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Aquisição da linguagem

e aspectos fonológicos e socioculturais


LUZIA KLUNK*

Resumo: As teorias acerca das formas de aquisição da linguagem referem que ela
depende do desenvolvimento psicológico e neural da criança, bem como da relação
entre o adulto e a criança e do contexto sociocultural em que vive. O objetivo da
pesquisa é analisar a aquisição da linguagem e os aspectos socioculturais nela
intrínsecos, bem como seu processo fonológico. A pesquisa foi realizada através
de um levantamento bibliográfico, a partir do qual foram criticamente analisados
elementos teóricos que abordam sobre o tema de pesquisa e por meio da
observação de uma criança até completar 2 anos e 2 meses, concluindo-se que são
diversas as influências que compõem a construção da linguagem e que é um
processo de aprendizagem que envolve relações socioculturais.
Palavras-chave: Aquisição da linguagem; Desenvolvimento neural e fonológico;
Aspectos socioculturais.
Abstract: The theories about the language acquisition forms refer to the fact that
it depends on the child’s psychological and neural development, as well as the
relationship between the adult and the child and the socio-cultural context in which
it lives. The aim of the research is to analyze the language acquisition and the
sociocultural aspects intrinsic to it, as well as its phonological process. The
research was carried out through a bibliographical survey, from which theoretical
elements that approach on the subject of research were critically analyzed and
through the observation of a child until completing 2 years and 2 months,
concluding that there are several influences which make up the language
construction and also that it is a learning process involving sociocultural relations.
Key words: Language acquisition; Neural and phonological development;
Sociocultural aspects.

*
LUZIA KLUNK é doutoranda em Ambiente e Desenvolvimento pela UNIVATES, Licenciada
em Letras pela UNINTER.

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1 Introdução As teorias acerca das formas de aquisição
da linguagem referem que ela depende do
A linguagem é a forma de expressarmos desenvolvimento psicológico e neural da
sentimentos, vontades, opiniões, enfim, é criança, bem como da relação entre o
o cerne do desenvolvimento humano, adulto e a criança e do contexto
imprescindível para as relações sociocultural em que vive. São as diversas
socioculturais. O tema desse artigo é a influências que compõem a construção da
aquisição da linguagem e os aspectos linguagem.
socioculturais. A partir disso,
problematiza-se como se dá a aquisição O tema da pesquisa contribui para as
da linguagem e quais as influências que reflexões sobre a aquisição da linguagem,
interferem nesse processo. Como seria as influências linguísticas e os seus
possível a língua modificar sem uma aspectos socioculturais. Trata-se de um
motivação de ordem social, uma vez que tema relevante na compreensão da
a língua é necessariamente social? complexidade da comunicação e sua
formação. Além disso, há o interesse
O objetivo geral do trabalho é analisar a pessoal da autora em compreender a
aquisição da linguagem e seus aspectos aquisição da linguagem de sua filha,
socioculturais, bem como seu processo criança observada na presente pesquisa.
fonológico. Os objetivos específicos são
O presente artigo trata, primeiramente,
estudar a interferência de aspectos
sobre a aquisição da linguagem em
socioculturais na aquisição e
algumas das principais teorias mundiais
desenvolvimento da linguagem; perceber,
com enfoques e períodos históricos
por meio da observação de uma criança os
distintos, que contribuem para a
processos fonológicos e neurais que
compreensão da observação realizada na
compreendem a aprendizagem e como as
pesquisa. Após, analisaram-se os aspectos
relações sociais a influenciam.
socioculturais que influenciam na
A metodologia foi a pesquisa aquisição da linguagem. Por fim,
bibliográfica, compreendida pela coleta percebeu-se que a aquisição da linguagem
de informações adquiridas por meio de é influenciada por aspectos sociais e que
livros e artigos. Após a leitura e a linguagem é vital para a interação
organização dos dados, procedeu-se na social. Ainda estudaram-se os processos
escrita do trabalho. A pesquisa descritiva fonológicos mais comuns na aquisição da
consistiu na observação da aquisição da linguagem. Por último, apresentam-se os
linguagem por uma criança até completar resultados, em que se realiza a análise dos
2 anos e 2 meses. dados empíricos com base no referencial
teórico construído.
A linguagem é considerada a primeira 2 Aquisição da linguagem e os aspectos
forma de socialização da criança, é socioculturais
através dela que se pode expressar
vontades, opiniões e trocar informações 2.1 Aquisição da linguagem
entre sujeitos. Ela pode se manifestar de A linguagem é um componente muito
várias maneiras: por meio da linguagem importante na vida humana, pois é através
oral, da linguagem não verbal, da dela que se pode expressar vontades,
linguagem escrita, etc. Portanto, faz parte opiniões e trocar informações entre
do conhecimento humano a comunicação sujeitos. A linguagem pode se manifestar
e a linguagem é vital para a interação de várias maneiras: por meio da
social. linguagem oral, da linguagem não verbal,

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da linguagem escrita, entre outras percebe o universo que a cerca,
(DALLA VALLE, 2011). Dessa forma, conquistando-o. O segundo estágio é o
as manifestações humanas são formas de pré-operatório, constituído da primeira
linguagem, pois objetivam comunicar infância, dos dois a sete anos de idade, em
algo. Assim, os símbolos e desenhos que aparece a linguagem, acarretando
também constituem elementos da modificações nos aspectos intelectual e
linguagem. afetivo-social, de interação social. O
terceiro estágio é o período das operações
A linguagem é considerada a primeira concretas, da infância propriamente dita,
forma de socialização da criança, sendo ou seja, dos sete aos onze ou doze anos de
efetuada explicitamente pelos pais através idade, em que a criança apresenta a
de instruções verbais durante atividades capacidade de reflexão, que é exercida a
diárias, assim como através de histórias partir de situações concretas no seu
que expressam valores culturais. A desenvolvimento mental, passando a
socialização através da linguagem pode organizar seus próprios valores morais. O
ocorrer também de forma implícita, por quarto estágio, por sua vez, é o período
meio de participação em interações das operações formais, que ocorre na
verbais que têm marcações sutis de papéis adolescência, a partir dos 12 anos de
e status (ELY e GLEASON, 1996). idade, em que ocorre a passagem do
Portanto, a comunicação e a linguagem pensamento concreto para o pensamento
fazem parte do conhecimento humano e formal, abstrato. Nessa fase, o
são vitais para a interação social e para o adolescente é capaz de realizar operações
desenvolvimento. no plano das ideias, sem necessidade de
Diante disso, questiona-se como se dá a referenciais concretos, bem como de lidar
aquisição da linguagem e quais as com conceitos como liberdade e justiça,
influencias que interferem nesse por exemplo, e de formular conclusões e
processo. Nesse aspecto, vários autores refletir espontaneamente
refletiram sobre o funcionamento do (GONÇALVES, 2007). Esta pesquisa se
pensamento humano no que diz respeito deu nos estágios sensório-motor e parte
ao desenvolvimento da linguagem, entre do pré-operatório, até os dois anos e dois
eles Piaget e Vygotsky. meses da criança observada.

Para Piaget (1983) o conhecimento é uma Piaget ainda refere que o aprendizado
contínua construção que ocorre por meio passa pelas fases da equilibração,
do contato da criança com os objetos de adaptação, acomodação, assimilação e
estudo, ou seja, com a interação entre desequilíbrio. “A assimilação é o
sujeito e objeto. Cada nova experiência processo cognitivo pelo qual uma pessoa
pode gerar muitos conhecimentos, como integra (classifica) um novo dado
um ciclo contínuo. A relação ativa da perceptual, motor ou conceitual às
pessoa, portanto, faz com que aprenda estruturas cognitivas prévias”
como mundo e, ao agir sobre os objetos, (WADSWORTH, 2003, p. 45). Naspolini
tanto os objetos quanto os sujeitos se (1996, p. 184) explica que a acomodação
transformam. é o “processo de modificação do sujeito”
a partir de um novo conhecimento que
Para o autor, os sujeitos vivenciam quatro altera suas estruturas cognitivas prévias.
etapas de desenvolvimento em sequência. A mente cria novas estruturas para que
O primeiro estágio é o sensório-motor, possa compreender novas informações.
que se constitui no período entre zero e No impasse do desequilíbrio o sujeito
dois anos de idade da criança, em que ela cresce e equilibra seus conhecimentos

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novamente, sendo um ciclo sem fim, num acústico-auditiva. Os tons produzidos
eterno aprender (DALLA VALLE, 2011). pelos bebês começam a parecer-se com os
contornos de entonação produzidos pelos
Vygotsky (1984) desenvolve a teoria
adultos e eles podem distinguir sons de
histórico-social ou histórico-crítica, em
sua língua e os sons que dela não fazem
que afirma ser determinante para o
parte.
desenvolvimento humano a relação dos
sujeitos entre si, destacando a função da Segue-se pela fase holofrástica,
linguagem nesse contexto. O autor refere aproximadamente após o primeiro ano,
ainda que a criança possui a variando de criança para criança, na qual
aprendizagem real referente ao que já é aprendem que os sons se relacionam a
capaz de fazer sozinha e, nos aspectos em significados e produzem suas primeiras
que depende de ajuda, possui um “palavras”, que correspondem a “frases”.
desenvolvimento potencial. No caminho As palavras passam a ser usadas para
entre uma área e a outra está a zona de comunicar uma variedade de ideias,
desenvolvimento proximal (ZDP), em emoções e conhecimento social, para
que ocorre a mediação de um adulto com denominar coisas ou para manifestar uma
a intenção de ampliar os conceitos e a atividade. A partir dos dois anos de idade
linguagem da criança. (VYGOSTSKY, aproximadamente, a criança começa a
1988). proferir expressões de duas palavras,
Diante disso, percebe-se que, para Piaget porém sem marcas sintáticas ou
é a etapa do desenvolvimento da criança morfológicas, isto é, não há flexão de
que determina que ela internalize ou não número, nem de pessoa, nem de tempo,
um dado que vem de fora, pois o etc. A seguir, tem-se a produção de
pensamento e as estruturas lógicas é que palavras que transmitem a mensagem
fazem com que o sujeito seja capaz de principal, palavras de conteúdo. Muitas
compreendê-lo (linguagem egocêntrica). vezes as crianças parecem estar lendo
Para Vygotsky o papel do outro, exercido uma mensagem dos Correios e
pela linguagem, é fundamental para a Telégrafos, razão pela qual tais produções
construção da consciência (linguagem se denominam discurso telegráfico. Por
social). último são adquiridas todas as outras
flexões, juntamente com as regras da
Alguns linguistas dividem as fases de sintaxe, e as produções orais das crianças
aquisição da língua em pré-linguística e acabam por ser semelhantes às
linguística. Referem que os primeiros produzidas por adultos (FROMKIN e
choros e sons são controlados por RODMAN, 1993).
estímulos, respostas involuntárias da
criança à fome, ao desconforto ou a Para Chomsky (1973) a linguagem teria
desejos. “Do ponto de vista do origem em mecanismos inatos,
desenvolvimento da fala, o choro é argumentando que a fala dos adultos
importante porque o bebê utiliza a laringe apresentada às crianças é mal formada,
e começa a aprender a controlar sua limitada e contém hesitações, e, portanto,
respiração, sendo esse controle a base da a criança não poderia aprender a
fala” (GODOY e SENNA, 2011, p. 40 e linguagem a partir de fontes externas. O
41). Por volta do sexto mês inicia-se a autor (1965) postula que a criança possui
fase do balbucio, na qual produzem-se um dispositivo para a aquisição da língua,
sons que incluem aqueles parecidos com de maneira que consegue elaborar uma
a linguagem humana, mas não dependem gramática implícita e internalizada com
do fornecimento de dados de informação as expressões que ouve, formulando suas

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próprias orações. Essa mesma gramática na primeira corrente estão situados
permite à criança inventar novas Phipplips, Snow, Piaget (sendo que este
expressões da língua nunca ouvidas antes. argumenta que o desenvolvimento
depende do amadurecimento da criança);
Em resposta aos inatistas, os estudiosos
e na segunda corrente estão Chomsky e
da teoria da interação social passaram a
Vygotsky.
realizar os primeiros estudos sistemáticos
sobre a fala materna apresentada às Algumas teorias acerca da origem da
crianças. Eles afirmavam que os pais, linguagem são: o Behaviorismo,
especialmente as mães, apresentam uma desenvolvido por Skinner, que afirma que
forma especial de falar a seus filhos, a aquisição acontece por meio de estímulo
forma essa caracterizada por um léxico e e resposta por meio da exposição ao meio;
estruturas sintáticas diferentes daquela e o Inatismo, de Chomsky, que indica que
utilizada na fala com os adultos, com a linguagem é inata e que o ambiente
procedimentos facilitadores da oferece um input linguístico (GOMES,
compreensão, tendem a enfatizar as 2012). Já o construtivista Piaget
palavras essenciais numa frase, diminuir desenvolve o Cognitivismo, em que a
a velocidade da fala e repetir o que aquisição depende da inteligência e é o
disseram, caso a criança não tenha desenvolvimento da capacidade genética,
entendido. Trata-se de uma fala separando os estágios de
sintaticamente mais simples, com desenvolvimento, que ocorrem por meio
vocabulário e complexidade da assimilação e acomodação. O
preposicional limitados; restrita ao ‘aqui e Sociointeracionismo de Vygostky, por
agora’, conjugada no tempo presente e sua vez, refere que o desenvolvimento da
referente a objetos visíveis e comentários linguagem se dá por meio da interação
sobre atividades contínuas. Isso criança/adulto.
demonstra que as mães, de uma forma
geral, utilizam uma fala simples, Essas principais teorias mundiais com
repetitiva, gramatical e semanticamente enfoques e períodos históricos distintos
ajustada ao nível de compreensão e são relevantes para a compreensão da
interesse da criança. (PHILLIPS, 1973; observação realizada na pesquisa. Deve-
SNOW, 1972; SNOW, 1977). se considerar que, além da competência
gramatical, entendida “como a
Essas “propostas sociointeracionistas capacidade de gerar seqüências
afirmam que a linguagem é atividade lingüísticas gramaticais, isto é,
constitutiva do conhecimento do mundo consideradas como da língua em questão”
pela criança. A linguagem é o espaço em (TRAVAGLIA, 2003, p. 97) a
que a criança se constrói como sujeito; o competência comunicativa – “a
conhecimento do mundo e do outro é, na capacidade do usuário de empregar
linguagem, segmentado e incorporado” adequadamente a língua nas diversas
(SCARPA, 2001, p. 11). situações de comunicação”
Em resumo, o aspecto que diferencia a (TRAVAGLIA, 2003, p. 17) também
teoria inatista da interativa funcional é a precisa ser desenvolvida, e isso é possível
forma de aprendizado, sendo que a na interação social.
primeira defende que a criança elabora 2.2 Aspectos sociais da linguagem
uma gramática própria, internalizada, e a
segunda argumenta que os fatores Além dos processos interacionais mais
externos são determinantes para a restritos e individuais entre o adulto e a
aquisição da linguagem. Percebe-se que criança e o desenvolvimento das suas

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capacidades internalizadas, os fatores econômica, escolaridade, idade,
socioculturais influenciam na aquisição profissão, crenças e valores (SEVERO,
da linguagem. Assim, importante 2009). Bakhtin analisou, portanto, as
ressaltar o contexto sociocultural em que funções sociocomunicativas da
os indivíduos vivem. A variação entre linguagem humana.
contextos é marcada pelos diferentes
Diante disso, a partir da premissa de que
modelos de uso da linguagem que o meio
a aprendizagem da língua extrapola a
social oferece. Estes modelos são capacidade do conhecimento da
apresentados segundo os modos de vida e
gramática para o necessário
os tipos de interações típicas do meio
conhecimento do seu uso social, o
social dos indivíduos, ou seja,
contexto em que a criança vive é
correspondem a seus hábitos e
fundamental na formação da sua
necessidades adaptativas.
linguagem.
Assim, além de aprender a gramática, a A partir disso questiona-se, como seria
criança vai aprender como se comportar possível a língua modificar sem uma
no seu contexto cultural, o uso social motivação de ordem social, uma vez que
adequado da língua, que consiste na a língua é necessariamente social? A
competência comunicativa. O meio em aquisição da linguagem é influenciada
que a criança vive interferirá na sua por aspectos sociais e a linguagem é vital
linguagem, pois é a experiência social, para a interação social.
além da psicologia e da maturidade
Por fim, constata-se que as relações e os
intelectual, que compõe seu aprendizado.
contextos sociais contribuem para a
A experiência social da criança fará com
aquisição de desenvolvimento da
que ela desenvolva a capacidade de
linguagem, influenciando-a. É necessário
adaptação e interação.
empregar adequadamente a língua nas
Bakhtin vê as motivações para a mudança diversas situações de comunicação além
da língua como sendo de cunho do conhecimento da gramática.
totalmente social, material e histórico. 2.3 Processo fonológico na aquisição da
Segundo o autor diferentes esferas sociais linguagem
constituem diferentes formas de
A aquisição da linguagem ocorre pouco a
comunicação verbal, que se alteram e se
pouco em grupos de segmentos e em uma
produzem mútua e historicamente
determinada ordem, em virtude de
(SEVERO, 2009). Para Bakhtin, a língua
questões como vozeamento e ponto e
muda porque diferentes significados
sociais são atribuídos aos elementos modo de articulação. Segundo Bonilha
(2004) primeiramente são produzidas as
linguísticos, fruto das relações
vogais, sendo a letra “a” a primeira, pois
(conflituosas) existentes entre diferentes
a língua permanece em repouso na parte
grupos sociais. Por esses motivos, sua
mais baixa da boca, o que torna sua
abordagem pode ser identificada como
produção mais simples. Por serem o
sociológica/marxista. Nesse caso, o
núcleo silábico, as vogais dificilmente
estudo da mudança deve levar em conta
sofrem apagamento quando a criança
um olhar amplo sobre o funcionamento da
pronuncia a palavra.
sociedade atual, considerando a tensão
existente entre os diversos grupos sociais. As primeiras consoantes adquiridas pelas
A partir desse pensamento, torna-se parte crianças são as plosivas e as nasais, o que
do processo a análise de questões de ocorre antes dos dois anos de idade. Com
gênero, etnia, raça, religião, condição relação às plosivas, as crianças adquirem

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primeiro as labiais, que são aquelas que 3 Metodologia
envolvem o movimento dos lábios, depois
A pesquisa foi realizada através de um
as coronais, cujo movimento é da corona
levantamento bibliográfico, a partir do
da língua, e por último as dorsais, cujo
qual foram criticamente analisados
movimento ocorre no dorso da língua. A
elementos teóricos que abordam sobre o
observação visual da pronuncia das
tema de pesquisa. Portanto, para obtenção
palavras é fator determinante para essa
de informações foi realizada uma
ordem de aquisição. Com relação às
pesquisa bibliográfica, entendida por Gil
nasais, a aquisição da bilabial e da coronal
(2002) como um tipo de pesquisa que se
acontece antes da aquisição da dorsal
caracteriza por um levantamento
(AZEVEDO, 1994; LAMPRECHT,
delineado pela busca das fontes, leitura do
1990; MEZZOMO, 2004; TEIXEIRA,
material, fichamento, organização lógica
1985).
do assunto e redação do texto.
Após, as crianças adquirem os segmentos
fricativos labiodentais (/v/ e /f/) e Além disso, foi realizada pesquisa
coronais (/s, z, ʃ, ʒ/). As líquidas (/l, ʎ, ɾ, descritiva, que consistiu na observação e
r/) são os últimos segmentos adquiridos análise da aquisição da linguagem de uma
pelas crianças no processo de aquisição criança até completar 2 anos e 2 meses.
da linguagem. As líquidas laterais /l/ e /ʎ/ Foi possível a observação direta e
são adquiridas primeiro, geralmente entre aprofundada por se tratar da filha da
2 e 3 anos de idade, e, mais de 6 meses pesquisadora. Segundo Becker (1999) a
após, as não laterais /ɾ/ e /r/ observação permite ao pesquisador o
(LAMPRECHT, 1993). A lateral /l/ é a conhecimento de uma ampla gama de
consoante que substitui todas as outras dados, inclusive aqueles cuja existência o
líquidas em casos de processos investigador pode não ter previsto quando
fonológicos de substituição. Embora começou a estudar.
exista a semivocalização de /l/ por /w/, a O método de abordagem é a pesquisa
mais frequente é a troca de /l/ por /j/, em qualitativa, no qual a interpretação dos
virtude da proximidade de articulação. A fenômenos e a atribuição de significados
última líquida a ser adquira é o /ɾ/, sendo são básicas. Yin (2010) destaca que é um
dominada a partir dos 4 anos e 2 meses de método circunscrito a poucas unidades e
idade aproximadamente. Quando esse tem caráter de aprofundamento e
segmento não é realizado pode ocorrer a detalhamento. Foram registrados alguns
substituição por /l/, a não realização e a marcos de fala da criança e, após,
semivocalização (MIRANDA, 1996). procedeu-se na organização dos dados e
Com relação a aquisição da sílaba, aquela análise, servindo a referencial composto a
constituída por consoante seguida de partir do material bibliográfico como um
vogal é a mais comum em português e é a fio condutor.
primeira a ser adquirida. As crianças 4 Resultados
fazem uso de diversos processos quando
elas não conseguem produzir a palavra, A observação de uma criança até
utilizando-se de mecanismos de completar 2 anos e 2 meses permitiu a
simplificação. Esse processo é complexo constatação da passagem pelos estágio
e demorado e as crianças não sensório-motor e pré-operatório. Além
necessariamente dominam os segmentos disso, percebeu-se a questão fonológica.
e as sílabas na mesma idade. O Quadro 1 retrata alguns registros da fala
da criança no período sensório-motor,
entre 0 a 18 meses, em que estão presentes

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choros, gestos e a noção de permanência
dos objetos.

Quadro 1 – Falas no período sensório-motor


SENSÓRIO-MOTOR
IDADE FALA
1 ano e 1 mês mamam / papai
1 ano e 3 mamãe
meses
1 ano e 5 vovó / vovô / nenê / Ana / mão / vem / pé / passarinho = pípi
meses
1 ano e 6 conta até 4 / Débi = nome da boneca / mar / vovô Teuto = Celso / Léo e Mi = primos /
meses popó = galinha

Fonte: Da autora, com base nas observações da pesquisa.

O período pré-operatório, entre 18 meses a 4 anos, caracteriza-se pela socialização da ação,


interiorização da palavra, aparição do pensamento, formação de frases, egocentrismo, em
que a criança não concebe uma realidade da qual não faça parte. O Quadro 2 apresenta
registros de algumas falas desse período proferidas pela criança nas observações realizadas.

Quadro 2 – Falas no período pré-operatório


PRÉ-OPERATÓRIO
1 ano e 7 verbos não conjugados / nome das pessoas / Nanho nu mar = Vamos no mar / Esse, papai!
meses Esse, vovó! = pedindo algo / Péu da mamãe = chapéu da mamãe / repete palavras
pronunciadas pelos adultos

1 ano e 9 canta músicas / imita entonação e falas rápidas com balbucio / forma frases / pronomes
meses possesivos / verbos conjugados

1 ano e sempre dizia Ana faz, Ana nana, Ana pega / agora diz Eu faz, Eu nana, Eu pega / facilidade
11 meses em memorizar uma palavra nova associada a uma imagem / canta diversas músicas / imitação
de entonação e pronúncia / fala P no lugar de F

2 anos amplo vocabulário / verbos conjugados em terceira pessoa / reconhece letras / fala os números
/ canta diversas músicas / refere-se ao passado, presente e futuro / egocentrismo = É da Ana!
/ sons: F, S=T; Z=D / produz entonação correspondente
2 anos e 2 conversa produzindo frases e interagindo / presta atenção a todo tipo de conversa / cria
meses palavras novas brincando com os sons

Fonte: Da autora, com base nas observações da pesquisa.

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Com relação a análise do processo fonológico na aquisição da linguagem, percebeu-se que
na maioria das pronúncias foi comum a ocorrência de omissão, omissão de sílaba e
alongamento da vogal, conforme Quadro 3.

Quadro 3 – Análise do processo fonológico na aquisição da linguagem


IDADE TRANSCRIÇÃO FONÉTICA
1 ano e 5 meses Não – [na’não]
Plets – [pɛ]
Sapato – [pá’to]
Umbigo – [bí]
Tchau – [tá:u]
1 ano e 6 meses Bola – [bó]
Peixe – [pe’pe]
Dindo – [di]
1 ano e 11 meses Brócolis - [bó’ki]
Xixi - [ti’tí]
Livro – [bi’bu]
2 anos Retângulo – [pe’tãn’bo]
O que que - [te’te]
Fazendo - [ta’den’do]
Rosa – [ɔ’za]
Carro - [ka’o:]
Lágrima – [lá’ma]
Óculos – [lɔ’cus]
Igreja – [li’g’e’da]
Procurar – [ku’ku’lá]
Ônibus - [o’mu]
Plantar – [pãn’ta]
Cobalt - [ka’bout’]
Ajuda – [a’du’da]
Fonte: Da autora, com base nas observações da pesquisa.

Portanto, houve omissão de sílaba, por frequente foi a omissão, que ocorreu em
exemplo na pronúncia de lágrima como Plets, umbigo, bola, ônibus e plantar.
/lá’ma/, epêntese quando ao dizer igreja Até 1 ano e 11 meses a criança observada
falou /lig’e’da/. Houve alongamento nas utilizou prioritariamente as vogais e as
palavras carro e tchau; e substituição de consoantes plosivas e nasais, ainda
consoante /j/ por /d/ em ajuda. O mais

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apresentando dificuldade em articular os será capaz de fazer sozinha depois, como
segmentos fricativos labiodentais (/v/ e sugere a teoria Interacionista de
/f/) e coronais (/s, z, ʃ, ʒ/). Já com 2 anos Vygotsky. Assim, além da psicologia e da
iniciou a articulação desses segmentos e maturidade intelectual da criança, a sua
dos líquidos lateriais, porém ainda não experiência social integra a formação da
pronunciando os líquidos não lateriais. sua linguagem.
Geralmente a última líquida a ser adquira
Com relação ao processo fonológico na
é o /ɾ/, podendo ocorrer a substituição por
aquisição da linguagem, foi comum a
/l/, a não realização e a semivocalização
ocorrência de omissão, omissão de sílaba
(MIRANDA, 1996). No caso da criança
e alongamento da vogal, comprovando-se
observada foi possível verificar que ela
que as crianças fazem uso de diversos
não realizou esta consoante até a idade em
processos quando elas não conseguem
que ocorreu a pesquisa. Percebeu-se,
produzir a palavra, utilizando-se de
dessa forma, que a criança articulou as
mecanismos de simplificação. Dessa
vogais e consoantes, construindo a
percepção na aquisição da linguagem pela
comunicação no decorrer dos estágios de
criança faz-se uma aproximação com o
desenvolvimento, observando a fala e o
que prevê os Parâmetros Curriculares
seu meio. Seguiu-se os estágios de
Nacionais (BRASIL, 1997), quando
aquisição da linguagem de forma muito
referem que os erros passam a ser
aproximada ao que a fundamentação
entendidos como estratégias de
teórica apresenta.
aprendizagem de novos conhecimentos
5 Considerações finais pelos alunos. Assim, conclui-se que é
fundamental o estímulo da capacidade
Embora a observação tenha se dado de linguística e comunicativa das crianças e
forma diária e aprofundada, deve-se levar dos alunos.
em conta ser apenas uma informante,
impossibilitando a generalização sobre Destacou-se também na pesquisa outro
dados. Apesar disso, é possível apontar aspecto tratado nos Parâmetros
algumas considerações. Observou-se que Curriculares Nacionais (BRASIL, 1997),
a aquisição da linguagem da criança no que se refere à inferência de que a
aproxima-se mais da teoria língua é um sistema de signos histórico e
sociointeracionista e que está relacionada social. Portanto, aprendê-la é aprender
ao que o adulto estimula e aos fatores não só as palavras, mas também os seus
sociais e culturais. significados culturais e os modos pelos
quais as pessoas entendem e interpretam
A aquisição acontece por meio de a realidade e a si mesmas.
estímulo e resposta o que se dá pela
exposição ao meio, o que já defendia o
Behaviorismo de Skinner. Percebeu-se Referências
que a aquisição da linguagem se dá em
AZEVEDO, C. Aquisição normal e com desvios
estágios de desenvolvimento, que, nas da fonologia do português: contrastes de
observações com a criança nesta sonoridade e de ponto de articulação. 1994.
pesquisa, ficaram aproximados às fases Dissertação (Mestrado em Letras) – Instituto de
indicadas pelos autores. Percebeu-se a Letras e Artes, Pontifícia Universidade Católica
ocorrência de um nível em que a criança do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1994.
consegue solucionar sozinha um BECKER, Howard S. Métodos de Pesquisa em
problema e um nível em que não Ciências Sociais. São Paulo: Hucitec, 1999.
consegue solucioná-lo, necessitando do BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais,
estímulo e mediação de um adulto, o que 1997. Disponível em:

99
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