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UNIVERSIDADE DO PORTO — FACULDADE DE DIREITO

TEORIA GERAL DO DIREITO CIVIL


1ª Frequência — 8.01.2018
Duração da prova: 2 horas
Nota prévia: Apenas é permitida a consulta de códigos não anotados. A ilegibilidade das respostas
implica a sua não consideração. Na resposta a cada questão deve, sempre que se justifique, considerar as diversas
hipóteses relevantes. Fundamente sempre as respostas. O rigor e a clareza de exposição serão factores de
valorização da prova. A respostas às perguntas I e II deverão constar de folhas separadas.

I (10 valores)
A comprou a B, negociante de carros antigos e de colecção, um automóvel da marca
Peugeot, modelo 403, com mais de 50 anos. A assinou um impresso fornecido por B
onde constava a identificação das partes e as condições de pagamento faseado do
preço. Entretanto, tendo A pago apenas as prestações iniciais acordadas e precisando
de dinheiro vendeu o automóvel a C.
A tinha 17 anos quando celebrou o negócio com B e o contrato entre A e C foi
concluído pouco tempo depois.
Volvidos dois anos, diga se A pode pretender “desfazer” os contratos concluídos com
B e C e devolver o automóvel ao primeiro, uma vez que o preço pago por C foi muito
inferior ao preço de mercado e que A ainda deve a B as seis últimas prestações do
carro.

II (10 valores)
X é autor do livro “A Verdade ou a Mentira”, publicado em 2008, no qual relata a sua
versão dos factos relativos ao desaparecimento de uma criança ocorrido no Algarve.
Neste livro, com o alegado intuito de repor o seu bom nome profissional, X, polícia
de investigação criminal que acompanhou o caso até dele ser afastado, pronuncia-se
sobre a tese da morte acidental da criança e subsequente simulação de rapto pelos
seus pais. Na capa do livro encontra-se, a vermelho, a palavra “confidencial” e na
contracapa estão os dizeres “leitura reservada” e “contém revelações únicas”. Y e Z,
pais da criança desaparecida, contestam a tese de X e consideram-se lesados e
ofendidos pelas afirmações contidas no livro e pelo carácter sensacionalista que
acham que lhe foi conferido. Mais, Y e Z consideram que os seus filhos menores
também estão a ser prejudicados pelas alegações do autor do livro, pois a invocação
de inexistência de rapto da irmã perturba o seu desenvolvimento.
(a partir do Acórdão do STJ, de 31/01/2017, relator Roque Nogueira)
Pronuncie-se sobre os bens jurídicos em causa e sobre a tutela que o ordenamento
jurídico civil pode conceder aos eventuais lesados.
UNIVERSIDADE DO PORTO — FACULDADE DE DIREITO
TEORIA GERAL DO DIREITO CIVIL
1ª Frequência — 8.01.2018

Critérios de correcção:

I (10 valores)
— Enquadramento da questão no âmbito das incapacidades de exercício (menoridade)
e do princípio nemo plus iuris e suas excepções (protecção de terceiros de boa fé).
— Caracterização do contrato A/B como um contrato anulável em virtude da
menoridade de A (arts. 122.º, 123.º); incapacidade de exercício versus incapacidade
de gozo; a incapacidade dos menores como uma incapacidade geral; inaplicabilidade
das excepções do art. 127.º; suprimento da incapacidade dos menores através do
instituto da representação legal (art. 124.º); anulabilidade dos actos praticados pelos
menores: legitimidade e prazos; aplicação do art. 287.º/2CC.
— Eventual anulabilidade do contrato A/C por menoridade, em função da data da sua
celebração, no prazo de um ano a contar da maioridade de A. Consolidação do
contrato A/C caducado o direito de A arguir a anulabilidade (art. 125.º/1b)).
— Caracterização das aquisições em causa como aquisições derivadas translativas; o
princípio nemo plus iuris...: Ilegitimidade de A para transmitir a C um direito de
propriedade “pleno”; A apenas poderia transmitir a C um direito “provisório” em
virtude da anulabilidade do 1º contrato.
— Efeitos da anulação do contrato A/B: art. 289.º, destruição dos efeitos dos
contratos A/B e A/C, retroactivamente.
— Consideração e afastamento da hipótese de protecção de C enquanto terceiro de
boa fé para efeitos do art. 291º: noção de terceiros de boa fé; requisitos do art. 291.º;
constatação da não verificação do requisito da passagem do tempo (3 anos) sobre o
negócio inválido (A/B) que afecta a aquisição de C.
— A pode arguir a anulabilidade do 1º negócio com os efeitos do art. 291.º: tudo o
que foi prestado deverá ser devolvido e A poderá devolver o carro a B.

II (10 valores)
Situação do problema no âmbito dos direitos de personalidade.
Breve caracterização dos direitos de personalidade. Tutela geral e tutela
descentralizada dos direitos de personalidade.
Reconhecimento fáctico das possíveis violações dos direitos de personalidade
ocorridas na esfera jurídica de X:
- honra; bom nome profissional.
Bem jurídico protegido. Direito à inviolabilidade pessoal na projecção moral:
Ofensa ao bom nome e reputação deontológica ou profissional; as camadas da honra e
a sua disponibilidade. As camadas da honra e sua disponibilidade.
Direito à inviolabilidade pessoal na projecção vital: direito à história pessoal.
Irrelevância da exceptio veritatis para a tutela civil. O art. 484º, CC. Direito à verdade
pessoal, caso as revelações não fossem verídicas.
Reconhecimento fáctico das possíveis violações dos direitos de personalidade
ocorridas na esfera jurídica de Y e Z :
- alegações sobre envolvimento na morte da criança e afirmações sensacionalistas,
consequente exposição mediática.
Bens jurídicos protegidos. Direito à inviolabilidade pessoal na projecção moral, a
honra extrínseca; direito à verdade pessoal; direito à intimidade da vida privada,
nomeadamente na esfera privada.
Reconhecimento fáctico das possíveis violações dos direitos de personalidade
ocorridas na esfera jurídica dos filhos menores de Y e Z:
- perturbações no desenvolvimento e exposição pública.
Bens jurídicos protegidos. Direito ao livre desenvolvimento da personalidade, direito
geral de personalidade. Ofensa à integridade moral, por perturbações psicológicas.
Direito à intimidade da vida privada, nomeadamente na esfera privada.
Relevo apenas na hipótese de causalidade adequada das perturbações pela
publicação do livro.
Legitimidade dos pais para a defesa dos direitos de personalidade dos menores.
Afloramentos positivos de cada um destes direitos na CRP e no CC.
Tensão com o direito do autor à liberdade de criação e de defesa do seu bom nome.
A colisão de direitos – art. 335º, CC. Prevalência axiológica dos direitos ligados à
essência da pessoa
Consequências normativas da violação dos direitos de personalidade. A violação dos
direitos de personalidade como facto ilícito. A responsabilidade por facto ilícito – art.
483º, CC. O carácter extra-patrimonial da lesão dos bens da personalidade.
Os mecanismos de tutela possibilitados pelo art. 70º, n.º 2, CC., in casu: retirada do
livro de circulação; retratação na hipótese de afirmações inverídicas; recurso a sanção
pecuniária compulsória para o caso de persistência na violação.

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