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Universidade Federal de Campina Grande

Centro de Humanidades
Unidade Acadêmica de Arte e Mídia
Curso de Bacharelado em Arte e Mídia

Componente curricular: Análise do Filme Cinematográfico


Professor: Helton Paulino
Período: 2020.3 (Regime Acadêmico Extraordinário)
Aluna: Thais Samara de C. Bezerra

Avaliação – II Unidade
Análise Fílmica

Filme: Perdidos na Noite, de 1969, dirigido por John Schlesinger.

Objeto de Análise: A “Quebra de Tabus” – Comportamento e Sociedade.

O filme Perdidos na Noite, uma adaptação do livro de James Leo Herlihy,


dirigido por John Schlesinger em 1969, marca o início de um período de filmes
hollywoodianos que mostrariam, cada vez mais, uma visão nada glamorosa das grandes
cidades, com uma Nova York suja, desigual e nada afetuosa. Um filme que se dedicou a
mostrar o malandro, na figura de Ratso, e a prostituição, na figura do cowboy Joe.
Também é o primeiro filme estadunidense a mostrar um personagem com relações
homossexuais nas telas de cinema.

Com esse contexto, não tinha como o resultado ser outro: um filme com total
liberdade para a reconstrução da linguagem cinematográfica, uma abertura, de fato, para
o cinema autoral, ao modo como acontecia no cinema europeu. Ou seja, eram outros
espaços e tempos para a sociedade, e o cinema anunciaria ou denunciaria isso por meio
da sua linguagem apurada para as percepções humanas.

Ao trabalhar muito bem o tempo no filme e o tempo do filme, John Schlesinger


constrói um ritmo que consegue carregar a narrativa de maneira objetiva, ao mesmo
tempo em que utiliza muitas imagens subjetivas. Para tanto, recorre ao recurso do
flashback, não apenas para narrar eventos anteriores no sentido de justificar a história
que está sendo desenvolvida, mas usa o flashback, sobretudo, como um mecanismo que
reflete as subjetividades mentais do personagem principal, o Joe Buck. Assim, o
flashback construído por John, além de possuir o caráter descritivo de um fato, ele
alcança um potente caráter de sensações diegéticas.

Através dos flashbacks, compreendemos que Joe foi uma criança abandonada
pela mãe, entregue à avó e que sofreu abusos sexuais da mesma, além de sofrer um
estupro por um homem quando adulto, em função de perseguição ao seu relacionamento
com Anne, aparentemente uma jovem desejada por outros homens. Os flashbacks sobre
esses fatos são bastante repetitivos, e também não seguem fielmente uma ordem
cronológica como, a exemplo, no primeiro flashback, que já mostra Joe uma criança
maior, em relação a outro que já o mostra mais novo, quando foi entregue para a avó.

A repetição e aleatoriedade dos fatos contribuem significativamente para a


construção das subjetividades do personagem no que diz respeito às suas percepções
diante de eventos que provocam seus traumas e que reforçam a sua posição dentro dos
preconceitos sociais, regionais e sexuais: a posição de vítima. Essa instabilidade dos
flashbacks mostram claramente as instabilidades da mente de Joe, do seu estado de
alerta constante e das suas inseguranças. Assim, percebemos que John dilui, desde o
primeiro instante, o leve caráter objetivo do flashback em uma densa camada subjetiva.

A intenção do flashback é informar um acontecimento passado. Mas quando John


decide repetir várias vezes as mesmas informações, ou seja, repetir o flashback, seja
sonoro e/ou visual, isso passa a ser esteticamente ousado, pois é como se um único take
ou o simples ato de informar fossem irrisórios diante da complexidade dos temas
abordados que, mais do que denunciá-los, era preciso fazer senti-los, conscientizar o
espectador para a gravidade daquele conteúdo e, ainda mais, torná-lo sensível às causas
do outro. Assim, a repetição dos fatos também funciona como uma boa e corajosa
insistência nos temas considerados tabus para a época: o abuso de criança por pessoas
da própria família e a homossexualidade atrelada a abusos também.

A forma como os primeiros flashbacks são inseridos se dá pelo efeito fade in como,
por exemplo, quando Joe está deixando a cidade e observa um salão de beleza e
relembra um momento em que a avó lhe pede massagem, em que há uma transição
criativa entre Joe, o seu reflexo no vidro e o fade in da cena em flashback. Depois tem
um flashback introduzido pela voz da avó mandando-o orgulhá-la ao ser o vaqueiro
mais bonito no desfile, também transitando com fade in para a imagem dele enquanto
criança de chapéu de cowboy, depois com a vó se despedindo e dizendo que arrumou
um novo galã, aqui com acréscimo. E em seguida tem outro flashback quando ele se
lembra de Anne, ainda no ônibus, ao ler a seguinte frase escrita em uma espécie de
caixa d’água da cidade: “A louca Anne ama Joe Buck”. Esse flashback é introduzido
pela voz de Anne, através de um som suave e longe, transitando também com fade in
para a imagem dela correndo em meio a uma plantação de milho.

Flashbacks com introdução em fade in.

Apenas quando anoitece, ainda no ônibus, com uma senhora ao lado de Joe, é que a
forma de introduzir o flashback muda, agora passando de um esmaecimento de tela
preta para a imagem de memória, imagem esta que mostra o abandono de Joe pela mãe
e que começa a apresentar o tema do possível abuso ocasionado pela própria avó. Ou
seja, enquanto Joe está deixando a cidade, as suas memórias vão surgindo aos poucos,
deixar a cidade de infância, estando parado dentro de um ônibus, vendo pela última vez
as paisagens locais e de suas experiências, o deixam reflexivo, e depois, quando a noite
já não permite mais tanta distração visual, Joe aprofunda suas reflexões nas causas
dessas memórias.

Flashback introduzido com transição de tela preta para a cena.


Posteriormente, quando Joe chega finalmente em Nova York e enfrenta momentos
de tensão ou verdadeiros obstáculos, os flashbacks passam a ser introduzidos com cortes
mais secos, sem qualquer tentativa de efeitos de transição suave, à medida que Joe reage
a situações de exploração, traumas e preconceitos. Além disso, a essa altura da
narrativa, os flashbacks ganham uma camada profunda de subjetividade, com a inserção
fragmentada de cenas não vividas, mas imaginadas por Joe e que refletem seu estado
emocional naqueles instantes diegéticos. Como exemplo disso, tem-se a cena em que
Joe busca ajuda de um possível cafetão, que ao demonstrar comportamento meio louco
com um fanatismo por Cristo e obrigando Joe a ajoelhar-se e rezar, faz com que Joe
entre em pânico ao lembrar dos momentos religiosos com a avó e de seu batismo e
sermões do padre, em que essas imagens em flashback são introduzidas de forma seca,
de modo que não surgem, simplesmente aparecem de repente na tela. Colocado dessa
forma, o flashback transmite a agonia do abuso sentido por Joe enquanto criança, e
sofrida pela hipocrisia entre religião e a falsa proteção familiar, quanto a agonia causada
pelo trauma criado justamente me função de discursos religiosos que não foram capazes
de lhe protegerem nem um pouco.

Flashback introduzido com cortes secos e fragmentado: transmitindo a agonia tanto da cena de memórias do
batismo quanto da cena diegética de fuga do discurso fanático proferido pelo cafetão.
Ao sofrer um golpe de Ratso, o homem que lhe arranjou o cafetão e lhe cobrou
dinheiro por isso, Joe corre pela cidade fugindo do cafetão e com o pensamento à
procura de Ratso, cenas imaginadas por Joe tentando pegá-lo no metrô antecipam um
flashback, também bastante fragmentado, com cenas de um grupo de homens que
persegue Joe e Anne, em que um deles acaba estuprando Joe, e outro estupra Anne. As
cenas imaginadas são em preto e branco, mas o flashback continua em colorido. Dessa
forma, esse flashback intensifica a percepção do espectador para a questão trágica que é
o estupro, aumentando a sensação do desejo de fuga de um abuso como esse.

Outro flashback interessante é quando Joe aceita acompanhar um rapaz ao


cinema, já prevendo uma relação sexual em troca de dinheiro, e à medida que o rapaz
começa fazer sexo oral em Joe, surgem a voz e as mãos de Anne no rosto dele, ao passo
que o flashback vai se diluindo na mesma cena, com memórias de quando Joe conheceu
e beijou Anne, e que outros rapazes ficaram discriminando, fazendo questão de informar
que Joe precisaria se medicar por tê-la beijado. Essa forma de inserção do flashback
conseguiu entrelaçar temas tabus como a prática da homossexualidade, a prostituição e
ainda retratou o machismo em relação à Anne. Nessa cena, a construção do flashback dá
tempo ao espectador para construir relações entre os temas, como também para destruir
a imagem de cowboy hétero, herói e machista que a sociedade estadunidense tinha.

Diluição do flashback, entrelaçando temas tabus, fazendo o espectador descontruir, aos poucos, a ideia
estereotipada de cowboy.
Introduzir o flashback por meio de um sonho de Joe foi outra maneira de John dar
maior liberdade ainda na construção desse recurso de memória, pois no sonho as lógicas
são criadas de forma aleatória, mas que convergem para um sentido. Nesse flashback,
Joe começa sonhando com a voz de Anne, em tela preta, depois surge a imagem em cor
de Anne beijando Joe, que transita para o preto e branco, anunciando novamente as
cenas do estupro junto à Anne, e posteriormente com inserção de cenas da avó o
surpreendendo quando criança, e depois abusando dele sexualmente. A passagem de um
momento que a princípio parece ser de descanso para Joe, o sono, se torna o seu
pesadelo diário, transformando o flashback em uma montanha-russa: da tranquilidade
do sono, passando pelo início do sonho com Anne perguntando se ele a ama, chegando
às tensões de abusos em preto e branco, evidenciando os tabus.

Flashback introduzido pelo recurso do sonho, deixando em preto e branco as cenas de abuso sexual.

É interessante observar que muitos eventos se repetem, revelando o estado


emocional constante de Joe e, atrelado à imagens que se repetem, existem o texto e o
som que acompanham as imagens. Ao repetir, fragmentar e repetir o flashback, o texto
tona-se discurso, e a interpretação sonora das vozes contribui para a percepção hipócrita
desse discurso quando, por exemplo, a avó fala constantemente que Joe é o mais lindo,
ou o som dos risos dela e até mesmo cantigas com a voz dela; também contribui para a
percepção confusa da fala de Anne, ao afirmar que Joe é o único. Os dois textos,
repetidos graças aos flashbacks, provocam os seguintes entendimentos: o primeiro
insiste nas formas camufladas dos abusos, e segundo, somado ao primeiro, causa uma
verdadeira instabilidade emocional em Joe ao perceber que em Nova York ele é “só
mais um”, nem o “mais lindo” e “nem o único”. Joe percebe que por mais que escute
mil vezes esses discursos, nenhum deles o protegeu das agressividades da vida.

Assim, com essa diversidade de formas de apresentação de flashbacks, a direção de


John mostra como o tempo em um filme pode ser trabalhado em favor de um
andamento rítmico para o desenvolvimento da narrativa, principalmente levando em
conta uma narrativa carregada de temas tabus. Primeiro com flasbacks mais objetivos,
introdutórios, informativos, depois com flashbacks em que a informação quase
desaparece ou acaba tendo menos importância, e ficam as sensações ao escancarar o
tema: quanto mais as memórias se repetem e se fragmentam, mais violenta se torna a
experiência do espectador em relação aos flashbacks recheados de tabus, de modo a
repensarem o comportamento e as escolhas de Joe, ou de modo a se colocar no lugar da
vítima dos tabus. É quase um chamamento agonizante de John: isso existe, é preciso
falar e escancarar, porque do contrário, os tabus continuarão a criar vítimas de abusos e
de preconceitos. O flasback de John Schlesinger é essa sacudida no espectador.

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