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“LIPPY”

de Bush Moukarzel
com participação especial do dramaturgo Mark O´Halloran

Tradução: Rodrigo Haddad

Oberon Modern Plays


“LIPPY”, de Bush Moukarzel (com Mark O´Halloran) Tradução: Rodrigo Haddad (fev/2015)

PERSONAGENS:

O Entrevistador
Adam, o Técnico
Membro da Equipe de Apoio do Teatro
O Leitor Labial
Allin Kempthorne
Frances
Catherine
Bridg-Ruth
Josephine

Os nomes do Entrevistador, do Leitor Labial, do Técnico


(Adam) e do Membro da Equipe do de Apoio do Teatro deverão
ser mudados de acordo com os nomes dos atores que fizerem os
papeis. Também deverão ser alterados os nomes e locais referentes
ao lugar onde a peça for apresentada.
“LIPPY”, de Bush Moukarzel (com Mark O´Halloran) Tradução: Rodrigo Haddad (fev/2015)

PARTE UM
(O público entra enquanto o palco está sendo preparado para um bate-papo pós-
espetáculo. Três pessoas estão organizando o espaço: o ENTREVISTADOR, ADAM, O
TÉCNICO, e o(a) Membro da Equipe de APOIO do Teatro. Eles estão conectando o
projetor, arrumando cadeiras etc. O público se senta em frente a uma enorme tela
branca, que cobre a parte do fundo do palco. Em frente à tela há uma mesa, três cadeiras
e microfones. O ENTREVISTADOR está sentado em uma das cadeiras. Em um dos lados
da mesa está ADAM, O TÉCNICO. A mesinha dele está coberta por cabos, laptops,
mixers de som etc.)

(Música toca ao fundo e o clima é bem casual. O ENTREVISTADOR e ADAM estão


claramente aguardando a chegada de mais duas pessoas. Uma vez que o público tenha
entrado e fique claro que está na hora da peça começar, o(a) APOIO entra e cochicha
algo no ouvido do Entrevistador. A música é cortada e ele começa a falar.)

ENTREVISTADOR: Oi pessoal. Obrigado por terem ficado. Normalmente não fica muita gente
nesses bate-papos depois dos espetáculos, então é incrível que tanta gente tenha
ficado hoje. Antes de mais nada, deixa eu me apresentar: meu nome é Bush
Moukarzel. Eu não trabalhei nessa peça, mas já fiz alguns trabalhos com o grupo
e eles me pediram pra moderar o bate-papo. Então eu pus um terno e aceitei. A
gente tá só esperando dois atores que toparam gentilmente vir falar sobre o
processo de criação da peça. Eles devem estar no camarim se trocando. Então a
gente só precisa esperar mais um pouquinho...

(Ele faz isso por algum tempo. Até que fica um pouco desconfortável)

(de lado, pro APOIO) Será que você poderia dar um pulinho no camarim e ver
se eles vão demorar? (pra plateia) Obviamente a gente não quer apressa-los
logo depois de terminar a peça – vocês sabem como ficam os atores depois de
uma apresentação, às vezes eles ficam meio sensíveis –

ADAM, O TÉCNICO: Sabia que na França tem uma lei pros atores que acabaram de sair de uma
apresentação? Se eles cometerem um assassinato ou algo do tipo até meia hora
depois de uma peça, é considerado crime culposo, e não assassinato.
Legalmente eles ainda tão “dentro do personagem”. Então não podem ser
presos.

(pausa)

ENTREVISTADOR: É, desculpem por isso, esse é o... Esse é o Adam, ele é o - o técnico de som, de
luz, ele vai dar uma mão pra gente com a parte técnica, tem uns vídeos que
queremos mostrar pra vocês...

(APOIO retorna e fala alguma coisa pro ENTREVISTADOR, que parece


aliviado)

(pra plateia) Bom, parece que o Daniel Reardon definitivamente está vindo,
então vamos esperar por ele um pouquinho. E acho que a Allin Kempthorne
também vem, então...
“LIPPY”, de Bush Moukarzel (com Mark O´Halloran) Tradução: Rodrigo Haddad (fev/2015)

Imagino que vocês estejam ansiosos pra –

(ouve-se um som horrível de microfonia quando o microfone dele é ligado alto


demais. ADAM se desculpa e o ENTREVISTADOR continua o que estava
dizendo)

Imagino que vocês estejam ansiosos pra fazer perguntas pros atores. Então eu
vou começar e conforme for abriremos pra perguntas... Ah, olha eles ai.
Senhoras e senhores, com vocês, Daniel Reardon e Allin Kempthorne.

(Aplausos e música enquanto o LEITOR LABIAL entra com uma garrafa de


água e se senta. A aparência dele sugere que ele acabou de sair de uma
apresentação. ALLIN não aparece.)

Bom, acho que podemos começar. A Allin se junta a nós quando chegar.

Então, Dan, antes de mais nada eu preciso dizer “uau!” Na verdade essa foi a
segunda vez que eu vi a peça, mas mesmo assim posso dizer que nunca tinha
visto nada parecido.

É um trabalho tão engenhoso, e tão ambicioso também. Quer dizer, o modo


como o teto se transforma no chão daquele jeito – sem falar que vocês
conseguiram enfiar um cavalo aqui dentro! Nunca tinha visto esse espaço ser
usado desse jeito. Eu pensei “To quase no Paraíso”. Mas o mais importante é
que a peça é incrivelmente tocante.

LEITOR LABIAL: Obrigado.

ENTREVISTADOR: (distraído) É... você ainda tá com um pouco de...

LEITOR LABIAL: (percebe que ainda tem um pouco de maquiagem no rosto) Maquiagem? É tanta
maquiagem que é quase impossível tirar tudo.

(APOIO traz um pacote de lenços umedecidos e o entrega ao LEITOR LABIAL)

Ah, obrigado.

ENTREVISTADOR: Mas então, Dan, pra começar o que você acha de nos contar como se envolveu
com esse projeto?

LEITOR LABIAL: Ah, bom, eu... Será que eu me lembro? (ele precisa pensar nos meses
anteriores, talvez até um ano antes) Tá, bom, eu... o Ben, o diretor, ele me ligou.
Na época ele tava fazendo a pesquisa pra uma peça completamente diferente,
baseada num caso que aconteceu em Leixlip – foi um incidente trágico
envolvendo quatro mulheres, um pacto suicida; eu tinha trabalhado no caso
como leitor labial, então mandaram o Ben me procurar e a gente conversou um
pouco... Aquela peça acabou não indo pra frente, como acontece com muitos
projetos. Mas a gente manteve contato. E ele ficou muito interessado em leitura
labial. A gente ficou falando que um dia poderia fazer uma peça sobre isso.
Então tudo começou com o interesse do Ben nesse assunto.
“LIPPY”, de Bush Moukarzel (com Mark O´Halloran) Tradução: Rodrigo Haddad (fev/2015)

ENTREVISTADOR: Na verdade eu trabalhei com o Ben no projeto anterior dele, “Souvenir”1, então
eu tenho alguma ideia do método dele.

LEITOR LABIAL: É, bom, ele usou uma proposta um pouco diferente dessa vez, pelo menos foi o
que me disseram; eu acabei não assistindo “Souvenir” –

ENTREVISTADOR: (um pouco decepcionado) Ah, tudo bem...

(Ouve-se um barulho inesperado vindo do laptop de ADAM)

ADAM, O TÉCNICO: Foi mal, eu tava só mandando um e-mail.

ENTREVISTADOR: (continuando) Você poderia agora falar pra gente como chegou a algumas das
coisas que assistimos aqui hoje?

LEITOR LABIAL: Bom, no começo a gente não tinha nada.

ENTREVISTADOR: Nada virá do nada!

LEITOR LABIAL: Isso. Muito boa. O que eu quis dizer é que tava tudo em aberto. É incrível pensar
em quantas coisas que acabaram entrando na peça surgiram na verdade de coisas
que a gente assistiu e discutiu. Tudo na peça, na verdade.

ENTREVISTADOR: Por exemplo?

LEITOR LABIAL: Bom, aquele lance com os papeis –

ENTREVISTADOR: Aquilo parece ter sido um pesadelo pra montar!

LEITOR LABIAL: Foi mesmo! Mas aquilo surgiu de um dia em que uma das atrizes começou a
esvaziar a bolsa e um monte de papel se espalhou pelo chão. E isso acabou na
ideia, como você viu, de que nós somos os nossos documentos, de que as nossas
vidas são listas, são recibos de compras, são –

ENTREVISTADOR: A gente usava papel em “Souvenir”, então...

LEITOR LABIAL: (tempo) Sei.

ENTREVISTADOR: Acho que foi ideia minha.

(pausa)

LEITOR LABIAL: (um leve reconhecimento do tom do Entrevistador. Bem ínfimo.) Sei. Bom, a
gente assistiu um monte de coisa no YouTube, em DVD, e assim por diante.
Procuramos tudo que tinha de leitura labial em filmes e na cultura pop; tem
bastante coisa sobre isso por aí.

1
No lugar do original “Souvenir” pode ser utilizado algo como “Recordação” (Nota do Tradutor)
“LIPPY”, de Bush Moukarzel (com Mark O´Halloran) Tradução: Rodrigo Haddad (fev/2015)

ENTREVISTADOR: Na verdade temos alguns dos clipes que vocês assistiram aqui. (pra plateia) O
Dan foi bem legal e passou pra gente uma parte do material que eles usaram,
então como eu disse temos alguns clipes preparados pra mostrar pra vocês. Uma
espécie de “bastidores” do processo deles. Adam, você pode - ?

ADAM, O TÉCNICO: Opa, claro.

LEITOR LABIAL: Acho que o primeiro clipe é o... (enquanto o clipe carrega) Isso, é uma cena
incrível do filme “Cassino”, do Martin Scorsese. São dois gângsteres usando
algumas técnicas pra impedir que os policias leiam os lábios deles.

(a cena de “Cassino” é exibida no telão atrás deles. Os personagens estão


falando e cobrindo as bocas com as mãos, pra impedir que alguém possa ler os
lábios deles)

http://www.youtube.com/watch?v=qhxYZWVSU4w

Uma coisa interessante aqui é que, eu não sei se você se lembra de um momento
na peça em que –

ENTREVISTADOR: Eu tava pensando nisso mesmo, é daí que vem aquela parte da peça – aquela
parte com as mãos?

LEITOR LABIAL: Exatamente, foi baseada nessa cena. Esconder a boca, querendo evitar que
compreendam. Adoramos a ideia de pegar algo completamente normal, talvez
de um filme ou uma série de TV, e torna-lo mais teatral. Usar o contexto do
teatro pra amplifica-lo, ou algo assim.

ENTREVISTADOR: Isso é mesmo fascinante. Uma ótima ideia. (ele imita o movimento, cobrindo o
rosto com a mão) Pegar algo tão simples de um filme e transformar em algo
belíssimo no palco.

(O ENTREVISTADOR mantém a mão cobrindo o rosto, mas o LEITOR LABIAL


não liga muito pra isso. Depois de uns cinco segundos o ENTREVISTADOR
tira a mão do rosto)

LEITOR LABIAL: E um outro motivo desta cena ser tão interessante é que ela demonstra a leitura
labial sendo utilizada como um instrumento da lei. Quer dizer, se você consegue
ler os lábios de uma pessoa você pode usar as palavras dela como prova contra
ela...

(No telão vemos um clipe mostrando o jogador de futebol John Terry dizendo
xingamentos racistas. O LEITOR LABIAL não sabia que o clipe seria
mostrado; trata-se de ADAM e do ENTREVISTADOR se divertindo um pouco)

http://www.youtube.com/watch?v=OfoaoQImtaI

Ah, isso mesmo! (ri) Um homem pode ser condenado pelo que os lábios dele
disseram!
“LIPPY”, de Bush Moukarzel (com Mark O´Halloran) Tradução: Rodrigo Haddad (fev/2015)

(o clipe fica sendo repetido por um tempo, enquanto ele continua falando)

Essa ideia foi meio que uma grande descoberta, na verdade. O poder da leitura
labial. O poder de se colocar palavras nas bocas das pessoas.

(o clipe do John Terry vai desaparecendo aos poucos)

ENTREVISTADOR: Isso é ótimo, Dan. A gente tá realmente conseguindo ter uma ideia de como
vocês desenvolveram o espetáculo passo a passo. Acho que o próximo clipe é
uma cena do filme “2001, uma Odisseia no Espaço”, do Stanley Kubrick.

ADAM, O TÉCNICO: Clássico!

LEITOR LABIAL: Essa é uma cena especialmente sinistra, né? Os tripulantes da nave acham que
o computador Hal está com defeito. Eles precisam conversar sobre a
possibilidade de desliga-lo. Então eles conversam em uma parte da nave onde
Hal não pode vê-los.

(O clipe de “2001” começa a ser exibido, e é comentado pelo LEITOR LABIAL)

https://www.youtube.com/watch?v=1s-PiIbzbhw

LEITOR LABIAL: (quando HAL aparece na tela) Esse é o computador Hal observando os dois.
(vemos um close nos lábios dos tripulantes) E é claro que ele consegue ler os
lábios deles! A gente se divertiu pra caramba com essa cena, tentando entender
o que eles estão dizendo.

ENTREVISTADOR: E vocês conseguiram?

LEITOR LABIAL: (rindo) Não exatamente. A gente chegou a algumas opções.

ENTREVISTADOR: Você pode demonstrar alguma delas pra gente?

LEITOR LABIAL: (uma risada meio sem graça – é uma ideia meio boba) Ah, se você fizer questão.

ENTREVISTADOR: Legal! Senhores e senhores, comprovando que é sempre uma boa ideia ficar
pros bate-papos pós peça, teremos algo exclusivo aqui! Através da leitura dos
lábios dos atores nesta cena a gente vai conhecer pela primeira vez o que estava
escondido na obra-prima do Kubrick!

(a cena é mostrada novamente. O LEITOR LABIAL vai revelando o que os


atores dizem)

LEITOR LABIAL: - Esse diretor é meio cuzão.

- O engraçado é que eu nunca tinha nem ouvido falar desse tal de Kubrick.

- Depois daqui vamos tomar umas? Amor?

- Ô se vamos, eu vou encher a lata. Mwah!


“LIPPY”, de Bush Moukarzel (com Mark O´Halloran) Tradução: Rodrigo Haddad (fev/2015)

(a plateia cai na gargalhada. Embora não seja bem o que eles estão dizendo,
ainda assim é impressionante)

Claro que eu fiz uma brincadeira. Mas esse tipo de coisa levou a uma discussão
interessante -

ENTREVISTADOR: Foi bem engraçado.

LEITOR LABIAL: ... uma discussão interessante sobre – Bom, tem uma certa ambiguidade no
cerne da leitura labial.

ENTREVISTADOR: Como assim ambiguidade?

LEITOR LABIAL: Um simples formato feito pela boca pode ter múltiplas leituras possíveis. A
palavra “bar”, por exemplo, é igual à palavra “par”. Então muitas vezes apesar
de você conseguir ver claramente o que a boca tá fazendo, você nunca vai ter
certeza. Então sempre envolve alguma adivinhação.

ENTREVISTADOR: Imagino que ter o contexto todo ajuda...

LEITOR LABIAL: Exatamente – o contexto é tudo. (tempo) Enfim, tirando um sarro dos
astronautas de “2001” a gente começou a se interessar pela ideia de que por
palavras na boca das pessoas era um modo de subverter o poder – a voz como a
fonte do significado se torna a fonte do poder, então se você distorce ou troca o
que uma pessoa diz você está usurpando a própria personalidade dela –

ENTREVISTADOR: (a voz dele é inesperadamente substituída pela voz de uma mulher) – a própria
personalidade dela –

LEITOR LABIAL: Você pode fazer alguém poderoso virar alguém ridículo. Pareceu uma grande
ideia pra uma peça. Mas aí, umas duas semanas depois do início dos ensaios, eu
descobri os caras do Bad Lip Reading2 – basicamente esses caras já tinham feito
o que a gente queria fazer, e tinham feito bem pra caramba. Acho que a gente
tem uma cena deles... ?

(uma imagem aparece no telão, mas não é o clipe que eles estavam esperando.
É uma boca gigante falando em silencio. O ENTREVISTADOR se vira para
ADAM. A boca dele parece estar se mexendo, mas não conseguimos ouvir o
que ele diz.)

ENTREVISTADOR: Adam?

(Nada. A boca dele se mexe em silêncio)

Adam?

ADAM, O TÉCNICO: (olha pra cima, nem tinha percebido o que estava acontecendo) Oi?
2
Grupo cômico que faz vídeos dublando pessoas com coisas que parecem ser o que elas estão dizendo:
https://www.youtube.com/user/BadLipReading (N.T.)
“LIPPY”, de Bush Moukarzel (com Mark O´Halloran) Tradução: Rodrigo Haddad (fev/2015)

ENTREVISTADOR: É o clipe errado. Você... ?

ADAM, O TÉCNICO: Ah, claro.

(ele põe o clipe do Bad Lip Reading – vemos as palavras “MITT ROMNEY” no
telão.)

Não sei se alguém da plateia conhece esse vídeo, mas foi um fenômeno no You
Tube. Vamos ver.

https://www.youtube.com/watch?v=e9L9A1IMTQo

(ao final o clipe vai sumindo aos poucos)

LEITOR LABIAL: O Ben ficou arrasado quando viu isso. Basicamente não tinha mais motivo pra
gente fazer a peça.

(pausa longa)

ENTREVISTADOR: Mas vocês fizeram assim mesmo?

LEITOR LABIAL: A gente fez assim mesmo. Porque a gente percebeu que o que é interessante não
é por palavras falsas nas bocas dos poderosos, mas sim ouvir as palavras
verdadeiras daqueles que não tem poder.

ENTREVISTADOR: E é daí que veio a ideia central dos “Figurantes”?

LEITOR LABIAL: Isso. A gente começou a pensar nos artistas de pano de fundo, nos figurantes
que ficam em segundo plano nas cenas dos filmes: será que a gente conseguiria
por palavras nas bocas deles? ‘Não os personagens que conduzem, mas os que
são conduzidos’, acho que era a frase que o Ben usou.

ENTREVISTADOR: Trazer o segundo plano pro primeiro plano, ou algo assim?

LEITOR LABIAL: Exatamente. Eu já trabalhei como figurante. E aí você conta pros seus amigos
que você foi figurante e eles ficam com pena de você. Eles veem você como
uma figura trágica. Você quer ser o “Coração Valente”. Mas na verdade você é
o “guerreiro com lança nº 4”. E o Mel Gibson fica numa cadeira no topo de um
monte, enquanto você tá lá embaixo na lama, coberto de sangue, com arranhões
no corpo todo.

ENTREVISTADOR: Mas como figurante você ainda sente que o seu papel é importante?

LEITOR LABIAL: Você é um ator, então você quer fazer bem o seu papel,

(alguns acordes musicais são ouvidos. O tema de “Coração Valente” começa


a tocar, a música dos créditos finais do filme)
“LIPPY”, de Bush Moukarzel (com Mark O´Halloran) Tradução: Rodrigo Haddad (fev/2015)

Você fica imaginando, será que alguém vai notar que eu dei um último suspiro
ali no meio da lama?

(os dois ficam absorvendo o momento, imaginando e revivendo a tragédia do


artista com papel pequeno. ADAM se levanta para ver o figurante morrendo no
lamaçal. Mas não tem ninguém ali. Ele se senta. A música vai saindo aos
poucos até sumir.)

Então a gente assistiu um monte de filmes, viu todas essas interpretações


silenciosas, e começou a se perguntar o que será que eles estariam dizendo. Se
é que eles estariam dizendo alguma coisa. A ideia de que não existe isso de
figurante, que somos todos protagonistas das nossas próprias histórias.

ENTREVISTADOR: Essa é uma bela ideia. Ler os lábios dos figurantes e dar a eles uma voz.

(tempo)

Dan, isso tudo é fascinante, mas o elefante nessa sala é o seguinte: como é que
você consegue fazer essa porra de leitura labial? Quer dizer, a maioria das
pessoas aqui conhece o seu trabalho como ator.

LEITOR LABIAL: Sim, eu sou um ator. Mas eu tive uma filha que era surda. E foi algo que eu
aprendi a fazer com ela. Essa é a primeira vez que eu consegui usar isso num
projeto pro teatro. Mas é uma habilidade rara, então ela tem as suas utilidades
profissionais de vez em quando.

ENTREVISTADOR: Tais como?

LEITOR LABIAL: Por exemplo, alguns trabalhos com a polícia irlandesa, ajudando nas
investigações, fazendo a leitura labial dos vídeos das câmeras de segurança, esse
tipo de coisa.

ENTREVISTADOR: Isso acontece mesmo?

LEITOR LABIAL: Com certeza.

ENTREVISTADOR: Eu pensei que fosse só em filmes como “Cassino” que os leitores labiais
trabalhassem com a polícia.

LEITOR LABIAL: Nesse caso especifico, a arte imita a vida. Na verdade, se lembra daquele caso
que eu mencionei no início –

ENTREVISTADOR: As quatro mulheres em Leixlip?

LEITOR LABIAL: Isso, em Leixlip. Bom, eu trabalhei naquele caso, dei uma olhada em alguns
vídeos de segurança pra polícia, ajudei os caras a decifrar algumas coisas na
investigação. Foi um trabalho fascinante, e bem difícil. Porque aquelas pessoas
tomaram uma decisão inacreditável, e se alguém te pede pra ler os lábios delas,
basicamente tão te pedindo pra dar uma interpretação... um significado.
“LIPPY”, de Bush Moukarzel (com Mark O´Halloran) Tradução: Rodrigo Haddad (fev/2015)

ENTREVISTADOR: (balando a cabeça, como que concordando) Aham... aham... (tempo) Desculpa,
eu não ouvi nenhuma palavra que você disse.

LEITOR LABIAL: O que?

ENTREVISTADOR: Com todo esse papo sobre leitura labial, eu na verdade tava prestando atenção
nos seus lábios, vendo se eu conseguiria fazer o mesmo!

(O LEITOR LABIAL fica sem jeito com o que aconteceu – o entrevistador vem
sendo difícil de se lidar desde o início. Bem num momento em que estava se
abrindo um pouco, ele se sente meio idiota por não ter sido escutado...)

LEITOR LABIAL: Ah, bom... Se isso aconteceu, então você cometeu seu primeiro erro. Porque não
é olhando pra boca de uma pessoa que você lê os lábios dela – As palavras estão
no rosto dela.

ADAM, O TÉCNICO: Tem gente que diz que o segredo da leitura labial está em observar os olhos da
pessoa.

(ENTREVISTADOR e LEITOR LABIAL se encaram por um tempo, olhos nos


olhos. Um impasse.)

ENTREVISTADOR: (mudando o tom do momento) Dan, nós vamos agora abrir pras perguntas da
plateia, mas antes disso, eu queria sugerir uma coisa – e fique à vontade pra
recusar, se preferir - , mas andando pela cidade nesses últimos dias eu ouvi tanta
gente comentando sobre a peça, e a coisa que mais chama a atenção das pessoas
é o momento em que você lê os lábios de alguém da plateia ao vivo. Na verdade,
por acaso a moça que fez isso hoje – ah, olha ela ali. Que legal. Foi fenomenal
hoje, muito teatral. Enfim, eu queria saber se você toparia fazer isso comigo.

LEITOR LABIAL: Agora?

ENTREVISTADOR: Se você não se incomodar.

(o LEITOR LABIAL pensa um pouco. É um pedido incomum, é meio que colocá-


lo na berlinda, mas a plateia parece animada com a ideia)

LEITOR LABIAL: Se você acha que é uma boa, acho que dá sim.

(ele se posiciona para fazer o exercício)

Você pode ficar um pouco distante e falar diretamente pra plateia. Eu vou ficar
aqui e tentar ler os seus lábios e entender o que você está dizendo.

ENTREVISTADOR: E o que eu devo dizer?

LEITOR LABIAL: O que você quiser. A única coisa que eu te peço é pra você dizer palavras reais
e dizer algo que faça sentido. Eu não consigo decifrar algo que seja totalmente
nonsense.
“LIPPY”, de Bush Moukarzel (com Mark O´Halloran) Tradução: Rodrigo Haddad (fev/2015)

ENTREVISTADOR: Ok.

LEITOR LABIAL: É importante também que você realmente diga as palavras, e não simplesmente
as balbucie. Nossos lábios fazem formatos diferentes quando dizemos uma
palavra e quando simplesmente as balbuciamos em silêncio. Enquanto você fala
eu vou ficar escutando música bem alto. Adam, você pode...?

ADAM, O TÉCNICO: Claro.

(ADAM coloca fones de ouvido no LEITOR LABIAL na forma mais


tecnicamente elaborada possível. Podemos ouvir música saindo dos fones num
volume bem alto.)

(O ENTREVISTADOR se levanta e fica de frente para a plateia, improvisando


um discurso. O LEITOR LABIAL interpreta o que ele está dizendo e fala em um
microfone. Os níveis de volume entre um e outro devem ser de modo que
possamos ouvir as discrepâncias e as coincidências entre o que está sendo dito
e o que está sendo “lido”)

ENTREVISTADOR: LEITOR LABIAL:

Eu não preparei nada, mas acho que posso falar sobre o Eu não falei nada, mas acho que posso falar
que aconteceu quando eu saí ontem à noite. do cara que bebeu onde eu fui à noite.

Ahm... A gente, é... Eu não saio muito. Mas como a A mente é... Eu não sei muito. O cara é parte
maior parte da companhia é da Inglaterra, eu... Eu to da companhia da Inglaterra e...
dando uma mão, alguns deles estão hospedados na minha
casa. Então eu levei eles pra conhecer a cidade. E a gente Casarão que eu morei quando tinha idade. E
foi ao Workman´s Club. a gente foi ao Workman´s Club.

Porque tinha um show rolando. E eu... Sei lá, foi meio É que tinha um som rolando. E era meio um
estranho. Fazia tempo que eu não saía, e mais ainda que sonho. Fazia tempo que eu não sabia mas as
eu não ia a um show. E a gente esquece como são essas meninas eram um show. Até parece com
coisas. essas coisas.

A gente fica olhando no espelho. A vida


A gente fica meio, sei lá, meio velho. E aí esquece como como ela é. E veio a multidão. E realmente
é. No meio de uma multidão. Principalmente em um era um show, e tem muita gente, e tipo,
show, porque normalmente quando tem muita gente, tipo gente nua, as pessoas não ficam, sei lá,
na rua, as pessoas não ficam, sei lá, espremidas, todas tímidas, todas juntas. E tava todo mundo
juntas. E nessa balada tava todo mundo muito perto. certo.
E eu... Bom, no início foi meio estranho. Você se sente E eu... o vício é tamanho que você se sente
meio violado. Mas ao mesmo tempo também é meio, sei meio... (não consegue entender “violado”)
lá, excitante, de alguma forma. Todo mundo ali, Tá viciante de alguma forma. O mundo ali,
apertado. E eu acho, eu imagino que tenha um lado legal abestado. E imagino que apertado seja legal,
em ficar numa multidão de gente. Tem uma energia. ficar numa multidão quente, muita energia.

É meio que nem estar aqui. Com essa plat – com vocês É como estar com vocês aqui. A plateia tem
aqui. Como plateia. Rola uma troca de energia, quando uma energia, as pessoas juntas...
as pessoas ficam juntas...
“LIPPY”, de Bush Moukarzel (com Mark O´Halloran) Tradução: Rodrigo Haddad (fev/2015)

(Perto do final do discurso começamos a ouvir um barulho, vindo do


equipamento do Adam, um zumbido, zunido ou algo assim. Vai aumentando em
intensidade. Notamos que ADAM está gradualmente diminuindo o volume no
palco – dos microfones e do fone de ouvido)

(O que sobra é o ENTREVISTADOR e o LEITOR LABIAL continuando a cena,


lendo a última parte em silêncio, os lábios se mexendo, mas sem som. Então
eles param. O zumbido para. ADAM começa a cantar no microfone.

ADAM O TÉCNICO: When you were born, you cried


and the world rejoiced.
Live your life so that when you die,
the world cries and you rejoice.3

(ao final ele recomeça a cantar do início, mas a voz dele é acrescentada à
versão anterior, gravada, como num coral. Ao final, ele recomeça novamente,
como se três vozes cantassem a mesma música, uma sobreposta à outra4.
Enquanto isto acontece, o palco é desmontado, até que apenas o LEITOR
LABIAL permanece em cena.

(Quando tudo termina, o LEITOR LABIAL, sozinho, fala ao microfone. Ele


conta a história do último caso em que trabalhou)

LEITOR LABIAL: Os corpos delas foram encontrados no dia 12 de julho. Do ano 2000. O
proprietário do apartamento arrombou a porta para conseguir entrar depois de
bater e bater e ninguém abrir. Uma geladeira estava bloqueando a porta de
entrada. Mais tarde a polícia encontrou uma mesa e cadeiras bloqueando a porta
dos fundos, e descobriu que o aquecedor estava ligado no máximo. E era o auge
do verão, se eu bem me lembro. O lugar todo estava completamente vedado por
dentro. Elas não queriam ser encontradas. Os policiais encontraram três das
mulheres na sala de estar, enroladas em um edredom. Elas pareciam estar
vestindo camisolas. Mas a quarta mulher estava na cozinha, meio que sentada,
afundada numa pilha de sacos de lixo. Era a família Mulrooney, a tia e três
sobrinhas, e elas tinha decidido morrer. Elas pararam de comer até morrer.

A última vez que alguma delas foi vista em público foi quando duas das irmãs,
Catherine e Josephine, foram fazer compras no shopping center Stephen Green.
As câmeras de segurança captaram imagens delas. Eu li os lábios delas. Vi o
que elas disseram.

(Neste momento o LEITOR LABIAL para de falar, mas a voz dele continua. É
como se ele estivesse escutando algo que disse no passado. Algo que nunca o
deixou, uma história que está sempre com ele.)

3
Aparentemente este é um cântico indígena (Navajo ou Cherokee, dependendo da referência). No
YouTube existem alguns vídeos com corais cantando, como este aqui:
https://www.youtube.com/watch?v=V3GPL8LkC5A (N.T.)
4
O vídeo acima dá uma ideia de como fica. (N.T.)
“LIPPY”, de Bush Moukarzel (com Mark O´Halloran) Tradução: Rodrigo Haddad (fev/2015)

Mas é aquela imagem dos sacos de lixo que fica voltando à minha mente, e o
fato de que dentro dos sacos estavam todos os documentos pessoais delas. E
todos os documentos haviam sido picotados a mão, e amassados e destruídos. E
elas molharam os papeis de modo que eles viraram uma papa, uma espécie de
papel machê, impossível de serem lidos. É como se elas não quisessem apenas
morrer e deixar esse mundo, mas sim desaparecer e que não restasse qualquer
traço da existência delas. Elas queriam que parecesse que elas nunca tinham
estado aqui. Apagaram qualquer traço da própria existência.

(O LEITOR LABIAL sai. A gravação da voz dele continua numa cacofonia, com
outros sons, vozes e barulhos sobrepostos.)

E aquela frase de uma das cartas que foram encontradas na casa, escrita pela
Bridg-Ruth pra irmã, Josephine. Dizia: “Faz 36 dias que não comemos.
Nenhuma de nós imaginou que seria tão cruel e tão devagar.”

(A cacofonia continua. No meio dos sacos de lixo estão quatro figuras, quatro
mulheres. O som atinge um volume perturbador, até que para de repente.)

(Quatro dos sacos flutuam para cima)


“LIPPY”, de Bush Moukarzel (com Mark O´Halloran) Tradução: Rodrigo Haddad (fev/2015)

PARTE DOIS

1: PERÍCIA
(As quatro mulheres ficam em pé. Quatro sacos de lixo flutuam pelo ar, suspensos ao
redor delas.

Nada.

Então: CATHERINE tira uma tesoura de um dos bolsos do sobretudo e corta o fio que
segura um dos sacos. Ela segura o saco de lixo dela – os rastros em papel da existência
dela – como uma criança segurando uma bexiga.

JOSEPHINE faz o mesmo.

BRIDG-RUTH faz o mesmo.

FRANCES não se mexe. As outras três se viram para olhar para ela. Depois de um tempo
FRANCES pega uma tesoura e faz o mesmo que as outras.

As mulheres se distanciam de nós e se encostam na parede do fundo, os sacos de lixo


suspensos no ar.

O som cresce. Uma luz ultravioleta brilha sobre elas. Silhuetas. A luz ultravioleta se
apaga.

As mulheres saem e o que resta são as silhuetas delas marcadas na parede do fundo pela
luz ultravioleta.

Essa imagem continua o máximo de tempo possível, até as silhuetas começarem a


desaparecer.

(CATHERINE) retorna mas nós não a reconhecemos. Ela veste um uniforme de perita
forense – jaleco branco, máscara cobrindo a boca, luvas de plástico. Ela vai até a própria
silhueta e a examina.

(JOSEPHINE) entra, também vestida como perita. Ela examina a silhueta. Vai até
(CATHERINE) e elas murmuram algo que não conseguimos entender. Elas parecem
perplexas. (JOSEPHINE) aponta para a silhueta do saco de lixo. (CATHERINE) dá de
ombros, tipo “Eu é que vou saber?”

(FRANCES) e (BRIDG-RUTH) entram, mesmo esquema. Elas examinam os sacos de lixo


que ainda estão flutuando.

(CATHERINE) começa a desenhar com giz os contornos das silhuetas na parede do


fundo, com o auxílio de (JOSEPHINE). Elas fazem isso com pressa, já que as silhuetas
estão sumindo.
“LIPPY”, de Bush Moukarzel (com Mark O´Halloran) Tradução: Rodrigo Haddad (fev/2015)

(FRANCES) ergue um dos sacos de lixo que estão no chão. Uma massa de papel picotado
sai de dentro dele.

(BRIDG-RUTH) faz o mesmo e mais papel se espalha.

(CATHERINE) está prestes a desenhar o contorno do quarto e último corpo, mas a


silhueta já praticamente desapareceu e ela não consegue se lembrar do formato.
(JOSEPHINE) tenta ajudar, tentando imitar a pose na parede. (CATHERINE) desenha o
contorno dela na parede. Acaba saindo vago e genérico, algo como o símbolo genérico
feminino que vemos na porta de um banheiro público, por exemplo.

(FRANCES) rasga outro saco de lixo – mais papel se espalha.

(BRIDG-RUTH) abre mais um saco e olha dentro dele. Ela chama a atenção das outras.
Ela retira um prato de dentro do saco.

A equipe da perícia tenta fazer uma reconstituição. A cena é remontada do modo como
teria sido antes das mortes ocorridas em Leixlip.

A mesa e as cadeiras são removidas da posição onde estavam – bloqueando a entrada


dos fundos – e colocadas nas posições originais.

Alguém encontra uma tigela de leite pra um gato e um litro de leite e os posiciona.

Pratos são retirados dos sacos de lixo e a mesa é posta.

O mesmo acontece com garfos e facas.

Um rádio-relógio e um vaso com flores mortas são colocados sobre a mesa da cozinha.

(FRANCES) liga o rádio-relógio – o mostrador lê “00:00” – e ele começa a tocar uma


canção country, “Home Is Where You´re Happy”, do Willie Nelson.

A equipe de peritas fica em pé, ao redor da mesa. Elas balançam o corpo delicadamente
ao som da música.)
“LIPPY”, de Bush Moukarzel (com Mark O´Halloran) Tradução: Rodrigo Haddad (fev/2015)

2: O LEITOR LABIAL
(Uma batida na porta.

A equipe de peritas não reage.

Mais uma batida.

As peritas seguem sem se mexer.

Um saco de lixo começa a se mexer. O LEITOR LABIAL sai de dentro dele e entra na
sala. Ele parece um pouco desconcertado.)

LEITOR LABIAL: Não liguem pra mim, continuem o que estavam fazendo. Ninguém atendeu a
porta, então tive que entrar por outro lugar. Vocês devem estar ocupadas.
Provavelmente não me ouviram bater. Continuem, por favor.

(Ele dá uma olhada na sala, nota os contornos na parede, depois começa a


vasculhar uma pilha de papel. Ele acha uma folha que está inteira. Lê. É a ordem
de despejo recebida pelas mulheres no endereço delas em Sandymount, Dublin.)

Vinte anos vivendo em Sandymount e elas foram despejadas. Tiveram que


encontrar um novo lar. Aqui, em Leixlip. Chamam esse lugar de “Cyber Plains5”
– é o Vale do Silício de Dublin. Jesus, o que elas faziam num lugar como esse?

(uma das peritas fala com o LEITOR LABIAL, mas a voz dela é abafada e
inaudível por causa da máscara)

(FRANCES): Ucufocufocedice?

LEITOR LABIAL: Cyber Plains. O coração da Área de Informática e Comunicações.

(FRANCES): Coorassuum?

LEITOR LABIAL: Área de Informática e Comunicações.

(FRANCES): Infurquê?

LEITOR LABIAL: Essa aqui é a Ordem de Despejo.

(A perita anda até o LEITOR LABIAL. Ele não sabe bem o que ela quer, depois
entende.)

Você quer ver o documento?

(Ele entrega a ela a Ordem de Despejo. Ela lê o documento. As outras fazem o


mesmo.

5
Pode ser traduzido como “Planície Cibernética”. (N.T.)
“LIPPY”, de Bush Moukarzel (com Mark O´Halloran) Tradução: Rodrigo Haddad (fev/2015)

A perita rasga o documento. Ela joga o papel rasgado em um dos sacos de lixo)

Ei, você não pode fazer isso. Isso é uma prova.

(Uma das peritas que está em volta da mesa tira o capuz e a máscara – é a
CATHERINE.

O LEITOR LABIAL enfia o braço no saco de lixo e tira de dentro dele a Ordem
de Despejo, magicamente restaurada e intacta. A perita (FRANCES) pega o
papel da mão dele e o rasga novamente.)

Você tá bem?

(as outras duas peritas tiram o capuz e a máscara também – JOSEPHINE e


BRIDG-RUTH.

CATHERINE vai até (FRANCES) e faz com que ela pare. Ela tira o capuz e a
máscara dela – é FRANCES.

CATHERINE consola FRANCES, que ficou abalada pela ordem de despejo e o


que isso causou à família.

Legenda projetada na parede do fundo, acima da cabeça de JOSEPHINE:

“A mamãe começou a repetir as coisas. Ela deve estar ficando velha.”

Legenda sobre BRIDG-RUTH:

“Ela só deve estar cansada. Todo mundo repete as coisas.”

De novo:

“Ela só deve estar cansada. Todo mundo repete as coisas.”

“Ela só deve estar cansada. Todo mundo repete as coisas.”

“Ela só deve estar cansada. Todo mundo repete as coisas.”

As palavras preenchem toda a parede do fundo da sala. As mulheres iniciam o


pacto de fome.

Os jalecos de perícia são totalmente retirados. Os restos do uniforme são


recolhidos pelo LEITOR LABIAL e colocados em um saco de lixo.

As mulheres agora são as mulheres de Leixlip. Elas se sentam à mesa. A mesa


está posta, com talheres e pratos vazios.

Uma espera.
“LIPPY”, de Bush Moukarzel (com Mark O´Halloran) Tradução: Rodrigo Haddad (fev/2015)

CATHERINE arrasta a cadeira para trás e se levanta. Ela pega o próprio prato
e talheres e os joga fora, em um dos sacos de lixo.

JOSEPHINE faz a mesma coisa.

BRIDG-RUTH também.

O saco de lixo é passado para FRANCES. CATHERINE coloca o último prato e


talheres nas mãos de FRANCES, que os segura sobre o saco de lixo. Mas
FRANCES não tem forças para jogar as coisas no saco. As outras fazem isso por
ela, como se ela fosse um fantoche.

As flores mortas são jogadas no saco de lixo.

BRIDG-RUTH leva uma cadeira até a porta. Ela abre a porta. CATHERINE e
JOSEPHINE saem. Assim que elas saem, BRIDG-RUTH fecha a porta e a
bloqueia com a cadeira, onde ela se senta. FRANCES liga o rádio. É uma versão
mais lenta de “Home Is Where You´re Happy”. FRANCES balança a cabeça bem
devagar.)
“LIPPY”, de Bush Moukarzel (com Mark O´Halloran) Tradução: Rodrigo Haddad (fev/2015)

3: COMPRAS
(BRID-RUTH está sentada na cadeira que bloqueia a porta. Depois ela vai até a tigela
do gato. Ela chama por um gato que não está lá, tenta encontra-lo para dar leite a ele.
Ela põe um pouco de leite na tigela. O litro de leite só tinha um restinho, então ela não
consegue encher a tigela toda.

O rádio-relógio lê: “18:45”

Há uma batida na porta.

BRIDG-RUTH corre até a porta, ansiosa, e a abre. CATHERINE e JOSEPHINE entram,


com sacolas de compras. CATHERINE põe as dela sobre a mesa e FRANCES retira o
que está dentro delas: baldes.

CATHERINE joga as sacolas do mercado em um saco de lixo.

JOSEPHINE põe as sacolas dela sobre a mesa e retira o que tem dentro: flores. Ela põe
as flores no vaso. FRANCES olha o que mais tem na sacola.

BRIDG-RUTH está na porta.

FRANCES tira da sacola uma barra de chocolate Snickers. Ela olha pras outras,
esperando uma explicação.

JOSEPHINE assume a culpa. Ela vai até FRANCES, que tenta se levantar para dar um
tapa nela. FRANCES se esforça, mas não consegue levantar. Ela olha para CATHERINE.
CATHERINE vai até JOSEPHINE e dá um tapa nela.

CATHERINE se senta à mesa e sintoniza uma estação no rádio.

Ouve-se a gravação da Parte Um, quando o LEITOR LABIAL descreveu o papel dele no
caso. Elas se divertem com isso.

“A última vez que alguma delas foi vista em público foi quando duas das irmãs, Catherine
e Josephine, foram fazer compras no shopping center Stephen Green. As câmeras de
segurança captaram imagens delas. Eu li os lábios delas. Vi o que elas disseram.”

O LEITOR LABIAL se junta às mulheres e se senta com elas à mesa.)

LEITOR LABIAL: Me desculpem, eu tava sob pressão. Eu posso ter me enganado. A palavra “bar”,
por exemplo, é idêntica à palavra “par”.

(FRANCES, CATHERINE e JOSEPHINE tentam reprimir risadas)

Por que vocês estão rindo? Eu quero mesmo ajudar. Tem alguma coisa que vocês
queiram acrescentar?

(elas continuam rindo dele)


“LIPPY”, de Bush Moukarzel (com Mark O´Halloran) Tradução: Rodrigo Haddad (fev/2015)

Tem uma carta... (ele pega a carta do bolso) ... qual de vocês é a Bridg-Ruth? Foi
encontrada embaixo do travesseiro dela depois que ela morreu –

(O LEITOR LABIAL fica absorto lendo a carta. BRIDG-RUTH começa a dizer o


conteúdo da carta que foi encontrada com ela quando ela morreu.)

BRIDG-RUTH: Temos que nos livrar destes corpos físicos densos, que pra mim não são nada
mais do que sobretudos que nossas almas vestem e que, quando gastos, são
jogados fora, e assim nós podemos ascender aos reinos superiores, que são o
nosso verdadeiro lar, na minha opinião. Afinal, isso foi o que Jesus Cristo, nosso
Salvador, veio nos ensinar.

(BRIDG-RUTH faz o discurso na esperança de se comunicar com a plateia.


Diferente das outras, ela sente a necessidade de explicar o pacto que elas
fizeram. Mas quando ela sai da casa de Leixlip e entra na área onde ocorreu
anteriormente o bate-papo, as outras mulheres tapam os ouvidos. Isso é
acompanhado pelo som de uma falha de sinal, parecido com o efeito de um
serviço ruim quando se fala ao telefone. Isso engole a maior parte da fala de
BRIDG-RUTH. Quando ela termina de falar, as outras mulheres tiram as mãos
dos ouvidos e o som estranho vai se dissipando.)

LEITOR LABIAL: Desculpa, mas eu não consegui entender tudo que você disse. Talvez a conexão
esteja ruim, não sei se é você ou se sou eu. Será que você poderia repetir?

(Ela retorna à casa de Leixlip e tenta novamente. Dessa vez ela é interrompida
por FRANCES tossindo.

Ela tenta mais uma vez. FRANCES tem uma crise de tosse. Todos correm para
ajudá-la. Incluindo BRIDG-RUTH. Não vale a pena tentar explicar. Ela precisa
estar com a família dela.

As mulheres sentam FRANCES em frente à tv e se preparam para assistir uma


missa transmitida. Elas assistem a Comunhão.)
“LIPPY”, de Bush Moukarzel (com Mark O´Halloran) Tradução: Rodrigo Haddad (fev/2015)

4: COMENDO
(O LEITOR LABIAL se senta à mesa, pega uma lancheira e retira de dentro dela um
sanduiche embrulhado em papel alumínio. Ele põe metade em um dos pratos e pega a
outra parte pra ele mesmo. JOSEPHINE percebe o que ele está fazendo.)

LEITOR LABIAL: (pra Josephine) Come comigo.

(Nada.)

Você tem que comer. Precisa.

(JOSEPHINE vai até a mesa. As outras a observam. O LEITOR LABIAL torce


pra que seus apelos surtam efeito e que ela coma.

BRIDG-RUTH fala com CATHERINE. Conforme elas falam, os lábios delas se


mexem em sincronia com as palavras que escutamos. As vozes delas são
masculinas.)

BRIDG-RUTH: (voz masculina) “A Jo tá com um carinha de novo. Será que um dia ela vai
aprender?”

CATHERINE: (voz masculina) “Por que é que... Por que é que o Diabo... tem sempre a forma
de um homem?”

(JOSEPHINE olha pro sanduiche. Ela se senta.)

LEITOR LABIAL: É de atum. É uma delícia. Pão com atum.

(JOSEPHINE pega a xícara de café.)

Quer beber antes? Ótima ideia.

(JOSEPHINE leva a xícara aos lábios. Ela morde a xícara, que se quebra na
boca dela. Ela mastiga a porcelana. Sangue escorre pelo rosto dela.

JOSEPHINE desmaia e cai. O LEITOR LABIAL tenta ajuda-la, mas BRIDG-


RUTH intervém, afasta JOSEPHINE dele e consegue reanimá-la.)

Me desculpe, eu só tava tentando ajudar –

(CATHERINE interrompe a ação. Ela está confusa. Aquelas não eram as


palavras dela. Talvez esta não seja a história dela)

CATHERINE: (voz masculina) “Espera... Não foi assim que aconteceu... Eu não disse aquilo...
Eu não disse nada disso.”

LEITOR LABIAL: (retirando a carta do bolso) Mas na carta...


“LIPPY”, de Bush Moukarzel (com Mark O´Halloran) Tradução: Rodrigo Haddad (fev/2015)

(O LEITOR LABIAL mais uma vez fica absorto lendo a carta. Imagina a
composição da cena)

BRIDG-RUTH: (pro LEITOR LABIAL) Jamais poderá haver justiça aqui e a busca pela justiça
será sempre fútil e devastadora. Eu acredito que todos nós, cada alma, tem uma
dívida cármica a pagar (e eu me incluo nisso), uma cruz individual para carregar,
pra aprender com esse sofrimento intenso (não é sofrimento só por sofrer).

(ela tenta ir até o LEITOR LABIAL para chamar a atenção dele, mas é contida
por CATHERINE)

Mas se não fizermos alguma coisa agora, nós não partiremos de modo sereno.
Nenhuma de nós pôde prever que nossas mortes seriam tão lentas e cruéis... Por
favor, escute: eu pensei muito e por muito tempo em tudo isso. Vamos pensar em
partir de um modo humano –

(CATHERINE tapa a boca de BRIDG-RUTH. A fala continua, mas pré-gravada,


não ao vivo. CATHERINE leva BRIDG-RUTH para longe. Ela não a impede.
Apenas se resigna e ambas se sentam à mesa.)

“... nos salvar de um inferno lento e doloroso. Isso é muito sério. As coisas vão
simplesmente piorar, constantemente. Seria cruel e negligente não interferir. Suas
condições estão se deteriorando. Logo todos estaremos bastante incapacitadas –“
“LIPPY”, de Bush Moukarzel (com Mark O´Halloran) Tradução: Rodrigo Haddad (fev/2015)

5: FOLHAS
(Durante a cena anterior, FRANCES não saiu do lugar. Ela permaneceu completamente
imóvel. Ouve-se um som fora de cena. Como uma tempestade se aproximando. É o som
de um soprador de folhagens. ADAM, O TÉCNICO, entra com um soprador de folhagens.
Ele usa os mesmos fones de ouvido da primeira cena. É o Anjo da Morte. Ele limpa as
folhas do palco, metodicamente usando o aparelho para sopra-las pela porta aberta.
Quando ele se aproxima de FRANCES, ela tomba para frente, sem vida, o corpo dela
movido pela força do soprador. Ele tenta tirá-la do caminho do mesmo jeito que fez com
as folhas. Ela se mexe um pouco, mas é pesada demais pra ser soprada como as folhas.
Ele desiste, larga o soprador e coloca os fones de ouvido no LEITOR LABIAL. ADAM,
O TÈCNICO, em seguida pega FRANCES nos braços e sai com ela.

O relógio lê: “20:00”)


“LIPPY”, de Bush Moukarzel (com Mark O´Halloran) Tradução: Rodrigo Haddad (fev/2015)

6: VASO
(O LEITOR LABIAL está em pé, com um microfone na mão e fones de ouvido, como na
Parte Um, e lê os lábios do seguinte diálogo, conforme os lábios das mulheres se mexem.)

CATHERINE: Por que você tá com esse curativo?

JOSEPHINE: Eu me cortei.

CATHERINE: Como?

JOSEPHINE: Eu tava levando esse vaso pra cozinha pra jogar as flores fora e o fundo dele
arrebentou e caiu no chão. Eu cortei a minha mão recolhendo os pedaços de vidro.

CATHERINE: Mas é o seu punho que tá cortado.

(sem resposta)

O vaso parece inteiro.

JOSEPHINE: Mas foi isso que aconteceu.

(ela pega o vaso)

Eu tava levando ele pra cozinha quando de repente, do nada, o fundo


simplesmente... caiu.

CATHERINE: Caiu, simplesmente?

JOSEPHINE: É.

CATHERINE: Isso não parece muito plausível.

JOSEPHINE: Bom, foi o que aconteceu. Ele caiu. Assim.

(o fundo do vaso cai e se arrebenta no chão. CATHERINE olha pro vidro


quebrado, sem reação, e depois para JOSEPHINE.)

CATHERINE: Eu acho tudo isso difícil de acreditar.

JOSEPHINE: Tá, mas foi exatamente o que aconteceu. (se vira para o LEITOR LABIAL) E o
vaso quebrado não é nem a pior parte da história. São as flores. Eu não aguento
mais essas flores mortas.

(CATHERINE se afasta. O LEITOR LABIAL se aproxima de JOSEPHINE.

CATHERINE e BRIDG-RUTH tiram as roupas que usam durante o dia. Elas


vestem camisolas. Elas fazem uma barricada na entrada com as mesas e
cadeiras. Para isso, elas apoiam e organizam os móveis sobre a parede. Elas
“LIPPY”, de Bush Moukarzel (com Mark O´Halloran) Tradução: Rodrigo Haddad (fev/2015)

agora estão sentadas nas cadeiras que estão sobre a parede, como se víssemos
a cena de cima, ou seja, a parede é como se fosse o chão.

O LEITOR LABIAL tira os fones de ouvido.)

LEITOR LABIAL: (pra JOSEPHINE) Me desculpe pela bagunça. Eu não tava te esperando.

(JOSEPHINE olha para ele. O LEITOR LABIAL a confundiu com a filha dele)

Posso pegar alguma coisa pra você? (ele gesticula como algo para beber) Chá,
café, chocolate quente? Nada?

(Nada)

Nada.

(Ela olha pro teto. Ele percebe.)

Tem uma goteira no teto. Já avisei o proprietário, mas ele tá viajando...

(Ele busca um balde e o coloca sob a goteira)

A sua mãe que costumava cuidar desse tipo de coisa. Já eu, se tem uma goteira
no meu teto, simplesmente pego uma panela e torço pra parar de chover logo.

(JOSEPHINE começa a colocar as coisas dela em um saco de lixo)

Você leu sobre mim no jornal? Aquelas pobres mulheres.

(Sem resposta. JOSEPHINE olha pra ele)

(numa explosão de fúria) Você não vai falar com o seu pai? Eu ainda sou seu pai,
sabia? Eu sei que eu posso não parecer um, mas...

(JOSEPHINE se afasta, segurando o saco de lixo)

Você tem que falar comigo... Contexto é tudo... Eu tentei transformar isso aqui
numa casa!

(JOSEPHINE se junta às outras mulheres de Leixlip.

O LEITOR LABIAL se vira pro lado oposto.)

(pra si mesmo) Será que eu me lembro mesmo?

(O LEITOR LABIAL se senta. A goteira está cada vez pior.)

Nada.

(Começa a chover pelo teto.


“LIPPY”, de Bush Moukarzel (com Mark O´Halloran) Tradução: Rodrigo Haddad (fev/2015)

Uma tempestade. Agua escorre pelo teto. Ele pega mais um balde, mas não
adianta. Ele se senta e põe o balde na própria cabeça.

Tempestade.)
“LIPPY”, de Bush Moukarzel (com Mark O´Halloran) Tradução: Rodrigo Haddad (fev/2015)

7: INTERVALO
(A chuva para. O sol brilha. O LEITOR LABIAL tira o balde da cabeça.)

LEITOR LABIAL: Eu tô quase no Paraíso.

(pra plateia) É uma pena que não tenhamos mais intervalos hoje em dia. Eles
saíram de moda. É uma pena, porque eles dão uma chance pra plateia se conhecer.
Uma chance pra conversar com o seu vizinho, conhecer o seu vizinho, não gostar
do seu vizinho. Mas pelo menos você sabe que eles estão ali. Pequenas medidas
pra aliviar o isolamento social. Então o melhor que eu posso oferecer a vocês é
um intervalo que acontece durante a peça.

(Um som invade a sala. É uma gravação dos sons feitos pela plateia, gravados
enquanto eles entravam no teatro no começo do espetáculo. A intenção é que a
plateia reconheça uma voz ou outra, que se ouçam. Enquanto isso acontece, o
LEITOR LABIAL pega o microfone e se senta.

O som da multidão se transforma no aplauso introdutório de uma plateia de


estúdio.

O LEITOR LABIAL leva o microfone aos lábios. A música “Crying in the


Chapel”, de Don McLean, começa a tocar. O LEITOR LABIAL dubla a letra da
música.)

“You saw me crying in the chapel


The tears I shed were tears of joy
I know the meaning of contentment
Now I´m happy with the Lord”

(As mulheres saem de onde estavam sentadas e se aproximam do LEITOR


LABIAL. Elas se juntam a ele e ficam atrás dele, como “backing vocalists”. Elas
o consolam.)

“Just a plain and simple chapel


Where humble people go to pray
I prayed The Lord that I´ll go stronger
As I live from day to day.”

(Daqui em diante as mulheres dublam os backing vocals da música)

“Well, I searched and searched


But I couldn´t find
No way on earth
To find peace of mind.

Now I´m happy in the chapel


Where the people are of one accord
Wes, we gather in the chapel
Just to sing and praise The Lord.
“LIPPY”, de Bush Moukarzel (com Mark O´Halloran) Tradução: Rodrigo Haddad (fev/2015)

Well you´ll search and you´ll search


But you´ll never find
No way on earth
To find peace of mind.”

(BRIDG-RUTH se destaca das outras, que a observam. Ela entra em estado de


delírio. O LEITOR LABIAL percebe que a imagem se quebrou. Estamos de volta
a Leixlip)

“Take your troubles to the chapel


Get down on your knees and pray
Take your troubles to a chapel
And you´ll surely find a way.”
“LIPPY”, de Bush Moukarzel (com Mark O´Halloran) Tradução: Rodrigo Haddad (fev/2015)

8: PARAÍSO
(BRIDG-RUTH desaba.

JOSEPHINE e CATHERINE tentam confortá-la durante a morte dela.

JOSEPHINE segura o microfone sobre BRIDG-RUTH enquanto ela fala. CATHERINE


o balança, como um pêndulo – uma brincadeira que elas faziam quando eram crianças.
Ouvimos a fala dela de um modo irregular, conforme o microfone capta o que ela diz.)

BRIDG-RUTH: (a voz dela está enfraquecida, como resultado da fome que passou nos últimos
dias) Este é um sentimento forte e esmagador. Eu recebo sim uma orientação
correta às vezes, Jo, e eu estive certa em diversas ocasiões no passado, Jo. Isso
não é um pânico cego. Isso surgiu depois de muita oração e de muito pensar com
cuidado. Nós temos que agir... Eu rezei e torci pra que nossas vidas terminassem
de modo sereno, dormindo, mas é evidente que as coisas não funcionam bem
assim. Já estamos há quase 40 dias sem comer. Os grevistas de fome do bloco H6
tiveram mortes terrivelmente dolorosas, Jo.

Ninguém deveria estar sozinho neste mundo, Jo.

Não há felicidade aqui na Terra

Tudo passa.

Não fiquem de luto por mim.

(BRIDG-RUTH parece querer dizer mais alguma coisa, mas não tem mais voz.
O LEITOR LABIAL se aproxima dela. Ele pega o microfone e tenta ler os lábios
dela, as palavras finais dela.)

LEITOR LABIAL: “Lembrem-se de pôr o gato pra fora.” Lembrem-se de pôr o gato pra fora?

(BRIDG-RUTH morre. CATHERINE arruma o corpo da irmã de modo que ela


pareça estar descansando em paz. Ela espalha um pouco de papel picotado sobre
ela. JOSEPHINE espalha os baldes pela sala. Ela se agacha sobre um deles para
urinar. O LEITOR LABIAL tenta absorver a cena, e se vira para CATHERINE.)

Sinto muito.

(ele sai da casa com o microfone. Ele fica na frente do palco, onde o bate-papo
pós-peça aconteceu, e fica no mesmo lugar onde terminou a Parte Um.

6
Referência à famosa greve de fome com cunho político ocorrida numa prisão irlandesa no início dos
anos 80 (N.T.)
“LIPPY”, de Bush Moukarzel (com Mark O´Halloran) Tradução: Rodrigo Haddad (fev/2015)

CATHERINE se vira para JOSEPHINE, que está agachada e sem se mexer sobre
um dos baldes. CATHERINE arrasta o corpo já sem vida da irmã, o balde se
vira e uma urina negra se espalha pelo chão. CATHERINE tenta arrumar o
corpo de JOSEPHINE junto ao de BRIDG-RUTH, para que ela pareça estar
descansando em paz, mas não tem forças suficientes para isso. Ela pega um
pouco do papel picotado que está sobre BIDG-RUTH e o espalha sobre
JOSEPHINE.

Um som. O teto começa a descer. Ela olha para cima. O teto para exatamente
sobre ela. O brilho da luz do teto fica mais forte. Ela o toca. O som é interrompido
abruptamente.)

CATHERINE: Eu estou quase no Paraíso.

(O som retorna. CATHERINE faz uma pilha com os sacos de lixo e se senta sobre
eles. Este é o lugar onde ela irá morrer A boca dela se mexe. Ela parece estar
falando.

Neste momento, uma tela desce sobre o palco e cobre o mundo de Leixlip, o
isolando da plateia.

Uma imagem aparece lentamente sobre a tela; uma única e enorme boca,
cobrindo a tela inteira. O LEITOR LABIAL sai.

É a boca de CATHERINE. Ela começa a falar.)


“LIPPY”, de Bush Moukarzel (com Mark O´Halloran) Tradução: Rodrigo Haddad (fev/2015)

9: CATHERINE

Eu

Aqui

Minha voz

Essa voz

Aquela

Começar

Estou sozinha

Sou a única que sobrou

Queria estar morta

Eu quero estar morta

E estarei, logo

Estou sendo testada

Por que estou sendo testada?

Escuridão

Sem volta

Nada

Vou continuar falando

Para esta escuridão

Ela impede que eu durma

Eu não quero dormir


“LIPPY”, de Bush Moukarzel (com Mark O´Halloran) Tradução: Rodrigo Haddad (fev/2015)

Aqueles sonhos

Aquela sala

Minhas irmãs que se foram

Frances se foi

Aquelas carcaças

O cabelo delas é como cabelo de mulher

E os dentes delas – 7

Vou enlouquecer

Ou talvez eu já esteja louca

Quem pode dizer?

Josephine

Me diga

Por que começamos?

Este fim

Pra esquecer

Coisas que se rompem

Quando você era pequena

Lembra disso?

7
Citação da Bíblia, livro Revelações 9:8 (N.T.)
“LIPPY”, de Bush Moukarzel (com Mark O´Halloran) Tradução: Rodrigo Haddad (fev/2015)

Eu cuidava de você

Cinco anos de diferença entre nós

Eu, a mais velha

Íamos de mãos dadas

Pra escola e pra casa

Inseparáveis

Nós éramos

Havia apenas nós

Os outros não

E o que eu vi

Você viu

Então naquele momento

Você pareceu tão mais velha

Eu não consegui olhar pra você

Apenas chorar

Pele tão fininha

Só osso

Josephine –

Os modos dela eram agradáveis

E todos os caminhos dela eram serenos – 8

8
Idem, livro Provérbios 3:17 (N.T.)
“LIPPY”, de Bush Moukarzel (com Mark O´Halloran) Tradução: Rodrigo Haddad (fev/2015)

Em que estação estamos?

Fim da primavera

Você acha ...?

Eu esqueci

Depois vem o verão

Eu

Aqui

Ainda

Parada

Ainda parada

Pele e osso

Minhas mãos

Apoiadas

Sobre os meus joelhos

Tão pálidas

Parecem flores de papel

Ou erguidas

Flutuando

Pelo ar

Oscilantes
“LIPPY”, de Bush Moukarzel (com Mark O´Halloran) Tradução: Rodrigo Haddad (fev/2015)

Parecem morcegos

Talvez

Apenas pele

Cegos também

Os olhos completamente brancos

Enxergam apenas a luz

Ou a ausência dela

Sombras

Enxergando escuridão

É exaustiva

Essa espera

Sem fim

Pelo fim

Fuja do mal

E faça o bem

Busque a paz

E vá atrás dela9

Eu faço

Eu tento

9
Idem, Salmos 34:14 (N.T.)
“LIPPY”, de Bush Moukarzel (com Mark O´Halloran) Tradução: Rodrigo Haddad (fev/2015)

Pensar

Ficar acordada

Nos pássaros

Pensar

Nas flores

Eu tento

Mas mesmo assim

Eu tento não pensar nas pessoas

É difícil demais pensar nas pessoas

Embora ainda assim

Ao menos pela companhia

Eu não consigo evitar

Conjurar

Isso

A loja

Como ela foi um dia

A fachada envernizada

A luz entrando pelas janelas

Era primavera, eu acho


“LIPPY”, de Bush Moukarzel (com Mark O´Halloran) Tradução: Rodrigo Haddad (fev/2015)

E as bancadas

Tão gostosas de tocar

Parecem pele, é o que ele dizia

Ele

Ele, que eu pensava ter esquecido

Na minha frente

De camisa de manga comprida

Meu pai

À noite

Eu o ouvia levantar

As pernas cambaleando, por causa da bebida

E eu o ouvia

Através da parede

Mijando como um cavalo

Ou então

Uma vez

Eu era criança

Eu estava doente

Ardendo em febre

Ele me levou nos braços pro andar de cima

Meu rosto enfiado no pescoço dele


“LIPPY”, de Bush Moukarzel (com Mark O´Halloran) Tradução: Rodrigo Haddad (fev/2015)

A pele áspera dele roçando a minha bochecha

Parecia tão quente

E segura, quase

O cheiro dele

Ele me deitou na cama

E passou a mão pelos meus cabelos

Gentilmente

Esperando que eu me acomodasse

Isso eu tenho que admitir

Ele não era sempre um demônio

Apenas um homem

Silencioso

Amargurado

Talvez ele se importasse mais com a loja dele

Sentado

Na poltrona dele

Esticado, ali

Fumando

Aquela boca furiosa

Latindo como um cachorro

Assustando todas nós


“LIPPY”, de Bush Moukarzel (com Mark O´Halloran) Tradução: Rodrigo Haddad (fev/2015)

Mas eu o perdoei

Nós o perdoamos

E ai aquilo

Ele disse

“Temos que pôr um freio em você, Catherine”

Gritou

Não bravo

Eu sabia que ele não estava bravo

Pelo comportamento dele

Pela silhueta dele

No portão

O sol se pondo

Brilhando intensamente

Atrás dele

Fogo por todos os lados

O fim do mundo

Talvez

Ele tinha bebido também

Dava pra perceber

Ele parecia um pouco tonto


“LIPPY”, de Bush Moukarzel (com Mark O´Halloran) Tradução: Rodrigo Haddad (fev/2015)

Isso foi em Gorey

Talvez não tão longe assim

Arklow, talvez

Algum lugar no sul

Ele tinha levado todas nós

Era um passeio, eu acho

Férias

Uma semana

A gente quase já não era mais criança

O tempo estava surpreendentemente bom

Só choveu um dia

Na semana inteira

Disso eu me lembro

A areia e a grama

Nós todas descalças

Tentando andar

Pelos caminhos de pedras

Sobre rochas pontiagudas

Enfrentando perigos

Ficando calejadas

E a Josephine ao lado dele


“LIPPY”, de Bush Moukarzel (com Mark O´Halloran) Tradução: Rodrigo Haddad (fev/2015)

Ali

Uma menina, ainda

Segurando a mão dele

Como se a vida dependesse daquilo

Como se ela fosse sair voando

Se soltasse a mão

Um balão preso por uma corda

Temos que pôr um freio em você

Ele disse mais uma vez

Eu tinha escapado, sabe?

Em silêncio

Sem ninguém ver

Tinha ido até a campina, lá atrás

Pra ouvir o som do mar

E eu estava ali

Parada bem no meio

Observando

Enquanto toda aquela luz

E todas aquelas cores

Desapareciam conforme a noite chegava

Na escuridão

Eu tinha visto Deus


“LIPPY”, de Bush Moukarzel (com Mark O´Halloran) Tradução: Rodrigo Haddad (fev/2015)

E quando eu olhei pra baixo

As minhas mãos estavam cheias de flores

O que deu em você, ele perguntou

Eu disse que não sabia

Eu não lembro

Eu sussurrei

Enquanto ele nos levava de volta

As suas pernas também estão molhadas, ele disse

Era o orvalho que tinha caído

Nós vamos te enxugar

Lá dentro

Já está tarde

O dia tinha acabado

E então

E então

Chega

O que ela viu


“LIPPY”, de Bush Moukarzel (com Mark O´Halloran) Tradução: Rodrigo Haddad (fev/2015)

Eu vi

E tudo que eu aprendi

Nesse tempo todo

É que é a vida é isso –

A noite vira dia

O dia vira noite

Nada mais

Ó clemente

Ó piedosa

Ó doce Virgem Maria10

O homem tem um demônio dentro de si

E a mulher é algo sem valor

Cure o mal com o mal

10
Oração para Virgem Maria (N.T.)
“LIPPY”, de Bush Moukarzel (com Mark O´Halloran) Tradução: Rodrigo Haddad (fev/2015)

A morte é difícil

É suja

Não tem sentido

Mas gera vida

Por um fim

Eu me levantei

E saí da sala

Silenciosa como uma folha

Eu havia estado ali

As outras pararam

Fazia dias

Ou mais

Eu não aguentava mais

O fedor

Pensei em me levantar
“LIPPY”, de Bush Moukarzel (com Mark O´Halloran) Tradução: Rodrigo Haddad (fev/2015)

Fiquei horas pensando em me levantar

Até que me levantei

Me mexi

Eu mal me lembrava como me mexer

Eu parecia de papel

Eu parecia morta

Uma maquete deficiente

E acabei no lugar onde estou

Não consegui ir além

E a Josephine

Eu a vi

O rosto dela

Uma expressão solene

Sombria

Profunda

Naquela sala

Eu tentei escuta-la
“LIPPY”, de Bush Moukarzel (com Mark O´Halloran) Tradução: Rodrigo Haddad (fev/2015)

A respiração dela

Dezesseis por minuto

Constante

Diminuindo

Doze

Só pele e osso

Oito

Pedrinhas

Sobre o peito dela

Um pássaro assustado

E então

Duas

Quase imóvel

Um último suspiro

Um último movimento

E então
“LIPPY”, de Bush Moukarzel (com Mark O´Halloran) Tradução: Rodrigo Haddad (fev/2015)

Silêncio

Eu sussurrei o nome dela

Josephine

Jo

E então

A agitação começou

Quem diria que havia algo pior que sangue em nós

A morte não é um acontecimento

Mas sim um processo

Uma pequena catástrofe

Privada

Totalmente

Pessoal

Não pode ser dividida


“LIPPY”, de Bush Moukarzel (com Mark O´Halloran) Tradução: Rodrigo Haddad (fev/2015)

Apenas testemunhada

E mesmo assim

Mesmo isso

É fútil

Nós vamos sozinhas

É igual pra todo mundo

Histéricos

Europeus

Muçulmanos

E anticristos

Ninguém se salva

E eu

Dane-se eu

Essa vadia amordaçada

Essa mancha

Me deixe morrer

Me deixe morrer
“LIPPY”, de Bush Moukarzel (com Mark O´Halloran) Tradução: Rodrigo Haddad (fev/2015)

E eu espero que ele saiba o meu nome

Amém.

(De repente a imagem da boca desaparece e a tela fica totalmente transparente.


Tudo se foi. O espaço está completamente vazio; nada da sala em Leixlip, nada
de papel, nada de detritos, nada de corpos. Um teatro vazio. As luzes vão se
apagando.)

BLACKOUT

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