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O PRINCÍPI m~/
PROPOROONALIDADE
NO DIREITO PENAL

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Gomes, Mariângela Gama de Magalhães


O princípio da proporcionalidade no direito penal / Mariângela Gama de Magalhães
Gomes. - São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003.

Bibliografia.
ISBN 85-203-2445-2

I. Direito penal 2. Direito penal - Brasil 3. Princípio da proporcionalidade 4. Processo


penal I. Título.

03-4237 CDU-340.11:343.1

Índices para catálogo sistemático: 1. Princípio da proporcionalidade: Direito penal: Processo penal EDITORAm
340.11 :343.1
REVISTA DOS TRIBUNAIS
o PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE NO DIREITO PENAL
MARIÂNGELA GAMA DE MAGALHÃES GOMES

© desta edição: 2003


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meus queridos pais.
Impresso no Brasil ( 09 - 2003 )

ISBN 85-203-2445-2
1
DIREITO PENAL E CONSTITUIÇÃO

SUMÁRIO: 1.1 Introdução - 1.2 O Estado Constitucional de Direito e os


limites ao legislador - 1.3 Os direitos fundamentais - IA O princípio da
legalidade.

1.1 Introdução

A estreita relação entre Constituição e direito penal encontra suas ori-


gens nas idéias políticas revolucionárias do século XVIII, uma vez que
ambos são praticamente coetâneos e nasceram com a função de indicar os
limites do poder do Estado. 1 Não é por acaso essa coincidência, já que ao
direito penal cabe regular o instrumento mais temível desse poder, seu úl-
timo recurso, qual seja, a pena. 2
Pode-se dizer que a Constituição é entendida como a lei fundamental
do Estado, e definida como a organização de seus elementos essenciais, ou
constitutivos: um sistema de normas jurídicas que regula a forma do Esta-
do, a forma de seu governo, o modo de aquisição e o exercício de seu poder,
o estabelecimento de seus órgãos, os limites de sua ação, os direitos funda-

(I) Não obstante o fato de a idéia de Constituição existir desde a antigüidade, com
Aristóteles, e o primeiro antecedente escrito de Constituição datar de 1215 (Mag-
na Carta, de João sem Terra), pode-se dizer que "a origem formal do constitucio-
nalismo está ligada às Constituições escritas e rígidas dos Estados Unidos da
América, em 1787, após a Independência das 13 Colônias, e da França, em 1791,
a partir da Revolução Francesa, apresentando dois traços marcantes: organiza-
ção do Estado e limitação do poder estatal, por meio da previsão de direitos e
garantias fundamentais" (Alexandre de Moraes. Direito constitucional. 5. ed. São
Paulo: Atlas, 1999. p. 33). A este respeito, ver também Manoel Gonçalves Ferrei-
ra Filho, Curso de direito constitucional, 22. ed., São Paulo: Saraiva, 1995, p. 3-8.
(2) Tomás S. Vives Antón. La libertad como pretexto. Valencia: Tirant lo Blanch,
1995. p. 91.
24 o PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE NO DIREITO PENAL DIREITO PENAL E CONSTITUIÇÃO 25
mentais do homem e as respectivas garantias. 3 Ressalte-se, ainda, que esta
petência das entidades públicas com função de legislar. Na segunda hipóte-
lei fundamental deve estar vinculada à realidade social, assim como deve
se, qual seja, na dimensão positiva da vinculação do legislador, cabe aos ór-
ser concebida como uma estrutura normativa, uma conexão de sentido,
gãos legislativos conformarem as relações da vida, as relações en~e o Esta-
envolvendo um conjunto de valores. 4
do e os cidadãos e as relações entre os indivíduos, segundo os preceItos cons-
Assim, a Constituição não se limita a mero instrumento de governo, mas titucionais materiais. Neste sentido, o legislador deve realizar os direitos,
tem por finalidade racionalizar, limitar e organizar poderes. Pressupõe-se, liberdades e garantias, otimizando a sua normatividade e atualidade.?
pois, que revele uma medida material para o exercício legítimo d~ t~s pode-
A primeira relação existente entre o direito penal e a Constituição, surge,
res não se limitando a "dar forma" ou "constituir" órgãos, mas eXIgmdo uma
fu~damentação substantiva para os atos dos poderes públicos. Diz-se, por- então, relacionada à necessidade que todos os ramos do ordenamento jurí-
dico possuem de se conformarem aos preceitos constitucionais, estando o
tanto, que o texto constitucional indica um parâmetro material, diretivo e
legislador infraconstitucional impossibilitado de criar normas que não
inspirador de tais atos, o que pode ser apreendido a partir do seu catálogo de
encontrem respaldo no texto constitucional, e devendo empenhar-se para
direitos fundamentais, compreendidos como os direitos, liberdades e garan-
concretizar as regras que fundamentam o Estado.
tias individuais, e direitos econômicos, sociais e culturais. 5
Ocorre, entretanto, que este entrosamento necessário entre o direito
Como importante conseqüência advinda da supremacia do texto consti-
penal e a Constituição não diz respeito apenas à ~ong:u~ncia que s.em~re
tucional em todo o ordenamento jurídico, o legislador ordinário encontra-se
deve existir entre a Lei maior do Estado e a legIslaçao mfraconstltuclO-
a ele vinculado, no sentido de produzir atos normativos que sejam coerentes
nal. Mais do que isso, tendo em vista que é na lei fundamental do Estado
com suas diretrlzes. 6 É possível, assim, falar tanto na vinculação do legisla-
que se encontram estampadas as suas características essenciais, é nela que
dor no sentido proibitivo, como também em sua dimensão positiva. Na pri-
devem constar as diretrizes a partir das quais se fundamenta e se estrutu-
meira hipótese, tal vinculação veda às entidades legiferantes a possibilidade
ra o poder de punir estatal. Isto significa, segundo .sa~ienta ~~rnández
de criarem atos legislativos contrários às normas e princípios constitucio-
Rodríguez, que a legitimidade do ius puniendi e do dlfeIto POSitIVO que o
nais, ou seja, não se pode criar leis lesivas a direitos, liberdades e garantias
articula procede da Constituição. 8
consagrados constitucionalmente; sob esta perspectiva, constituem normas
negativas de competência, porque estabelecem limites ao exercício de com-
1.2 O Estado Constitucional de Direito e os limites ao legislador

(3) José Afonso da Silva. Curso de direito constitucional positivo. 9. ed. rev. e ampl. Não obstante a importância do triunfo da legalidade, a partir das revo-
de acordo com a nova Constituição. São Paulo: Malheiros, 1992. p. 39-40; Ma- luções liberais do século XVIII, a garantia do Estado Democrático de Di-
noel Gonçalves Ferreira Filho. Op. cit., p. 10.
(4) José Afonso da Silva. Op. cit., p. 40.
(7) José Joaquim Gomes Canotilho. Op. cit., p. 580.
(5) José Joaquim Gomes Canotilho. Direito constitucional. 6. ed., Coimbra: Alme-
dina, 1993. p. 73-74. (8) Maria Dolores Fernández Rodríguez. Los límites dei ius puniendi. Anuario de
Derecho Penal y Ciencias Penales, Fascículo m, t. XLVII, sep.-dic. 1994. p.
(6) Observa Garcia de Enterria que deve ser enfatizado, inicialmente, que todo o
89. Observa Carvalho, neste sentido, que "sendo a Constituição a expressão dos
texto constitucional tem valor normativo imediato e direto, o que acarreta uma
princípios fundamentais que inspiram o ordenamento jurídico, nela se en~ontra
sujeição ou vinculação de todo o restante do ordenamento jurídic? àquele. Além
inserida a concepção do direito que deverá informar toda a legislação subJacen-
disso, a Constituição é parte integrante do ordenamento, sendo Justamente sua
te. O conteúdo da Constituição, expressão concentrada do direito existente em
parte primordial e fundamental, que expressa os seus valores superiores. Final-
uma determinada ordem social, deve ser levado em conta pelas demais normas
mente, esta vinculação normativa da Constituição afeta todos os cidadãos e to-
do sistema jurídico. Assim, voltando ao direito penal, a sua relação com a Cons-
dos os poderes públicos, sem exceção, e não apenas o Poder Legislativo com
tituição se verifica quando se depreende que a essênoia do delito se a~icerça em
mandados ou instruções que a este cabe desenvolver, mas também todos os
uma infração ao direito, e o conceito do que é direito tem de ser dedUZIdo do que
juízes e tribunais (Eduardo García de Enterría. La Constitución como norma
se encontra concentrado como tal, como idéia de justiça, expresso no ordena-
jurídica. In: Predieri e García de Enterría (Orgs.). La constitución espafíola de
mento constitucional" (Márcia Dometila Lima de Carvalho. Fundamentação
1978 - Estudio sistemático. 2. ed. Madrid: Civitas, 1988. p. 118).
constitucional do direito penal. Porto Alegre: Fabris, 1992. p. 36-37).
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reito vai mais além do que o respeito formal ao princípio da legalidade e a só disciplinam a forma, mas indicam vínculos de conteúdo ao exercício do
disciplina da organização dos poderes do Estado, mas contém, também, a poder normativo. Em tais ordenamentos, a validade das leis não depende,
enunciação dos valores fundamentais, que são impostos ao legislador. Pode- apenas, dos aspectos formais da produção normativa, mas do significado
se dizer, desta forma, que as modernas Constituições realizam uma espé- dos enunciados normativos produzidos e, especificamente, da verificação
cie de milagre jurídico, que consiste na "positivação do direito natural";9 a da conformidade de seu conteúdo ao "dever ser" jurídico estabelecido pe-
inclusão de valores fundamentais nos textos constitucionais faz com que las normas superiores. 12
estes consagrem um verdadeiro e próprio "pacto" democrático, uma vez Esta ulterior e nova caracterização que é dada ao Estado de Direito, pelas
que o acordo sobre os conteúdos, ou seja, sobre os valores fundamentais modernas Constituições, marcam a passagem do "Estado de Direito" para
da vida civil social e política, expressa quase a identidade ideológico-cul- o chamado "Estado Constitucional de Direito". 13 Segundo Palazzo, os dois
tural de um povo, um consenso geral fundado sobre o reconhecimento de principais aspectos desta evolução consistem no caráter rígido da Consti-
um patrimônio comum de valores. tuição, não modificável por parte da lei e, sobretudo, a assunção de um
Deste modo, os princípios afirmados pela doutrina jusnaturalista dos patrimônio de valores de fundo como critérios "materiais", ou "substan-
séculos XVII e XVIII como direito ou direitos naturais, foram consagra- ciais", de legitimação legislativa. O que caracteriza esta passagem é uma
dos nas modernas Constituições sob a forma de princípios normativos fun- orientação no sentido de delimitar a onipotência do legislador, sendo que
damentais, contendo limitações ou imperativos negativos - e, também, o princípio da democracia cedeu espaço à necessidade de um progressivo
positivos, como aqueles referentes aos direitos sociais estampados nos tex- processo de adaptação e de concentração, para coexistir com um superior
tos constitucionais deste século -, os quais encontram-se destinados ao princípio de garantia. Enquanto se pode afirmar que o traço característico
legislador e áos outros poderes públicos. Desta forma, os denominados do Estado de Direito foi o triunfo da lei e do legislador, o do Estado consti-
direitos "invioláveis", "personalíssimos" ou "indisponíveis", não são mais tucional, ao contrário, é o descobrimento de um direito ultralegal e, por-
do que a forma jurídica positiva dos direitos naturais, que tem como garan- tanto, a existência de limites para o legislador. 14
tia o fundamento político, ou externo, do moderno Estado de Direito. E tal Assim, no momento em que o direito natural é posto como fundamen-
garantia, por sua vez, assegura a possibilidade de serem declaradas inváli- to do moderno Estado de Direito e seus princípios são transformados de
das as disposições contrárias ao referido rol de direitos. 10 vínculo apenas político (ou externo) a vínculo também jurídico (ou inter-
Pode-se dizer que há uma conscientização da necessidade de proteger no), aquele perdeu sua função de parâmetro exclusivo de valoração do di-
os próprios direitos fundamentais estabelecidos na Constituição, mesmo reito positivo. Esta função foi modificada de modo que, cada Estado de
frente à própria lei. A velha idéia de proteção da liberdade pela lei tende a Direito, sobretudo se dotado de Constituição rígida, é suscetível de valora-
ser substituída pela necessidade de proteção das liberdades perante a lei. É ções não apenas externas, relacionadas aos princípios naturais de justiça,
neste sentido que afirma Pedraz Penalva, ao salientar que se passou do prin- mas, também, internas, relativas aos seus próprios princípios garantidos
cípio da legalidade ao princípio da constitucionalidade. 11 pela disposição positiva do direito natural, que é a Carta constitucional. A
Assim, pode-se dizer que, nos modernos Estados constitucionais de
Direito, a validade das normas reside na sua conformidade, não apenas (12) Luigi Ferrajoli. Op. cit., p. 349.
formal, mas, também, substancial, às normas de níveis superiores, que não (13) A utilização deste termo, segundo Palazzo, tem por objetivo enfatizar a passa-
gem de uma garantia, fundamental mas ainda formal, que é aquela oferecida pelo
Estado de Direito, para se chegar nas modernas Constituições de origem liberal-
(9) Francesco Palazzo. Estado constitucional de derecho y derecho penal. Trad. Vir- democrático a uma garantia do tipo "material" ou "de conteúdo". Estado cons-
ginia Sánchez López. Revista Penal 2/50. titucional..., cit., p. 49.
(10) Luigi Ferrajoli. Diritto e ragione: teoria deI garantismo penale. Roma-Bari: (14) Francesco Palazzo. Estado constitucional..., cit., p. 54. Neste sentido também
Laterza, 1996. p. 350. Paulo Bonavides, O princípio constitucional da proporcionalidade e a proteção
(11) Principio de proporcionalidad y principio de oportunidad. Constitución, juris- dos direitos fundamentais, Revista da Faculdade de Direito da Universidade
dicción y proceso, Madrid: Akal, 1990. p. 337. Federal de Minas Gerais 34/282-283, 1994.
28 o PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE NO DIREITO PENAL DIREITO PENAL E CONSTITUIÇÃO 29
definição de "direito válido", então, deixa de significar apenas a conformi- valores de justiça perseguidos por um ordenamento, e quanto mais com-
dade "neutra" da norma com a respectiva norma de produção; esta confor- plexas e vinculantes são as garantias incorporadas para tal fim em seus ní-
midade passa a ser moldada pelo Estado na medida em que as referidas veis normativos superiores, maior será a possibilidade de separação entre
normas de produção incluem, também, princípios ético-políticos (ou de modelos normativos e práticas efetivas e, portanto, o índice de inefetivida-
justiça) que impõem valorações desta ordem às normas produzidas, e ope- de do primeiro e de invalidade do segundo. Por isso, segundo Ferrajoli, o
ram como parâmetro ou critério de legitimidade, não mais apenas externa, atual "Estado de Direito" pode ser definido como um ordenamento cuja
mas também interna. Pode-se dizer que é característica do moderno Esta- legitimação externa reside, essencialmente, no fato de que esta última tor-
do Constitucional de Direito o fato de que as condições de validade estabe- na possível a deslegitimação interna do poder. 18
lecidas em sua norma fundamental incorporam não apenas requisitos de
regularidade formal, mas, também, condições de justiça substancial. 15 1.3 Os direitos fundamentais
Portanto, o juízo de validade de uma norma não é mais somente um
juízo de fato sobre requisitos formais que a tomam conforme aos manda- Quando da positivação constitucional dos direitos individuais, o le-
dos de nível superior, mas, também, um juízo de valor em relação ao seu gislador constituinte brasileiro optou por utilizar-se, concomitantemen-
conteúdo substancial, que permite ser considerada juridicamente legítima. 16 te, de cláusulas gerais, que correspondem ao enunciado de grandes prin-
No Brasil, por exemplo, o Supremo Tribunal Federal já teve a oportu- cípios, tais como a liberdade, a igualdade, a dignidade humana, e de dis-
nidade de demonstrar a insuficiência do aspecto meramente formal de lei posições especiais, que proclamam liberdades ou direitos mais concre-
para se considerar legítima determinada restrição de direito. Segundo amais tos, tais como liberdade de pensamento, de imprensa, de consciência, entre
alta Corte brasileira, tal restrição deve "atender ao critério da razoabilida- outros. 19 Temos assim, em nossa Carta Magna, tanto um elenco de gran-
de", cabendo ao Poder Judiciário, em última instância, "apreciar se as res- des princípios que devem fundamentar a construção do ordenamento ju-
trições são adequadas e justificadas pelo interesse público, para julgá-las rídico interno, como temos uma série de direitos e garantias minuciosa-
legítimas ou não". I? mente expressos no texto constitucional, que revelam a enorme impor-
Considerando esta diferenciação entre as legitimações externa e in.ter- tância garantística do conteúdo constitucional em relação aos direitos fun-
na de um sistema jurídico, onde a primeira caracteriza-se pela concordân- damentais da pessoa humana.
cia do ordenamento com os valores sociais encontrados fora deste, mas Os direitos fundamentais, assim positivados nos textos constitucionais,
conformadores de seu conteúdo, e a segunda diz respeito à validez interna assumem um duplo papel no ordenamento jurídico. Numa primeira pers-
do sistema, quando se avalia a norma a partir da sua posição dentro do or- pectiva, toma-se indubitável o fato de que implicam o poder de serem exer-
denamento em relação a outras normas existentes, existe um princípio de
proporção inversa entre a legitimação externa e a legitimação interna do
(18) Op. cit., p. 360-361.
ordenamento jurídico, de modo que, quanto maior é a sua legitimação po-
(19) Com relação a este processo de positivação constitucional dos direitos indivi-
lítica (ou externa), maior será também a possibilidade de deslegitimação
duais, é de se observar a existência de três sistemas distintos que classificam a
jurídica (ou interna) exercitada sobre os níveis normativos inferiores. Pode- positivação dos direitos fundamentais de diferentes formas. Em primeiro lugar,
se dizer, com outras palavras, que quanto mais altos e ambiciosos são os há o sistema de cláusulas gerais, que correspondem ao enunciado de grandes
princípios; a seguir, há o denominado sistema casuístico, que corresponde a um
(15) Luigi Ferrajoli. Op. cit., p. 351-352. sistema marcado por leis especiais que proclamam liberdades ou direitos mais
concretos e individualizados; e, por fim, existe o sistema misto, empregado na-
(16) Idem, ibidem, p. 356.
quelas Constituições nas quais, assim como a Carta Política brasileira, além do
(17) Representação 930, reI. Min. Rodrigues Alckimin, RTJ 110/967 e Representa- enunciado de grandes princípios ou-postulados referentes aos direitos fundamen-
ção 1.077, reI. Min. Moreira Alves, RTJ 112/34, citadas por Ana Claudia Rede- tais, geralmente expressos no preâmbulo constitucional, pormenorizam no cor-
cker, Considerações sobre o princípio da proporcionalidade, Direito e Justiça: po da Constituição um catálogo assecuratório dos principais direitos dos cida-
Revista da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio dãos. Antonio Enrique Pérez Luno. Derechos humanos, Estado de Derecho y
Grande do Sul, vol. 21, n. 20, p. 18. Constitución. Madrid: Tecnos, 1986. p. 65.
30 o PRINcÍPIO DA PROPORCIONALIDADE NO DIREITO PENAL DIREITO PENAL E CONSTITUIÇÃO 31

cidos de forma positiva e de exigir que os poderes públicos se omitam quan- 1.4 O princípio da legalidade
do assim estiverem evitando lesões a tais direitos; num segundo momento,
constituem normas de competência negativa para os poderes públicos, na Para o direito penal, especialmente, a maior garantia de caráter políti-
medida em que proíbem interferência destes na esfera jurídica individual, co derivada da adoção do princípio do Estado de Direito é a legalidade dos
delitos e das penas. Ela tem por principal finalidade impedir que a conde-
limitando suas atuações. 20
nação penal seja utilizada na contingência de uma luta política, e segundo
Para melhor compreender esta assertiva, deve ser observado o fato de as circunstâncias, como instrumento de humilhação do adversário; isto se
que os valores constitucionais possuem uma tríplice dimensão. Em primeiro dá não apenas por assegurar a predeterminação do direito, mas por garan-
lugar, há a dimensão fundamentadora, no plano estático, do conjunto de . tir, também, sua produção por parte dos órgãos dotados de legitimação
disposições e instituições constitucionais, assim como do ordenamento substancial para tal- ao vincular o juiz a uma regra preexistente, o Estado
jurídico como um todo. É constituída pelos valores fundamentais ou supe- consolida a distribuição do poder punitivo nas mãos de órgãos legitima-
riores, formando o núcleo básico e inforrnador de todo o sistema jurídico- dos para a produção do direito. Expressa-se e formaliza-se, assim, uma
político. A seguir, há a dimensão orientadora, em sentido dinâmico, con- determinada distribuição do poder punitivo entre os órgãos constitucionais,
ferindo ao ordenamento jurídico-político metas e fins predeterminados. Isso segundo o modelo de equilíbrios recíprocos que resulta legitimado pela
torna ilegítima qualquer disposição normativa que se oriente para fins dis- história política e social de um determinado país. 23
tintos ou que dificulte a consecução daqueles enunciados no sistema axio-
Esta exigência de caráter político, manifestada pelo princípio da lega-
lógico constitucional. Por fim, vem a dimensão crítica, que consiste no fato
lidade, assume importante e insubstituível garantia ao cidadão, que pode
de que sua função, assim como a de qualquer outro valor, reside na sua ido-
ser interpretada e compreendida segundo quatro diferentes ângulos da aná-
neidade para s~ir de critério ou parâmetro de valoração para justificar fatos
ou condutas. E isto o que torna possível um controle jurisdicional de todas lise, todos intrinsecamente relacionados entre si. 24
as normas restantes do ordenamento, aferindo-se sua conformidade ou O primeiro fundamento acerca do princípio da legalidade diz respeito
infração aos valores constitucionaisY a um postulado central do liberalismo político, qual seja, a exigência de
vinculação do Poder Executivo e do Poder Judiciário a leis formuladas de
É por isso que se diz que os valores constitucionais compõem o con-
texto valorativo fundamentador para a interpretação de todo o ordenamen-
to jurídico, o postulado orientador para a hermenêutica teleológica e evo- estes deixem de ser meras afirmações pragmáticas para constituir espaços mí-
lutiva da Constituição, e o critério para medir a legitimidade das diversas nimos de atuação humana a serem respeitados por todos, incluindo o próprio
manifestações do sistema de legalidade. Estado- tanto legislador como administrador. (Ernesto Pedraz Penalva. EI prin-
cipio de proporcionalidad ... , cit., p. 341). Quanto ao Poder Executivo, cabe-
Para o Poder Legislativo, especificamente, surge a obrigação de obser- lhe o atendimento aos mandados constitucionais no sentido de exercer a ad-
vância aos direitos e garantias individuais constitucionalmente positiva- ministração pública sem violar os direitos e garantias a todos assegurados além
dos, no momento de elaboração das leis. Isso não significa que o legislador do dever primordial de promover e possibilitar que se promovam os direitos
encontra-se terminantemente proibido de elaborar leis que venham a limi- fundamentais quando da prática dos mais diversos atos da administração.
tar qualquer direito fundamental presente na Constituição, mas que essa Quanto ao Judiciário, este assume importante papel na observância do respei-
limitação há de se respaldar igualmente no texto constitucional, sob pena to aos direitos e garantias constitucionalmente tutelados, sendo verdadeiro
guardião da Constituição. Cabe a este poder fiscalizar o atendimento aos pre-
de um interesse hierarquicamente inferior do Estado se sobrepor a um di-
ceitos constitucionais, seja por parte dos próprios cidadãos, seja por parte do
reito individual constitucionalmente assegurado. 22 próprio Poder Judiciário, ao proferir suas decisões, e, assim, viabilizar con-
cretamente o respeito aos direitos fundamentais. Neste sentido, Alexandre de
(20) Alexandre de Moraes. Direito constitucionaL, cit., p. 55. Moraes, Direito constitucionaL., cit., p. 57-58.
(21) Antonio Enrique Perez Luno. Op. cit., p. 288. (23) Francesco Palazzo. Estado constitucionaL, cit., p. 49-50.
(22) Neste sentido, Pedraz Penalva assevera que o reforço e a conseqüente redefi- (24) Claus Roxin. Derecho penal- Parte general tomo I: fundamentos. La estructura
nição do papel dos direitos fundamentais no ordenamento jurídico faz com que de la teoría deI delito. Madrid: Civitas, 1997. p. 144 e ss.
32 o PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE NO DIREITO PENAL DIREITO PENAL E CONSTITUIÇÃO 33

modo abstrato. Além disso, a exigência da legalidade penal tem fundamento fica assegurado que somente em virtude do cometimento daqueles fatos
no princípio da democracia baseada na divisão de poderes: assenta-se este definidos como crimes (ou contravenções penais) é que poderá ser pro-
postulado na idéia de que, pelo fato de constituir a imposição da sanção cessado e condenado. Tal condenação, por sua vez, somente poderá ser
penal uma ingerência tão dura na esfera de liberdade do cidadão, a legiti- concretizada através da imposição de penas também previstas legalmen-
mação para que se determine seus pressupostos somente pode residir na te. Cabe observar, no que diz respeito a este postulado, a exigência cons-
instância que mais diretamente representa o povo como titular do poder do titucional no sentido de que tanto o delito como a pena devem estar pre-
Estado, qual seja, o Poder Legislativo. A seguir, pode-se dizer que o prin- vistos por meio de lei, em sentido formal. Isso implica o impedimento de
cípio da legalidade encontra-se vinculado à idéia da prevenção geral, como eventual incriminação através de atos legislativos dotados de menor ga-
objetivo último da atuação penal por parte do Estado; partindo-se do pres- rantia para o destinatário da lei penal, tendo em vista as menores exigên-
suposto de que o fim da cominação penal consiste na intimidação de po- cias garantísticas a que se encontraria vinculado o legislador quando do
tenciais delinqüentes, a determinação psíquica pretendida somente po- processo de tipificação.
derá efetivar-se se antes do fato estiver fixada na lei, do modo mais claro A seguir, tem-se a garantia da taxatividade penal, que limita a discri-
possível, qual é a ação proibida. Isto se verifica uma vez que, se falta uma cionariedade do órgão judicial quando da aplicação da lei penal, na me-
lei prévia ou esta não é suficientemente precisa, não ocorrerá o efeito in- dida em que as normas penais devem ser dotadas do máximo de clareza e
timidatório - posto que ninguém poderá saber, de antemão, se a sua con- determinação possível. Pode-se dizer que esta exigência é dirigida ao le-
duta poderá acarretar uma pena ou não. Isto se relaciona, também, com a gislador, uma vez que ele encontra-se vinculado à proibição de que as nor-
necessidade de que o direito penal seja informado pelo princípio da cul- mas incriminadoras sejam ambíguas, equívocas e vagas, o que poderia
pabilidade: se· a imposição da pena pressupõe culpabilidade, somente se ensejar diferentes e casuísticos entendimentos. A proibição de tipos e pe-
poderá falar na culpa do infrator se este se achava informado acerca da nas indeterminados justifica-se nos fins do princípio da legalidade: uma
proibição de sua conduta ou, ao menos, teve a possibilidade de ser infor- lei indeterminada ou imprecisa não protege o cidadão contra a arbitrarie-
mado a respeito de tal proibição. dade, porque implica uma falta de limitação ao ius puniendi estatal. Além
disso, é contrária ao princípio da divisão de poderes, pois permitiria ao
No Brasil, a garantia da legalidade penal tem estado tradicionalmente juiz fazer a interpretação que quisesse e, com isso, invadir o terreno le-
presente em nossas Constituições. 25 A Constituição Federal de 1988 con- gislativo; não produziria eficácia preventivo-geral, já que o indivíduo
sagrou-a em seu art. 5.°, XXXIX, onde consta expresso que "não haverá estaria impedido de reconhecer na norma o que se quer proibir e, devido
crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação le- a isso, a existência de lei indeterminada não proporcionaria a base para
gal". Vale lembrar ainda que o princípio da legalidade é a garantia inaugu- um juízo de reprovabilidade. 26
ral da parte geral do Código Penal brasileiro, o que é especial demonstra-
Por fim, há que se falar na irretroatividade de lei penal, postulado
ção do seu caráter fundamentador no direito penal, ainda que prevista em
relacionado à validade das disposições penais no tempo. Esta garantia as-
dispositivo legal de menor imponência.
Como garantias derivadas do princípio constitucional da legalidade,
(26) Claus Roxin. Op. cit., p. 169 e ss. Segundo Palazzo, esta exigência de determi-
fala-se em reserva legal, taxatividade e irretroatividade da lei penal. nação da norma penal funciona como garantia do poder punitivo-judiciário, in-
Primeiramente, apresenta-se o postulado da reserva legal, mediante cumbido de assegurar a específica eticidade do direito, constituída na certeza
a qual o poder punitivo do Estado fica circunscrito aos limites da lei. Uma jurídica, e de operar segundo o pressuposto objetivo de reconhecimento da nor-
vez que os delitos e as penas tornam-se certos por meio de lei, ao cidadão ma, uma "valorização" e "responsabilidade" do homem, de sua estrutura espiri-
tualística. Por meio dela, possibilita-se a efetiva compreensão do Estado de Di-
reito, não mais em termos de rigof0sa delimitação do poder punitivo no tocante
(25) A garantia da legalidade constava no texto da Constituição, de 1824, em seu art. ao indivíduo, porém de reconhecimento, no homem, de uma capacidade que lhe
179, XII, na Constituição de 1891, no art. 72, § 15, na Carta Política de 1934, no é própria, inerente, e de uma responsabilidade de auto-determinar-se em face da
art. 113, XXVI, na CF de 1967, em seu art. 141, § 25 e na Emenda Constitucio- vontade estatal (Francesco Palazzo. Valores constitucionais e direito penal. Trad.
nall, de 1969, nos arts. 150, § 16, e 153, § 16. Gérson Pereira dos Santos. Porto Alegre: Fabris, 1989. p. 50).
34 o PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE NO DIREITO PENAL

senta-se na idéia de que somente não é lícito aquilo que a lei proíbe e
somente a lei, anterior ao fato, pode estabelecer o que seja delito, assim
como a pena a este aplicável. Com base na proibição da retroatividade da
lei penal, o legislador fica impedido de introduzir ou agravar a posteriori
as previsões da pena a partir da ocorrência de fatos especialmente escan- 2
dalosos, para acalmar estados de ânimo e excitações politicamente inde-
sejáveis. Proibir leis ad hoc, feitas de acordo com o caso concreto e que, PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
em virtude disso, na sua maioria mostram-se inadequadas no seu conteú-
do, já que movidas pela emoção do momento, é, pois, uma exigência ir~
renunciável do Estado de Direito. 27 SUMÁRIO: 2.1 Introdução - 2.2 Nomenclatura - 2.3 Origem histórica do
princípio da proporcionalidade: 2.3.1 A lei do talião; 2.3.2 A origem ilumi-
nista do princípio da proporcionalidade: Montesquieu e Beccaria; 2.3.3 O
princípio da proporcionalidade no direito administrativo - 2,4 A proporcio-
nalidade como um princípio jurídico - 2.5 O princípio da proporcionalidade
na Constituição portuguesa e nos textos internacionais - 2.6 Consagração
constitucional do princípio da proporcionalidade: 2.6.1 Estado Democráti-
co de Direito; 2.6.2 Significado constitucional de "pena"; 2.6.3 Justiça; 2.6.4
Liberdade; 2.6.5 Dignidade da pessoa humana; 2.6.6 Princípio da igualda-
de; 2.6.7 Proibição de penas cruéis e desumanas; 2.6.8 Proporcionalidade do
direito de resposta; 2.6.9 Devido processo legal (due process oflaw); 2.6.10
Proibição de arbitrariedade dos Poderes Públicos - 2.7 Princípio da propor-
cionalidade e legitimação do direito penal: a garantia da liberdade como li-
mite ao ius puniendi - 2.8 Segue: a necessidade de reconhecimento dos valo-
res expressos no tipo por parte dos destinatários da nonna - 2.9 Conteúdo
(subprincípios) do princípio da proporcionalidade no direito penal: necessi-
dade, idoneidade e proporcionalidade em sentido estrito.

2.1 Introdução

o princípio da proporcionalidade tem seu principal campo de atuação


no âmbito dos direitos fundamentais, enquanto critério valorativo consti"
tucional determinante das máximas restrições que podem ser impostas na
esfera individual dos cidadãos pelo Estado, e para a consecução de seus
fins. Assim, integra uma exigência ínsita no Estado de Direito enquanto tal,
que impõe a proteção do indivíduo contra intervenções estatais desneces-
sárias ou excessivas que gravem o cidadão mais do que o indispensável para
a proteção dos interesses públicos. 1

(I) Ernesto Pedraz Penalva. El principio de proporcionalidad y su configuración en


la jurisprudencia dei Tribunal Constitucional y literatura especializada alema-
(27) Claus Roxin. Op. cit., p. 161. nas. Constitución, jurisdicción y proceso. Madrid: Akal, 1990. p. 287.

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