar para um Não se pode deixar de associar a diferen-
processo de ensino da escrita, que parte do ciação sociocultural da análise que propu-
grafema e de associações progressivas dos semos da evolução dos agrafismos))do grupo
grafemas em palavras, existindo por isso C, V. Estes alunos parecem ter de fazer todo
uma fase em que não existe correspondência o «percurso» da «pré-história» do grafismo
semântica para o ((desenho da letra)). durante o primeiro ano de escolaridade,
Como já o afirmámos, o grupo JIP apre- enquanto o outro grupo já fez esse percurso
senta sempre textos com unidades estrutu- no seu meio familiar e social.
radas no texto livre o que pode significar
um processo mais global de ensino em que
o escrito tem, desde o início significado IMPLICAÇÕES PEDAGÓGICAS
por si. Os «erros de ortografia)) revelam
neste grupo a mesma lógica em relação ao Na observação feita nos dois grupos foram
código oral (texto1 6). Pode-se citar os casos evidenciadas diferenças significativas ao ní-
de vaijta por vejo, camiunata por camioneta. vel da oralidade. É possível que o facto de
No mesmo grupo revela-se uma atitude todas elas estarem frequentando o jardim
diferente face aos dois tipos de texto. En- infantil tenha um peso relevante nos com-
quanto a gravura leva a textos com menos portamentos observados a nível da orali-
unidades frásicas e associadas a palavras dade. Par isso, seria interessante fazer-se

133
observação idêntica com crianças que fre- O o acesso as diversas formas de expres-
quentassem o jardim infantil e simultanea- são: plástica, corporal, musical.
mente com outras que não o frequentassem.
Contudo, nestas crianças por nós obser- O segundo ponto de reflexão diz respeito
vadas, e tendo todas elas passado pelo jar- ao período escolar, na 1." fase do qual nos
dim infantil, grandes diferenciações se r e ~ s - parece dever ser investido o máximo poten-
taram no fim do primeiro ano de escolari- cial humano e pedagógico da parte dos pro-
dade primária que vão sobretudo penalizar fessores e de todo o pessoal da escola e,
as do grupo C. V. Significa que elas estão, obviamente, tentar-se a melhor participação
na sua maioria, condenadas ao insucesso, dos pais e o melhor entendimento quanto
por força da sua origem sociocultural, ao período de vida que seus filhos atraves-
mesmo tendo frequentado uma instituição sam.
de educação infantil? Temos como necessário para uma inte-
gração na vida da escola (a qual se irá
O nosso trabalho não nos pode dar res-
repercutir no modo como se farão ou não
posta conclusiva sobre essa questão que aliás
as aprendizagens) uma atenção muito grande
não se incluía nos nossos objectivos.
por parte do professor para com as carac-
Não esqueçamos porém, que a iniciação terísticas quanto a sua personalidade e
da aprendizagem da leitura e da escrita pro-
quanto ao meio sociofamiliar. A atitude do
longa-se pelo 2." ano da l." fase do ensino
professor e a sua interacção com cada crian-
primário, e nós detivemo-nos no final do
ça e com o grupo deve ter sempre implícita
1." ano. No entanto, e não obstante o nú-
uma íntima e profunda compreensão dos ca-
mero limitado d e crianças que acompanhá- sos e das situações e um inabalável respeito
mos, parece-nos que podemos destacar al- por todas as crianças, sem excepção. E, para
guns pontos de reflexão que consideramos além do afecto, uma confiança firme nas
pertinentes. capacidades de todas as crianças que natu-
O primeiro ponto dessa reflexão é res- ralmente animam o seu processo de cresci-
peitante as situações de comunicação oral mento (exceptuando, como é evidente as
vividas pela criança antes do início da esco- crianças com lesões orgânicas).
laridade onde há que ter em conta a fre- Reportando-nos a aprendizagem especí-
quência e a diversidade dessas situações: fica da língua escrita, devemos estar cons-
cientes de que se tem de partir da ponto
o brincar com objectos diversos e com em que a criança se encontra, o que signi-
outras crianças; fica que há que tentar perceber como é
ouvir contar e ouvir ler histórias; que a criança «vê», que conceito é que ela
contar ela própria as suas histórias; tem sobre a escrita. Ou seja, como é que
consciencializar verbalmente todas as ela reage perante um texto escrito ou um
vivências do quotidiano situadas e rela- desenho, o que diz, como é que ela o en-
cionadas no espaço e no tempo. tende, que hipjteses formula, que perguntas
faz. E também como é que ela pega numa
ainda: folha escrita ou desenhada, ou num livro,
que movimentos faz com as mãos, com os
o manuseamento e ((leitura» de ima- dedos, qual a orientação desses movimentos.
gens, de livros e de todas as formas de Mexer no objecto escrita, dizer o que
registo audiovisual; pensa que ali está, ouvir ler, estar junto de

I34
quem lê e do que se lê, são acções a que o tem mantido afastadas da cultura escrita e
professor tem de estar atento para se dar as tem desenvolvido em aprendizagens de
conta do tipo de relação que existe entre áreas culturalmente muito diferentes, o pro-
a criança e o texto escrito, na fase de en- fessor precisa de valorizar esses seus saberes
trada para a escola. e propiciar a criança o enlaçar dessas cul-
Isto parece-nos fundamental para a selec- turas, e a descoberta e o domínio de um
ção das propostas que o professor deverá instrumento - a escrita -que poderá vir a
apresentar. ser para ela um dos veículos de libertação,
Igualmente importante é apercebermo-nos de afirmação e de consciencialização de si
própria e do mundo em que vive.
do grau de interesse e de curiosidade que a
criança expressa perante a descoberta do
texto escrito, e que textos escritos. Certa-
mente textos que tenham significado para
as próprias crianças, que falem da sua rea- ANEXO (TEXTOS)
lidade envolvente ou do seu imaginário.
Na nossa experiência, ao longo de vários
anm, temos verificado que as crianças de
meios sociais diversos quanto a cculturali-
zação)) da língua escrita, se entusiasmam
com o registo dos seus textos orais e sabo-
reiam gostosamente a sua leitura oralizada
pelos adultos e por elas próprias. Conside-
ramos este meio bastante eficaz para a sen-
sibilizaqão A leitura, e ponto de partida para
a descoberta do código da escrita.
Pensamos que o professor poderá apoiar
favoravelmente os seus alunos, sobretudo
aqueles que parecem apresentar dificulda-
des, se ele próprio dominar o conhecimento
de:

a forma OU estádio da relação criança/


íilíngua escrita;
as estratégias que ela procura desenvol-
ver para descobrir o que está escrito;
o tipo de textos que mais despertam o
seu entusiasmo;
a capacidade da criança quanto & aná-
lise fonética da língua falada;
a sua capacidade de análise gráfica do
texto escrito;
a sua capacidade de relacionação dos
signos gráficos e signos fonéticos

Não esquecendo, insistimos, que em rela-


ção às crianças cuja experiência de vida as Texto 1 - Texto livre (CV)

135
Texto 2 - Texto livre (CV)

Texto 3 -Texto livre (cv)

136
............ ............................. ...

.I_.-_ .... ..... -.-.-I .........................................

__ -.-i&&-
I

. .. - ... - . __ ............
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..... , ................... ................... .....

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................ .- ... ... ........................................

.... .... .....................................

.......... .....................................................................................

..................................................................... .
. __ .. ...... - .... .

.....

....

Texto 4-Texto livre (CV)

Texto 5 - Texto sobre gravura (CV)


Texto 6-Texto sobre gravura (JIP)

138
Texto 7 Texto livre (JIP)

139
BIBLIOGRAFIA (3) VYGOTSKY, N. S. (1967) - Thought and
Langage, MIT Press, Mas, 1967.
(4) PIATTELLI - PALMARINI, M. (1979) -
(1) BOURDIEU, P.;PASSERON, J.-C. (1966) - Théories du langage, Théories de l’apprentis-
Revue Françcrise de Sociologie, pp. 235-347. sage, Seuil, Paris, 1979.
(2) PIAGET, J. - Prefácio de Les Relutions (5) BERNSTEIN, B. (1959)-Public Language:
Temporelles duns le Langage de I’Enfant. Some sociologicai implications of a linguistic
E. Ferreiro (1971), Draz, Genève. form. British J . SOC. (lO), 1959, pp. 311-326.

UMA REVISTACOM 12ANOS


AO SERVICO DO
ENSINO, EDUCACAO E CULTURA I

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de protessor para protessor J
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