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Anemias carenciais
Deficiency anemias
Valéria de Freitas Dutra1, Maria Stella Figueiredo2
DOI: XX.XXXXX/RAM.v1.n1.p1-10
RESUMO
Apesar de medidas profiláticas como suplementação de ferro e ácido fólico em alimentos, a Palavras-chaves
anemia carencial ainda é comum em nosso meio. Ela pode ser observada, especialmente, em anemias carenciais,
crianças, mulheres em idade fértil, populações carentes e associada a doenças que cursam com deficiência de ferro,
anemias megaloblásticas.
má absorção de nutrientes. Faremos uma abordagem das principais anemias carenciais nos dias
de hoje, incluindo as anemias por deficiência de ferro, de B12 e de ácido fólico, considerando
anamnese, principais achados do exame físico, exames laboratoriais e tratamento. Discutiremos,
também, doses e medicações disponíveis atualmente no Brasil.
ABSTRACT Keywords
Despite prophylactic measures such as iron and folic acid supplementation in food, deficiency deficiency anemias, iron
anemia is still common in our country, especially in children, women of childbearing age, deficiency, megaloblastic
anemias.
low-income populations, and in individuals with disabsortive disorders. We present the main
causes of anemia today: iron deficiency, B12 deficiency and folic acid, considering anamnesis,
main findings of the physical examination, laboratory tests and treatment. We will also discuss
doses and medications available nowadays in Brazil.
Anemia
INTRODUÇÃO Contagem reticulócitos
não grávidas de 15 a 49 anos2 . Considerando o número AA: anemia aplástica; AI: anemia da inflamação.
No hemograma pode aparecer hipocromia, microcito- a doença inflamatória ou neoplásica. São eles a dosagem
se (diminuição do VCM), anisocitose (aumento do índice do receptor solúvel da transferrina (que se encontra ele-
de anisocitose, RDW), poiquilocitose e plaquetose. O nú- vada na ferropenia) e a dosagem de hepcidina, peptídeo
mero de reticulócitos, assim como em qualquer outra ane- hormonal regulador do metabolismo do ferro (que se en-
mia hipoproliferativa, encontra-se diminuído. contra diminuída).
A dosagem de ferritina sérica, que avalia o estoque cor- O tratamento da anemia ferropriva deve ser feito com
poral de ferro, é útil principalmente para valores baixos, reposição de ferro. Entretanto, essa reposição será insufi-
sendo que valores abaixo de 15 ng/ml em adultos refletem ciente, caso o fator causal da perda de ferro ou a doença de
uma deficiência de ferro. Já a saturação da transferrina base não sejam tratados.
(calculada a partir da relação ferro sérico/capacidade fer- A reposição oral é calculada a partir do ferro elemen-
ropéxica total) reflete a medida de ferro disponível para tar na dose de 150 a 200 mg/dia divididos em 3 tomadas.
eritropoese, independente dos estoques de ferro. O índice Em crianças usa-se 3 mg de ferro elementar/kg de peso/
de saturação de transferrina abaixo de 15% é considerado dia, também dividido em 3 tomadas. Vale a pena ressaltar
como ferropenia. que a quantidade de ferro elementar varia de acordo com
Entretanto, na presença de processos inflamatórios ou o composto de ferro. A tabela 3 mostra os sais de ferro
neoplásicos, existe dificuldade no diagnóstico de deficiên- disponíveis no Brasil e a quantidade correspondente de
cia de ferro, pois a saturação da transferrina encontra-se ferro elementar12 .
diminuída enquanto a ferritina, por ser uma proteína de O sulfato ferroso ainda é o melhor produto quando se
fase aguda, encontra-se aumentada. Nessa situação, ane- leva em consideração custo/ benefício. O ferro, neste caso,
mia ferropriva associada à doença inflamatória/neoplá- é mais bem absorvido em meio ácido e alguns alimentos
sica, estes exames apresentam limitações diagnósticas11. podem prejudicar sua absorção, por isso o sulfato ferro-
Apesar de serem exames ainda pouco disponíveis na prá- so deve ser prescrito em horários distantes das refeições,
tica clínica, existem atualmente novos testes que poderão podendo ser usado com vitamina C ou suco de laranja.
ajudar no diagnóstico de anemia ferropriva concomitante Um dos efeitos colaterais mais comuns é a intolerância
Tabela 3. Compostos de ferro disponíveis no Brasil para reposição oral (modificado de 12).
Sal de ferro Apresentação Fe elementar Dose diária
gastrointestinal. No caso de intolerância gástrica ao sul- reposição até que se atinjam estoques adequados. Esse
fato ferroso, devemos sempre pensar em mudar a dose, o tratamento dura em torno de 6 meses. De modo geral,
horário de administração ou mesmo o composto de ferro, o paciente com anemia ferropriva responde bem ao tra-
já que outras formulações de ferro podem ser mais bem tamento com ferro oral, independente da formulação de
toleradas. Na Figura 2 está esquematizado o acompanha- ferro utilizada. Entretanto, em alguns casos, existe a indi-
mento do tratamento da anemia ferropriva13. Uma vez cação de tratamento com ferro parenteral e as principais
atingido o alvo de Hb, o paciente deve ser mantido com indicações encontram-se na relacionadas na tabela 414.
Troca
Dose
Sim 1 semana tolerância Não Intervalo
Formulação
Completar o ciclo
Tabela 4. Indicações do uso de reposição endovenosa. O tratamento com ferro parenteral é hoje bastante pa-
Refratariedade ao ferro oral
dronizado e seguro. Vale lembrar que o ferro dextran, clas-
sicamente associado a reações adversas como a anafilaxia,
Intolerância gástrica ao uso
não é mais comercializado no Brasil. Existem, no entanto,
de ferro oral intratável
três formulações disponíveis:
Redução de absorção Cirurgias gástricas prévias 1. Complexo de hidróxido de ferro (III) polimaltosa-
gastrintestinal Doença celíaca
do (ferripolimaltose) para uso intramuscular exclu-
Doença inflamatória intestinal
sivo. Seu uso, entretanto, é desaconselhado desde
Gastrite atrófica
que nesta forma de aplicação, observa-se absorção
Necessidade de correção Gestantes irregular do ferro e efeitos adversos indesejáveis,
rápida da anemia Pacientes pré-cirúrgicos como dor, mancha hipercrômica no local da aplica-
Não aceitação de transfusão ção e, mais raramente, necrose muscular15.
por motivos religiosos 2. Complexo coloidal de sacarato e hidróxido de fer-
Pacientes com perdas sanguíneas Telangectasia hemorrágica ro III para uso endovenoso. Deve ser administrado
crônicas incoercíveis hereditária em soro fisiológico 0,9%, nunca em soro glicosado,
Mulheres com hiperfluxo sendo que cada ampola de 10 ml ou 200 mg deve
menstrual não controlado ser diluída em no mínimo 200 ml de soro e infun-
Adaptado de Camaschela, 201714. dido em 30 minutos pelo menos. Pode ser feito em
até 3 vezes na semana, respeitando o intervalo de Casos associados a esta manifestação e que devem ser in-
24 horas entre cada dose. A dose total semanal não vestigados são:
deve ultrapassar 500 mg, pelo risco de maior ocor- • Doença celíaca – presente em 4 a 6 % dos pacien-
rência de efeitos colaterais15. Para o cálculo da dose tes refratários;
total em mg de ferro a ser reposta, pode-se utilizar • Gastrite autoimune – presente em 20 a 27% des-
a equação de Ganzoni: [Hb (g/dL) desejada - Hb ses indivíduos;
(g/dL) encontrada] x peso corporal (kg) x 2,4 + • Infecção por H. pylori – presente em 50%. Estes pa-
50016. Tem como principais efeitos colaterais altera- cientes apresentam melhora dos níveis de Hb após
ção do paladar, hipotensão (principalmente quan- o tratamento da infecção;
do administrado rapidamente), tremores, sensação • Muito mais raramente, pode estar presente a de-
de calor e reações no local de aplicação incluindo ficiência hereditária de ferro (mutação no gene da
flebite. Deve ser administrado por profissional de TMPRSS6), nova entidade recentemente descrita
enfermagem e em local onde haja médico, porém, em pouquíssimos indivíduos18.
reações anafilactóides são raras. Não necessita de
teste de sensibilidade. NOVAS PERSPECTIVAS
3. Carboximaltose férrica para uso endovenoso. Este
produto só está liberado para uso em maiores de 14 Estudo recente, baseado no efeito da suplementação de
anos17. Está disponível em ampolas de 10 ml com ferro sobre a hepcidina, sugere a possibilidade de estarmos
500mg, sendo a dose máxima tolerada de 1.000 mg tratando a anemia ferropriva com doses acima do necessá-
por dia e por semana. Deve ser diluída em 250 ml rio. Os autores estudaram uma amostra pequena de mu-
de cloreto de sódio 0,9% e infundida em 15 minu- lheres saudáveis com deficiência de ferro sem anemia. Eles
tos. Essa formulação contém sódio na fórmula, o observaram que a utilização de doses múltiplas, como é
que deve ser lembrado em casos de dietas com res- feito nos dias atuais, poderia prejudicar a absorção da pró-
trição. Há relatos de reação de hipersensibilidade e xima dose19,20. Baseado neste achado, os autores propõem
sua infusão deve ser interrompida caso apareçam que, talvez em um futuro próximo, o tratamento poderá
estes sintomas. A tabela 5 mostra as doses usadas, ser baseado em uma dose simples de ferro elementar antes
segundo orientação do fabricante. do café, três vezes por semana, visando um alvo de absor-
ção de 180 mg/semana. No entanto, é importante ressaltar
Tabela 5. Dose de carboximaltose férrica para maiores de 14 anos:
que ainda faltam estudos clínicos randomizados que justi-
fiquem tal mudança e, por enquanto, devemos manter o
Hb (g/dL) Pacientes com Pacientes com
peso corporal de peso corporal
tratamento atual.
35 kg a 70 kg acima de 70 kg
o modo de administração e o intervalo das doses devem Má absorção por Doença celíaca
ser individualizados. anormalidades do jejuno Ressecção jejunal
Espru tropical
O paciente deve ser orientado a fazer reposição perene
em casos de deficiência de B12 de causa irreversível, como Má absorção induzida Sulfassalazina
por drogas
a anemia perniciosa, ou quando a etiologia não foi deter-
minada21,28. Pacientes com anemia perniciosa apresentam Necessidade aumentada Gestação / prematuridade
risco elevado de adenocarcinoma gástrico e de tumores Anemias hemolíticas crônicas
Neoplasias
carcinoides. Endoscopias periódicas são recomendadas
Doenças inflamatórias crônicas
nestes indivíduos29.
Aumento da perda Doenças de pele
DEFICIÊNCIA DE ÁCIDO FÓLICO Diálise
Anormalidades adquiridas
A deficiência de folato (vitamina B9) tem se tornado mais do metabolismo do folato
rara após a obrigatoriedade de sua suplementação em fari- Mecanismos complexos Abuso de álcool
nhas. Uma história clínica adequada pode identificar pa- ou desconhecidos Drogas anticonvulsivantes
cientes sob-risco de deficiência de folato, como gestantes, Contraceptivos orais
alcoólatras, indivíduos portadores de anemias hemolíticas, Anormalidades hereditárias
pacientes em uso de metotrexate ou medicações antiepi- da absorção e do
lépticas. Os anticonvulsivantes associados a níveis dimi- metabolismo do folato
nuídos de ácido fólico são: carbamazepina, gabapentina,
oxcarbazepina, fenitoína ou valproato28. Na tabela 7 estão
Suplementação profilática está indicada em síndromes
exemplificadas as principais causas de deficiência de folato.
hemolíticas crônicas e insuficiência renal, com dose que
Do mesmo modo que na deficiência de vitamina B12 , a
varia de 5 mg por semana até 5 mg por dia, dependendo da
manifestação hematológica mais comum é a macrocitose,
dieta e do grau da hemólise.
sendo possível alteração em qualquer outra série. Neutró-
O uso profilático de folato em gestantes é desejável des-
filos polissegmentados, aumento de bilirrubina indireta e
de o início da gravidez ou até mesmo antes de engravidar
do DHL e reticulócitos baixos também são observados. O (nos casos de gestação planejada), pois o tubo neural do
mielograma também apresenta maturação megaloblástica embrião se fecha com aproximadamente 3 semanas. Uma
característica. A dosagem de ácido fólico reflete o status e dose de 400 mcg diária parece ser efetiva, devendo ser au-
consumo recente dessa vitamina e isso deve ser considera- mentada para 4mg nos casos de a gestante estar em uso
do na interpretação do teste. Geralmente, o folato plasmá- de anticonvulsivantes ou apresentar história prévia de em-
tico diminui em 3 semanas, sendo que os sintomas de sua brião/feto com defeito de fechamento de tubo neural.
deficiência aparecem mais rapidamente em comparação à Nos pacientes reumatológicos em uso de metotrexato,
deficiência de vitamina B12 . deve-se prescrever 5 mg de ácido fólico na manhã seguinte
Deve-se ficar atento ao fato de que a reposição de folato ao da dose de metotrexato. Caso ocorra comprometimen-
em pacientes com deficiência de vitamina B12 pode melho- to hematológico importante pelo uso do metotrexato, está
rar a anemia, mas piorar a manifestação neurológica. Por indicado o uso de ácido folínico, 15 mg a cada 6 horas por
isso não é recomendada a reposição de ácido fólico sem an- 2 a 8 doses (de acordo com a dose de metotrexato). É im-
tes excluir deficiência de vitamina B1227 . portante ressaltar que o ácido folínico não é mais efetivo
Na anemia megaloblástica por deficiência de ácido fó- que o ácido fólico na prevenção dos efeitos colaterais do
lico deve-se repor com 5 mg/dia por 4 meses, desde que metotrexato (embora reverta alterações hematológicas),
o fator causal tenha sido eliminado. Em casos de síndro- esteve associado à diminuição da efetividade dessa medi-
me má absortiva são sugeridas doses mais elevadas, de até cação e tem custo mais elevado, razões pelas quais seu uso
15 mg/dia. deve ser restrito à indicação acima referida30.
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