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UNIVERSIDADE DO PORTO — FACULDADE DE DIREITO

TEORIA GERAL DO DIREITO CIVIL


Exame Final — 21.05.2019

Duração da prova: 2 horas


Nota prévia: Apenas é permitida a consulta de códigos não anotados. A ilegibilidade das respostas implica
a sua não consideração. Na resposta a cada questão deve, sempre que se justifique, considerar as diversas hipóteses
relevantes. Fundamente sempre as respostas e apresente exemplos pertinentes. O rigor e a clareza de exposição serão
factores de valorização da prova. As respostas às perguntas I e II deverão constar de folhas separadas.

I (5+5 valores)
No dia 10 de Abril de 2017, A intentou uma acção contra o jornal X, em virtude de uma
notícia publicada no dia 8 de Março anterior sobre o estado de saúde de sua mãe, B, uma
conhecida escritora.
O pedido de indemnização formulado baseava-se na violação de direitos próprios de A e
de B, invocando que, na edição de 8 de Março de 2017, o jornal X, em manchete ocupando
quase a totalidade da primeira página, publicou que "B tem a doença de Alzheimer".
Este título era acompanhado de uma fotografia a cores da escritora e de uma chamada
para a página 11 da edição.
Na página 11, a peça jornalística assinada por C era ilustrada com outra fotografia da
escritora e tinha como título "B sofre de Alzheimer". A notícia tinha ainda como ante
título "Escritora em dificuldades há já vários anos" e como entrada "Aos 84 anos B vive
momentos difíceis, devido a esta doença incurável".
a) Terá êxito a pretensão de A?
b) Supondo que B se encontra incapacitada de gerir os seus interesses patrimoniais e de
exercer os seus direitos pessoais, quem poderá proteger a sua esfera jurídica?

II (10 valores)
A, pai de C, vivia maritalmente com B há já vários anos num apartamento de que o
primeiro era proprietário quando lhe foi diagnosticada uma doença fatal. Pouco tempo
depois, celebrou com D, filha de B, um contrato de compra e venda, mediante escritura
pública, do referido imóvel pelo preço de 85.800 euros. O preço em causa nunca chegou
a ser pago, uma vez que A pretendia beneficiar B, que dele cuidou durante a sua doença.
Após a morte de seu pai, C, seu único herdeiro, veio propor uma acção pedindo que seja
declarada nula a compra e venda de imóvel identificado, celebrada entre A e D, “por ter
sido celebrada com simulação absoluta e, em consequência, restabelecida a situação pré-
existente à data da celebração do referido contrato, devendo, para o efeito, o imóvel voltar
a pertencer à herança por morte do referido C e rectificar-se o registo predial em
conformidade”.
[Acórdão do STJ de 21.02.2019 (Nuno Pinto de Oliveira), in <www.dgsi.pt>]
Diga se C terá êxito na sua pretensão.
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TEORIA GERAL DO DIREITO CIVIL
Exame Final — 21.05.2019 — Critérios de correcção

Critérios de correcção

I.a) Caracterização dos direitos de personalidade (irrenunciáveis, inalienáveis, passíveis de


limitação voluntária).
— Tutela geral da personalidade (70.º, 1) e tutela de bens da personalidade em particular (71.º e
ss.). Relação entre as duas modalidades de tutela.
— Estudo particular da violação dos seguintes bens:
a) Reserva da vida privada (80, n.º 1). Problematização do eventual interesse público da notícia
(80.º, n.º 2). Distinção eventual entre diferentes esferas da vida privada.
b) Imagem (79.º, 1), considerando novamente o eventual interesse público da notícia (79.º, 2, com
os limites do art. 79.º, 3).
— Referência possível à colisão de direitos (335.º).
— Tipologia aberta de meios de tutela (70.º, 2), incluindo a responsabilidade civil (483.º e ss.).
— Imputabilidade à pessoa colectiva titular do jornal dos actos praticados pelo jornalista (165.º,
500.º)
— Em qualquer um dos casos, está apenas (ou quase exclusivamente) em causa o atentado à
personalidade de B e não de A. A é só reflexamente atingida. Ilegitimidade de A para em seu
nome próprio requerer a tutela de B.

b) Localização da questão no âmbito da incapacidade de exercício.


— Aplicabilidade do regime da interdição e inabilitação se a protecção de B tiver ocorrido antes
da entrada em vigor da Lei 49/2018, 14 de Agosto.
— Efeitos e poderes da tutela, na hipótese de interdição e da curatela, caso a situação fáctica
justificasse a inabilitação.
— Aplicação do regime do acompanhamento de maiores, na hipótese de a protecção ocorrer após
a entrada em vigor da Lei 49/2018.
— A modelação da incapacidade pela sentença judicial e sua repercussão sobre os efeitos do
acompanhamento.
— Autonomia do acompanhado e diferimento do acompanhamento.

II. Simulação como causa de invalidade do negócio jurídico. Modalidade de divergência,


intencional, entre a vontade e a declaração.
— Pressupostos da simulação (art. 240.º, n.º 1): divergência intencional entre vontade e a
declaração; acordo entre declarante e declaratário; intuito de enganar terceiros.
— Simulação relativa.
— Qualificação do negócio simulado (compra e venda entre A e D) e do negócio dissimulado
(doação entre A e B).
— Simulação objectiva, respeitante à natureza do negócio, e subjectiva, na modalidade de
interposição fictícia de pessoas.
— Negócio simulado: Sua nulidade (art. 240.º, n.º 2).
— Efeitos da nulidade (art. 289.º, 1).
— Invocabilidade por qualquer interessado – o que inclui C –, mesmo entre os simuladores, a
todo o tempo (art. 242.º, n.º 1 e art. 286.º).
— Legitimidade do herdeiro legitimário, caso o pretendesse, para arguir a nulidade logo em vida
de A (art. 242.º, n.º 2). Tal regra permite que o herdeiro legitimário argua a nulidade, não só
depois da morte do Autor da sucessão, mas também em sua vida.
— Negócio dissimulado: eventual validade do negócio dissimulado não prejudicada pela
invalidade do negócio simulado (art. 241.º, n.º 1), devendo todavia, na ausência de
contradeclaração com os requisitos exigidos (que não havia no caso), o negócio simulado respeitar
as exigências de ordem formal colocadas para a validade do negócio dissimulado (art.241.º, n.º
2). Nenhum negócio translativo simulado, cuja forma abstractamente pudesse aproveitar ao
negócio dissimulado, chegou a ser efectivamente celebrado com B. Acresce que, tratando-se de
simulação respeitante de pessoas e sobre a natureza do negócio, a forma do negócio simulado não
aproveitaria ao negócio dissimulado, que seria assim nulo, nos termos gerais, por vício de forma
(art. 947.º, 1 e art. 220.º).

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