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-SENTENÇA-
Vistos, etc.
1 – Relatório
Trata-se de ação de indenização por danos morais ajuizada por Duda Salabert Rosa contra
Nikolas Ferreira de Oliveira, qualificados nos autos.
Consta da inicial que: (i) a autora, professora, ativista e mulher transexual, candidatou-se ao
cargo de vereadora no ano de 2020; (ii) durante a campanha eleitoral daquele ano, o réu, também
candidato a vereador, recusou-se, em diversos momentos, a respeitar a identidade de gênero da
autora; (iii) em uma dessas ocasiões, no dia 15 de novembro de 2020, o requerido concedeu uma
entrevista ao jornal Estado de Minas, prestando a seguinte declaração: “Eu ainda irei chamá-la de
'ele'. Ele é homem. É isso o que está na certidão dele, independentemente do que ele acha que
é”; (iv) no dia seguinte, o réu repercutiu a matéria em suas redes sociais “Twitter” e “Instagram”,
insistindo na ofensa e utilizando tom jocoso em suas publicações. Discorre sobre o direito
alegado, sobre o conceito de identidade de gênero e sua proteção pelo ordenamento jurídico. Ao
Instadas a especificarem provas, a parte autora requereu o julgamento antecipado da lide e o réu
pugnou pelo depoimento pessoal das partes e pela intimação da autora para juntar a reportagem
concedida ao Jornal Estado de Minas, na íntegra.
É o relatório. Decido.
2 – Fundamentação
A pretensão da parte autora é pela reparação por danos morais em razão de pronunciamento do
requerido em entrevistas ao Jornal Estado de Minas e publicações realizadas nas redes sociais.
Segundo o art. 935 do Código Civil, “a responsabilidade civil é independente da criminal, não se
podendo questionar mais sobre a existência do fato, ou sobre quem seja o seu autor, quando
estas questões se acharem decididas no juízo criminal”.
Nesse sentido:
(...).
2.2- Do mérito
A parte autora alega que, durante entrevista ao Jornal Estado de Minas, o requerido, recém eleito
vereador, teria ofendido sua imagem e honra ao se recusar a respeitar sua identidade de gênero.
Ainda, no dia seguinte, o requerido repercutiu a matéria em suas redes sociais em tom
Inicialmente, necessário tecer breves considerações acerca dos conceitos de sexo, identidade de
gênero e dos direitos de personalidade.
Enquanto sexo seria um termo biológico, gênero seria psicológico e cultural, referindo-se,
portanto “à forma como é culturalmente identificada, no âmbito social, a expressão da
masculinidade e da feminilidade, adotando-se como parâmetro, para tanto, o modo de ser do
homem e da mulher em suas relações sociais".
Identidade de gênero, por sua vez, está relacionado ao gênero com que a pessoa se reconhece,
que pode ou não corresponder à identidade esperada a partir da atribuição do sexo no
nascimento. Diz respeito a uma percepção interna. Desse modo, pode haver correspondência
com a designação sexual atribuída no nascimento (cisgeneridade), ou dissonância entre o sexo
biológico e a identidade de gênero (transexualidade).
Sobre a responsabilidade civil, os artigos 186 e 927 do Código Civil assim dispõem:
Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência,
Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica
obrigado a repará-lo.
Como se extrai, a conduta do agente, a culpa em sentido amplo, o dano e o nexo de causalidade,
constituem elementos indispensáveis à configuração da responsabilidade extracontratual ou
aquiliana.
Quanto aos danos morais, estes se caracterizam pela violação dos direitos integrantes da
personalidade do indivíduo, atingindo valores internos e anímicos da pessoa, tais como a dor, a
intimidade, a vida privada, a honra, entre outros.
Segundo Sérgio Cavalieri Filho o "dano moral, à luz da Constituição vigente, nada mais é do que
agressão à dignidade humana" e explica: "(...) só deve ser reputado como dano moral a dor,
vexame, sofrimento ou humilhação que, fugindo à normalidade, interfira intensamente no
comportamento psicológico do indivíduo, causando-lhe aflições, angústia e desequilíbrio em seu
bem-estar. Mero aborrecimento, dissabor, mágoa, irritação ou sensibilidade exacerbada estão
fora da órbita do dano moral, porquanto, além de fazerem parte da normalidade do nosso dia a
dia, no trabalho, no trânsito, entre os amigos e até no ambiente familiar, tais situações não são
intensas e duradouras, a ponto de romper o equilíbrio psicológico do indivíduo. Se assim não se
entender, acabaremos por banalizar o dano moral, ensejando ações judiciais em busca de
Desse modo, constitui dano moral o prejuízo decorrente de dor que provoca constrangimento,
mágoa ou tristeza na intimidade da pessoa, que se diferencia, porém, de meros aborrecimentos
aos quais todas as pessoas estão sujeitas porque são fatos corriqueiros e atinentes à vida em
sociedade e, por conseguinte, incapazes de gerar dano passível de ressarcimento.
De fato, para que haja a compensação da dor moral, o ato considerado como ilícito deve ser
capaz de ocasionar um sofrimento físico ou espiritual, infligindo tristezas, preocupações,
angústias ou humilhações, afetando o psicológico do ofendido de forma a suplantar os meros
aborrecimentos, servindo a indenização como forma de compensar a lesão sofrida.
No caso dos autos, a autora, conhecida professora e ativista pelos direitos dos transsexuais em
Belo Horizonte e no Brasil, de vez que eleita Deputada Federal nas eleições de 2022, vem há
anos se apresentando perante a sociedade como mulher, tendo, inclusive, alterado seu
assentamento civil para constar mudança de nome e sexo para o feminino.
Em outra entrevista ao mesmo jornal, quando perguntado pela jornalista se temia ser processado
por afirmar que não reconhecia Duda Salabert como mulher, o réu respondeu: “É biologia. Eu não
estou falando algo que eu acho. Ele é um homem. E é importante deixar claro que não existe
nenhuma criminalização com relação à biologia. Simplesmente estou falando aquilo que a ciência
diz. Por favor, me aponte onde eu tive uma atitude homofóbica e onde há jurisprudência ou
qualquer ordenamento jurídico que diz que fui transfóbico. Chamar um homem de homem não é
transfobia, é dizer aquilo que ele é à luz da ciência. Mudem a ciência”. (ID 2759831417).
Contudo, tais direitos, assim como todos os direitos fundamentais, não são absolutos e podem
ser restringidos quando colidirem com outros direitos.
O argumento de adesão à “corrente biológica” também não merece acolhida, porque o STF já
possui entendimento no sentido de que alteração do prenome e gênero pela pessoa transgênero
independentemente de cirurgia de transgenitalização, uma vez que a alteração no assentamento
decorre da dignidade da pessoa humana e do “direito do ser humano de buscar a integridade e
apresentar-se à sociedade como de fato se enxerga.” (ADI 4.275/DF, Red. p/ o acórdão Min.
EDSON FACHIN).
E no caso dos autos, restou comprovado que o requerido, em duas entrevistas para o Jornal
É inegável que a recusa em se dirigir à autora como mulher lhe causou constrangimento,
abalando sua honra, imagem e dignidade, aspectos integrantes da integridade psicofísica.
Não há que se falar, também e por fim, em imunidade parlamentar, visto que, ao tempo dos fatos,
o requerido, que foi Vereador e hoje é Deputado Federal, ainda não havia sido diplomado em
nenhum desses cargos.
"Na reparação do dano moral, o juiz determina, por equidade, levando em conta as circunstâncias
de cada caso, o quantum da indenização devida, que deverá corresponder à lesão e não ser
equivalente, por ser impossível tal equivalência. A reparação pecuniária do dano moral é um
misto de pena e satisfação compensatória. Não se pode negar sua função: penal, constituindo
uma sanção imposta ao ofensor; e compensatória, sendo uma satisfação que atenue a ofensa
causada, proporcionando uma vantagem ao ofendido, que poderá, com a soma de dinheiro
recebida, procurar atender a necessidades materiais ou ideais que repute convenientes,
diminuindo, assim, seu sofrimento" ("A Responsabilidade Civil por Dano Moral", in Revista
Literária de Direito, ano II, n. 9, jan./fev/ de 1996, p. 9).
Desse modo, devem ser levadas em consideração a qualidade de figura pública dos litigantes, a
repercussão gerada pelas afirmações do requerido, além da capacidade econômica das partes,
de modo que o valor arbitrado cumpra seu caráter pedagógico ao ofensor e compensatório à
É fato notório que o réu foi eleito Deputado Federal por Minas Gerais, sendo o mais votado do
país em 2022, com 1,47 milhão de votos. Ainda, é incontestável sua grande influência nas redes
sociais, que conta com cerca de 7 milhões de seguidores no Instagram e 2,3 milhões no Twitter.
A autora, por sua vez, foi a terceira deputada federal mais votada do estado em 2022, com 208
mil votos e a vereadora mais votada da história de Belo Horizonte, com mais de 37 mil votos. É
evidente, portanto, que as notícias veiculadas pelo Jornal Estado de Minas e as postagens feitas
nas redes sociais do requerido tiveram grande repercussão, sobretudo, por envolverem, à época
dos fatos, os dois vereadores mais votados da cidade.
3 – DISPOSITIVO
Ante o exposto, JULGO PROCEDENTE o pedido inicial, com resolução do mérito, nos termos do
art. 487, I, c/c 490, caput, ambos do CPC, para condenar o réu ao pagamento de indenização por
danos morais à autora, na importância de R$ 80.000,00 (oitenta mil reais), a ser corrigida
monetariamente pelos índices publicados pela Corregedoria Geral de Justiça do Estado de Minas
Gerais, a partir do arbitramento, acrescida de juros de mora de 1% ao mês, a partir do evento
danoso, conforme Súmula 54 do STJ.