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4 de Outubro de 2022

Teoria do Duplo Estatuto

Publicado por Victor Emanuel C Leite há 2 anos  10,1K visualizações

A Teoria do Duplo Estatuto surgiu a partir de uma decisão do Supremo


Tribunal Federal, o ministro Gilmar Mendes, na sessão plenária de 22
de novembro de 2006, RE n. 466.343-1/SP, em que se discutiu a prisão
civil por dívida nos contratos de alienação fiduciária em garantia, e que
foi relator o Ministro Cezar Peluso, em voto-vista, afirmou que os
Tratados de Direitos Humanos teriam posição intermediária, abaixo da
Constituição, mas acima da legislação infraconstitucional, uma espécie
de supralegalidade.

Com o advento da Emenda Constitucional nº 45/2004, que emprestou


o caráter de Emenda aos referidos Tratados, a discussão não mais se
põe; todavia, restam os demais tratados, que seriam equiparados às
normas infraconstitucionais. Entendemos que a consideração dos
Ministros do STF acima mencionado, poderia servir para os demais
tratados. Assim, deveriam ter um tratamento diferenciado e não ser
equiparados às normas infraconstitucionais, uma vez que a nossa
Constituição Federal, talvez mesmo na esteira de consideração da
supralegalidade. A superioridade dos tratados em geral, sobre a lei
interna, parece ser uma tendência do mundo moderno, além do que
estaria mais de acordo com os diversos dispositivos constitucionais.

A prisão do depositário infiel é prevista pela nossa Constituição


Federal, contudo, era contrária às disposições da Convenção
Americana de Direitos Humanos, ratificada e incorporada ao
ordenamento jurídico brasileiro. O STF buscou resolver tal impasse,
por meio de tal decisão, a qual se tornou paradigmática para a
interpretação e aplicação dos Tratados Internacionais de Direitos
Humanos.

O art. 7º (nº 7) da Convenção Americana sobre Direitos Humanos -


Pacto de San José da Costa Rica, de 1969, dispõe desta forma:

"Ninguém deve ser detido por dívidas. Este princípio não


limita os mandados de autoridade judiciária competente
expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação
alimentar."

Com a adesão do Brasil a essa convenção, assim como ao Pacto


Internacional dos Direitos Civis e Políticos 1, sem qualquer reserva,
ambos no ano de 1992, iniciou-se um amplo debate sobre a
possibilidade de revogação, por tais diplomas internacionais, da parte
final do inciso LXVII do art. 5º da Constituição brasileira de 1988,
especificamente, da expressão"depositário infiel", e, por consequência,
de toda a legislação infraconstitucional que nele possui fundamento
direto ou indireto.

A decisão proferida no RE 466.343/SP, foi posteriormente ratificada


pela Súmula Vinculante nº 25 do STF: “É ilícita a prisão civil de
depositário infiel, qualquer que seja a modalidade de depósito.”

Acerca do tema:
(...) diante do inequívoco caráter especial dos tratados
internacionais que cuidam da proteção dos direitos humanos,
não é difícil entender que a sua internalização no
ordenamento jurídico, por meio do procedimento de
ratificação previsto na CF/1988, tem o condão de paralisar a
eficácia jurídica de toda e qualquer disciplina normativa
infraconstitucional com ela conflitante. Nesse sentido, é
possível concluir que, diante da supremacia da CF/1988 sobre
os atos normativos internacionais, a previsão constitucional
da prisão civil do depositário infiel (art. 5º, LXVII) não foi
revogada (...), mas deixou de ter aplicabilidade diante do
efeito paralisante desses tratados em relação à legislação
infraconstitucional que disciplina a matéria (...). Tendo em
vista o caráter supralegal desses diplomas normativos
internacionais, a legislação infraconstitucional posterior que
com eles seja conflitante também tem sua eficácia paralisada.
(...) Enfim, desde a adesão do Brasil, no ano de 1992, ao
PIDCP (art. 11) e à CADH — Pacto de São José da Costa Rica
(art. 7º, 7), não há base legal para aplicação da parte final do
art. 5º, LXVII, da CF/1988, ou seja, para a prisão civil do
depositário infiel.[RE 466.343, rel. min. Cezar Peluso,
voto do min. Gilmar Mendes, P, j. 3-12-2008, DJE 104 de 5-
6-2009, Tema 60.]

A “Teoria do Duplo Estatuto” dos tratados de Direitos Humanos,


adotada pelo Supremo Tribunal Federal e por parte da doutrina,
consiste em conferir natureza constitucional aos tratados e convenções
internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada
Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos
dos respectivos membros, e natureza supralegal a todos os demais,
anteriores ou posteriores à emenda constitucional nº 45/2004 que
estabeleceu o rito do art. 5º , § 3º , e que tenham sido aprovados pelo
rito comum.
Assim, o Tratado Internacional que verse sobre Direitos Humanos que
não for aprovado pelo rito qualificado, reconhece-se a natureza de
norma supralegal, inferior a Constituição, mas acima das leis
infraconstitucionais, pouco importando se a incorporação ao
ordenamento pátrio se deu antes ou depois da EC nº 45/2004.

Isto é, a teoria do duplo estatuto entende que os tratados


internacionais sobre direitos humanos, não ratificados em votação
semelhante à das emendas constitucionais (artigo 5º § 3º, da CRFB),
não possuem status igual ao dos dispositivos previstos na lei maior,
embora estejam acima das leis ordinárias. Em outras palavras, com
base nessa teoria, a presunção de não culpabilidade prevista na CRFB
prevalece sobre as disposições da Convenção Americana de Direitos
Humanos, as quais possuem status inferior.

Os tratados de direitos que vierem a ser incorporados no Brasil podem


ter valor constitucional, se seguirem o parágrafo 3º, do artigo 5º, da
CF, inserido pela Emenda Constitucional 45, que diz: "Os tratados e
convenções internacionais sobre direitos humanos que forem
aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por
três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às
emendas constitucionais".

Por outro lado, os tratados já vigentes no Brasil possuem valor


supralegal: tese do ministro Gilmar Mendes (RE 466.343-SP), que foi
reiterada no HC 90.172-SP, 2ª Turma, votação unânime, j. 05 de junho
de 2007 e ratificada no histórico julgamento do dia 03 de dezembro de
2008.

O Direito Constitucional, depois de 1988, conta com relações


diferenciadas frente ao Direito Internacional dos Direitos Humanos. A
visão da supralegalidade deste último encontra amparo em vários
dispositivos constitucionais (CF, artigo 4º, artigo 5º, parágrafo 2º, e
parágrafo 3º e 4º do mesmo artigo 5º).
Exemplo de norma supralegal no ordenamento jurídico brasileiro é a
vedação da prisão do depositário infiel (art. 5º, inc. LXVII, da CF/88).
Essa hierarquia com a manifestação do STF, em relação à prisão civil
do depositário infiel era vedada pelo Pacto de San José da Costa Rica.

Acerca do tema, o STF firmou o entendimento jurisprudencial:

"Esse caráter supralegal do tratado devidamente ratificado e


internalizado na ordem jurídica brasileira - porém não
submetido ao processo legislativo estipulado pelo artigo 5º, §
3º, da Constituição Federal - foi reafirmado pela edição da
Súmula Vinculante 25, segundo a qual 'é ilícita a prisão civil
de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade do
depósito'. Tal verbete sumular consolidou o entendimento
deste tribunal de que o artigo 7º, item 7, da Convenção
Americana de Direitos Humanos teria ingressado no sistema
jurídico nacional com status supralegal, inferior à
Constituição Federal, mas superior à legislação interna, a
qual não mais produziria qualquer efeito naquilo que
conflitasse com a sua disposição de vedar a prisão civil do
depositário infiel. Tratados e convenções internacionais com
conteúdo de direitos humanos, uma vez ratificados e
internalizados, ao mesmo passo em que criam diretamente
direitos para os indivíduos, operam a supressão de efeitos de
outros atos estatais infraconstitucionais que se contrapõem à
sua plena efetivação."

(ADI 5240, Relator Ministro Luiz Fux, Tribunal Pleno,


julgamento em 20.8.2015, DJe de 1.2.2016).

A teoria do duplo estatuto dos tratados de direitos humanos conferido


pelo STF, para melhor entendimento, estabelece uma tríplice
hierarquia para os tratados internacionais incorporados no direito
pátrio, podendo ter, a depender do caso, força normativa de:
Regra: status constitucional - Caso seja um tratado sobre
direitos humanos votado pelo rito de emendas constitucionais
(3/5 dos votos, em 2 turnos de votação em cada Casa - artigo 5º §
3º, da CRFB). Essa possibilidade só passou a existir com a EC nº
45/04. Os Tratados Internacionais de Direitos Humanos só
podem ser considerados equivalentes às emendas constitucionais
se forem incorporados pelo quórum qualificado;

Exceção: status supralegal - tratado sobre direitos humanos


não votado pelo rito de emendas constitucionais, mas pelo rito
ordinário – maioria simples (art. 47, CF/88);

Exceção: status de lei ordinária - tratado que não verse sobre


direitos humanos - rito comum.

Por derradeiro, os Tratados de Direitos Humanos são fundamentais


para a universalização de tais direitos. Contudo, sabemos que o Direito
Internacional necessita da coordenação e compromisso dos Estados
para que ele seja efetivo. Um desses compromissos está em aplicar tais
tratados respeitando seu verdadeiro sentido e propósito. Para tanto,
existe o controle de convencionalidade, que que representa a análise da
compatibilidade das normas e decisões nacionais com as disposições
das Convenções Internacionais às quais que o país se comprometeu.

Importante salientar que após a EC nº 45/ 2004, a competência para


homologação de sentenças estrangeiras e para a concessão de
exequatur às cartas rogatórias deixou de ser do STF e passou a ser do
STJ.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

A HIERARQUIA LEGAL DOS TRATADOS INTERNACIONAIS.


Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2009-set-18/convencao-
direitos-pessoas-deficiencia-status-ec>. Acesso em: 25 de mai. 2020.
EXECUÇÃO PROVISÓRIA, O STF E O ESTRANHO
ARGUMENTO DO DIREITO COMPARADO. Disponível em:
<https://www.conjur.com.br/2019-out-17/opiniao-execução-
provisoria-argumento-direito-comparado#_ftn15>. Acesso em: 23 de
mai. 2020.

HUSEK, Carlos Roberto. Curso de direito internacional público /


Carlos Roberto Husek. — 14. ed. — São Paulo: LTr, 2017.

Do Disciplinamento dos Tratados Internacionais no Direito


Brasileiro e o Surgimento do Controle de Convencionalidade.
Disponível em < http://www.conteudojuridico.com.br/artigo,do-
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de out de 2017.

O STF e a hierarquia normativa dos tratados internacionais


de direitos humanos no ordenamento jurídico nacional.
Disponível em < http://www.conteudojuridico.com.br/artigo,o-stfea-
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17 de out de 2017.

O Supremo Tribunal Federal e a norma supralegal:


apontamentos frente à estrutura hierarquico-normativa
brasileira. Disponível em < http://www.ambito-
jurídico.com.br/site/?
n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=12081 > Acesso em 17 de
out de 2017.

MASSON, Nathalia. Manual de Direito Constitucional / Nathalia


Masson – 6.ed. ver. Ampl. E atual – Salvador: JusPODIVM, 2018.

Disponível em: https://castro96.jusbrasil.com.br/artigos/851970078/teoria-do-duplo-estatuto


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