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de Bush Moukarzel
com participação especial do dramaturgo Mark O´Halloran
PERSONAGENS:
O Entrevistador
Adam, o Técnico
Membro da Equipe de Apoio do Teatro
O Leitor Labial
Allin Kempthorne
Frances
Catherine
Bridg-Ruth
Josephine
PARTE UM
(O público entra enquanto o palco está sendo preparado para um bate-papo pós-
espetáculo. Três pessoas estão organizando o espaço: o ENTREVISTADOR, ADAM, O
TÉCNICO, e o(a) Membro da Equipe de APOIO do Teatro. Eles estão conectando o
projetor, arrumando cadeiras etc. O público se senta em frente a uma enorme tela
branca, que cobre a parte do fundo do palco. Em frente à tela há uma mesa, três cadeiras
e microfones. O ENTREVISTADOR está sentado em uma das cadeiras. Em um dos lados
da mesa está ADAM, O TÉCNICO. A mesinha dele está coberta por cabos, laptops,
mixers de som etc.)
ENTREVISTADOR: Oi pessoal. Obrigado por terem ficado. Normalmente não fica muita gente
nesses bate-papos depois dos espetáculos, então é incrível que tanta gente tenha
ficado hoje. Antes de mais nada, deixa eu me apresentar: meu nome é Bush
Moukarzel. Eu não trabalhei nessa peça, mas já fiz alguns trabalhos com o grupo
e eles me pediram pra moderar o bate-papo. Então eu pus um terno e aceitei. A
gente tá só esperando dois atores que toparam gentilmente vir falar sobre o
processo de criação da peça. Eles devem estar no camarim se trocando. Então a
gente só precisa esperar mais um pouquinho...
(Ele faz isso por algum tempo. Até que fica um pouco desconfortável)
(de lado, pro APOIO) Será que você poderia dar um pulinho no camarim e ver
se eles vão demorar? (pra plateia) Obviamente a gente não quer apressa-los
logo depois de terminar a peça – vocês sabem como ficam os atores depois de
uma apresentação, às vezes eles ficam meio sensíveis –
ADAM, O TÉCNICO: Sabia que na França tem uma lei pros atores que acabaram de sair de uma
apresentação? Se eles cometerem um assassinato ou algo do tipo até meia hora
depois de uma peça, é considerado crime culposo, e não assassinato.
Legalmente eles ainda tão “dentro do personagem”. Então não podem ser
presos.
(pausa)
ENTREVISTADOR: É, desculpem por isso, esse é o... Esse é o Adam, ele é o - o técnico de som, de
luz, ele vai dar uma mão pra gente com a parte técnica, tem uns vídeos que
queremos mostrar pra vocês...
(pra plateia) Bom, parece que o Daniel Reardon definitivamente está vindo,
então vamos esperar por ele um pouquinho. E acho que a Allin Kempthorne
também vem, então...
“LIPPY”, de Bush Moukarzel (com Mark O´Halloran) Tradução: Rodrigo Haddad (fev/2015)
Imagino que vocês estejam ansiosos pra fazer perguntas pros atores. Então eu
vou começar e conforme for abriremos pra perguntas... Ah, olha eles ai.
Senhoras e senhores, com vocês, Daniel Reardon e Allin Kempthorne.
Bom, acho que podemos começar. A Allin se junta a nós quando chegar.
Então, Dan, antes de mais nada eu preciso dizer “uau!” Na verdade essa foi a
segunda vez que eu vi a peça, mas mesmo assim posso dizer que nunca tinha
visto nada parecido.
LEITOR LABIAL: (percebe que ainda tem um pouco de maquiagem no rosto) Maquiagem? É tanta
maquiagem que é quase impossível tirar tudo.
Ah, obrigado.
ENTREVISTADOR: Mas então, Dan, pra começar o que você acha de nos contar como se envolveu
com esse projeto?
LEITOR LABIAL: Ah, bom, eu... Será que eu me lembro? (ele precisa pensar nos meses
anteriores, talvez até um ano antes) Tá, bom, eu... o Ben, o diretor, ele me ligou.
Na época ele tava fazendo a pesquisa pra uma peça completamente diferente,
baseada num caso que aconteceu em Leixlip – foi um incidente trágico
envolvendo quatro mulheres, um pacto suicida; eu tinha trabalhado no caso
como leitor labial, então mandaram o Ben me procurar e a gente conversou um
pouco... Aquela peça acabou não indo pra frente, como acontece com muitos
projetos. Mas a gente manteve contato. E ele ficou muito interessado em leitura
labial. A gente ficou falando que um dia poderia fazer uma peça sobre isso.
Então tudo começou com o interesse do Ben nesse assunto.
“LIPPY”, de Bush Moukarzel (com Mark O´Halloran) Tradução: Rodrigo Haddad (fev/2015)
ENTREVISTADOR: Na verdade eu trabalhei com o Ben no projeto anterior dele, “Souvenir”1, então
eu tenho alguma ideia do método dele.
LEITOR LABIAL: É, bom, ele usou uma proposta um pouco diferente dessa vez, pelo menos foi o
que me disseram; eu acabei não assistindo “Souvenir” –
ENTREVISTADOR: (continuando) Você poderia agora falar pra gente como chegou a algumas das
coisas que assistimos aqui hoje?
LEITOR LABIAL: Isso. Muito boa. O que eu quis dizer é que tava tudo em aberto. É incrível pensar
em quantas coisas que acabaram entrando na peça surgiram na verdade de coisas
que a gente assistiu e discutiu. Tudo na peça, na verdade.
LEITOR LABIAL: Foi mesmo! Mas aquilo surgiu de um dia em que uma das atrizes começou a
esvaziar a bolsa e um monte de papel se espalhou pelo chão. E isso acabou na
ideia, como você viu, de que nós somos os nossos documentos, de que as nossas
vidas são listas, são recibos de compras, são –
(pausa)
LEITOR LABIAL: (um leve reconhecimento do tom do Entrevistador. Bem ínfimo.) Sei. Bom, a
gente assistiu um monte de coisa no YouTube, em DVD, e assim por diante.
Procuramos tudo que tinha de leitura labial em filmes e na cultura pop; tem
bastante coisa sobre isso por aí.
1
No lugar do original “Souvenir” pode ser utilizado algo como “Recordação” (Nota do Tradutor)
“LIPPY”, de Bush Moukarzel (com Mark O´Halloran) Tradução: Rodrigo Haddad (fev/2015)
ENTREVISTADOR: Na verdade temos alguns dos clipes que vocês assistiram aqui. (pra plateia) O
Dan foi bem legal e passou pra gente uma parte do material que eles usaram,
então como eu disse temos alguns clipes preparados pra mostrar pra vocês. Uma
espécie de “bastidores” do processo deles. Adam, você pode - ?
LEITOR LABIAL: Acho que o primeiro clipe é o... (enquanto o clipe carrega) Isso, é uma cena
incrível do filme “Cassino”, do Martin Scorsese. São dois gângsteres usando
algumas técnicas pra impedir que os policias leiam os lábios deles.
http://www.youtube.com/watch?v=qhxYZWVSU4w
Uma coisa interessante aqui é que, eu não sei se você se lembra de um momento
na peça em que –
ENTREVISTADOR: Eu tava pensando nisso mesmo, é daí que vem aquela parte da peça – aquela
parte com as mãos?
LEITOR LABIAL: Exatamente, foi baseada nessa cena. Esconder a boca, querendo evitar que
compreendam. Adoramos a ideia de pegar algo completamente normal, talvez
de um filme ou uma série de TV, e torna-lo mais teatral. Usar o contexto do
teatro pra amplifica-lo, ou algo assim.
ENTREVISTADOR: Isso é mesmo fascinante. Uma ótima ideia. (ele imita o movimento, cobrindo o
rosto com a mão) Pegar algo tão simples de um filme e transformar em algo
belíssimo no palco.
LEITOR LABIAL: E um outro motivo desta cena ser tão interessante é que ela demonstra a leitura
labial sendo utilizada como um instrumento da lei. Quer dizer, se você consegue
ler os lábios de uma pessoa você pode usar as palavras dela como prova contra
ela...
(No telão vemos um clipe mostrando o jogador de futebol John Terry dizendo
xingamentos racistas. O LEITOR LABIAL não sabia que o clipe seria
mostrado; trata-se de ADAM e do ENTREVISTADOR se divertindo um pouco)
http://www.youtube.com/watch?v=OfoaoQImtaI
Ah, isso mesmo! (ri) Um homem pode ser condenado pelo que os lábios dele
disseram!
“LIPPY”, de Bush Moukarzel (com Mark O´Halloran) Tradução: Rodrigo Haddad (fev/2015)
(o clipe fica sendo repetido por um tempo, enquanto ele continua falando)
Essa ideia foi meio que uma grande descoberta, na verdade. O poder da leitura
labial. O poder de se colocar palavras nas bocas das pessoas.
ENTREVISTADOR: Isso é ótimo, Dan. A gente tá realmente conseguindo ter uma ideia de como
vocês desenvolveram o espetáculo passo a passo. Acho que o próximo clipe é
uma cena do filme “2001, uma Odisseia no Espaço”, do Stanley Kubrick.
LEITOR LABIAL: Essa é uma cena especialmente sinistra, né? Os tripulantes da nave acham que
o computador Hal está com defeito. Eles precisam conversar sobre a
possibilidade de desliga-lo. Então eles conversam em uma parte da nave onde
Hal não pode vê-los.
https://www.youtube.com/watch?v=1s-PiIbzbhw
LEITOR LABIAL: (quando HAL aparece na tela) Esse é o computador Hal observando os dois.
(vemos um close nos lábios dos tripulantes) E é claro que ele consegue ler os
lábios deles! A gente se divertiu pra caramba com essa cena, tentando entender
o que eles estão dizendo.
LEITOR LABIAL: (uma risada meio sem graça – é uma ideia meio boba) Ah, se você fizer questão.
ENTREVISTADOR: Legal! Senhores e senhores, comprovando que é sempre uma boa ideia ficar
pros bate-papos pós peça, teremos algo exclusivo aqui! Através da leitura dos
lábios dos atores nesta cena a gente vai conhecer pela primeira vez o que estava
escondido na obra-prima do Kubrick!
- O engraçado é que eu nunca tinha nem ouvido falar desse tal de Kubrick.
(a plateia cai na gargalhada. Embora não seja bem o que eles estão dizendo,
ainda assim é impressionante)
Claro que eu fiz uma brincadeira. Mas esse tipo de coisa levou a uma discussão
interessante -
LEITOR LABIAL: ... uma discussão interessante sobre – Bom, tem uma certa ambiguidade no
cerne da leitura labial.
LEITOR LABIAL: Um simples formato feito pela boca pode ter múltiplas leituras possíveis. A
palavra “bar”, por exemplo, é igual à palavra “par”. Então muitas vezes apesar
de você conseguir ver claramente o que a boca tá fazendo, você nunca vai ter
certeza. Então sempre envolve alguma adivinhação.
LEITOR LABIAL: Exatamente – o contexto é tudo. (tempo) Enfim, tirando um sarro dos
astronautas de “2001” a gente começou a se interessar pela ideia de que por
palavras na boca das pessoas era um modo de subverter o poder – a voz como a
fonte do significado se torna a fonte do poder, então se você distorce ou troca o
que uma pessoa diz você está usurpando a própria personalidade dela –
ENTREVISTADOR: (a voz dele é inesperadamente substituída pela voz de uma mulher) – a própria
personalidade dela –
LEITOR LABIAL: Você pode fazer alguém poderoso virar alguém ridículo. Pareceu uma grande
ideia pra uma peça. Mas aí, umas duas semanas depois do início dos ensaios, eu
descobri os caras do Bad Lip Reading2 – basicamente esses caras já tinham feito
o que a gente queria fazer, e tinham feito bem pra caramba. Acho que a gente
tem uma cena deles... ?
(uma imagem aparece no telão, mas não é o clipe que eles estavam esperando.
É uma boca gigante falando em silencio. O ENTREVISTADOR se vira para
ADAM. A boca dele parece estar se mexendo, mas não conseguimos ouvir o
que ele diz.)
ENTREVISTADOR: Adam?
Adam?
ADAM, O TÉCNICO: (olha pra cima, nem tinha percebido o que estava acontecendo) Oi?
2
Grupo cômico que faz vídeos dublando pessoas com coisas que parecem ser o que elas estão dizendo:
https://www.youtube.com/user/BadLipReading (N.T.)
“LIPPY”, de Bush Moukarzel (com Mark O´Halloran) Tradução: Rodrigo Haddad (fev/2015)
(ele põe o clipe do Bad Lip Reading – vemos as palavras “MITT ROMNEY” no
telão.)
Não sei se alguém da plateia conhece esse vídeo, mas foi um fenômeno no You
Tube. Vamos ver.
https://www.youtube.com/watch?v=e9L9A1IMTQo
LEITOR LABIAL: O Ben ficou arrasado quando viu isso. Basicamente não tinha mais motivo pra
gente fazer a peça.
(pausa longa)
LEITOR LABIAL: A gente fez assim mesmo. Porque a gente percebeu que o que é interessante não
é por palavras falsas nas bocas dos poderosos, mas sim ouvir as palavras
verdadeiras daqueles que não tem poder.
LEITOR LABIAL: Isso. A gente começou a pensar nos artistas de pano de fundo, nos figurantes
que ficam em segundo plano nas cenas dos filmes: será que a gente conseguiria
por palavras nas bocas deles? ‘Não os personagens que conduzem, mas os que
são conduzidos’, acho que era a frase que o Ben usou.
LEITOR LABIAL: Exatamente. Eu já trabalhei como figurante. E aí você conta pros seus amigos
que você foi figurante e eles ficam com pena de você. Eles veem você como
uma figura trágica. Você quer ser o “Coração Valente”. Mas na verdade você é
o “guerreiro com lança nº 4”. E o Mel Gibson fica numa cadeira no topo de um
monte, enquanto você tá lá embaixo na lama, coberto de sangue, com arranhões
no corpo todo.
ENTREVISTADOR: Mas como figurante você ainda sente que o seu papel é importante?
LEITOR LABIAL: Você é um ator, então você quer fazer bem o seu papel,
Você fica imaginando, será que alguém vai notar que eu dei um último suspiro
ali no meio da lama?
ENTREVISTADOR: Essa é uma bela ideia. Ler os lábios dos figurantes e dar a eles uma voz.
(tempo)
Dan, isso tudo é fascinante, mas o elefante nessa sala é o seguinte: como é que
você consegue fazer essa porra de leitura labial? Quer dizer, a maioria das
pessoas aqui conhece o seu trabalho como ator.
LEITOR LABIAL: Sim, eu sou um ator. Mas eu tive uma filha que era surda. E foi algo que eu
aprendi a fazer com ela. Essa é a primeira vez que eu consegui usar isso num
projeto pro teatro. Mas é uma habilidade rara, então ela tem as suas utilidades
profissionais de vez em quando.
LEITOR LABIAL: Por exemplo, alguns trabalhos com a polícia irlandesa, ajudando nas
investigações, fazendo a leitura labial dos vídeos das câmeras de segurança, esse
tipo de coisa.
ENTREVISTADOR: Eu pensei que fosse só em filmes como “Cassino” que os leitores labiais
trabalhassem com a polícia.
LEITOR LABIAL: Nesse caso especifico, a arte imita a vida. Na verdade, se lembra daquele caso
que eu mencionei no início –
LEITOR LABIAL: Isso, em Leixlip. Bom, eu trabalhei naquele caso, dei uma olhada em alguns
vídeos de segurança pra polícia, ajudei os caras a decifrar algumas coisas na
investigação. Foi um trabalho fascinante, e bem difícil. Porque aquelas pessoas
tomaram uma decisão inacreditável, e se alguém te pede pra ler os lábios delas,
basicamente tão te pedindo pra dar uma interpretação... um significado.
“LIPPY”, de Bush Moukarzel (com Mark O´Halloran) Tradução: Rodrigo Haddad (fev/2015)
ENTREVISTADOR: (balando a cabeça, como que concordando) Aham... aham... (tempo) Desculpa,
eu não ouvi nenhuma palavra que você disse.
ENTREVISTADOR: Com todo esse papo sobre leitura labial, eu na verdade tava prestando atenção
nos seus lábios, vendo se eu conseguiria fazer o mesmo!
(O LEITOR LABIAL fica sem jeito com o que aconteceu – o entrevistador vem
sendo difícil de se lidar desde o início. Bem num momento em que estava se
abrindo um pouco, ele se sente meio idiota por não ter sido escutado...)
LEITOR LABIAL: Ah, bom... Se isso aconteceu, então você cometeu seu primeiro erro. Porque não
é olhando pra boca de uma pessoa que você lê os lábios dela – As palavras estão
no rosto dela.
ADAM, O TÉCNICO: Tem gente que diz que o segredo da leitura labial está em observar os olhos da
pessoa.
ENTREVISTADOR: (mudando o tom do momento) Dan, nós vamos agora abrir pras perguntas da
plateia, mas antes disso, eu queria sugerir uma coisa – e fique à vontade pra
recusar, se preferir - , mas andando pela cidade nesses últimos dias eu ouvi tanta
gente comentando sobre a peça, e a coisa que mais chama a atenção das pessoas
é o momento em que você lê os lábios de alguém da plateia ao vivo. Na verdade,
por acaso a moça que fez isso hoje – ah, olha ela ali. Que legal. Foi fenomenal
hoje, muito teatral. Enfim, eu queria saber se você toparia fazer isso comigo.
LEITOR LABIAL: Se você acha que é uma boa, acho que dá sim.
Você pode ficar um pouco distante e falar diretamente pra plateia. Eu vou ficar
aqui e tentar ler os seus lábios e entender o que você está dizendo.
LEITOR LABIAL: O que você quiser. A única coisa que eu te peço é pra você dizer palavras reais
e dizer algo que faça sentido. Eu não consigo decifrar algo que seja totalmente
nonsense.
“LIPPY”, de Bush Moukarzel (com Mark O´Halloran) Tradução: Rodrigo Haddad (fev/2015)
ENTREVISTADOR: Ok.
LEITOR LABIAL: É importante também que você realmente diga as palavras, e não simplesmente
as balbucie. Nossos lábios fazem formatos diferentes quando dizemos uma
palavra e quando simplesmente as balbuciamos em silêncio. Enquanto você fala
eu vou ficar escutando música bem alto. Adam, você pode...?
Eu não preparei nada, mas acho que posso falar sobre o Eu não falei nada, mas acho que posso falar
que aconteceu quando eu saí ontem à noite. do cara que bebeu onde eu fui à noite.
Ahm... A gente, é... Eu não saio muito. Mas como a A mente é... Eu não sei muito. O cara é parte
maior parte da companhia é da Inglaterra, eu... Eu to da companhia da Inglaterra e...
dando uma mão, alguns deles estão hospedados na minha
casa. Então eu levei eles pra conhecer a cidade. E a gente Casarão que eu morei quando tinha idade. E
foi ao Workman´s Club. a gente foi ao Workman´s Club.
Porque tinha um show rolando. E eu... Sei lá, foi meio É que tinha um som rolando. E era meio um
estranho. Fazia tempo que eu não saía, e mais ainda que sonho. Fazia tempo que eu não sabia mas as
eu não ia a um show. E a gente esquece como são essas meninas eram um show. Até parece com
coisas. essas coisas.
É meio que nem estar aqui. Com essa plat – com vocês É como estar com vocês aqui. A plateia tem
aqui. Como plateia. Rola uma troca de energia, quando uma energia, as pessoas juntas...
as pessoas ficam juntas...
“LIPPY”, de Bush Moukarzel (com Mark O´Halloran) Tradução: Rodrigo Haddad (fev/2015)
(ao final ele recomeça a cantar do início, mas a voz dele é acrescentada à
versão anterior, gravada, como num coral. Ao final, ele recomeça novamente,
como se três vozes cantassem a mesma música, uma sobreposta à outra4.
Enquanto isto acontece, o palco é desmontado, até que apenas o LEITOR
LABIAL permanece em cena.
LEITOR LABIAL: Os corpos delas foram encontrados no dia 12 de julho. Do ano 2000. O
proprietário do apartamento arrombou a porta para conseguir entrar depois de
bater e bater e ninguém abrir. Uma geladeira estava bloqueando a porta de
entrada. Mais tarde a polícia encontrou uma mesa e cadeiras bloqueando a porta
dos fundos, e descobriu que o aquecedor estava ligado no máximo. E era o auge
do verão, se eu bem me lembro. O lugar todo estava completamente vedado por
dentro. Elas não queriam ser encontradas. Os policiais encontraram três das
mulheres na sala de estar, enroladas em um edredom. Elas pareciam estar
vestindo camisolas. Mas a quarta mulher estava na cozinha, meio que sentada,
afundada numa pilha de sacos de lixo. Era a família Mulrooney, a tia e três
sobrinhas, e elas tinha decidido morrer. Elas pararam de comer até morrer.
A última vez que alguma delas foi vista em público foi quando duas das irmãs,
Catherine e Josephine, foram fazer compras no shopping center Stephen Green.
As câmeras de segurança captaram imagens delas. Eu li os lábios delas. Vi o
que elas disseram.
(Neste momento o LEITOR LABIAL para de falar, mas a voz dele continua. É
como se ele estivesse escutando algo que disse no passado. Algo que nunca o
deixou, uma história que está sempre com ele.)
3
Aparentemente este é um cântico indígena (Navajo ou Cherokee, dependendo da referência). No
YouTube existem alguns vídeos com corais cantando, como este aqui:
https://www.youtube.com/watch?v=V3GPL8LkC5A (N.T.)
4
O vídeo acima dá uma ideia de como fica. (N.T.)
“LIPPY”, de Bush Moukarzel (com Mark O´Halloran) Tradução: Rodrigo Haddad (fev/2015)
Mas é aquela imagem dos sacos de lixo que fica voltando à minha mente, e o
fato de que dentro dos sacos estavam todos os documentos pessoais delas. E
todos os documentos haviam sido picotados a mão, e amassados e destruídos. E
elas molharam os papeis de modo que eles viraram uma papa, uma espécie de
papel machê, impossível de serem lidos. É como se elas não quisessem apenas
morrer e deixar esse mundo, mas sim desaparecer e que não restasse qualquer
traço da existência delas. Elas queriam que parecesse que elas nunca tinham
estado aqui. Apagaram qualquer traço da própria existência.
(O LEITOR LABIAL sai. A gravação da voz dele continua numa cacofonia, com
outros sons, vozes e barulhos sobrepostos.)
E aquela frase de uma das cartas que foram encontradas na casa, escrita pela
Bridg-Ruth pra irmã, Josephine. Dizia: “Faz 36 dias que não comemos.
Nenhuma de nós imaginou que seria tão cruel e tão devagar.”
(A cacofonia continua. No meio dos sacos de lixo estão quatro figuras, quatro
mulheres. O som atinge um volume perturbador, até que para de repente.)
PARTE DOIS
1: PERÍCIA
(As quatro mulheres ficam em pé. Quatro sacos de lixo flutuam pelo ar, suspensos ao
redor delas.
Nada.
Então: CATHERINE tira uma tesoura de um dos bolsos do sobretudo e corta o fio que
segura um dos sacos. Ela segura o saco de lixo dela – os rastros em papel da existência
dela – como uma criança segurando uma bexiga.
FRANCES não se mexe. As outras três se viram para olhar para ela. Depois de um tempo
FRANCES pega uma tesoura e faz o mesmo que as outras.
O som cresce. Uma luz ultravioleta brilha sobre elas. Silhuetas. A luz ultravioleta se
apaga.
As mulheres saem e o que resta são as silhuetas delas marcadas na parede do fundo pela
luz ultravioleta.
(CATHERINE) retorna mas nós não a reconhecemos. Ela veste um uniforme de perita
forense – jaleco branco, máscara cobrindo a boca, luvas de plástico. Ela vai até a própria
silhueta e a examina.
(JOSEPHINE) entra, também vestida como perita. Ela examina a silhueta. Vai até
(CATHERINE) e elas murmuram algo que não conseguimos entender. Elas parecem
perplexas. (JOSEPHINE) aponta para a silhueta do saco de lixo. (CATHERINE) dá de
ombros, tipo “Eu é que vou saber?”
(FRANCES) ergue um dos sacos de lixo que estão no chão. Uma massa de papel picotado
sai de dentro dele.
(BRIDG-RUTH) abre mais um saco e olha dentro dele. Ela chama a atenção das outras.
Ela retira um prato de dentro do saco.
A equipe da perícia tenta fazer uma reconstituição. A cena é remontada do modo como
teria sido antes das mortes ocorridas em Leixlip.
Alguém encontra uma tigela de leite pra um gato e um litro de leite e os posiciona.
Um rádio-relógio e um vaso com flores mortas são colocados sobre a mesa da cozinha.
A equipe de peritas fica em pé, ao redor da mesa. Elas balançam o corpo delicadamente
ao som da música.)
“LIPPY”, de Bush Moukarzel (com Mark O´Halloran) Tradução: Rodrigo Haddad (fev/2015)
2: O LEITOR LABIAL
(Uma batida na porta.
Um saco de lixo começa a se mexer. O LEITOR LABIAL sai de dentro dele e entra na
sala. Ele parece um pouco desconcertado.)
LEITOR LABIAL: Não liguem pra mim, continuem o que estavam fazendo. Ninguém atendeu a
porta, então tive que entrar por outro lugar. Vocês devem estar ocupadas.
Provavelmente não me ouviram bater. Continuem, por favor.
(uma das peritas fala com o LEITOR LABIAL, mas a voz dela é abafada e
inaudível por causa da máscara)
(FRANCES): Ucufocufocedice?
(FRANCES): Coorassuum?
(FRANCES): Infurquê?
(A perita anda até o LEITOR LABIAL. Ele não sabe bem o que ela quer, depois
entende.)
5
Pode ser traduzido como “Planície Cibernética”. (N.T.)
“LIPPY”, de Bush Moukarzel (com Mark O´Halloran) Tradução: Rodrigo Haddad (fev/2015)
A perita rasga o documento. Ela joga o papel rasgado em um dos sacos de lixo)
(Uma das peritas que está em volta da mesa tira o capuz e a máscara – é a
CATHERINE.
O LEITOR LABIAL enfia o braço no saco de lixo e tira de dentro dele a Ordem
de Despejo, magicamente restaurada e intacta. A perita (FRANCES) pega o
papel da mão dele e o rasga novamente.)
Você tá bem?
CATHERINE vai até (FRANCES) e faz com que ela pare. Ela tira o capuz e a
máscara dela – é FRANCES.
De novo:
Uma espera.
“LIPPY”, de Bush Moukarzel (com Mark O´Halloran) Tradução: Rodrigo Haddad (fev/2015)
CATHERINE arrasta a cadeira para trás e se levanta. Ela pega o próprio prato
e talheres e os joga fora, em um dos sacos de lixo.
BRIDG-RUTH também.
BRIDG-RUTH leva uma cadeira até a porta. Ela abre a porta. CATHERINE e
JOSEPHINE saem. Assim que elas saem, BRIDG-RUTH fecha a porta e a
bloqueia com a cadeira, onde ela se senta. FRANCES liga o rádio. É uma versão
mais lenta de “Home Is Where You´re Happy”. FRANCES balança a cabeça bem
devagar.)
“LIPPY”, de Bush Moukarzel (com Mark O´Halloran) Tradução: Rodrigo Haddad (fev/2015)
3: COMPRAS
(BRID-RUTH está sentada na cadeira que bloqueia a porta. Depois ela vai até a tigela
do gato. Ela chama por um gato que não está lá, tenta encontra-lo para dar leite a ele.
Ela põe um pouco de leite na tigela. O litro de leite só tinha um restinho, então ela não
consegue encher a tigela toda.
JOSEPHINE põe as sacolas dela sobre a mesa e retira o que tem dentro: flores. Ela põe
as flores no vaso. FRANCES olha o que mais tem na sacola.
FRANCES tira da sacola uma barra de chocolate Snickers. Ela olha pras outras,
esperando uma explicação.
JOSEPHINE assume a culpa. Ela vai até FRANCES, que tenta se levantar para dar um
tapa nela. FRANCES se esforça, mas não consegue levantar. Ela olha para CATHERINE.
CATHERINE vai até JOSEPHINE e dá um tapa nela.
Ouve-se a gravação da Parte Um, quando o LEITOR LABIAL descreveu o papel dele no
caso. Elas se divertem com isso.
“A última vez que alguma delas foi vista em público foi quando duas das irmãs, Catherine
e Josephine, foram fazer compras no shopping center Stephen Green. As câmeras de
segurança captaram imagens delas. Eu li os lábios delas. Vi o que elas disseram.”
LEITOR LABIAL: Me desculpem, eu tava sob pressão. Eu posso ter me enganado. A palavra “bar”,
por exemplo, é idêntica à palavra “par”.
Por que vocês estão rindo? Eu quero mesmo ajudar. Tem alguma coisa que vocês
queiram acrescentar?
Tem uma carta... (ele pega a carta do bolso) ... qual de vocês é a Bridg-Ruth? Foi
encontrada embaixo do travesseiro dela depois que ela morreu –
BRIDG-RUTH: Temos que nos livrar destes corpos físicos densos, que pra mim não são nada
mais do que sobretudos que nossas almas vestem e que, quando gastos, são
jogados fora, e assim nós podemos ascender aos reinos superiores, que são o
nosso verdadeiro lar, na minha opinião. Afinal, isso foi o que Jesus Cristo, nosso
Salvador, veio nos ensinar.
LEITOR LABIAL: Desculpa, mas eu não consegui entender tudo que você disse. Talvez a conexão
esteja ruim, não sei se é você ou se sou eu. Será que você poderia repetir?
(Ela retorna à casa de Leixlip e tenta novamente. Dessa vez ela é interrompida
por FRANCES tossindo.
Ela tenta mais uma vez. FRANCES tem uma crise de tosse. Todos correm para
ajudá-la. Incluindo BRIDG-RUTH. Não vale a pena tentar explicar. Ela precisa
estar com a família dela.
4: COMENDO
(O LEITOR LABIAL se senta à mesa, pega uma lancheira e retira de dentro dela um
sanduiche embrulhado em papel alumínio. Ele põe metade em um dos pratos e pega a
outra parte pra ele mesmo. JOSEPHINE percebe o que ele está fazendo.)
(Nada.)
BRIDG-RUTH: (voz masculina) “A Jo tá com um carinha de novo. Será que um dia ela vai
aprender?”
CATHERINE: (voz masculina) “Por que é que... Por que é que o Diabo... tem sempre a forma
de um homem?”
(JOSEPHINE leva a xícara aos lábios. Ela morde a xícara, que se quebra na
boca dela. Ela mastiga a porcelana. Sangue escorre pelo rosto dela.
CATHERINE: (voz masculina) “Espera... Não foi assim que aconteceu... Eu não disse aquilo...
Eu não disse nada disso.”
(O LEITOR LABIAL mais uma vez fica absorto lendo a carta. Imagina a
composição da cena)
BRIDG-RUTH: (pro LEITOR LABIAL) Jamais poderá haver justiça aqui e a busca pela justiça
será sempre fútil e devastadora. Eu acredito que todos nós, cada alma, tem uma
dívida cármica a pagar (e eu me incluo nisso), uma cruz individual para carregar,
pra aprender com esse sofrimento intenso (não é sofrimento só por sofrer).
(ela tenta ir até o LEITOR LABIAL para chamar a atenção dele, mas é contida
por CATHERINE)
Mas se não fizermos alguma coisa agora, nós não partiremos de modo sereno.
Nenhuma de nós pôde prever que nossas mortes seriam tão lentas e cruéis... Por
favor, escute: eu pensei muito e por muito tempo em tudo isso. Vamos pensar em
partir de um modo humano –
“... nos salvar de um inferno lento e doloroso. Isso é muito sério. As coisas vão
simplesmente piorar, constantemente. Seria cruel e negligente não interferir. Suas
condições estão se deteriorando. Logo todos estaremos bastante incapacitadas –“
“LIPPY”, de Bush Moukarzel (com Mark O´Halloran) Tradução: Rodrigo Haddad (fev/2015)
5: FOLHAS
(Durante a cena anterior, FRANCES não saiu do lugar. Ela permaneceu completamente
imóvel. Ouve-se um som fora de cena. Como uma tempestade se aproximando. É o som
de um soprador de folhagens. ADAM, O TÉCNICO, entra com um soprador de folhagens.
Ele usa os mesmos fones de ouvido da primeira cena. É o Anjo da Morte. Ele limpa as
folhas do palco, metodicamente usando o aparelho para sopra-las pela porta aberta.
Quando ele se aproxima de FRANCES, ela tomba para frente, sem vida, o corpo dela
movido pela força do soprador. Ele tenta tirá-la do caminho do mesmo jeito que fez com
as folhas. Ela se mexe um pouco, mas é pesada demais pra ser soprada como as folhas.
Ele desiste, larga o soprador e coloca os fones de ouvido no LEITOR LABIAL. ADAM,
O TÈCNICO, em seguida pega FRANCES nos braços e sai com ela.
6: VASO
(O LEITOR LABIAL está em pé, com um microfone na mão e fones de ouvido, como na
Parte Um, e lê os lábios do seguinte diálogo, conforme os lábios das mulheres se mexem.)
JOSEPHINE: Eu me cortei.
CATHERINE: Como?
JOSEPHINE: Eu tava levando esse vaso pra cozinha pra jogar as flores fora e o fundo dele
arrebentou e caiu no chão. Eu cortei a minha mão recolhendo os pedaços de vidro.
(sem resposta)
JOSEPHINE: É.
JOSEPHINE: Tá, mas foi exatamente o que aconteceu. (se vira para o LEITOR LABIAL) E o
vaso quebrado não é nem a pior parte da história. São as flores. Eu não aguento
mais essas flores mortas.
agora estão sentadas nas cadeiras que estão sobre a parede, como se víssemos
a cena de cima, ou seja, a parede é como se fosse o chão.
LEITOR LABIAL: (pra JOSEPHINE) Me desculpe pela bagunça. Eu não tava te esperando.
(JOSEPHINE olha para ele. O LEITOR LABIAL a confundiu com a filha dele)
Posso pegar alguma coisa pra você? (ele gesticula como algo para beber) Chá,
café, chocolate quente? Nada?
(Nada)
Nada.
A sua mãe que costumava cuidar desse tipo de coisa. Já eu, se tem uma goteira
no meu teto, simplesmente pego uma panela e torço pra parar de chover logo.
(numa explosão de fúria) Você não vai falar com o seu pai? Eu ainda sou seu pai,
sabia? Eu sei que eu posso não parecer um, mas...
Você tem que falar comigo... Contexto é tudo... Eu tentei transformar isso aqui
numa casa!
Nada.
Uma tempestade. Agua escorre pelo teto. Ele pega mais um balde, mas não
adianta. Ele se senta e põe o balde na própria cabeça.
Tempestade.)
“LIPPY”, de Bush Moukarzel (com Mark O´Halloran) Tradução: Rodrigo Haddad (fev/2015)
7: INTERVALO
(A chuva para. O sol brilha. O LEITOR LABIAL tira o balde da cabeça.)
(pra plateia) É uma pena que não tenhamos mais intervalos hoje em dia. Eles
saíram de moda. É uma pena, porque eles dão uma chance pra plateia se conhecer.
Uma chance pra conversar com o seu vizinho, conhecer o seu vizinho, não gostar
do seu vizinho. Mas pelo menos você sabe que eles estão ali. Pequenas medidas
pra aliviar o isolamento social. Então o melhor que eu posso oferecer a vocês é
um intervalo que acontece durante a peça.
(Um som invade a sala. É uma gravação dos sons feitos pela plateia, gravados
enquanto eles entravam no teatro no começo do espetáculo. A intenção é que a
plateia reconheça uma voz ou outra, que se ouçam. Enquanto isso acontece, o
LEITOR LABIAL pega o microfone e se senta.
8: PARAÍSO
(BRIDG-RUTH desaba.
BRIDG-RUTH: (a voz dela está enfraquecida, como resultado da fome que passou nos últimos
dias) Este é um sentimento forte e esmagador. Eu recebo sim uma orientação
correta às vezes, Jo, e eu estive certa em diversas ocasiões no passado, Jo. Isso
não é um pânico cego. Isso surgiu depois de muita oração e de muito pensar com
cuidado. Nós temos que agir... Eu rezei e torci pra que nossas vidas terminassem
de modo sereno, dormindo, mas é evidente que as coisas não funcionam bem
assim. Já estamos há quase 40 dias sem comer. Os grevistas de fome do bloco H6
tiveram mortes terrivelmente dolorosas, Jo.
Tudo passa.
(BRIDG-RUTH parece querer dizer mais alguma coisa, mas não tem mais voz.
O LEITOR LABIAL se aproxima dela. Ele pega o microfone e tenta ler os lábios
dela, as palavras finais dela.)
LEITOR LABIAL: “Lembrem-se de pôr o gato pra fora.” Lembrem-se de pôr o gato pra fora?
Sinto muito.
(ele sai da casa com o microfone. Ele fica na frente do palco, onde o bate-papo
pós-peça aconteceu, e fica no mesmo lugar onde terminou a Parte Um.
6
Referência à famosa greve de fome com cunho político ocorrida numa prisão irlandesa no início dos
anos 80 (N.T.)
“LIPPY”, de Bush Moukarzel (com Mark O´Halloran) Tradução: Rodrigo Haddad (fev/2015)
CATHERINE se vira para JOSEPHINE, que está agachada e sem se mexer sobre
um dos baldes. CATHERINE arrasta o corpo já sem vida da irmã, o balde se
vira e uma urina negra se espalha pelo chão. CATHERINE tenta arrumar o
corpo de JOSEPHINE junto ao de BRIDG-RUTH, para que ela pareça estar
descansando em paz, mas não tem forças suficientes para isso. Ela pega um
pouco do papel picotado que está sobre BIDG-RUTH e o espalha sobre
JOSEPHINE.
Um som. O teto começa a descer. Ela olha para cima. O teto para exatamente
sobre ela. O brilho da luz do teto fica mais forte. Ela o toca. O som é interrompido
abruptamente.)
(O som retorna. CATHERINE faz uma pilha com os sacos de lixo e se senta sobre
eles. Este é o lugar onde ela irá morrer A boca dela se mexe. Ela parece estar
falando.
Neste momento, uma tela desce sobre o palco e cobre o mundo de Leixlip, o
isolando da plateia.
Uma imagem aparece lentamente sobre a tela; uma única e enorme boca,
cobrindo a tela inteira. O LEITOR LABIAL sai.
9: CATHERINE
Eu
Aqui
Minha voz
Essa voz
Aquela
Começar
Estou sozinha
E estarei, logo
Escuridão
Sem volta
Nada
Aqueles sonhos
Aquela sala
Frances se foi
Aquelas carcaças
E os dentes delas – 7
Vou enlouquecer
Josephine
Me diga
Este fim
Pra esquecer
Lembra disso?
7
Citação da Bíblia, livro Revelações 9:8 (N.T.)
“LIPPY”, de Bush Moukarzel (com Mark O´Halloran) Tradução: Rodrigo Haddad (fev/2015)
Eu cuidava de você
Inseparáveis
Nós éramos
Os outros não
E o que eu vi
Você viu
Apenas chorar
Só osso
Josephine –
8
Idem, livro Provérbios 3:17 (N.T.)
“LIPPY”, de Bush Moukarzel (com Mark O´Halloran) Tradução: Rodrigo Haddad (fev/2015)
Fim da primavera
Eu esqueci
Já
Eu
Aqui
Ainda
Parada
Ainda parada
Pele e osso
Minhas mãos
Apoiadas
Tão pálidas
Ou erguidas
Flutuando
Pelo ar
Oscilantes
“LIPPY”, de Bush Moukarzel (com Mark O´Halloran) Tradução: Rodrigo Haddad (fev/2015)
Parecem morcegos
Talvez
Apenas pele
Cegos também
Ou a ausência dela
Sombras
Enxergando escuridão
É exaustiva
Essa espera
Sem fim
Pelo fim
Fuja do mal
E faça o bem
Busque a paz
E vá atrás dela9
Eu faço
Eu tento
9
Idem, Salmos 34:14 (N.T.)
“LIPPY”, de Bush Moukarzel (com Mark O´Halloran) Tradução: Rodrigo Haddad (fev/2015)
Pensar
Ficar acordada
Nos pássaros
Pensar
Nas flores
Eu tento
Conjurar
Isso
A loja
A fachada envernizada
E as bancadas
Ele
Na minha frente
Meu pai
À noite
Eu o ouvia levantar
E eu o ouvia
Através da parede
Ou então
Uma vez
Eu era criança
Eu estava doente
Ardendo em febre
E segura, quase
O cheiro dele
Gentilmente
Apenas um homem
Silencioso
Amargurado
Sentado
Na poltrona dele
Esticado, ali
Fumando
Mas eu o perdoei
Nós o perdoamos
E ai aquilo
Ele disse
Gritou
Não bravo
No portão
O sol se pondo
Brilhando intensamente
Atrás dele
O fim do mundo
Talvez
Arklow, talvez
Férias
Uma semana
Só choveu um dia
Na semana inteira
Disso eu me lembro
A areia e a grama
Tentando andar
Enfrentando perigos
Ficando calejadas
Ali
Se soltasse a mão
Em silêncio
E eu estava ali
Observando
Na escuridão
Eu não lembro
Eu sussurrei
Lá dentro
Já está tarde
E então
E então
Chega
Eu vi
Nada mais
Ó clemente
Ó piedosa
10
Oração para Virgem Maria (N.T.)
“LIPPY”, de Bush Moukarzel (com Mark O´Halloran) Tradução: Rodrigo Haddad (fev/2015)
A morte é difícil
É suja
Por um fim
Eu me levantei
E saí da sala
As outras pararam
Fazia dias
Ou mais
O fedor
Pensei em me levantar
“LIPPY”, de Bush Moukarzel (com Mark O´Halloran) Tradução: Rodrigo Haddad (fev/2015)
Me mexi
Eu parecia de papel
Eu parecia morta
E a Josephine
Eu a vi
O rosto dela
Sombria
Profunda
Naquela sala
Eu tentei escuta-la
“LIPPY”, de Bush Moukarzel (com Mark O´Halloran) Tradução: Rodrigo Haddad (fev/2015)
A respiração dela
Constante
Diminuindo
Doze
Só pele e osso
Oito
Pedrinhas
Um pássaro assustado
E então
Duas
Quase imóvel
Um último suspiro
Um último movimento
E então
“LIPPY”, de Bush Moukarzel (com Mark O´Halloran) Tradução: Rodrigo Haddad (fev/2015)
Silêncio
Josephine
Jo
E então
A agitação começou
Privada
Totalmente
Pessoal
Apenas testemunhada
E mesmo assim
Mesmo isso
É fútil
Histéricos
Europeus
Muçulmanos
E anticristos
Ninguém se salva
E eu
Dane-se eu
Essa mancha
Me deixe morrer
Me deixe morrer
“LIPPY”, de Bush Moukarzel (com Mark O´Halloran) Tradução: Rodrigo Haddad (fev/2015)
Amém.
BLACKOUT