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HEMATOLOGIA

BÁSICA

Aniúsca Vieira dos Santos


Anemias não hemolíticas
Objetivos de aprendizagem
Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados:

 Caracterizar as anemias não hemolíticas.


 Reconhecer as anemias carenciais: ferropriva, megaloblástica e suas
características laboratoriais.
 Identificar as anemias aplásicas, hemorrágicas e por doenças crônicas
e suas características laboratoriais.

Introdução
Anemias não hemolíticas são anemias que apresentam, em sua fisiopa-
tologia, a ausência de hemólise e diminuição da eritropoese. Esse tipo de
anemia apresenta elevada prevalência no mundo, sendo, em alguns casos,
utilizado como indicador de saúde. Diversas causas estão relacionadas às
anemias não hemolíticas, como a falta de nutrientes essenciais, processos
inflamatórios crônicos, perda sanguínea e redução da função medular.
Nesse contexto, a diferenciação das anemias não hemolíticas é essencial
na definição de uma conduta clínica efetiva.
Neste capítulo, você vai conhecer as principais características das ane-
mias não hemolíticas, seus tipos, manifestações clínicas e etiopatologia.
Além disso, vai aprender a diferenciá-las em anemia ferropriva, anemia
megaloblástica, anemia por doença crônica, anemia aplásica e anemia
hemorrágica, correlacionando os principais achados laboratoriais.

Caracterização das anemias não hemolíticas


A classificação fisiológica das anemias baseia-se na capacidade regenerativa da
medula óssea e também pode levar em consideração os aspectos hemolíticos
da anemia, sendo hemolítica (quando há atividade da medula óssea — rege-
nerativa) ou não hemolítica (sem atividade da medula óssea — arregenerativa
ou hipoproliferativa).
2 Anemias não hemolíticas

No caso das anemias não hemolíticas, foco deste capítulo, diversas causas
(intrínsecas ou extrínsecas) levam a uma diminuição da eritropoese (Quadro 1).
As anemias mais comuns e importantes desse grupo estão associadas à redução
da produção de eritrócitos por deficiências nutricionais, ditas anemias carenciais.
Essas são seguidas pelas anemias originadas após inflamação renal e inflamações
crônicas, relacionadas à falta ou à diminuição de estímulo, pela eritropoietina, à
eritropoese. Não menos importantes, mas menos comuns, são a anemia aplásica,
as neoplasias hematopoiéticas primárias e os distúrbios infiltrativos da medula
óssea, relacionados à substituição tecidual da medula até a destruição da mesma.
Também podemos inserir nesse grupo as anemias por perda sanguínea ou he-
morrágica, que podem ser agudas ou crônicas.

Quadro 1. Anemias não hemoliticas: etiologia

Produção inadequada de eritrócitos

Deficiência de nutrientes essenciais: ferro, ácido fólico, vitamina B12


Deficiência de eritroblastos
 Aplasias globais mieloides
Associadas a agentes químicos ou físicos
Anemia aplástica adquirida
Aplasias e hipoplasias hereditárias
 Eritroblastopenia isolada (aplasia pura de série vermelha)
Associada ao timoma
Associada a agentes químicos
Imune
 Substituição de medula óssea (infiltração)
Leucemia, linfomas
Mieloma múltiplo
Mielofibrose
Carcinomas, sarcomas
 Anormalidades endócrinas
Hipotireoidismo
Insuficiência adreanal (Addison)
Hipopituitarismo
 Outras causas
Insuficiências renal crônica
Doenças inflamatórias crônicas
Neoplasias (em especial, em fase avançada ou metastástica)
Infecções (como tuberculose, blastomicose e calazar)
Cirrose hepática

Fonte: Adaptado de Zago, Falcão e Pasquini (2005, p. 61).


Anemias não hemolíticas 3

No contexto epidemiológico, as anemias não hemolíticas carenciais,


apesar de serem as mais comuns no mundo, apresentam variabilidade na
proporção de casos entre grupos populacionais e em diferentes áreas, de
acordo com as condições locais. No estudo de Borges e Weffort (2011), os
autores relacionam a transição nutricional no Brasil com o rápido declínio
da prevalência de desnutrição em crianças, e o crescimento acelerado da
prevalência de sobrepeso/obesidade em adultos em concomitância coma
prevalência elevada das anemias: entre 40% e 50% em menores de cinco
anos e 30% e 40% em gestantes, sem grandes diferenciações geográficas.
Em idosos, o déficit nutricional é responsável por 34% dos casos de anemia,
enquanto as anemias por doença crônica são identificadas em 32% dos casos
(FAILACE; FERNANDES, 2016).
Nesse contexto, a OMS utiliza as taxas de anemia como um indicador de má
nutrição e saúde. Em aspectos globais, o efeito mais dramático da anemia para
a saúde é o aumento do risco de mortalidade materna e infantil. Porém, você
deve ter em mente que outros tipos de anemia, apesar de menos frequentes,
também são importantes e devem ser investigados e tratados (WORLD..., 2015).
Devido à diversidade de causas dentro do próprio grupo de anemias não
hemolíticas, alguns pontos do histórico do paciente devem ser avaliados,
como idade, sexo, etnia, antecedentes neonatais, dieta nutricional, uso de
medicamentos, infecções, quadro de diarreia e perda de peso. A sintomatologia
pode ser inespecífica, como fraqueza, tontura, palidez, aumento da pressão
arterial, insuficiência cardíaca, taquicardia e dispneia ou, ainda, escotomas,
ausência de fluxo menstrual (amenorreia) e retardo de crescimento. Em algu-
mas anemias, é possível observar pequenas hemorragias na pele (petéquias),
hematomas (equimoses), hemorragia nasal (epistaxe), hemorragia nas gengivas
(gengivorragia) e hemorragia uterina em intervalos irregulares (metrorragia).
Em relação aos aspectos hematológicos, de acordo com Zago, Falcão e
Pasquini (2014), nas anemias por produção medular insuficiente, a porcentagem
de reticulócitos está diminuída ou normal. Mesmo quando a porcentagem
de reticulócitos está levemente elevada (2% a 5%), o número absoluto de
reticulócitos está baixo. A menor produção de eritrócitos pode ser resultante
de um distúrbio da diferenciação eritroide, da proliferação dos eritroblastos
na medula óssea ou de sua maturação. No caso da perda sanguínea, conforme
a taxa de hemorragia e o tipo de sangramento, a contagem de reticulócitos
pode estar aumentada.
No caso dos índices hematimétricos, o VCM pode estar reduzido (<80fL),
como na anemia ferropriva, indicando microcitose, normal (80-98fL), como nas
anemias hemolíticas ditas normocíticas, ou ainda aumentado (>98fL), como nas
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anemias megaloblásticas com macrocitose, sendo o HCM geralmente paralelo


ao VCM. Também é possível observar uma variação no CHCM conforme o
tipo de anemia não hemolítica, sendo reduzido nas anemias por deficiência de
ferro e por doença crônica (hipocrômicas) e normal, por exemplo, na anemia
por perda sanguínea (normocrômica). Qualitativamente, na microscopia podem
ser observados eritrócitos anormais, como células microcíticas, dacriócitos,
eliptócitos ou ovalócitos, conforme o tipo de anemia não hemolítica.

No diagnóstico clínico, muitas vezes, alterações no hemograma/eritrograma sugerem


a necessidade de outros exames complementares e confirmatórios. Esses exames
podem ser bioquímicos, como dosagem de ferro sérico, análise submicroscópica,
como a citometria em fluxo, análises moleculares, para análise de mutações no DNA,
ou, ainda, exames da medula óssea para análise dos precursores celulares.

A seguir, você aprenderá mais especificamente sobre as anemias não


hemolíticas, apresentadas como carenciais (ferropriva e megaloblástica), e as
anemias aplásica, hemorrágica e por doença crônica.

Anemias carenciais: ferropriva e megaloblástica


Os eritrócitos têm como principal função o transporte de oxigênio e, para isso,
utilizam uma proteína específica, a hemoglobina, sintetizada no eritroblasto,
o precursor do eritrócito. Para que essa síntese ocorra, vários elementos são
essenciais, como o ferro, a vitamina B12 e o ácido fólico. Outras vitaminas
também são importantes na eritropoese, como as vitaminas A, C, E, B2 e B6,
por levarem a anemia ou por interferirem no metabolismo do ferro. A falta
persistente, relativa ou absoluta de um desses nutrientes essenciais pode levar
às anemias carenciais, definidas como um estado patológico.
As anemias carenciais podem ocorrer em qualquer idade, sendo mais
frequentes nas crianças pelo aumento da demanda de células corroborando o
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processo de crescimento nessa fase. Nos recém-nascidos, o aleitamento materno


inadequado é a principal causa de anemia, seja por má alimentação materna
ou falta de aleitamento adequado. Na fase pré-escolar (1 a 6 anos), além da
dieta inadequada, a verminose representa outra causa comum. Em relação ao
sexo, a incidência de anemias carenciais em mulheres adultas é maior do que
em homens adultos, sendo as causas mais comuns a intensificação menstrual
e a gravidez, principalmente por gestações consecutivas (WORLD..., 2015).

Anemia ferropriva
A anemia ferropriva (anemia ferropênica ou deficiência de ferro) é a causa
mais comum de anemia carencial no mundo e uma das doenças mais frequen-
tes na prática médica. Apresenta extensa distribuição geográfica nos países
em desenvolvimento devido à insuficiência de aporte dietético de ferro e à
presença de parasitoses intestinais. A deficiência de ferro ocorre em até 11%
das mulheres entre 20 e 49 anos e em 2%–4% dos homens com mais de 50
anos, estando presente em 1%–2% dos homens adultos. Entretanto, não existe
faixa etária de maior prevalência dessa patologia, que pode ser encontrada em
qualquer idade, com causas variáveis (LIU; KAFFES, 2011).
Esse tipo de anemia apresenta grande importância clínica, pois o ferro é um
mineral essencial ao organismo humano, atuando como mediador enzimático na
troca de elétrons (citocromo, peroxidases, catalases e ribonucleotídeo-redutase)
e carreador de oxigênio (mioglobina e hemoglobina). Na hemoglobina, é o
componente central da molécula heme e o responsável direto pelo carreamento
de oxigênio até os tecidos (FOCHESATTO FILHO; BARROS,, 2013).
Em adultos, as causas mais comuns são falta de ingestão, déficit de ab-
sorção, perdas sanguíneas ou aumento rápido da demanda (como no cresci-
mento rápido dos adolescentes e na gestação) — raramente pode ocorrer a
anemia ferropênica hereditária resultante da mutação no gene TMPRSS6. O
desenvolvimento da deficiência de ferro e a velocidade com que ela se instala
dependem da reserva de ferro no organismo, bem como da oferta de ferro
aos eritroblastos em proliferação, que podem levar a menor síntese do heme
e, consequentemente, redução na produção de hemoglobina e de eritrócitos
(FOCHESATTO FILHO; BARROS, 2013) (Figura 1).
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Figura 1. Etiopatologia da anemia ferropriva.


Fonte: Fochesatto Filho e Barros (2013, p.359).

O ferro, no organismo, estruturalmente, não se encontra na forma livre, estando sempre


ligado a outras moléculas. No processo de reutilização, ocorre uma movimentação
do ferro por diferentes locais, como nos eritrócitos (junto à hemoglobina), nos com-
partimentos de reserva (ferritina e hemossiderina) e no compartimento de transporte
(transferrina). Nesse processo, três proteínas são fundamentais, a transferrina, o receptor
de transferrina e a ferritina. A análise laboratorial desses componentes, seja na hema-
tologia ou na bioquímica, facilita o diagnóstico da anemia ferropriva e a diferenciação
das anemias por doença crônica e hemoglobinopatias.

À medida que a condição clínica evolui, passa a mostrar sinais e sintomas


gerais das anemias e, posteriormente, sinais mais específicos, como glossite
indolor, estomatite angular, unhas frágeis, estriadas ou em colher (coiloniquia)
e perversão do apetite (pica). A causa das alterações epiteliais está relacionada
à diminuição de ferro nas enzimas que o contêm. Em crianças, a deficiência
de ferro tende a causar irritabilidade, má função cognitiva e diminuição
do desenvolvimento psicomotor, enquanto em adultos pode gerar redução
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da produtividade no trabalho, problemas comportamentais, cognitivos e de


aprendizado. Em gestantes, tende a aumentar o risco de prematuridade e baixo
peso do recém-nascido, sendo responsável por 18% das complicações no parto
e morbidade materna (HOFFBRAND; MOSS, 2018).
Para o diagnóstico da deficiência de ferro, é avaliada a presença de anemia,
a morfologia dos eritrócitos (microcitose e hipocrômia) e também a baixa
concentração de ferritina (forma de armazenamento do ferro) — menor que
20ng/mL — e o aumento dos receptores de transferrina (responsável pelo
transporte do ferro). Assim como os sintomas, os achados laboratoriais tendem
a acompanhar a evolução do quadro clínico do paciente. Inicialmente, ocorre
a depleção dos estoques de ferro, com redução dos níveis de ferritina sérica,
mas ainda há formação dos eritrócitos (SILVA et al., 2016; HOFFBRAND;
MOSS, 2018; FAILACE; FERNANDES, 2016).
Essa etapa é seguida de uma diminuição nos níveis de ferro circulante
e na saturação da transferrina, mostrando que não resta mais ferro para ser
mobilizado. A capacidade total de ligação do ferro (CTLF) e a quantidade de
receptor de transferrina solúvel aumentam, mostrando que os receptores do
ferro estão “vazios”.
A falta de ferro para formar hemoglobina leva à formação de hemácias com
pouco conteúdo (por isso, a hipocromia — CHCM baixo), que, ao se adaptarem
a essa situação, alcançam volumes corpusculares mais baixos (microcitose
— VCM baixo), bem como uma redução da hemoglobina corpuscular média
(HCM baixo). Nos quadros clínicos mais severos, podem ser notadas formas
bizarras das hemácias, com pecilocitose intensa (principalmente eliptócitos
estreitos “em lápis” e dacriócitos). A contagem absoluta de reticulócitos está
diminuída (reticulopenia) devido à redução da eritropoese e, além disso, a
variação do tamanho dos eritrócitos leva ao aumento do índice de anisocitose
(RDW) acima de 15%. Além da série vermelha, podemos observar o aumento
da contagem de plaquetas pela maior secreção de eritropoietina e neutropenia
(BAIN, 2017; FAILACE; FERNANDES, 2016).
A contagem de eritrócitos não é representativa da severidade da anemia,
sendo proporcionalmente mais elevada que a dosagem de hemoglobina, e o
hematócrito também tende a estar discretamente elevado (também, propor-
cionalmente), sendo mais adequado utilizar os índices hematimétricos VCM,
HCM, CHCM e RDW (FAILACE; FERNANDES, 2016).
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No diagnóstico de anemia ferropênica, o padrão-ouro para a avaliação


direta do estoque de ferro é a análise da medula óssea com pesquisa do ferro
medular. Essa avaliação ocorre por meio da coloração com azul da Prússia
(Perls), sendo possível avaliar o estoque de ferro (hemossiderina) nos macró-
fagos. Em pacientes idosos, é necessária a avaliação do trato gastrointestinal
com investigação de possível sangramento ou má absorção de nutrientes pela
atrofia da mucosa gástrica, utilizando-se pesquisa de sangue oculto, endoscopia,
colonoscopia e teste de absorção do ferro.

A ferritina é o indicador mais confiável do status do ferro no organismo por ser


menos sensível às variações distributivas quando comparada ao ferro sérico e seus
indicadores de transporte. Porém, é uma proteína de fase aguda, ou seja, aumenta
nos processos inflamatórios, devendo ser avaliada cuidadosamente nos casos de
anemia com infecções ou inflamações severas. Para exclusão de processos inflamatórios
concomitantes, é necessária a análise de proteína C reativa, que, se for negativa com
achado associado de microcitose e hipocramia, indica anemia ferropriva.

Anemia megaloblástica
A anemia megaloblástica é um distúrbio provocado pela síntese comprometida
do DNA. Nesse processo, tanto a vitamina B12 quanto o folato são necessários
(em especial, na síntese da timina), principalmente para as células que se
dividem rapidamente no organismo, incluindo as células da medula óssea. A
deficiência de vitamina B12, folato ou de ambos causa mudanças caracterís-
ticas da medula, descritas como megaloblastose, com atraso da maturação
do núcleo em relação ao citoplasma eritrocitário, caracterizando a anemia
megaloblástica. Além das causas carenciais (deficiência de vitamina B12 e
folato), a anemia megaloblástica também pode ocorrer pela ação de drogas e
por alterações variadas, que incluem síndrome mielodisplásica, formas raras
de deficiências enzimáticas e doenças ainda inexplicáveis, como a síndrome
de Lesch-Nyhan (Figura 2).
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Figura 2. Etiopatologia das anemias megaloblásticas.


Fonte: Bain (2017, p. 324).

A vitamina B12 é uma coenzima, sintetizada na natureza, a qual adqui-


rimos por meio do consumo de alimentos de origem animal; por isso, sua
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deficiência por carência alimentar é rara (exceto em veganos). Para absorção, a


vitamina B12 se liga ao fator intrínseco (FI) sintetizado pelas células gástricas,
formando o complexo FI-B12. Esse complexo se liga ao receptor cubulina e,
depois, à amnionless, sendo absorvido na porção terminal do intestino delgado
(íleo). Pela complexidade no processo de absorção, a causa de deficiência de
B12 mais comum é a deficiência na absorção por causas gástricas, seja por
gastrite atrófica, infecção crônica por Helicobacter pylori, gastrite atrófica au-
toimune pela falta de fator intrínseco — anemia perniciosa — ou gastrectomia.
Porém, a anemia também pode ocorrer por outras causas, como insuficiência
pancreática, doença de Crohn, ressecção ileal e defeitos genéticos enzimáticos
(HOFFBRAND; MOSS, 2018; ZAGO; FALCÃO; PASQUINI, 2014).
Por sua vez, o ácido fólico está presente na maioria dos vegetais e frutas
(principalmente, nos cítricos e nas folhas verdes) na forma de poliglutamato,
sendo hidrolisado em monoglutamato no jejuno, no qual é absorvido. A causa
mais comum de carência de folatos é representada por dieta inadequada, por
vezes associada a uma condição em que aumentam as necessidades diárias,
habitualmente na gravidez ou no crescimento. De fato, a anemia megaloblástica
da gravidez e a anemia megaloblástica do lactente são os dois tipos mais fre-
quentes dessa deficiência. Outras causas comuns são alcoolismo, idade avançada,
doenças intestinais associadas a má absorção, pobreza e desnutrição. Em geral,
deficiências de folato são resultantes da associação de mais de um mecanismo:
seja ingestão alimentar insuficiente, má absorção, transporte e metabolismo
inadequados, aumento da demanda e, mais raramente, erros inatos do metabo-
lismo (ZAGO; FALCÃO; PASQUINI, 2014; FAILACE; FERNANDES, 2016).
As anemias resultantes de carências de vitamina B12 e/ou de folatos vão se
tornando menos frequentes em virtude da diminuição da ocorrência de carências
nutricionais. No entanto, ainda são encontradas na prática médica. Em relação
à sintomatologia, além dos sinais de anemia, alterações neurológicas, tais como
ataxia, sensação e formigamento e “pés dormentes”, podem ocorrer em defi-
ciências de vitamina B12, mas não na deficiência isolada de folato. Glossite,
anorexia e perda de peso são sinais de deficiência tanto da vitamina B12 quanto
do folato (HOFFBRAND; MOSS, 2018; ZAGO; FALCÃO; PASQUINI, 2014).
No diagnóstico da anemia megaloblástica, em geral, são realizadas três
abordagens: reconhecer se a anemia megaloblástica está presente; distinguir
entre as deficiências de vitamina B12 e folato; e determinar a causa.
Na análise laboratorial, é identificado VCM elevado (com frequência nos
casos graves acima de 120 fL), indicando macrocitose, além de leucopenia,
trombocitopenia. O RDW apresenta-se elevado devido à anisocitose, sendo a con-
tagem de reticulócitos normal ou baixa, mas o cálculo do índice de reticulócitos
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corrigido indica anemia hipoproliferativa. Na microscopia, é possível observar


pecilocitose, em especial ovalócitos, esquistócitos, dacriócitos e megaloblastos.
Além disso, podem ser observados neutrófilos hipersegmentados (com mais
de 5 lóbulos nucleares) devido à diminuição da produção dessas células e uma
vida útil prolongada compensatória dos neutrófilos no sangue (HOFFBRAND;
MOSS, 2018; FAILACE; FERNANDES, 2016). Em resumo, no sangue perifé-
rico, tem-se como manifestação uma pancitopenia associada à macrocitose. No
entanto, a macrocitose pode estar mascarada pela coexistência de carência de
ferro, talassemia ou anemia de doença crônica, que são doenças que produzem
microcitose e hipocromia, e, nesses casos, pode-se observar anemia dimórfica,
com duas populações de células (ZAGO; FALCÃO; PASQUINI, 2014).
Também pode ser realizada a dosagem de vitamina B12 e ácido fólico, bem
como de seus intermediários. Na análise medular, o diagnóstico de anemia
megaloblástica pode ser firmado com segurança. No medulograma, há intensa
hiperplasia da medula óssea (megaloblastos), com eritropoese ineficaz. Outros
exames que podem ser realizados são direcionados à função gástrica e à pes-
quisa de anticorpos contra antígenos gástricos, sendo importante a realização
de endoscopia para verificar a possiblidade de atrofia gástrica (HOFFBRAND;
MOSS, 2019; ZAGO; FALCÃO; PASQUINI, 2014).

O tratamento das anemias megaloblásticas é focado na reposição dos nutrientes e


no tratamento das alterações de absorção. Após o início do tratamento, a reversão da
megaloblastose é rápida, observando-se um aumento de reticulócitos em 5 a 10 dias,
seguido do aumento gradual da hemoglobina de 1g/dL por semana.

Anemias aplásica, hemorrágica


e por doenças crônicas
A anemia aplásica é caracterizada pela diminuição da quantidade das células-
-tronco hematopoiéticas, com substituição de grande parte do tecido hema-
topoiético da medula óssea por tecido gorduroso, resultando na pancitopenia
(redução de hemácias, leucócitos e plaquetas). A anemia aplásica pode ser
congênita (doença de Fanconi, disceratose congênita) ou adquirida, apresen-
tando dois picos de incidência: em adultos jovens, particularmente dos 15 aos
25 anos, e em idosos após os 60 anos.
12 Anemias não hemolíticas

A etiopatologia da anemia aplásica é, em muitos casos, desconhecida ou


de causa secundária, como agentes químicos e físicos, tratamento oncológico,
vírus (vírus da hepatite, HIV, EBV e parvovírus B19) e doenças autoimunes
(como esclerose múltipla). O sangramento é o sintoma mais comum (equimo-
ses, sangramento menstrual intenso) e podem ser manifestados, também, os
sintomas comuns às outras anemias (FOCHESATTO FILHO; BARROS, 2013).
Esses fatores atuam na ativação de linfócitos T e na liberação de citocinas,
capazes de inibir ou induzir apoptose (morte celular) das células-tronco na medula
óssea. Essa “autodestruição” também pode ocorrer de forma idiopática. Tal teoria
é reforçada pela alta taxa de resposta da doença ao tratamento imunossupressor.
Além disso, a anemia pode ocorrer por defeitos intrínsecos à própria célula-tronco,
que permite uma maior vulnerabilidade genética, ou, ainda, pela perturbação
direta do estroma medular, com a diminuição de fatores estimuladores celulares.
O principal exemplo de anemia aplásica congênita é a anemia de Fanconi,
uma doença hereditária autossômica recessiva ou ligada ao X que compromete
o gene FANCA, dentre outros, necessário ao sistema de reparo do DNA. Tem
como principais manifestações clínicas a pancitopenia de intensidade variável,
geralmente progressiva, e anomalias congênitas (manchas “café com leite”,
hipogonadismo, microcefalia, baixa estatura), com falência da medula óssea.
Indivíduos com anemia de Fanconi apresentam alto risco de desenvolver
doenças malignas, como leucemia aguda, carcinoma de cabeça e pescoço e
síndrome mielodisplásica, não se beneficiando do uso de imunossupressor.

A aplasia pura da série vermelha (APSV) descreve uma condição em que somente os
precursores eritroides na medula estão praticamente ausentes. As formas congênitas
mais frequentes são as doenças crônicas, muitas vezes, associadas a anomalias físicas.
Na APSV, ocorrem lesões nas células-tronco intraútero, iniciando a anemia, que já se
manifesta ao nascimento. Nas formas adquiridas do adulto, a supressão dos precursores
eritroides é mediada por linfócitos T ou por anticorpos IgG.

A anemia aplásica tem manifestação insidiosa, na maior parte das vezes,


associada à sintomatologia secundária, como febre e infecções de repetição por
neutropenia, hemorragia e síndrome anêmica. Para o diagnóstico laboratorial,
observa-se, além da pancitopenia (ou diminuição de ao menos duas séries celula-
res), reticulocitopenia (tendo em vista que não existem ou há poucas células-tronco
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para produção celular). Geralmente, a anemia é normocítica e normocrômica, mas,


nos casos mais severos, apresenta-se macrocítica (com VCM <115 fL). A dosagem
de hemoglobina, geralmente, é inferior a 10g/dL, com contagem de plaquetas
menor que 50.000/mm3 e contagem de neutrófilos menor que 1.500/mm3.
Porém, o exame confirmatório é a biópsia de medula óssea, que avalia a
celularidade medular, a qual, na anemia aplásica, encontra-se hipocelular,
com predomínio de tecido gorduroso, em que as células hematopoiéticas
restantes são morfologicamente normais, e não há infiltração medular por
outras células. Também é importante a análise genética dos cromossomos
(cariótipo) e a citometria de fluxo, para afastar a possibilidade de síndrome
mielodisplásica e hemoglobinúria paroxística noturna.
Diferentemente da anemia aplásica, a anemia hemorrágica é considerada
um quadro benigno, que ocorre após a perda aguda ou crônica de sangue, a qual
pode levar à depleção dos estoques de ferro do organismo e à anemia ferropriva
de forma secundária. Causas comuns incluem perda sanguínea gastrointestinal,
rompimento do baço, fraturas, traumas e hemorragias em cavidades, e as manifes-
tações clínicas e os achados laboratoriais variam conforme a taxa de hemorragia
e o tipo de perda sanguínea (FOCHESATTO FILHO; BARROS, 2013).
Em um primeiro momento, os sintomas estão relacionados à hipovolemia e,
nessa fase inicial, o exame pode demonstrar níveis de Hb ainda normais, pois tanto
o conteúdo plasmático quanto o celular são perdidos de maneira proporcional.
Posteriormente, devido à liberação de vasopressina e outros peptídeos, o fluido
extravascular é mobilizado para o intravascular, levando a reposição volumétrica
e hemodiluição. Nessa situação, evidenciam-se a redução dos níveis de Hb e
consequente anemia, cujo grau reflete a quantidade de sangue perdida.
O processo de expansão plasmática é lento: em uma perda de 20% da
volemia, são necessárias de 20 a 60 horas para restaurá-la. Em um último
momento, diante do quadro de anemia e hipóxia, a produção de eritropoietina
aumenta, iniciando o estímulo da produção de eritrócitos. A reticulocitose
demora de 2 a 3 dias para ser detectada, atingindo o valor mais alto de 8 a 10
dias após o quadro de hemorragia.
É importante o diagnóstico diferencial com as anemias hemolítcas apesar de
não haver aumento dos metabólitos da Hb (bilirrubina indireta) nem redução
da haptoglobina. As pessoas com reserva baixa de ferro, após manifestações
hemorrágicas, não conseguem realizar eritropoese adequada, não havendo
reticulocitose e nem recuperação eritrocitária no tempo esperado, necessitando
de suplementação de ferro. Também poderá haver um aumento transitório da
contagem de leucócitos e plaquetas e, se houver sangramento intenso, liberação
de formas jovens de eritrócitos e leucócitos na corrente sanguínea.
14 Anemias não hemolíticas

O tratamento das anemias hemorrágicas varia conforme o tipo de sangramento. A


conduta inicial diante da hemorragia aguda é a restauração da volemia com cristaloides.
Após a avaliação clínica, deve-se tentar quantificar o sangramento e realizar reposição
de sangue para perdas acima de 30% da volemia total. Nas perdas crônicas, a conduta
consiste na correção da ferropenia e na identificação da etiologia do sangramento.

Outro tipo de anemia não hemolítica é a anemia por doença crônica,


sendo mais frequente em indivíduos hospitalizados, uma vez que a maioria
das doenças sistêmicas crônicas se associa a quadros de anemia leve ou mo-
derada. Nessa condição, ocorre uma resposta hematológica insuficiente diante
das alterações sistêmicas, como inflamação, infecção, trauma, neoplasia,
hepatopatia alcoólica, insuficiência cardíaca congestiva, diabetes, trombose,
doença pulmonar obstrutiva crônica, insuficiência renal, entre outros.
O quadro anêmico tende a ocorrer por diferentes mecanismos fisiopato-
lógicos, como distúrbio na hemostasia do ferro (aumento na captação e no
armazenamento, diminuindo o nível sérico do ferro e a disponibilização para
os precursores eritroides); diminuição da sobrevida eritrocitária (inibição da
proliferação e da diferenciação de precursores eritroides pela ação de interleu-
cinas e falha da medula óssea em compensar adequadamente essa redução) e
diminuição relativa dos níveis de eritropoietina (o nível não é suficiente para
aumentar a eritropoese pela elevação da apoptose dos precursores eritroides)
(BAIN, 2017; HOFFBRAND; MOSS, 2018).
As manifestações clínicas estão, geralmente, relacionadas a doença de base,
febre, emagrecimento e artrite, devendo-se suspeitar do diagnóstico quando
o paciente é portador conhecido de alguma patologia crônica; entretanto, a
confirmação será feita somente com os achados laboratoriais, e o quadro de
anemia tem intensidade variável (SILVA et al., 2016; HOFFBRAND; MOSS,
2018; FAILACE; FERNANDES, 2016).
Na anemia por doença crônica, a análise laboratorial, geralmente, apresenta
valores de hemoglobina (Hb) entre 10 e 11g/dL, mas alguns casos podem ter
anemia grave, com Hb inferior a 8g/dL (até 30% dos casos). A prevalência e
a severidade da anemia estão relacionadas ao estágio da doença de base e à
idade do paciente. A anemia por doença crônica, geralmente, é normocítica e
normocrômica, com contagem reticulocitária diminuída, como resultado da
eritropoese diminuída, com RDW normal ou pouco aumentado — na micros-
Anemias não hemolíticas 15

copia, pode-se observar pecilocitose, rouleaux (empilhamento eritrocitário


relacionado às alterações proteicas inflamatórias).
Em 30% dos casos, a anemia pode ser hipocrômica e microcítica, especial-
mente quando em associação com anemia ferropriva, com dosagem de ferro
sérico baixo, capacidade de ligação do ferro (CTLF) baixa, ferritina normal ou
elevada (por tratar-se de proteína de fase aguda). Nesse contexto, para a identi-
ficação correta da anemia, é sempre importante afastar outras causas de anemia
concomitante: insuficiência renal, carência nutricional ou sangramento (SILVA
et al., 2016; HOFFBRAND; MOSS, 2018; FAILACE; FERNANDES, 2016).

1. A anemia ferropriva (anemia d) Insuficiência cardíaca congestiva.


ferropênica) é a causa mais comum e) Esclerose múltipla.
de anemia carencial no mundo e 3. Na anemia megaloblástica, a
uma das doenças mais frequentes na deficiência de vitamina B12, folato
prática médica. Hematologicamente, ou de ambas causa mudanças
as principais características são a características da medula,
microcitose e hipocromia. Dentre descritas como megaloblastose.
as alternativas a seguir, qual contém A megaloblastose é caracterizada
o principal mecanismo defeituoso como _____________________.
associado a tais características? De acordo com as alternativas
a) Síntese de DNA. a seguir, qual completa
b) Formação da molécula heme . corretamente essa descrição?
c) Formação do complexo Fi-B12. a) redução global de hemácias,
d) Metabolismo da vitamina B12. leucócitos e plaquetas
e) Defeito do fator intrínseco. b) mutação no gene TMPRSS6
2. A etiopatologia da anemia aplásica c) substituição da medula óssea
é, em muitos casos, desconhecida d) erros na formação do
ou de causa secundária, como grupo Heme
por agentes químicos e físicos, e) atraso da maturação do
tratamento oncológico, vírus e núcleo em relação ao
doenças autoimunes. Contudo, de citoplasma eritrocitário
forma geral, apresenta-se como 4. Entre as anemias não hemolíticas,
adquirida ou hereditária. Qual destaca-se a ______________,
das opções a seguir é uma causa que ocorre devido a uma resposta
genética de anemia aplásica? hematológica insuficiente diante
a) Síndrome de Lesch-Nyhan. das alterações sistêmicas, como
b) Doença de Crohn. inflamação, infecção, trauma,
c) Anemia de Fanconi. neoplasia, hepatopatia alcoólica,
16 Anemias não hemolíticas

insuficiência cardíaca congestiva, em que a etiopatologia não está


diabetes, trombose, doença bem definida. No caso da anemia
pulmonar obstrutiva crônica, por hemorragia, o diagnóstico
insuficiência renal. Qual anemia deve diferenciá-la, principalmente,
completa essa descrição? de qual outro tipo de anemia?
a) Anemia aplásica. a) Anemia hemolítica.
b) Anemia ferropriva. b) Anemia por doença crônica.
c) Anemia megaloblástica. c) Anemia por deficiência
d) Anemia por doença crônica. de vitamina B12.
e) Anemia hemorrágica. d) Anemia aplásica.
5. Nas anemias, o diagnóstico e) Anemia ferropriva.
diferencial é fundamental nos casos

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