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PODER JUDICIÁRIO DO ESTADO DE MINAS GERAIS

Justiça de Primeira Instância

Comarca de BELO HORIZONTE / 33ª Vara Cível da Comarca de Belo Horizonte

PROCESSO Nº: 5035039-29.2021.8.13.0024

CLASSE: [CÍVEL] PROCEDIMENTO COMUM CÍVEL (7)

ASSUNTO: [Indenização por Dano Moral]

AUTOR: DUDA SALABERT ROSA

RÉU/RÉ: NIKOLAS FERREIRA DE OLIVEIRA

-SENTENÇA-

Vistos, etc.

1 – Relatório

Trata-se de ação de indenização por danos morais ajuizada por Duda Salabert Rosa contra
Nikolas Ferreira de Oliveira, qualificados nos autos.

Consta da inicial que: (i) a autora, professora, ativista e mulher transexual, candidatou-se ao
cargo de vereadora no ano de 2020; (ii) durante a campanha eleitoral daquele ano, o réu, também
candidato a vereador, recusou-se, em diversos momentos, a respeitar a identidade de gênero da
autora; (iii) em uma dessas ocasiões, no dia 15 de novembro de 2020, o requerido concedeu uma
entrevista ao jornal Estado de Minas, prestando a seguinte declaração: “Eu ainda irei chamá-la de
'ele'. Ele é homem. É isso o que está na certidão dele, independentemente do que ele acha que
é”; (iv) no dia seguinte, o réu repercutiu a matéria em suas redes sociais “Twitter” e “Instagram”,
insistindo na ofensa e utilizando tom jocoso em suas publicações. Discorre sobre o direito
alegado, sobre o conceito de identidade de gênero e sua proteção pelo ordenamento jurídico. Ao

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final, requer a procedência do pedido na forma exposta no ID 2759231561, com a condenação do
réu ao pagamento de reparação por danos morais. Junta documentos.

Regularmente citado (ID 4223928009), o réu ofereceu contestação no ID 4629228036.

Consta da peça defensiva, preliminarmente, alegação de nulidade processual diante da


necessidade de realização de audiência de conciliação, impugnação ao valor da causa e inépcia
da petição inicial. No mérito, aduz que: (i) inexiste o elemento subjetivo do agente para a
configuração da responsabilidade civil, uma vez que o réu agiu de maneira exclusivamente
ideológica; (ii) das palavras proferidas, não se pode extrair qualquer interpretação de
discriminação e atentado à honra da requerente; (iii) o pronunciamento do réu apenas
corresponde ao que defende a corrente biológica, segundo a qual seria necessária a realização
de procedimento cirúrgico de redesignação de sexo para a alteração de nome e gênero no
assento de registro civil. Discorre sobre o direito, requerendo, ao final, a improcedência dos
pedidos iniciais. Pugna, ainda, pela condenação da autora em litigância de má-fé.

Impugnação em ID 5437383011, oportunidade em que a autora requereu o aditamento da inicial


para corrigir o valor mínimo do pedido de danos morais para R$30.000,00.

Instadas a especificarem provas, a parte autora requereu o julgamento antecipado da lide e o réu
pugnou pelo depoimento pessoal das partes e pela intimação da autora para juntar a reportagem
concedida ao Jornal Estado de Minas, na íntegra.

Decisão saneadora em ID 7401333005, oportunidade em que foram rejeitadas as preliminares de


inépcia da inicial e nulidade processual e determinada a intimação do réu para se manifestar
sobre o aditamento realizado pela autora. Ainda, foi deferida a produção de prova oral,
consistente no depoimento pessoal da autora, e sua intimação para juntada da íntegra da
entrevista concedida pelo réu.

Reportagem juntada em ID 9501061007.

Na petição de ID 9502114133, o requerido anuiu com o aditamento da inicial.

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Realizada audiência de instrução (ID 9606110480), a parte ré desistiu do depoimento pessoal da
parte autora.

Memorial de alegações finais pela autora em ID 9617239512 e pelo réu em ID 9624533779,


oportunidade em que requereu a suspensão do processo em razão da existência de processo
criminal em curso.

É o relatório. Decido.

2 – Fundamentação

A pretensão da parte autora é pela reparação por danos morais em razão de pronunciamento do
requerido em entrevistas ao Jornal Estado de Minas e publicações realizadas nas redes sociais.

2.1 – Da suspensão do processo

O requerido requer a suspensão da presente ação, em razão da existência de processo criminal


em curso para apurar suposta prática de crime de transfobia em relação aos fatos narrados na
inicial.

Sem razão o requerido.

Segundo o art. 935 do Código Civil, “a responsabilidade civil é independente da criminal, não se
podendo questionar mais sobre a existência do fato, ou sobre quem seja o seu autor, quando
estas questões se acharem decididas no juízo criminal”.

Ainda, a suspensão do processo cível em razão da existência de processo criminal em curso, é


faculdade do juiz, que poderá determinar a suspensão do processo, até que se pronuncie a
justiça criminal, se o conhecimento do mérito depender de verificação da existência de fato

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delituoso, conforme dispõe o art. 315 do Código de Processo Civil.

Nesse sentido:

EMENTA: APELAÇÃO - AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR ACIDENTE DE TRÂNSITO -


PRELIMINARES - CERCEAMENTO DE DEFESA - SUSPENSÃO PROCESSO CIVIL -
NULIDADE DA SENTENÇA POR OMISSÃO - REJEITADAS - RESPONSABILIDADE
CIVIL CONFIGURADA - INVASÃO A CONTRAMÃO DE DIREÇÃO - ÓBITO DE
PASSAGEIRO DA CARRETA - NÃO UTILIZAÇÃO DO CINTO DE SEGURANÇA -
CULPA CONCORRENTE DA VÍTIMA - NÃO CONFIGURADA - DANO MORAL-
REDUÇÃO - IMPOSSIBILIDADE - PENSIONAMENTO - DEPENDENCIA ECONÔMICA
DA GENITORA VERIFICADA - DESPESAS FUNERÁRIAS - AUSÊNCIA DE
COMPROVAÇÃO - DESCONTO DE BENEFÍCIO PREVIDENCIÁRIO -
IMPOSSIBILIDADE - DESCONTO DE INDENIZAÇÃO DPVAT - POSSIBILIDADE -
TERMO FINAL DO PENSIONAMENTO - REDUÇÃO DE HONORÁRIOS -
IMPOSSIBILIDADE - CONDENAÇÃO DA SEGURADORA A HONORÁRIOS
SUCUMBENCIAIS - RESITÊNCIA À PRETENSÃO AUTORAL.

(...).

A responsabilidade civil e a criminal são independentes, logo, o sobrestamento da ação


no juízo cível constitui-se como mera faculdade do julgador e aplica-se tão somente
quando a questão discutida na ação penal for prejudicial àquela que se busca apurar no
âmbito civil. (...). (TJMG - Apelação Cível 1.0672.10.021449-9/001, Relator(a): Des.(a)
Marcos Henrique Caldeira Brant , 16ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 06/10/2021,
publicação da súmula em 08/10/2021)

No caso, entendo não haver necessidade de suspensão do processo, considerando que a


configuração ou não do crime de transfobia não impede a condenação do requerido por danos
morais, em razão dos fatos narrados na inicial, se verificados os requisitos da responsabilidade
civil, com consequente ofensa aos direitos de personalidade da autora.

Rejeito, portanto, o pedido de suspensão do processo.

2.2- Do mérito

A parte autora alega que, durante entrevista ao Jornal Estado de Minas, o requerido, recém eleito
vereador, teria ofendido sua imagem e honra ao se recusar a respeitar sua identidade de gênero.
Ainda, no dia seguinte, o requerido repercutiu a matéria em suas redes sociais em tom

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alegadamente jocoso e, tempos depois, em nova entrevista concedida ao mesmo jornal.

O requerido, por sua vez, sustenta a inexistência dos elementos caracterizadores da


responsabilidade civil, alegando que as falas proferidas fazem parte de seu discurso ideológico.

Cinge-se a controvérsia, portanto, em apurar se as manifestações públicas do requerido em


entrevistas concedidas ao jornal Estado de Minas, bem como em postagens feitas em suas redes
sociais constituem ofensa aos direitos de personalidade da autora, ensejando, por conseguinte,
sua responsabilização por danos morais.

Inicialmente, necessário tecer breves considerações acerca dos conceitos de sexo, identidade de
gênero e dos direitos de personalidade.

No julgamento da ADO 26, o Supremo Tribunal Federal conceituou sexo biológico “a


conformação física e anatômica do indivíduo, que se restringe à mera verificação de fatores
genéticos (cromossomos femininos ou masculinos), gonadais (ovários ou testículos), genitais
(pênis ou vagina) ou morfológicos (aspectos físicos externos gerais). Esse critério dá ensejo à
ordenação das pessoas, segundo sua designação sexual, em homens, mulheres e intersexuais
(pessoas que apresentam características sexuais ambíguas)”.

Enquanto sexo seria um termo biológico, gênero seria psicológico e cultural, referindo-se,
portanto “à forma como é culturalmente identificada, no âmbito social, a expressão da
masculinidade e da feminilidade, adotando-se como parâmetro, para tanto, o modo de ser do
homem e da mulher em suas relações sociais".

Identidade de gênero, por sua vez, está relacionado ao gênero com que a pessoa se reconhece,
que pode ou não corresponder à identidade esperada a partir da atribuição do sexo no
nascimento. Diz respeito a uma percepção interna. Desse modo, pode haver correspondência
com a designação sexual atribuída no nascimento (cisgeneridade), ou dissonância entre o sexo
biológico e a identidade de gênero (transexualidade).

Na Introdução aos Princípios de Yogyakarta, documento apresentado no Conselho de Direitos


Humanos da ONU, são traçadas diretrizes sobre a aplicação da legislação internacional acerca

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dos direitos humanos no que tange relação à orientação sexual e à identidade de gênero.

No documento, o direito ao reconhecimento assinala que “a orientação sexual e a identidade de


gênero autodefinidas por cada pessoa constituem parte essencial de sua personalidade e um dos
aspectos mais básicos de sua autodeterminação, dignidade e liberdade”.

Quanto aos direitos da personalidade, da leitura conjunta da Constituição Federal de 1988 e do


Código Civil de 2002, é possível depreender que estes são “um complexo de interesses, voltados
ao desenvolvimento da personalidade” (ANDRADE, 2013, p. 88), nos quais se elencam “os
direitos à vida, à integridade física (incluindo o direito ao corpo), à integridade psíquica ou
intelectual (e direitos à liberdade, de pensamento, privacidade, intimidade) e à integridade moral
(proteção à honra, imagem, identidade e personalidade”. (DANTAS, Ana Cecília de Morais e
Silva. Direito de personalidade à autodeterminação da identidade de gênero: limites e
possibilidades para sua configuração no direito brasileiro Tese (Doutorado em Direito) Faculdade
de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2019, p. 40).

A identidade de gênero, portanto, pode ser entendida como aspecto fundamental da


personalidade e da dignidade humana, merecendo proteção contra arbitrariedades estatais e
lesões praticadas por terceiros no âmbito das relações particulares.

E, na hipótese de violação aos direitos da personalidade, nasce para o ofendido o direito à


reparação por dano moral. Isso porque a Constituição Federal “deu ao homem lugar de destaque,
realçou seus direitos e fez deles o fio condutor de todos os ramos jurídicos. A dignidade humana
pode ser considerada, assim, um direito constitucional subjetivo – essência de todos os direitos
personalíssimos –, e é o ataque a esse direito o que se convencionou chamar dano moral” (STJ,
REsp 1.245.550/MG, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 17.03.2015, DJe 16.04.2015).

Para a caracterização da responsabilidade civil, contudo, devem estar presentes os requisitos do


ato ilícito, da culpa, do dano e do nexo causal.

Sobre a responsabilidade civil, os artigos 186 e 927 do Código Civil assim dispõem:

Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência,

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violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato
ilícito.

Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica
obrigado a repará-lo.

Como se extrai, a conduta do agente, a culpa em sentido amplo, o dano e o nexo de causalidade,
constituem elementos indispensáveis à configuração da responsabilidade extracontratual ou
aquiliana.

Com referência ao tema, leciona Caio Mário da Silva Pereira:

Deste conceito extraem-se os requisitos essenciais: a) em primeiro lugar, a verificação de uma


conduta antijurídica, que abrange comportamento contrário ao direito, por comissão ou omissão,
sem necessidade de indagar se houve ou não propósito de malfazer; b) em segundo lugar, a
existência de dano, tomada a expressão no sentido de a lesão a um bem jurídico, seja este de
ordem material ou imaterial, de natureza patrimonial ou não-patrimonial; c) e em terceiro lugar, o
estabelecimento de um nexo de causalidade entre uma e outro, de forma a precisar-se que o
dano decorre da conduta antijurídica, ou, em termos negativos, que sem a verificação do
comportamento contrário ao direito não teria havido o atentado a bem jurídico. (Instituições de
Direito Civil, I, Editora Forense, pág. 457).

Quanto aos danos morais, estes se caracterizam pela violação dos direitos integrantes da
personalidade do indivíduo, atingindo valores internos e anímicos da pessoa, tais como a dor, a
intimidade, a vida privada, a honra, entre outros.

Segundo Sérgio Cavalieri Filho o "dano moral, à luz da Constituição vigente, nada mais é do que
agressão à dignidade humana" e explica: "(...) só deve ser reputado como dano moral a dor,
vexame, sofrimento ou humilhação que, fugindo à normalidade, interfira intensamente no
comportamento psicológico do indivíduo, causando-lhe aflições, angústia e desequilíbrio em seu
bem-estar. Mero aborrecimento, dissabor, mágoa, irritação ou sensibilidade exacerbada estão
fora da órbita do dano moral, porquanto, além de fazerem parte da normalidade do nosso dia a
dia, no trabalho, no trânsito, entre os amigos e até no ambiente familiar, tais situações não são
intensas e duradouras, a ponto de romper o equilíbrio psicológico do indivíduo. Se assim não se
entender, acabaremos por banalizar o dano moral, ensejando ações judiciais em busca de

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indenizações pelos mais triviais aborrecimentos. (...)" (in Programa de Responsabilidade Civil -
10. ed. - São Paulo: Atlas, 2012, p. 93).

Desse modo, constitui dano moral o prejuízo decorrente de dor que provoca constrangimento,
mágoa ou tristeza na intimidade da pessoa, que se diferencia, porém, de meros aborrecimentos
aos quais todas as pessoas estão sujeitas porque são fatos corriqueiros e atinentes à vida em
sociedade e, por conseguinte, incapazes de gerar dano passível de ressarcimento.

De fato, para que haja a compensação da dor moral, o ato considerado como ilícito deve ser
capaz de ocasionar um sofrimento físico ou espiritual, infligindo tristezas, preocupações,
angústias ou humilhações, afetando o psicológico do ofendido de forma a suplantar os meros
aborrecimentos, servindo a indenização como forma de compensar a lesão sofrida.

No caso dos autos, a autora, conhecida professora e ativista pelos direitos dos transsexuais em
Belo Horizonte e no Brasil, de vez que eleita Deputada Federal nas eleições de 2022, vem há
anos se apresentando perante a sociedade como mulher, tendo, inclusive, alterado seu
assentamento civil para constar mudança de nome e sexo para o feminino.

Inobstante, o requerido, quando entrevistado para o Jornal Estado de Minas, prestou as


seguintes declarações, direcionadas à autora: “Eu ainda irei chamá-la de ele. Ele é homem. É
isso que está na certidão dele, independentemente do que ele acha que é” (ID 2759831413) .
Ainda, em suas redes socais, o requerido repercutiu a notícia com os dizeres: “Absurdo!! Chamei
um homem de homem! O choro começou” (ID 2759231561, pág. 3).

Em outra entrevista ao mesmo jornal, quando perguntado pela jornalista se temia ser processado
por afirmar que não reconhecia Duda Salabert como mulher, o réu respondeu: “É biologia. Eu não
estou falando algo que eu acho. Ele é um homem. E é importante deixar claro que não existe
nenhuma criminalização com relação à biologia. Simplesmente estou falando aquilo que a ciência
diz. Por favor, me aponte onde eu tive uma atitude homofóbica e onde há jurisprudência ou
qualquer ordenamento jurídico que diz que fui transfóbico. Chamar um homem de homem não é
transfobia, é dizer aquilo que ele é à luz da ciência. Mudem a ciência”. (ID 2759831417).

Os fatos narrados são incontroversos e estão acompanhados de documentos que comprovam as


palavras proferidas pelo requerido que, por sua vez, não nega os acontecimentos, mas sustenta

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estar amparado pelo direito à liberdade de expressão e à manifestação religiosa.

Contudo, tais direitos, assim como todos os direitos fundamentais, não são absolutos e podem
ser restringidos quando colidirem com outros direitos.

A Convenção Americana de Direitos Humanos impõe, em seu o artigo 13, 2, restrições ao


exercício da liberdade ao pontuar a necessidade, no exercício de um direito, de se assegurar: "a)
o respeito aos direitos de reputação das demais pessoa ou b) a proteção da segurança nacional,
da ordem pública, ou da saúde ou da moral pública" (Corte IDH. Caso Herrera Ulloa vs. Costa
Rica. Exceções preliminares, mérito, reparações e custas. Sentença de 2-7-2004).

Especificamente, tenho que as palavras proferidas pelo requerido ultrapassam os limites da


liberdade de expressão e manifestação religiosa. Primeiramente, porque não constituem
instrumento de debate inerente às deliberações democráticas, cujo objetivo e fundamento é
“formar a vontade da maioria com respeito à minoria”( HC 82.424/RS). Segundo, porque as
afirmações esbarram no direito à honra, à dignidade e à autodeterminação da autora, que se
reconhece como mulher e deseja, por consequência, que a sociedade a respeite enquanto tal.

O argumento de adesão à “corrente biológica” também não merece acolhida, porque o STF já
possui entendimento no sentido de que alteração do prenome e gênero pela pessoa transgênero
independentemente de cirurgia de transgenitalização, uma vez que a alteração no assentamento
decorre da dignidade da pessoa humana e do “direito do ser humano de buscar a integridade e
apresentar-se à sociedade como de fato se enxerga.” (ADI 4.275/DF, Red. p/ o acórdão Min.
EDSON FACHIN).

Assim, se as pessoas transgênero têm direito de se apresentar à sociedade da forma como se


enxergam, logo, também têm direito de ser tratadas e respeitadas por terceiros de acordo com
sua identidade de gênero.

A negativa de reconhecimento da identidade de gênero configura, portanto, ato ilícito passível de


responsabilização por dano moral.

E no caso dos autos, restou comprovado que o requerido, em duas entrevistas para o Jornal

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Estado de Minas, um dos maiores veículos de comunicação do estado, se negou a reconhecer a
autora como mulher. Realizou, ainda, comentários jocosos e irônicos em suas redes sociais a
respeito da identidade de gênero da requerente, os quais tiveram grande repercussão, com mais
de 8 mil “likes” no Twitter e 57 mil no Instagram.

É inegável que a recusa em se dirigir à autora como mulher lhe causou constrangimento,
abalando sua honra, imagem e dignidade, aspectos integrantes da integridade psicofísica.

Não há que se falar, também e por fim, em imunidade parlamentar, visto que, ao tempo dos fatos,
o requerido, que foi Vereador e hoje é Deputado Federal, ainda não havia sido diplomado em
nenhum desses cargos.

No tocante ao quantum da indenização, cumpre observar que a reparação do dano moral


significa uma forma de compensação e nunca de reposição valorativa de uma perda, e deve ser
fixada segundo o prudente arbítrio do julgador, sempre com moderação, observando-se as
peculiaridades do caso concreto e os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, de modo
que o valor não seja tão elevado que se constitua em fonte de enriquecimento sem causa,
tampouco insignificante a ponto de não atender ao seu caráter punitivo.

Sobre o tema, Maria Helena Diniz observa que:

"Na reparação do dano moral, o juiz determina, por equidade, levando em conta as circunstâncias
de cada caso, o quantum da indenização devida, que deverá corresponder à lesão e não ser
equivalente, por ser impossível tal equivalência. A reparação pecuniária do dano moral é um
misto de pena e satisfação compensatória. Não se pode negar sua função: penal, constituindo
uma sanção imposta ao ofensor; e compensatória, sendo uma satisfação que atenue a ofensa
causada, proporcionando uma vantagem ao ofendido, que poderá, com a soma de dinheiro
recebida, procurar atender a necessidades materiais ou ideais que repute convenientes,
diminuindo, assim, seu sofrimento" ("A Responsabilidade Civil por Dano Moral", in Revista
Literária de Direito, ano II, n. 9, jan./fev/ de 1996, p. 9).

Desse modo, devem ser levadas em consideração a qualidade de figura pública dos litigantes, a
repercussão gerada pelas afirmações do requerido, além da capacidade econômica das partes,
de modo que o valor arbitrado cumpra seu caráter pedagógico ao ofensor e compensatório à

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vítima.

É fato notório que o réu foi eleito Deputado Federal por Minas Gerais, sendo o mais votado do
país em 2022, com 1,47 milhão de votos. Ainda, é incontestável sua grande influência nas redes
sociais, que conta com cerca de 7 milhões de seguidores no Instagram e 2,3 milhões no Twitter.
A autora, por sua vez, foi a terceira deputada federal mais votada do estado em 2022, com 208
mil votos e a vereadora mais votada da história de Belo Horizonte, com mais de 37 mil votos. É
evidente, portanto, que as notícias veiculadas pelo Jornal Estado de Minas e as postagens feitas
nas redes sociais do requerido tiveram grande repercussão, sobretudo, por envolverem, à época
dos fatos, os dois vereadores mais votados da cidade.

Assim, considerando a repercussão do ocorrido, a gravidade da ofensa aos direitos da autora, os


agentes envolvidos, bem como a remuneração por eles recebida como deputados federais,
entendo que a indenização em R$ 80.000,00 representa uma quantia razoável, capaz de reparar
o dano moral sofrido, sem proporcionar enriquecimento por parte da vítima, e cumprir com o
caráter educativo e punitivo ao ofensor.

Pelo exposto, a procedência do pedido é medida que se impõe.

3 – DISPOSITIVO

Ante o exposto, JULGO PROCEDENTE o pedido inicial, com resolução do mérito, nos termos do
art. 487, I, c/c 490, caput, ambos do CPC, para condenar o réu ao pagamento de indenização por
danos morais à autora, na importância de R$ 80.000,00 (oitenta mil reais), a ser corrigida
monetariamente pelos índices publicados pela Corregedoria Geral de Justiça do Estado de Minas
Gerais, a partir do arbitramento, acrescida de juros de mora de 1% ao mês, a partir do evento
danoso, conforme Súmula 54 do STJ.

Condeno a parte ré ao pagamento das custas processuais e honorários advocatícios


sucumbenciais, que fixo em 10% (dez por cento) sobre o valor atualizado da condenação, nos
termos do art. 85, § 2º, do CPC.

Publique-se. Registre-se. Intime-se. Cumpra-se

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Belo Horizonte, data da assinatura eletrônica.

JOSÉ RICARDO DOS SANTOS DE FREITAS VÉRAS

JUIZ DE DIREITO - 33ª VARA CÍVEL

Avenida Raja Gabaglia, 1753, Luxemburgo, BELO HORIZONTE - MG - CEP: 30380-900

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