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Reflexões sobre cidadania e os entraves 15

para a participação popular no SUS

| 1 Jean Camargo Longhi, 2 Giselle Alice Martins Canton |

Resumo: Este trabalho apresenta as contradições do Fonoaudiólogo; residente em


1

Saúde da Família, Faculdade


Santa Marcelina. Endereço
conceito de cidadania encontradas em pesquisas realizadas eletrônico: camargo.longhi@
yahoo.com.br
junto a usuários de uma unidade de saúde da zona leste de
São Paulo e os consequentes entraves para a participação 2
Assistente social; doutora
em Serviço Social pela PUC-
popular no SUS. A coleta dos dados foi organizada em SP; preceptora acadêmica
do Programa de Residência
dois encontros, sendo abordado o conceito de cidadania Multiprofissional em Saúde
da Família, Faculdade Santa
e participação popular com oito sujeitos não pertencentes Marcelina. Endereço eletrônico:
gicanton@terra.com.br
ao conselho gestor da unidade. Utilizou-se a técnica de
grupo focal. Como resultado, verificou-se uma imprecisão
de significados aplicados ao conceito de cidadania. Os
sujeitos da pesquisa apontaram uma série de limites para
a execução deste conceito, como a legislação do próprio
Estado, a repressão sofrida pelos indivíduos, a descrença
na democracia representativa e no voto como práticas de
cidadania e o questionamento da igualdade de direitos em
nossa sociedade; e a participação popular como forma de
movimento coletivo em busca de soluções aos problemas
da comunidade. Portanto, a participação popular dentro
dos espaços institucionais do SUS com esta concepção de
cidadania pode levar os usuários à não resolutividade de
suas demandas junto ao Estado nos conselhos gestores.
Somente com outras formas de pressão e mobilização não-
institucionais, podemos ter uma participação popular mais
efetiva e resolutiva, atendendo aos anseios da população e
dos militantes em saúde que primam por uma saúde pública
e de qualidade.

 Palavras-chave: cidadania, participação popular em saúde, SUS. Recebido em: 22/10/2009.


Aprovado em: 14/06/2010.
16 Introdução
Este estudo foi alavancado após participação periódica nas reuniões do conselho
| Jean Camargo Longhi, Giselle Alice Martins Canton |

gestor local de uma unidade de saúde da zona leste de São Paulo onde estava inserida
uma equipe de cinco residentes das áreas de fonoaudiologia, nutrição, psicologia,
fisioterapia e enfermagem do Programa de Residência Multiprofissional em Saúde
da Família. Após um ano de acompanhamento das reuniões, percebeu-se uma
desarticulação entre os conselheiros de todos os segmentos, assim como falhas
na divulgação das datas e horários das reuniões, baixa representatividade dos
segmentos (composto legalmente por 50% de usuários, 25% de representantes
dos trabalhadores da saúde e 25% das vagas para o gestor e prestadores de serviços
ao SUS) e desconhecimento dos usuários sobre a existência desse espaço, o que
vem comprometendo sua efetividade e resolutividade.
Esse cenário levou a refletir sobre a concepção do termo “cidadania”, tão
presente desde sua legitimação com a Constituição Federativa de 1988 (BRASIL,
1988) conhecida como “Constituição Cidadã”, passando pelas leis de saúde nºs
8.080 e 8.142, que estabelecem as instâncias de participação popular na saúde;
e os entraves que inviabilizam a participação popular, visto que esta é um dos
pilares do Sistema Único de Saúde (SUS).
A participação da comunidade constitui uma das diretrizes do SUS, sendo
contemplada no artigo 198 da Constituição Federal de 1988: “... Esta por sua
vez é uma forma de controle social, que possibilita à população por meio de
seus representantes definir, acompanhar a execução e fiscalizar as políticas de
saúde...”. (BRASIL, 2001).
No período de distensão política brasileira, pós-ditadura militar, o processo
de alargamento da democracia se expressa na criação de espaços públicos e na
crescente participação da sociedade civil nos processos de discussão e de tomada
de decisão relacionados com as questões de políticas públicas (TEIXEIRA et al.,
2002). O marco formal desse processo é a Constituição de 1988, que consagrou o
princípio de participação da sociedade civil. As principais forças envolvidas nesse
processo compartilham um projeto democratizante e participativo, construído
desde os anos 1980 ao redor da expansão da cidadania e do aprofundamento da
democracia. Assim, o significado político crucial da participação é radicalmente
redefinido e reduzido à gestão. A ênfase gerencialista e empreendedorista transita
da área da administração privada para o âmbito da gestão estatal, como relata
Tatagiba (2003), com todas as implicações despolitizadoras delas decorrentes.

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O Estado e os setores da sociedade civil comprometidos com o projeto 17
participativo democratizante substituem o confronto aberto da década

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anterior, período de ditadura militar, por uma aposta na possibilidade de
uma atuação conjunta com o Estado através de espaços institucionalizados
de participação popular. A chamada “inserção institucional” dos movimentos
sociais é evidência dessa inflexão. O confronto e o antagonismo que tinham
marcado profundamente a relação entre o Estado e a sociedade civil nas décadas
anteriores cederam lugar a uma aposta na possibilidade da sua ação conjunta
para o aprofundamento democrático.
A Constituição de 1988 concebe a noção de Estado democrático de direito.
Este passa a garantir, além da proteção das liberdades individuais, a participação
destes na formulação e monitoramento de suas políticas públicas. Segundo essa
compreensão, Chauí (2002) afirma que o Estado procura instituir os diversos
interesses e necessidades particulares existentes na sociedade em direitos universais
reconhecidos formalmente. Os indivíduos e grupos organizam-se em associações,
movimentos sociais, sindicatos e partidos, constituindo um contrapoder que
limita o poder do Estado. A participação popular na saúde deve ser entendida
como a “partilha efetiva do poder” entre Estado e sociedade civil, segundo
Dagnino (2002), por meio do exercício da deliberação no interior dos espaços
públicos e em outros espaços de luta não-institucionais que a sociedade entenda
como pertinente para mudanças na estrutura social de um país, percebendo que
somente dessa forma pode mudar as condições de saúde de uma população.
Na defesa e construção desses direitos incluídos nas leis de saúde, Bosi e
Afonso (1998) fazem duas colocações essenciais: a elaboração de uma consciência
sanitária definida como o entendimento de que a saúde é um direito; e a
participação popular como um mecanismo fundamental para esta construção.
Nesse sentido, Carvalho (1995) e Sousa (2003) apontam que esta participação
é construída diretamente pela ação de diversos segmentos sociais, tendo como
instrumento processos que envolvem a organização, mobilização, denúncia e
pressão no sentido de luta e contestação.
É importante apontar que o conceito de cidadania vem sendo modificado ao
longo da história. Desde sua criação na Grécia antiga até os dias atuais, utiliza-se
o termo em benefício de determinados setores das sociedades. Com isso torna-
se importante compreender a construção histórica desse conceito correntemente

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18 usado na atualidade. A origem do termo vem da Grécia antiga, onde tinha o
significado daquele “pertencente à Pólis”. Na constituição de Atenas, o cidadão
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traz como direito ou prerrogativa a participação nas práticas deliberativas ou


judiciárias da comunidade a que pertence. Segundo Welmowicki (2004), a
definição de cidadania passa por um exame seletivo, já que existe a separação
entre os cidadãos e os não-cidadãos (escravos e/ou estrangeiros).
Mais tarde, no final do século XVII, os teóricos da burguesia inglesa, a
primeira que ascendeu ao poder, formularam com muita clareza os conceitos de
liberdade e de indivíduo para desenhar os alicerces da sociedade burguesa em
construção. Esses tinham como base a primazia do indivíduo, do qual derivou
sua visão do individualismo liberal, identificando como direito natural o direito
à propriedade (WELMOWICKI, 2004).
Essa concepção, que tinha em sua raiz a luta contra os privilégios feudais e a
defesa da propriedade burguesa contra os ataques arbitrários dos reis e da nobreza
(significava o fim das instituições de “sangue” e títulos), também delimitava os
parâmetros de cidadania para a nova sociedade: liberdade é, em última palavra,
o direito à propriedade. O voto censitário, ou seja, voto somente daqueles que
têm determinado rendimento ou propriedade, assegurava a preservação da
propriedade privada e marcou a fase de ascensão da burguesia.
Nesse período existiu uma igualdade jurídica, segundo a qual perante a lei
todos eram iguais, sendo vedado o direito de “impor a sociedade” algo que não
estivesse previsto em leis ou que fosse contrário ao decidido pelos juízes. Para
Welmowicki (2004), a cidadania significava garantir a liberdade individual e,
em particular, a “liberdade” do trabalhador como indivíduo dono de si mesmo
pronto para ser livremente explorado.
A versão moderna de cidadania teve início no mundo pós-Segunda Guerra
Mundial. Saído da guerra como potência dominante, os Estados Unidos da
América teve de pensar numa política que permitisse canalizar o descontentamento
social e desse respiro para que o capitalismo voltasse a se estabilizar na Europa.
Surge assim o Plano Marshall, uma política de financiamento dos novos
governos europeus para que pudessem reconstruir suas economias e implantar
reformas sociais do assim chamado Welfare State. Este significava estender os
direitos sociais aos setores operários atingidos pelas consequências da Segunda
Guerra como melhoria dos serviços públicos e a intervenção estatal na economia

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para impulsionar sua recuperação. Marshall retoma o conceito de cidadania 19
como um status de todos os que pertencem a uma determinada comunidade, que

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significaria uma igualdade como tal.
A cidadania moderna, conceito fundado sobre a ideia de humanidade,
enfrentou muitas dificuldades de aplicação, dentre elas o tamanho das repúblicas
modernas, o que impede o exercício direto do poder pelo cidadão, sendo
necessária a escolha de seus representantes (VIEIRA, 2005). A disseminação dessa
concepção de cidadania foi expressiva, e ela orientou não só as práticas políticas
de movimentos sociais de vários tipos, mas também mudanças institucionais,
como as incluídas na Constituição brasileira de 1988, que traz no seu artigo 196
a seguinte definição de saúde: “A saúde é direito de todos e dever do Estado,
garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco
de doença e de outros agravos e ao acesso universal igualitário às ações e serviços
para sua promoção, proteção e recuperação” (BRASIL, 1988).
Essa concepção de cidadania reivindica o acesso, inclusão, participação e
pertencimento a um sistema político já dado. O reconhecimento dos direitos
de cidadania aponta para transformações radicais em nossa sociedade e em sua
estrutura de relações de poder. Tornar-se cidadão passa a significar a integração
individual ao mercado, como consumidor e como produtor. Este parece ser o
princípio subjacente a um enorme número de programas para ajudar as pessoas
a “adquirir cidadania”, isto é, aprender como iniciar microempresas, tornar-se
qualificado para os poucos empregos ainda disponíveis, por exemplo. Num
contexto onde o Estado se isenta progressivamente de seu papel de garantidor de
direitos, o mercado é oferecido como uma instância substituta para a cidadania
(DAGNINO, 2004). Portanto, a noção de cidadania se opõe à de identidade de
classe, uma vez que existem propostas e interesses distintos e opostos por trás de
cada uma delas. Cidadania passa a ser uma categoria abstrata, desligada da práxis
real e dos conflitos inerentes à sociedade capitalista.
O Estado, órgão representante da classe social dominante, através de suas
instituições (escola, igreja, parlamento, partidos políticos, justiça, entre outros)
legitima ideologias da classe dominante e as dissemina entre a população,
tornando-se um entrave para o desenvolvimento desta e o avanço da humanidade.
Essas ideologias não passam de uma estratégia da classe dominante na negociação
das desigualdades, de modo a reduzir as tensões sociais e para se manter no poder,

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20 seguir na linha da conciliação de classes e continuar explorando e oprimindo as
demais classes e setores. Entendemos o conceito de cidadania como uma dessas
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ideologias que vêm desde nossa Constituição Federativa e seguem ecoando nas
demais leis de saúde e sobre a consciência da classe trabalhadora. Esta “ideologia
ou falsa consciência”, como colocam Marx e Engels (2006), passa a prestar serviço
ao Estado representante da classe dominante como forma de evitar tensões sociais
e como manutenção da ordem.
Mesmo compreendendo as diferenças radicais entre os conceitos de “cidadania”
e “classe”, e ainda tecendo críticas às implicações ideológicas e sociais do conceito
de cidadão, optaremos, neste trabalho, pelo uso do conceito “cidadania”. Tal
escolha se justifica pelo uso desta nomeação entre o setor de usuários (classe
trabalhadora). Nesse ínterim, através do conceito de cidadania, poderemos
analisar os principais conceitos de atuação do usuário como sujeito político em
saúde, apontando as características da participação popular defendidas pelos
entrevistados. Ao falar da participação popular, os usuários defenderam um
conceito de atuação, que na sociedade capitalista é reduzido ao de cidadania –
assim, analisando as narrativas, teremos acesso à ideologia dominante.
Ouvir a representação formulada sobre cidadania e participação popular de
usuários, sujeitos desta pesquisa, vem ao encontro das preposições de sujeito
proposta por Bakhtin (1992), o qual coloca que o sujeito se constitui na e através
da interação e reproduz na sua fala e na sua prática seu contexto imediato e
social. Por meio de suas falas, os sujeitos expressarão sua visão de atuação na
sociedade, revelarão a ideologia presente nos seus discursos e na sua relação com
a saúde e apontarão implicitamente as contradições entre sua situação de classe
trabalhadora e a defesa do termo “cidadania” em contraposição ao de “classe”.

Percurso metodológico
Neste trabalho foi utilizada abordagem de pesquisa qualitativa do tipo
exploratória. Qualitativa, segundo Martinelli (1999), reconhece a singularidade
do sujeito, de sua experiência social, bem como de seu modo de vida; e
exploratória, já que permite ao investigador aumentar seu conhecimento sobre
o fenômeno, aprofundando seus estudos nos limites de uma realidade específica
(TRIVIÑOS, 1987).

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Utilizou-se a técnica de grupo focal, proposta por Gatti (2005), a qual 21
permite compreender processos de construção da realidade por determinados

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grupos sociais, compreender práticas cotidianas, ações e reações a fatos e eventos,
comportamentos e atitudes – ou seja, propicia um espaço para que possa haver
uma reflexão sobre determinado assunto construída coletivamente. Foram
realizadas duas sessões, das quais participaram os mesmos sujeitos, utilizando a
técnica de grupo focal, com duração média de duas horas, a primeira abordando
o conceito de cidadania e a segunda, participação popular.
Os sujeitos da pesquisa foram oito usuários de uma unidade básica de
Saúde da Família da zona leste de São Paulo que, após contato com agentes
comunitários de saúde, foram indicados por possuírem alguma história de
participação comunitária em associações de moradores de bairro, pastoral
da criança ou trabalhos comunitários na igreja. Optou-se por indivíduos não
participantes de espaços do controle social da saúde, para que não tivéssemos
falas viciadas carregadas de termos administrativos e pudéssemos obter uma
percepção mais apurada do entendimento da população usuária do SUS sobre
os temas. Neste, buscaremos compreender, por meio das narrativas dos sujeitos
participantes, o entendimento acerca do significado que atribuem ao conceito
de participação popular e cidadania. Este trabalho foi aprovado pelo Comitê
de Ética e Pesquisa da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo, e todos os
participantes assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido.
Para incentivar as reflexões sobre os temas, foram propostas algumas dinâmicas.
Nesse sentido, esperava-se que cada participante pudesse ser mobilizado para
refletir sobre os conceitos de cidadania e participação popular e, a partir de
então, fosse formado um ambiente propício para um maior aprofundamento e
criticidade na discussão sobre as representações advindas do grupo.
Para análise dos dados, utilizaram-se as sugestões propostas por Gatti (2005).
Assim, após as transcrições das narrativas oriundas dos encontros do grupo focal,
foram elaboradas categorias a partir das falas, destacando-se o que foi relevante
para o grupo, configurando tendências – ou seja, foram agrupadas as opiniões,
comparando-se e confrontando posições, extraindo significados das falas ou de
outras expressões registradas, analisando-se a vinculação desses grupamentos
com as variáveis contempladas na composição do grupo. Após, foram realizados
a composição e o confronto das representações com as teorizações.

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22 Resultados e análise
A análise do material obtido nos grupos focais levantou um grande volume de
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informações que, após sucessivas leituras e classificações, foram organizadas em


torno de três grandes temas, por meio dos quais se procurou apreender nosso
objeto: o conceito de cidadania, os limites desta cidadania e o conceito de
participação popular.

O conceito de cidadania
Ao relatarem experiências pessoais de exercício de cidadania, os sujeitos
evidenciaram diversos entendimentos sobre o tema. No discurso de alguns
participantes, encontramos falas que apontavam no sentido de a cidadania ser um
“ato de solidariedade” ou de “amor ao próximo”, com uma visão assistencialista
de promover o bem-estar do outro como um ato de caridade.
P2: “[...] dividir com a pessoa independente de conhecê-la, de saber quem é”.

P4: “Ele entra doente no hospital, a gente vai lá fazer um trabalho de visita, conversa,
levanta um pouco o animo dele né, porque ele necessita, ele é humano, meu irmão
também e eu me sinto bem fazendo isso, pra mim é uma ação de cidadania”.

P5: “Ação de cidadania é você se doar, né?”

P7: “Caminhar e ser cidadão a partir da nossa consciência de que o amor está acima
de qualquer coisa”.

Na literatura, o conceito de cidadania é utilizado por diversos autores com


significados nem sempre coincidentes e que prestam múltiplas interpretações. Os
relatos dos sujeitos nos grupos vão ao encontro do exposto por Dagnino (2004),
que é através do entendimento de cidadania restrito à responsabilidade moral
privada que a sociedade passa a se engajar no trabalho voluntário e filantrópico.
A autora complementa que a cidadania é vista como mera caridade, reduzida à
solidariedade para com os pobres.
Porém, em outras falas empregaram cidadania como concepção de buscar e
exercer direitos e cumprir deveres dentro de um Estado provedor, que entende
todos os indivíduos como iguais e sobre sua tutela.
P4: “Eu acho que a gente ser cidadão é cobrar nossos direitos, temos direitos e isto é
cidadania ser cidadão de verdade, viver [...] cobrar o que é direito de cada um e então
é cidadania, ser cidadão”.

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P1: “também não é só pensar em si próprio, é pensar no próximo também, todos tem 23
direitos iguais, isso é cidadania aqui”.

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P8: “Lutar pelos direitos que abrange tudo isso que foi falado aqui, ser cidadão tem
direitos e deveres”.

P4: “É direito nosso como cidadão votar e reivindicar nossos direitos também”.

Nesse sentido, Dagnino (2007) trabalha a noção de cidadania como direito


a ter direitos, em que o cidadão não se limita a provisões legais, definidos
previamente, mas sim a invenção/criação de novos direitos que surgem de lutas
específicas e de suas práticas concretas, estando de acordo com o encontrado nos
relatos dos participantes.
Outra parcela dos usuários trouxe experiências de exercício da cidadania
relacionadas à saúde, essas se efetuaram, também, na busca e execução de direitos
da população.
P4: “Eu só tava pedindo pra que mandasse uma multa mesmo pro dono do terreno
por causa do lixo [...] fui atendida mal mesmo na prefeitura, então o meu direito de
cidadã não foi exercido, então tem muitas pessoas a partir daí, eu acredito, muitas
pessoas se tornam umas alienadas e não procuram nem mais vê os direitos”.

Outros participantes também trouxeram para o grupo situações de


enfrentamento com a posição de profissionais de saúde como forma de exercer
a cidadania.
P4: “O outro médico disse: você fez muito bem em desafiar a enfermeira e não tomar
o remédio, a sua sorte foi essa [...] eles não acreditam no que a gente tá falando, o
profissional tem que acreditar pra vê o que tá acontecendo [...] por isso acho que as
pessoas têm que procurar os seus direitos, também é um direito meu, né?”

P8: “Chegar falar assim, doutora, eu tomei o remédio e não posso toma novamente
porque esse remédio é muito forte, da outra vez que eu tomei eu não consegui me
mexer, e eu vou trabalhar amanha [...] é meu direito de cidadão chega no meu direito
e reclamar”.

Percebe-se que os dois últimos participantes trazem suas experiências a partir


do exercício da cidadania na saúde como forma de fiscalização de um serviço que
não foi devidamente prestado, assim como Pedrosa (1996) relata que a população
brasileira ainda não compreende saúde como um direito social e identifica o setor
por meio do consumo de serviços.

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24 Os limites da cidadania
Nos grupos, os participantes defendiam uma concepção de cidadania voltada
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para o “ato de solidariedade” em favor de pessoas que necessitam de auxílio,


reivindicando direitos junto ao Estado e a execução de deveres para uma
sociedade melhor e mais justa. Ao mesmo tempo, eles apontaram uma série de
limitações desse exercício, que travam o próprio Estado e suas leis: a repressão
sofrida pelas pessoas na busca pelos direitos, a descrença do modelo de democracia
representativa e o voto como ferramenta de exercício da cidadania, a ineficiência
da publicização dos direitos e o questionamento da igualdade de direitos entre
todos os indivíduos da sociedade.
Uma das participantes relata que está respondendo judicialmente por ações
de luta pela moradia na comunidade, mostrando que a busca pelo que seria um
direito do indivíduo está sendo barrada pelo Estado, o que a faz desiludir-se:
P8: “A comunidade a gente ajudou a fazer. Fez, né, junto com o povo e eu peço assim
que vocês, né, peçam pra mim, que eu me livre dessas coisas da justiça, né, que é difí-
cil ter o nome sujo, né, sempre lutei e nunca fiz o mal pra ninguém”.

Da mesma forma, outro participante complementa:


P2: “Mas sabe o que acontece, a gente vive num sistema de coação muito grande, a
pessoa vai lá fala tal coisa já é maltratada, é sempre maltratada, ela desiste”.

Outros apontam o descrédito com a democracia representativa e, como refere


Pestana (2007), demonstram uma crise de credibilidade na sociedade brasileira,
havendo um descrédito nos políticos, promessas, corrupções, desvios de verbas
das áreas essenciais e descaso das autoridades, o que leva ao rebaixamento da
qualidade de vida da população.
P4: “Na maioria das vezes, ninguém consegue chegar até um político pra reivindicar
o que eles prometem, mas a gente continua tentando e acreditando que um dia vai
melhorar quem sabe, né? Infelizmente, a gente não tem quase nenhuma esperança
pra isso, né?”
P1: “A gente elege essas pessoas aí e fica decepcionado, eu acho que ela falou tá correto
e é isso aí”.

Também foi levantada a dificuldade da publicização da informação como


fato que limita o exercício da cidadania, discussão já trazida por Martins (2008)
e Oliveira (2004), como fator necessário para o exercício democrático do controle
social e da participação popular, bem como forma de democratizar a informação
– ou seja, um compartilhamento do que é público e deve ser utilizado por todos.

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P8: “Não se movimentam porque não sabem de seus direitos. Acho que se eles procu- 25
rassem se informar mais, eles saberiam quais os deveres deles, né, como cidadãos, de
procura a melhor vida pra eles, né, saberem procurar”.

Reflexões sobre cidadania e os entraves para a participação popular no SUS


Após a colocação de diversos limites e dificuldades da prática de cidadania,
dois participantes colocaram seus questionamentos sobre a concepção de
cidadania e o pressuposto de igualdade de direitos entre todos os indivíduos.
P1: “Mas será que existe mesmo cidadania? Eu acho que não existe, porque em muitas
partes não existe cidadania. Existe cidadania assim pro rico, aquele que tem dinheiro
tem cidadania, mas o pobre não tem, não. A gente vê tanta coisa que aparece na
televisão, direitos humanos pro fulano de tal, direitos humanos pra quem, só pros
ricos? E os pobres? Os pobres não têm direitos humanos, não. O cara faz e acontece
aí, estupra a filha de um cidadão, mata um fulano de tal, aí vem o advogado, passa
a mão na cabeça dele, tudo bem, tira ele da cadeia, e o pobre, coitado, se rouba um
pãozinho pra cumê, pra matar a fome, vai preso e fica lá cumprindo pena pro resto da
vida, [...] existe cidadania pra poucos, os pobre é os que mais sofre, viu?”

A outra participante, corroborando esse questionamento, apontou a desigualdade


de direitos nas diferentes classes sociais enfrentadas em várias situações cotidianas:
P8: “isso mesmo, né, a mesma coisa que você tá na fila do banco e você tá de terno
e gravata e vem um de chinelo de dedo, né, vai fazer o mesmo processo, mas só que
aquele é operário, não é cidadão, aquele que tá ali, né, nem é aceito, até na entrada do
banco tá acontecendo isso”.

O questionamento da igualdade de direitos entre os cidadão foi colocado por


Derrida (2001), que afirma que em virtude do número de excluídos, o conceito
tornou-se “suspeito” por ser somente abstrato, não de jure, mas de facto. Já Reis
(1988) reconhece que a formalização igualitária assegurada pelo reconhecimento
comum dos direitos civis e políticos revelou-se inconsistente, pois existe um
padrão de dominação social mostrado por profundas diferenças e desigualdade
entre as classes populares, os setores médios e altos da população.

O conceito de participação
Quando questionados sobre o que seria participação popular, as falam centraram-
se no movimento coletivo em busca de direitos com reivindicações necessárias
para a comunidade. Dessa forma, Teixeira (2009) coloca que seria intervir nas
decisões que concernem à vida privada dos indivíduos, em todos os aspectos da
vida cotidiana, assim como local de moradia, como preservar a saúde, em que
ofício trabalhar etc.

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26 P4: “Participação popular é trabalhar em prol da comunidade visando o benefício da
população, como área de recreação, interando-se de assuntos como a saúde lutando
por melhoria do bairro e da cidade em geral”.
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P1: “Participação popular é quando a gente precisa de coisas como luz e água pra nos-
sa vila e então reunimos os nossos moradores pra poder reivindicar os nossos pedidos,
isso é participação popular”.

Como última observação dentro deste tema, cabe destacar a ligação realizada
pelos participantes entre os temas “cidadania” e “participação popular”, em que
colocaram o primeiro como sendo uma dimensão teórica que deve ser conhecida
por todos e o segundo, o exercício, a efetivação na prática destes conhecimentos.
P4: “Acho que participação é partir pra luta mesmo, e cidadania é ver nossos direitos e
deveres cobrar e exigir, pra nós e pra uma população mesmo, participação é chegar e fa-
zer, e cidadania é direitos e deveres de uma comunidade, um complementando o outro”.

P6: “Cidadania é viver numa cidade, mas esse viver na cidade não pode ser assim do
modo fictício do modo artificial, me lembra logo o termo participação, como é o caso
aqui nós, participar de uma reunião”.

Considerações finais
Por meio deste estudo, constata-se que ainda existe imprecisão no uso do
conceito de cidadania entre os segmentos que mais dependem das políticas
sociais. Percebem-se, pelos sujeitos da pesquisa, sentidos diferentes empregados
ao termo; outros, no entanto, questionam a própria definição e sua existência na
nossa sociedade. Essa imprecisão na definição e seus limites de aplicação, como
apontado nas falas, podem influenciar negativamente a participação popular nos
espaços institucionalizados do controle social do SUS.
Visto que a participação popular na saúde traz a cidadania, desde a Constituição
Federativa de 1988, como instrumento para a participação, entende-se que se
esta for orientada pela cidadania definida como “ato de solidariedade”, “amor ao
próximo”, busca e execução de direitos junto a um Estado provedor, no qual todos
os indivíduos são iguais sob sua tutela e a saúde é um bem de consumo e um direito a
ser reclamado, o setor de usuários pode ter muitas dificuldades nos enfrentamentos
que venham a ocorrer frente ao Estado dentro dos espaços do controle social. Esses
espaços apresentam uma relação desigual entre usuários, trabalhadores em saúde
e estado, onde as pressões populares devem ser traduzidas para termos da gestão

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e, da mesma forma, numa sociedade de classes, questões relacionadas ao poder e 27
ao conhecimento continuam presentes, dificultando a participação dos desiguais.

Reflexões sobre cidadania e os entraves para a participação popular no SUS


Outro ponto que merece destaque são os questionamentos sobre os limites
do conceito de cidadania, que são representados desde as dificuldades impostas
pela legislação, a repressão sofrida pela população no seu exercício da cidadania
quando enfrenta o Estado, a descrença na democracia representativa (quando os
próprios conselhos gestores utilizam esta forma de espaço democrático), a falta de
publicização como dificultadora do exercício da cidadania e até o questionamento
sobre a igualdade de direitos entre todos os indivíduos.
Entende-se que a participação popular, assim como definido pelos participantes
da pesquisa, deve ser praticada também em outros espaços não-institucionais, assim
como refere Bravo (2001), que defende os conselhos locais de saúde. Embora não
previstos na forma da Lei Federal nº. 8.142/90, estes podem ser traduzidos como
possibilidade de ampliação da participação comunitária na fiscalização, proposição
e execução da política de saúde. Para a autora, seria uma entidade não instituída
jurídica e legalmente, mas que permite a participação da comunidade na elaboração
de propostas para a política de saúde em sua localidade. Consiste na articulação
dos usuários e dos trabalhadores de saúde, com a finalidade de estabelecer relação
entre conselheiros e a base, sendo uma forma de aumentar a mobilização, não
afastando os representantes da sua base. Outra forma de participação popular que
se torna importante na luta pelas conquistas no campo da saúde fora dos espaços
institucionais são, como aponta Pestana (2006), as ações por outras vias, como
denúncias na imprensa, passeatas e outras formas de pressão e reivindicação.
Constata-se, assim, a necessidade de se encontrar formas alternativas e efetivas de
mobilização, no sentido de assegurar os direitos, seja através da contestação e/ou
pressão sobre o Estado, firmando-se como efetivo controle público.
Desta forma, a simples participação nos espaços institucionais com esta
concepção ainda imprecisa de cidadania pode levar os usuários do SUS a não
resolverem suas reivindicações e a apenas cumprirem o papel de aprovadores de
programas e pacotes ministeriais de financiamento para a saúde. Este papel pode
levar a negociações e acordos com o Estado que, muitas vezes, não condizem com
as reais reivindicações que, historicamente construídas, se tornaram bandeiras de
luta dos militantes em saúde que acreditam numa saúde pública e de qualidade,
conforme explicitada na Constituição Federal de 1988 e nas leis de saúde.

Physis Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 21 [ 1 ]: 15-30, 2011

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