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3.3.3 O recurso a Platão .................................................................................................... 191
13
INTRODUÇÃO
comunicação humana, desde a conversa mais corriqueira até as mais profundas investigações
real. 1”
Nesta perspectiva, o nome de Hesíodo surge como objeto de estudo pertinente, uma vez
que o poeta de Ascra foi considerado pelos antigos como um dos grandes educadores de toda
a Grécia e é considerado por grande parte dos contemporâneos como um pensador que se
situa no limiar entre o mito e a filosofia, propiciando assim uma boa oportunidade para se
Além do mais, se retornarmos às categorias empregadas por Levet, citado acima, vemos
que Hesíodo encarna as três. O iniciado foi, em última análise, a primeira garantia de verdade,
na grande maioria das culturas, que o homem conseguiu para si, já que a voz do iniciado é o
veículo da palavra divina. Foi exatamente assim que o poeta de Ascra apresentou-se no verso
22 da Teogonia: “Elas um dia a Hesíodo ensinaram belo canto. 2”. Como pensador sábio, ele
foi recebido por seus posteriores e a discussão que se estabeleceu em torno de seus versos
contribuiu enormemente para dar direção e sentido à démarche da cultura grega. Enfim, foi
como o homem justo e honesto, sem deixar de ser igualmente sábio, que ele apresentou-se em
Os trabalhos e os dias, o segundo de seus dois poemas preservados na íntegra, onde temos a
1
Levet (1976) p.1.
2
Teog. 22. αἵ νύ ποθ' Ἡσίοδον καλὴν ἐδίδαξαν ἀοιδήν. Todas as traduções dos versos da Teogonia
aqui visitadas respeitarão a tradução de JAA Torrano, exceto quando houver necessidade de alguma
adaptação, o que será anotado.
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mais antiga representação da literatura grega de uma voz humana comum tratando de assuntos
humanos comuns e tendo por finalidade a vida boa, o que implica um caráter honesto e uma
ação justa.
preservados na íntegra, Hesíodo empregou uma palavra diferente para nomear aquilo que a
maioria dos tradutores contemporâneos traduz como verdade. Nos versos 27 e 28 da sua
Temos aqui ἀληθέα para o primeiro poema e ἐτήτυμα para o segundo, cada uma
apontando para uma verdade que supomos ser de ordem diferente da outra.
Com efeito, o primeiro poema parece ser um poema fortemente inspirado pelas Musas,
não só pela sua fala, em discurso direto nos versos citados, como também pelo próprio
conteúdo, que trata da origem dos deuses desde o princípio. Já o segundo destina-se a tratar de
assuntos humanos a partir de uma voz humana que se apresenta na primeira pessoa do
3 Curiosamente, já temos aqui a primeira adaptação, uma vez que Torrano traduz ἀληθέα por
“revelações” e não por “verdades”, como o fazem diversos outros.
4 Todas as traduções dos versos de Os Trabalhos e os Dias aqui visitados respeitarão nossa tradução
publicada em 2011.
15
singular e se confunde com o próprio poeta. Este deslocamento de vozes, da divina para a
humana, e de tema, da origem dos deuses para os assuntos humanos, nos parece ser marcado
pelo poeta pelo deslocamento de ἀληθέα para ἐτήτυμα, ambas significando verdade, mas
distintas entre si. Entendemos que isto parece apontar para uma tentativa, a partir do discurso
condição fundamental para a emergência do discurso filosófico e é isto que esta pesquisa vai
tentar demonstrar.
Até onde se saiba, a pergunta sobre a diferença entre ἀληθέα e ἐτήτυμα jamais foi
ou mesmo posteriores a ele ainda tivessem esta diferença viva o suficiente em suas mentes,
mesmo que a esta altura a palavra ἐτήτυμα já tivesse praticamente desaparecido do uso
Mas para nós, a natureza desta diferença esta perdida e importa recuperá-la em alguma
medida. Não pretendemos propor uma tradução para cada uma destas palavras, já que isto, se
é que é possível, não contribuiria muito para avançarmos na compreensão da obra do poeta.
Damo-nos por satisfeitos, para iniciar esta investigação, assumindo que ἀληθέα refere a tudo o
que se segue na Teogonia e que ἐτήτυμα refere a tudo o que se segue em Os trabalhos e os
alcançarmos uma compreensão mínima do que está sendo dito por meio de cada uma destas
palavras.
Isto, é claro, não exclui eventuais incursões na recepção antiga do poeta, mas isto será feito
muito mais com o intuito de auxiliar a nossa compreensão do poeta - já que, anterior ou
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mesmo contemporâneo de Hesíodo, só dispomos do registro escrito das obras de Homero - do
poesia e a demonstrar como esta, por ser a matriz de produção, acumulação e transmissão de
conhecimento na cultura grega, imprimiu sua marca naquela, que herdou não só estratégias
O segundo capítulo busca por em evidência quem é este poeta que nos solicita este
esforço, bem como a pertinência da discussão sobre os versos que são o motor do trabalho.
Para isso, é dividido em três seções. A primeira é dedicada a investigar como a imagem que o
poeta construiu de si mesmo tem influência na sua recepção. Com efeito, Hesíodo apresenta-
se na Teogonia como um pastor que foi ensinado pelas Musas a cantar e recebeu delas a
pertinentes sobre como os versos em questão têm sido recebidos pelos estudiosos
contemporâneos e entabula uma discussão com estas posições para que daí possa surgir uma
interpretação própria. Disto resulta que a enigmática fala das Musas é aqui entendida como
uma reafirmação da distância que separa deuses e homens e não, como entende a maioria,
como uma reivindicação de verdade que Hesíodo teria feito para a sua poesia, em
reafirmação da distância entre deuses e homens aponta para uma limitação epistemológica do
homem, tarefa a ser resolvida pelo sábio para ser traduzida em termos compatíveis com o
limitado entendimento humano, coisa que Hesíodo já começa a tratar ainda na Teogonia,
seus respectivos contextos, os termos que compõem os versos que movem a investigação.
Para tanto, serão levados em conta os verbos declarativos que introduzem ἀληθέα e ἐτήτυμα,
Daí resulta que, ao par inicial de termos opostos ἀληθέα x ἐτήτυμα, somam-se os
seguintes pares: Musas x pastores agrestes, que aponta para a distância entre deuses e homens;
fala dos deuses, restando o segundo a designar o modo humano de falar; e Zeus x “Eu”, nos
versos 9 e 10 de Os trabalhos e os dias, que anunciam que um homem sábio vai falar de
empregadas por Hesíodo na construção de seu discurso propriamente humano. Para tanto, o
para integrar as duas versões do mito de Prometeu, presentes uma em cada poema e a terceira,
A primeira seção põe em evidência o esforço empreendido pelo poeta para estruturar o
discurso numa ordenação temporal linear, coisa que parece fundamental para o entendimento
eternos será abordada pela comparação do primeiro canto das Musas (v.2-21), um canto
pastor em poeta, que será igualmente investigada. Este segundo canto já aparece
18
mede a distância entre o Céu e a Terra, que é de nove dias e nove noites (v.720-723), com o
episódio da Ilíada 1.591-592, onde Hefesto, lançado por Zeus do Olimpo à terra, leva um dia
Em seguida, passamos a investigar como Hesíodo assegura para si autoridade para falar,
o que é feito integrando o episódio de sua conversão em poeta (v.30-33) com a passagem de
Calíope, a Musa da Belavoz (v.80-103), onde o poeta traça um paralelo entre reis e poetas,
bem como um texto de Os trabalhos e os dias (v. 35-36), onde Hesíodo chama para si a
A última parte desta seção procura trazer à tona a presença dos homens na Teogonia e o
enfoque vai recair sobre o Hino a Hécate (v.411-453), onde a deusa é apresentada como nutriz
dos jovens (kourotróphos), intermediadora dos sacrifícios e acompanhante dos homens nas
Além disso, será observado que este episódio, juntamente com o do Prometeu da
evento maior do poema, o nascimento de Zeus. Uma vez que o mito de Prometeu é um mito
onde o homem está diretamente envolvido, fica evidente que o homem é figura importante na
No que diz respeito ao homem, o mito de Prometeu é o grande ponto de articulação dos
dois poemas. Por isso a segunda seção deste capítulo é inteiramente dedicada a ele e tem o
ousado objetivo de não só articular entre si as versões de cada poema, como também de
investigar as ligações de cada versão com o corpo de seu respectivo poema, caminho que
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Mesmo assim, veremos que na Teogonia, o mito guarda importantes ressonâncias com o
Hino a Hécate. Como mito por excelência sobre a condição humana, lança mão do logro de
Prometeu a Zeus para instaurar a diferença hierárquica entre deuses e homens, subordinando
estes àqueles pela via do sacrifício. O tema do roubo do fogo, também presente em Os
neste poema. A mulher, também presente em ambas as versões, coloca em questão a finitude
humana, que só pode ser contornada, ainda assim como espécie, pela via do matrimônio. A
tomada de consciência desta finitude implica na tomada de consciência dos males como
surgir como a única possibilidade de atenuar os demais males, discussão que é insinuada na
todo o poema. Esperança, ainda que inseparável de Pandora, será estudada em seção exclusiva
O estudo em conjunto das duas versões que Hesíodo apresenta do mito de Prometeu
também traz à tona a ligação muito mais profunda do que se supõe entre este mito e o mito
das raças. Apenas para ser ter uma ideia disso, a menção da aceitação da mulher por
Epimeteu, que ocorre na introdução do Prometeu da Teogonia (v.511-513), já liga este texto
Por isso a transição da Teogonia para Os trabalhos e os dias, tema da terceira e última
seção deste capítulo, nos leva diretamente ao mito das raças. Para contornar esta dificuldade,
uma pequena introdução é dedicada a recuperar alguns aspectos do proêmio deste último
poema, e tece algumas considerações sobre as duas Lutas para que se possa acompanhar mais
20
de perto a marcha do pensamento do poeta. O problema das duas Lutas será visto com maior
que sua leitura suscita. A descrição do modo de vida de cada raça dá a impressão de
apresentar uma história da humanidade, onde nenhuma raça é uma forma modificada da
precedente. O presente não parece ser resultado do passado: uma vez que cada nova raça só é
mito a partir da herança de Jean-Pierre Vernant 5. Disto resultam alguns problemas com os
quais temos de lidar para alcançar a mensagem do mito. O primeiro diz respeito à
temporalidade na sucessão das raças. Seria esta de ordem linear ou cíclica? Em segundo lugar,
temos de resolver o problema da interrupção da queda das raças metálicas provocada pelo
surgimento da raça dos heróis, visivelmente melhor e mais justa do que a raça anterior, de
bronze. Em terceiro lugar, será posta em questão a validade do recurso de Vernant de dividir a
um mito genealógico. Além do mais, preciso ter em mente que a linguagem dos poetas é
estruturada de modo distinto do nosso, operando por meio de “distorções”- διαστροφάς – que
os possibilitam dizer a verdade por meio de “mentiras”. É preciso levar isso em consideração.
5
Cf. Vernant (1990).
6
Cf. Couloubaritsis (1996).
21
Entendemos que este mito não conta a história da origem do homem, mas antes a genealogia
da hýbris. As diferentes hýbrides vão sendo apresentadas ao longo das raças de prata e bronze
e num dado momento elas são integradas no homem. Isto se dá na raça dos heróis que, apesar
disso, é, por ser a raça semidivina que antecedeu a nossa, a que serve de modelo para o
homem da raça de ferro, isto é, a nossa. Isso explica o duplo destino pós-morte desta raça nos
convida a refletir e a “fazer com que a melhor raça dentro de nós prevaleça sobre as
O recurso a Platão, ou melhor, aos usos que Platão faz do mito das raças em República e
em Leis 8, é o assunto da última subseção dedicada ao estudo do mito das raças. Platão, ao
contrário de nós, não interpretou o mito, mas antes “distorceu-o” de um modo que nos
O conjunto formado pelo mito de Prometeu e o mito das raças, onde o primeiro mostra
não só a distância, mas sobretudo o afastamento entre deuses e homens e o segundo mostra o
Hesíodo só pode ser uma tentativa de fornecer ao homem um norte para a ação. Em outras
O quarto e último capítulo, investiga as noções morais de Hesíodo. São elas Díke, a
Justiça, Éris, a Luta, Pónos e Érgon - a Fadiga e o Trabalho, que no fundo são aspectos
distintos da mesma coisa - Elpís, a Esperança, que, como ficará demonstrado, é uma
capacidade humana sujeita à avaliação moral segundo seu uso. Em seguida abordaremos
Aidôs, uma noção moral que cobre um campo tão vasto que torna o termo intraduzível, e por
fim, a Amizade. Ainda que o substantivo abstrato Philía não figure no poema, o phílos é
7
Leis. 645. b1. ὅπως ἂν ἐν ἡμῖν τὸ χρυσοῦν γένος νικᾷ τὰ ἄλλα γένη.
22
descrito em cores vivas, sem, no entanto, remeter a nenhum caso concreto. O phílos é antes
tipificado, o que já é uma abstração que se encaminha para o conceito. Todas estas noções se
integram em Díke. Por outro lado, Díke só se torna minimamente compreensível a partir desta
integração.
É preciso lembrar que esta deusa é filha de Zeus e o último presente de Zeus aos
homens, para que este não se equipare às bestas. O espaço humano fica delimitado pelo que
ele não é: nem deus nem besta. Por ser filha, Díke é uma explicitação do pai. Por ser o último
presente aos homens, é através dela que Zeus quer que o homem se relacione com ele, o
ordenador do cosmos. Desta forma, é possível entender que as noções morais de Hesíodo são
tributárias das verdades que ele nos apresenta ao longo destes dois poemas e é possível
também entrever como a verdade humana de Os trabalhos e os dias guarda uma relação de
23
1. A relação entre filosofia e poesia
É preciso, antes de tudo, ter uma compreensão, a mais ampla possível, do ambiente
intelectual que recebeu e desenvolveu esse mesmo pensamento, isto é, o ambiente intelectual
A primeira seção deste capítulo será dedicada a construir, ainda que em linhas gerais,
uma visão dinâmica do efervescente ambiente de pensamento que atravessou o mundo grego
neste período. Para tanto, será necessário colocar em cheque a concepção de escolas
filosóficas pré-socráticas, que teve sua origem no século XIX. Com isso, até mesmo a visão
A segunda seção apresentará um panorama do legado que a poesia grega deixou para o
pensamento filosófico emergente. Veremos que este pensamento teve de trabalhar com, contra
ou a partir destes poetas, mas jamais sem eles, uma vez que estes davam voz corrente ao
fundo contra o qual qualquer forma de expressão seria contrastada por seus contemporâneos.
trabalhos de peso. No que diz respeito a Hesíodo, autor central da presente investigação,
destacam-se, entre outros, Le métier du mythe. Lectures d’Hésiode, de 1996, organizado por
Fabienne Blaise, Pierre Judet de La Combe e Philippe Rousseau e Plato and Hesiod, de 2010,
Estas obras coletivas estão em perfeita sintonia com o novo olhar que está sendo
cultivado sobre a antiguidade grega e com o qual nossa pesquisa pretende se alinhar. Para dar
conta de explicar o que vem a ser esta nova mirada, lanço mão de dois artigos importantes que
questionam radicalmente o modo com o qual a questão vinha sendo encarada desde o final do
ressaltando que a crença na existência destas instituições é uma visão construída a partir de
Diels, pautada numa concepção demasiado abstrata, e duplamente anacrônica, das instituições
Laks sustenta que ao enfocar aquele período específico o olhar contemporâneo projeta
categorias que não estavam presentes lá e vê uma estrutura organizada de ensino que na
verdade não existia. Além do mais, a existência desta estrutura no período platônico e
alguma medida com elas. Fortalecido por esse reconhecimento, o olhar contemporâneo
9
Laks (2006).
10
Em alemão no original.
25
avança para o chamado período pré-socrático e lá encontra escolas tais como a jônica, a
milésia, a pitagórica, sem levar em conta que as pessoas que participaram daquele fluxo de
debates talvez não se vissem desta forma, isto é, como membros de uma escola e talvez até
nem mesmo reconhecessem a existência das mesmas. Ainda que se leve em conta a existência
de uma escola pitagórica, que parece ser o movimento mais organizado dentre os citados, não
se pode ter como certo que seu principal objetivo fosse o ensino da filosofia, já que os
Lloyd 11é ainda mais radical e, indo além da “desescolarização” de filosofia pré-
socrática, propõe também uma “desdisciplinarização”, ou seja, vai procurar pôr em cheque o
estatuto da própria filosofia que, segundo seu entendimento, só se constitui como tal a partir
de Sócrates. Assim sendo, além de não se poder falar de escolas pré-socráticas, também lhe
se vale é o exame das categorias que os próprios gregos utilizavam, partindo da premissa de
que estes não as empregavam da mesma maneira que é feita hoje em dia. O termo
“philósophos” era empregado, antes de Platão, em um sentido muito amplo, ora com valor
positivo, ora pejorativo e os campos de investigação destes indivíduos eram determinados por
interesses tão particulares que resulta impossível agrupá-los sob outra categoria que não seja a
de sábios, “sophói”, a mais genérica possível, mas que, por outro lado, revela-se a mais
adequada, não só porque era assim que os gregos designavam seus grandes pensadores àquela
época, mas, sobretudo, por ser a mais apropriada para dar conta do verdadeiro caleidoscópio
11
Lloyd (2002).
26
Ainda que esta visão torne problemática a designação desses pensadores como filósofos
pré-socráticos, continuarei, por força da tradição, a referir-me a eles como tal, mas alerto que
sempre que isso acontecer, todas as considerações acima se farão presentes, ainda que de
forma implícita.
Não se deve com isso renunciar à tarefa de dar sentido aos diferentes paradigmas de
empreitada intelectual que estavam em competição neste período, mas, na busca deste sentido,
grande parte destes autores. Em segundo, as relações que estabeleciam entre si são muito mais
complexas do que nossas categorias podem alcançar. Além do mais, nenhuma das atividades
quarto século a.C. Entre a sofística, as matemáticas, a medicina, a história e a sabedoria dos
sábios, existia uma margem de manobra excepcional quanto à sua determinação 12.
Uma coisa é certa: em meio a toda esta indefinição terminológica no que diz respeito
tanto aos distintos campos de saber quanto à categorização dos seus investigadores, apenas
uma classe era amplamente reconhecida e se destacava, como espécie, dentro do gênero dos
A resposta, como era de se esperar, não é tão simples assim. Uma resposta amplamente
aceita é a fornecida por Nightingale, a qual parece ser um ponto de partida apropriado para
12
Cf. Lloyd (2002) p. 53
27
uma reflexão sobre o problema: “A filosofia nasceu em Atenas, no quarto século A.C.,
quando Platão apropriou-se do termo “philosophia” para designar uma nova e especializada
disciplina. 13” Esta disciplina, aos olhos de Platão, consiste na busca da verdade através da
dialética. Entretanto, não se pode descuidar da investigação que Aristóteles faz, no livro I da
Metafísica, acerca dos primórdios da filosofia onde denomina aqueles que, antes dele,
como para o critério por ele adotado para a inclusão de quem quer que seja na categoria de
“filósofo”, isto é, a investigação acerca das causas e princípios 15, cabendo ainda observar que
Aristóteles nomeia a ciência que investiga estes assuntos como “sophia” e não como
filosofia.
Convém lembrar que, numa passagem deste mesmo Livro I da Metafísica, o Estagirita
também declara que aqueles que se dedicaram aos mitos, “philómythoi”, eram, de certa
forma, filósofos 16. Aristóteles confirma a sua disposição em conceder alguma participação
enveredado por esta seara 17, porque ele apontou o Caos como origem de todas as coisas, ainda
outro. No seu entender, o primeiro grupo era composto de contadores de histórias, poetas que
13
Cf. Laks ( 2006) p. 162
14
Aristóteles. Metafísica I.3, 983b 6-8.
15
Idem I.1, 982a 2-3.
16
Idem I.2, 982b 18-19.
17
Idem, I.4, 984b 23-24.
18
Idem, I.3, 983b 20.
28
narravam mitos sobre heróis e deuses e qualquer visão que se pudesse extrair de suas obras
do qual ele aponta Tales como iniciador, estava engajado basicamente no mesmo tipo de
investigação acerca do mundo físico ao qual o próprio Aristóteles se dedicava. Ainda que as
grego arcaico, ainda cabe trazer à baila uma interessante metáfora cunhada por Laks para
descrever a vasta multiplicidade de personagens intelectuais na Grécia antiga, bem como seus
Sócrates; corpos estes constituídos de diferentes matérias, que podem ser referidas aos
campos de investigação abrangidos por cada um destes sábios, no dizer de suas épocas, ou
brilho, e que podem ser referidos tanto ao modo como se expressaram, seja por meio de
poemas, seja por aforismos, diálogos, relatos ou tratados argumentativos, quanto à beleza de
suas obras. Nesta nebulosa, Homero e Hesíodo despontam como corpos de grandeza, matéria
e brilho significativos.
19
Cf. Most (1999) p. 332.
20
Laks ( 2006) p. 166.
29
que finda por lhe conferir um aspecto espiralado, ou piramidal, se preferirem, que leva a um
ápice. O eixo que ordena o movimento da nebulosa dos primeiros filósofos também foi muito
bem apontado por Laks, trata-se da “reflexividade”. Em suas palavras: “Não se trata de uma
diversidade selvagem, mas reflexiva, que supõe tanto linhas de continuidade quanto
reflexivo, isto é, um pensamento que se reconhece como tal e sempre retorna sobre si, com
um pensamento crítico que se dirige para o exterior e que vai lidar com diferenças, ora
assimilando-as, ora separando-as, sem jamais diexar de tê-las como diferentes, mas sempre
explicar o surgimento da filosofia ele separou os que se dedicaram ao estudo da natureza dos
demais sábios e fez destes os primeiros filósofos, assimilando-os ao tema sua própria
investigação. Neste movimento, ele excluiu a ética – campo ao qual ele mesmo também se
apenas estes como os primeiros filósofos, esquecendo que Sócrates tomou exatamente o
vez, é constituída de lembrança e esquecimento do passado, onde todo este processo visa
21
Laks ( 2006) p. 167
30
responder a alguma necessidade presente. Dito ainda de outro modo, o olhar para o passado é
sempre condicionado por uma necessidade do presente. Num mundo que caminha cada vez
um mesmo assunto é cada vez mais bem recebido, é natural que se tente entender o
surgimento da filosofia como uma conversa com a poesia, e não como uma ruptura.
filosofia foi se constituindo, no chamado período pré-socrático, a partir de, com e contra a
poesia. Para fins didáticos, procuremos desmembrar este conceito em três momentos. No
primeiro, abordaremos a leitura ostensiva que a filosofia fez da poesia, quase sempre para
atacá-la. No segundo, procuraremos demonstrar que a pauta dos temas a serem tratados por
este discurso emergente estava largamente condicionada pelo discurso poético. No terceiro
momento, enfocaremos, ainda que superficialmente, como alguns dos que são
Antes de prosseguir, é necessário salientar que esta divisão é artificial e proposta pura e
exclusivamente para lançar um foco de luz sobre a questão. Análises mais aprofundadas sobre
propostos.
31
1.2.1 A filosofia lê poesia.
prestígio que a poesia desfrutava em sua sociedade, teria sido até mesmo irresponsabilidade
por parte deles se não o tivessem feito. Suas considerações a este respeito podem ser
uma disciplina filosófica, a poética. Se a filosofia emergente discutia sobre a poesia, sobre o
divino e sobre o conhecimento, ela já possuía, de forma rudimentar, bom que se frise, uma
poética, uma teologia e uma epistemologia. As visões produzidas acerca da poesia assumiam
desprezo e hostilidade ostensiva. Acima de tudo, a poética dos primeiros filósofos parecia
querer expressar a sua distância com relação à autoridade que estes poetas exerciam na
sociedade grega e, ao explicitar esta distância, visava delimitar o que a poesia podia e o que
ela não podia comunicar. Equivale dizer, de forma implícita, que a filosofia mesma estaria
isenta destes limites. Deste modo, esta leitura ostensiva parece ter funcionado como uma
Esta ofensiva visou, sobretudo, Homero e Hesíodo, que eram vistos na antiguidade
como fontes de onde se poderia aprender não só lendas heróicas e mitos sobre os deuses,
como também padrões de conduta, modelos de discurso e conhecimento prático. Esta visão
resistiu até mesmo ao ataque que foi desferido contra Homero por Platão no seu Íon, onde o
rapsodo do mesmo nome sustentava que Homero era um grande poeta exatamente porque era
um grande médico, profeta e general, ao que Sócrates rebatia dizendo que Homero falava
sobre estes temas por inspiração, sem tem qualquer conhecimento dos assuntos que abordava.
isso se deu porque já estavam profundamente enraizadas na cultura grega. De fato, qualquer
32
criança grega que aprendesse a ler, invariavelmente lia Homero. E muitas liam apenas ele
grandes educadores do mundo grego, o primeiro ao dizer que “no início todos aprenderam
com Homero 22”e o segundo que “Hesíodo é o mestre da maioria dos homens 23”. Mas foram
justamente estes os que proferiram as cargas mais pesadas ainda hoje preservadas contra os
como Hesíodo atribuiram aos deuses tudo/ quanto entre os homens é infâmia e vergonha/
roubar, raptar e enganar mutuamente. 24” Esta crítica perdurou no pensamento grego, uma
vez que ela ressurgiu, quase que nos mesmos termos, na célebre passagem da República
(377c-378d), onde os dois poetas são censurados pelo mesmo motivo e a censura é a base do
O quadro muda sutilmente quando nos voltamos para Heráclito. Tomemos o fragmento
DK 22 B 40: “Muita instrução não ensina, pois a Hesíodo teria ensinado e também a
é digno de ser expulso dos festivais a bastonadas, e Arquíloco, do mesmo modo. 25”
Homero e Hesíodo, citados juntos por Xenófanes e por Platão, são mencionados em
separado por Heráclito. Homero figura junto a outro poeta, Arquíloco, e as bastonadas
22
DK 21 B 10.1. ἐξ ἀρχῆς καθ' Ὅμηρον, ἐπεὶ μεμαθήκασι πάντες ...
23
DK 22 B 57.1. διδάσκαλος δὲ πλείστων Ἡσίοδος·
24
DK 21 B 11. πάντα θεοῖσ᾿ ἀνέθηκαν ῞Ομηρός θ᾿ ῾Ησίοδός τε, / ὅσσα παρ᾿ ἀνθρώποισιν ὀνείδεα καὶ
ψόγος ἐστίν,/ kλέπτειν μοιχεύειν τε καὶ ἀλλήλους ἀπατεύειν. Todas as citações de Xenófanes
obedecerão à tradução de Santoro (2011).
25
DK 22 B 40. πολυμαθίη νόον ἔχειν οὐ διδάσκει·Ἡσίοδον γὰρ ἂν ἐδίδαξε καὶ Πυθαγόρην αὖτίς τε
Ξενοφάνεά τε καὶ Ἑκαταῖον. DK 22 B 42 τόν τε Ὅμηρον> ἔφασκεν <ἄξιον ἐκ τῶν ἀγώνων
ἐκβάλλεσθαι καὶ ῥαπίζεσθαι> καὶ <Ἀρχίλοχον> ὁμοίως. Tradução do autor.
33
reservadas a ambos podem ser entendidas como uma alusão ao bastão distintivo dos poetas 26.
De fato, uma vez que o bastão simbolizava a autoridade para falar 27, era também com o
Koning acrescenta 28, que embora Heráclito mencione Homero e Hesíodo mais vezes do
que todos os demais pré-socráticos somados, em nenhum dos seus fragmentos restantes
Heráclito apresenta Homero e Hesíodo juntos, o que o leva a concluir que para o efésio os
dois não pertenciam à mesma categoria, e que Hesíodo 29 foi agrupado junto com Pitágoras,
Xenofonte e Hecateu por abordar assuntos mais próximos às suas próprias investigações,
Most 30 assinala que o ataque direcionado para Hesíodo fez deste um rival mais sério aos
denuncia que Hesíodo acreditava que dia e a noite eram coisas distintas, sem saber que ambos
eram o mesmo e, em outra passagem 32, reprova Hesíodo por dizer que uns dias eram bons e
outros nefastos, ignorando que todos os dias têm exatamente a mesma natureza. De fato,
Hesíodo os via como coisas distintas, já que tinha listado o Dia como filho da Noite e esta
como filha do Caos nos versos 123 e 124 da Teogonia, e tinha também apresentado um
catálogo de dias benfazejos e nefastos na última seção de Os Trabalhos e os Dias, versos 765
a 826.
26
Cf. Koning (2010) p.179 e nota 79.
27
Cf. Teog. 30-34.
28
Cf. Koning (2010) p.179 nota 80.
29
Koning ainda observa que Hesíodo foi nomeado primeiro e a alguma distância dos demais -
formulação que procurei preservar na minha tradução - como uma espécie de deferência a Hesíodo.
Cf. Koning (2010) p. 180, nota 87.
30
Cf. Most (1999) p.338.
31
DK 22 B 57. διδάσκαλος δὲ πλείστων Ἡσίοδος· τοῦτον/ ἐπίστανται πλεῖστα εἰδέναι, ὅστις ἡμέρην
καὶ/ εὐφρόνην οὐκ ἐγίνωσκεν· ἔστι γὰρ ἕν.
32
DK 22 B 106. <Ἡσιόδωι> τὰς μὲν ἀγαθὰς ποιουμένωι, τὰς δὲ φαύλας, ὡς ἀγνοοῦντι φύσιν ἡμέρας
ἁπάσης μίαν οὖσαν.
34
A sutileza do quadro já nos dá um direcionamento para a abordagem do problema: na
antiguidade, o poeta era tido com frequência na conta de filósofo, ainda que de forma mais
implícita do que explícita. Este enquadramento talvez fique mais visível quando se leva em
conta o modo como tanto Platão quanto Aristóteles comparam Hesíodo àqueles que hoje
Xenófanes e Empédocles, enquanto Homero está frequentemente ausente das listas dos
Conforme já vimos, Xenófanes atacou Homero e Hesíodo e foi atacado por Heráclito
num pronunciamento que pode ser considerado emblemático deste ambiente agônico: o que se
atacando um poeta, um religioso com incursões pela matemática e pela filosofia, um filósofo
poeta e um historiador. Mas àquela época, a única categoria que era incontestavelmente
reconhecida era a do poeta. Além do mais, os campos de interesse das hoje distintas áreas de
O duplo ataque recebido por Hesíodo não é casual: sendo a poesia o único campo de
saber constituído e reconhecido pela cultura grega, tanto Xenófanes quanto Heráclito parecem
estar procurando cavar para eles mesmos, e não já para a filosofia ou para uma escola
cenário cultural grego do que com uma crítica à poesia propriamente dita. Foi só no quinto
33
Cf. Koning (2010) p.165.
35
século que um filósofo – Demócrito – desenvolveu uma teoria poética, infelizmente perdida.
Diógenes Laércio nos fala de obras atribuídas a ele, tais como A arte das Musas, Acerca da
poesia e Sobre o ritmo e a harmonia. Tudo indica que a ênfase destas obras recaia sobre o que
composição poética 34. Esta teoria pode ter sido desenvolvida para equilibrar as expectativas
intelectuais de seu tempo com aquilo que os poetas mais antigos declaravam ser a fonte de seu
conhecimento e habilidades. Platão parece ter se apropriado desta teoria para concluir que os
poetas não podiam prestar contas daquilo que afirmavam conhecer 35.
Assim, alguns dos filósofos arcaicos gregos lançaram os fundamentos de uma das mais
a uma inspiração irracional inexplicável. Mas, por outro lado, outros também prepararam as
bases para uma medida recuperativa que protegeu os poetas deste mesmo ataque: a
interpretação alegórica.
A origem desta linha interpretativa é imprecisa. Sabe-se que certamente surgiu como
resposta aos ataques desfechados contra Homero e Hesíodo por alguns pensadores do VI
século AC. O enorme prestígio que os poetas desfrutavam motivou alguns admiradores a
atacavam, procurando um sentido profundo que estaria escondido por trás do sentido literal de
seus poemas.
Entretanto, o termo “alegoria” é mais recente do que a técnica interpretativa que ele
veio a nomear. Tendo surgido já no século I aC, ἀλληγορία, que significa “dizer de outro
modo”, veio a substituir o que desde antes de Platão e Aristóteles era chamado de ὑπονοία. A
34
Cf. DK 68 B 17.
35
Cf. Íon. 534 a-d.
36
decomposição deste termo, por sua vez, resulta em algo como “sob” (ὑπο) “o pensamento”
(νοία), dando a entender que já era antiga a sensação de que existe um significado velado no
discurso poético, e que este significado já estava presente desde a sua composição,
“supõe” – esta é uma boa tradução para hypónoia – de um lado, uma expressão alegórica
convertida em imagem pelo poeta e, de outro lado, a existência de alguém que se encarrega de
reconstituir a ideia a partir da imagem, num processo interpretativo que pode ser chamado
alegorese. Supõe também o intuito, por parte do emissor deste discurso, de deixar à margem a
representa um enorme perigo, na medida em que esta massa de gente está fadada, já que
incompetente, a tomar o discurso poético pelo seu sentido literal, e não pelo figurado. Daí, um
corolário paradoxal: o mito só entrega sua verdade à filosofia e neste movimento, a filosofia
Vista por este prisma, a questão primordial consiste, antes de tudo, em determinar se o
discurso foi composto com esta intenção de ocultar seu significado de uma determinada
Em primeiro lugar, porque, como é amplamente reconhecido, nosso poeta parece ter
visado um público extremamente amplo. Sua Teogonia articulou diversas divindades, muitas
delas locais, num conjunto que abrangeu todo o mundo grego e num movimento que, se não
deu aos gregos o sentimento de unidade política, certamente contribuiu sobremaneira para a
36
Cf. Sorel (2000) pag. 10-15.
37
construção de uma identidade cultural. Além disso, como já vimos, Heródoto, Xenófanes e
Em segundo lugar, seu pensamento foi expresso de um modo próprio, que certamente
era bastante acessível para os de seu tempo, e não de outro modo. Se ele veio a parecer
estranho aos posteriores, a nós, o que nos cabe é tentar empreender a maior aproximação
possível - ainda que já sabendo, de antemão, ser isto impossível - deste modo próprio de
pensar.
mundo, coisa que, por si só, já merece uma investigação inteiramente direcionada para este
tema. Embora esta questão não seja diretamente abordada neste trabalho, uma vez que este
tem seu foco na construção de um discurso propriamente humano na obra do poeta, a partir
das suas duas verdades, esta afirmação funcionará sempre como premissa subjacente.
Já em Os Trabalhos e os Dias, se tomarmos Díke e as demais noções morais que lhe são
associadas, sejam elas divinizadas, como as duas Érides e também Aidôs e Nêmesis, seja
vagamente personificada, como Elpís, ou ainda, noções que não receberam nenhum
personificação, como hýbris e thársos, esta última traduzida por audácia do verso 319 37 e que
será estudada junto com Aidôs no último capítulo, veremos que não há nenhum sentido oculto
a ser resgatado, mas antes, uma expressão que precisa ser traduzida em termos atuais, tarefa
esta que pode e deve ser realizada a partir da leitura do próprio texto do poema.
37
Trab. 312. αἰδώς τοι πρὸς ἀνολβίῃ, θάρσος δὲ πρὸς ὄλβῳ.
Timidez vai com a pobreza, a audácia vai junto à riqueza.
38
Neste sentido, e apenas para dar uma indicação de como a questão será tratada, Díke, na
medida em que foi dada por Zeus aos homens 38, é o modo determinante da relação dos
homens com Zeus 39. E isto está dito de modo reto, não de outro modo.
Cabe lembrar que esta deusa é uma criação hesiódica, ausente no panteão homérico, que
não se presta para nenhuma interpretação física, já que não só não recebe nenhuma descrição
física, como também não dirige sua voz aos mortais, e sim a Zeus. Isto também é válido para
Aidôs e Nêmesis 40, igualmente divinizações do poeta, que tal como os três vezes inumeráveis
guardiões imortais 41 , vestem-se de ar, o que vale dizer, têm o corpo escondido, são invisíveis.
Tampouco Díke é uma alegoria moral, na medida em que não há outro sentido a ser captado
por intérpretes especializados. Tudo está dito, ainda que numa dicção mais antiga, de forma
ostensiva.
38
Trab. 276-279. τόνδε γὰρ ἀνθρώποισι νόμον διέταξε Κρονίων,/ ἰχθύσι μὲν καὶ θηρσὶ καὶ οἰωνοῖς
πετεηνοῖς/ ἔσθειν ἀλλήλους, ἐπεὶ οὐ δίκη ἐστὶ μετ' αὐτοῖς·/ ἀνθρώποισι δ' ἔδωκε δίκην,
Pois o Cronida dispôs aos homens a lei/ Aos peixes, às feras e às aves aladas,/ que se devorem. Justiça
não há entre eles./Aos homens, sim, deu a Justiça.
39
Trab.258-263. καί ῥ' ὁπότ' ἄν τίς μιν βλάπτῃ σκολιῶς ὀνοτάζων,/ αὐτίκα πὰρ Διὶ πατρὶ καθεζομένη
Κρονίωνι /γηρύετ' ἀνθρώπων ἀδίκων νόον, ὄφρ' ἀποτείσῃ/δῆμος ἀτασθαλίας βασιλέων οἳ λυγρὰ
νοεῦντες/ἄλλῃ παρκλίνωσι δίκας σκολιῶς ἐνέποντες./ταῦτα φυλασσόμενοι, βασιλῆς, ἰθύνετε μύθους.
E há ainda justiça, virgem engendrada por Zeus,/ honrada e cantada pelos deuses de Olímpia
morada./Quando alguém a ultraja, ou desdenha ou debocha,/ corre para junto do pai Zeus Cronida,
toma assento/ e denuncia a mente dos homens injustos para que pague/ o povo a loucura dos reis que
tramam vilezas/ e deturpam as transações com palavras esquivas.
40
Trab. 197-200. καὶ τότε δὴ πρὸς Ὄλυμπον ἀπὸ χθονὸς εὐρυοδείης/ λευκοῖσιν φάρεσσι καλυψαμένω
χρόα καλὸν/ ἀθανάτων μετὰ φῦλον ἴτον προλιπόντ' ἀνθρώπους/ Αἰδὼς καὶ Νέμεσις· τὰ δὲ λείψεται
ἄλγεα λυγρὰ.
Então. Para o Olimpo, desde a terra vasta,/belo corpo escondido em brancas vestes,/ à tribo dos
imortais irão, abandonando os homens,/ Pudor e Partilha. Só restarão tristes pesares.
41
Trab. 252-255. τρὶς γὰρ μύριοί εἰσιν ἐπὶ χθονὶ πουλυβοτείρῃ/ἀθάνατοι Ζηνὸς φύλακες θνητῶν
ἀνθρώπων,/ οἵ ῥα φυλάσσουσίν τε δίκας καὶ σχέτλια ἔργα/ἠέρα ἑσσάμενοι, πάντη φοιτῶντες ἐπ'
αἶαν.(Três vezes inumeráveis são sobre a terra fecunda/os imortais de Zeus, guardiães dos homens
mortais/ que vigiam as trocas e obras malsãs/ vestidos de ar, varrendo toda a amplidão.
39
Como acontece com os grandes artistas, Homero e Hesíodo formaram um gosto e este
gosto contribuiu para determinar a pauta de temas a serem discutidos por seus sucessores. Por
causa disto, seus herdeiros intelectuais tiveram de satisfazer alguns critérios, sobretudo em
suas reflexões sobre o cosmos, que mantinham uma afinidade espantosa com as principais
características das obras de Homero e Hesíodo. Por mais inovadoras que fossem suas
questões, eles permaneceram em muitos casos bastante fiéis a padrões da poesia arcaica no
que diz respeito aos assuntos abordados, observando os requisitos básicos daquilo que podia
aparecer como resposta satisfatória. Esta semelhança não parece ter sido casual. Deve antes
presentes em textos posteriores, já que estes traços compartilhados nos permitem acessar as
reação posterior do movimento da filosofia contra a poesia. Segundo o autor, estes fatores são
1.2.2.1 Veracidade
Por mais que nos quedemos admirados com a imaginativa originalidade e beleza
daqueles poemas, para Homero e Hesíodo, eles mesmos, o ponto que realmente importava era
assegurar que o conteúdo de suas obras fosse recebido de forma inconteste. Em outras
42
Cf Most (1999) 342-350.
40
O conceito de verdade é coisa de extrema importância em todos os níveis da
comunicação humana, desde a conversa mais corriqueira até as mais profundas investigações
real. 43”
O iniciado foi, em última análise, a primeira garantia de verdade, na grande maioria das
culturas, que o homem conseguiu para si, já que a voz do iniciado é o veículo da palavra
Koning os apresenta como legisladores e acrescenta que este status foi incutido pelos
próprios poetas na mente dos gregos 44. O recurso à autoridade das Musas permitia que o
relato de um evento ocorrido num passado remoto ou num presente afastado no espaço fosse
ele mesmo, no entanto, não saberia; opinião é o que se cria sobre tudo.
καὶ τὸ μὲν οὖν σαφὲς οὔτις ἀνὴρ ἴδεν οὐδέ τις ἔσται
43
Levet (1976) p.1.
44
Cf. Koning (2010.1) p.62-70.
41
E agora o texto DK 21 B 35:
Ambos os textos carregam uma crítica onde os nomes de Homero e de Hesíodo estão,
gregos neste assunto. No segundo devido à menção de uma fala que se assemelha à realidade
das coisas, onde o verso parece ter sido decalcado sobre versos de Homero e de Hesíodo. De
fato, em Odisséia 19. 203, o narrador homérico comenta a fala de Odisseu, disfarçado em
mendigo, a Penélope:
Mas enquanto os versos de Homero e de Hesíodo referem a alguém que sabe dizer
mentiras – que é apenas uma das possíveis traduções para ψεύδεα - e, em seus respectivos
contextos, é sabido que as personagens envolvidas, Odisseu e as Musas, também podem dizer
verdades, o tom dos fragmentos aqui em visitados deixa como problemática a possibilidade
mesmo de se dizer e de se conhecer a verdade 46. Esta reticência é reforçada pela presença de
45
A tradução dos versos de Xenófanes respeita a de Santoro (2011), com pequena modificação
assinalada em itálico para o fragmento 35.
46
Não levaremos em conta aqui a discussão sobre se Xenófanes era também cético com relação à sua
própria fala, o que é motivo para outros estudos.
42
opinião - δόκος; δεδοξάσθω – em ambos os textos, o que parece apontar para um limite para o
conhecimento humano.
aqui, bem como todos os demais filósofos, seguirão investigando os limites do conhecimento
todos estes o fizeram por meio de formulações poéticas. Esta questão da formulação poética
do discurso será abordada na próxima seção. Por hora, basta reter que a veracidade do
discurso sempre foi uma preocupação constante de todos os componentes da nebulosa pré-
socrática.
Mais tarde, Sócrates vai subsumir beleza e persuasão, as principais forças expressivas
Os assuntos que Homero e Hesíodo tratavam não eram temas menores para os gregos.
Ali estavam concentradas as matérias mais importantes para suas comunidades. Para a épica
heróica, a guerra era a forma suprema de interação humana. Os dois poemas de Homero
tratavam da guerra, focando em dois heróis que formam duas histórias complementares. Estas,
juntas, contêm as mais altas possibilidades de realização da vida humana. Aquiles morreu
jovem, distante de casa, em nome da glória, o valor máximo da ética heróica. Odisseu ficou
famoso exatamente pela sua habilidade em sobreviver e retornar a casa para restaurar sua
família e seu reino. Um era forte e veloz. O outro era astuto e mestre da palavra.
Hesíodo tece, na Teogonia, uma complexa teia de divindades aí vistas não só nas suas
43
desde os seus primórdios de luta e violência até a conquista do reino ordenado e justo do
kósmos de Zeus, a quem todos os poderes estão sujeitos, já que o Cronida estabeleceu a
que, cedo ou tarde, pune a violência, mesmo que por vezes a cidade inteira pague por conta de
um só.
A verdade que os filósofos proclamam saber não é qualquer verdade, mas a verdade
essencial, sobre as coisas que fazem este mundo ser como é. Neste sentido, stoichéa não são
quaisquer elementos, mas os elementos essenciais, sem os quais o mundo não seria o que é.
reduzido: princípios essenciais devem ser um ou poucos, para justificar seu privilégio. Tales
ao propor a água, não deixou de pagar um tributo a Homero, que já tinha apresentado Oceano
como princípio de todas as coisas, e a Hesíodo, que tinha feito de Styx o juramento dos
estabelecer um número mínimo de causas como foi o caso de Aristóteles, com suas quatro
causas 47.
Já vimos que a poesia oral podia funcionar como uma vasta enciclopédia que continha
oral, este material só podia ser apresentado em episódios relativamente breves. Homero e
Hesíodo, talvez assimilando a nova técnica da escrita, conseguiram criar um tipo de obra que
agrupava um material muito mais vasto do que até então se tinha conseguido.
47
Cf. Met.A.3.
44
Homero toma episódios breves como ponto de partida para a composição de seus
poemas, a ira de Aquiles para a Ilíada e o retorno da Odisseu para a Odisséia, mas consegue, a
partir daí, inserir em suas narrativas outros episódios, provavelmente herdados da tradição
oral, e construir um conjunto de obras que articula todas as instâncias da vida humana.
Hesíodo, com seu complexo sistema genealógico da Teogonia, colocou em relação várias
divindades locais admitidas nas diferentes regiões do mundo grego e as fez convergir para
uma origem comum, conforme atestam os versos 116 a 122 deste poema. Em Os Trabalhos e
os Dias, tomou a ordem (kósmos) estabelecida por Zeus como norte para a ação humana e, a
partir desta ordem, discorreu sobre todas as atividades humanas, mostrando que estas podem e
devem estar em concordância com a lei divina. A maestria dos dois poetas em articular
conteúdos à primeira vista desconexos garantiu ao conjunto da obra uma visão de todo que se
mostrou tão fundamental que fez com que os dois fossem reconhecidos como os pilares da
Seus herdeiros imediatos parecem ter adotado uma estratégia semelhante, reduzindo o
número de princípios ou causas e procurando explicar com eles o maior número possível de
eventos. Com isso eles se permitem apresentar uma ou poucas coisas como controladoras e
produtoras de tudo o que há. Assim sendo, e apenas para citar alguns, Anaximandro postulou
Empédocles disse que tudo o que existe provém do fogo, do ar, da terra e da água, que
45
1.2.2.4 Narrativa temporal
No que concerne à narrativa temporal, Homero faz uso de diversos recursos estilísticos,
mundo a uma estrutura temporal, contando-a como uma sucessão de gerações de deuses que
são apresentados de forma dinâmica, descrevendo as relações estabelecidas entre eles, seja de
Dias, é nos mitos de Prometeu e das raças que Hesíodo vai lançar mão da temporalidade
linear para explicar que a presente condição humana tem uma história, coisa que nos permite
dar uma resposta a uma pergunta essencial do homem: quem somos, de onde viemos e para
onde vamos. Por outro lado, a seção dos trabalhos é regida pela circularidade das estações do
ano, já que este trecho do poema começa e acaba com a estrela Sírius ocupando a mesma
posição no céu.
A tendência dos primeiros fisiólogos para uma narrativa temporal era orientada pela
busca pelo princípio, pelo arché. Este é um dos aspectos onde eles seguiram mais de perto a
lição herdada da poesia: para dizer o que uma coisa é, é necessário dizer como ela ocorreu
A despeito de toda esta sensibilidade no que toca a estrutura narrativa, a épica grega
já foi descrito, ambos os poemas de Homero tocam um único tema, apresentados já nos
46
primeiros versos de cada um, a ira de Aquiles e o retorno de Odisseu. Os indícios de uma
organização formal em maior escala e de subordinação rigorosa das demais partes ao tema
central são tão escassos e sutis que muitos eruditos nem sequer se deram conta deles. A Ilíada
não termina com o fim da ira da Aquiles contra Agamêmnon, mas se prolonga, dirigindo-se
contra Heitor e se estende até a reconciliação parcial do herói com Príamo, incluindo, no
progressão do pensamento de uma seção para outra, e, em muitos casos, de um verso para
outro é por vezes tão difícil de determinar, que muitos estudiosos foram levados a crer que
lógica.
habilidade de Homero e Hesíodo de, verso a verso, fazer uso inventivo e original do acervo de
versos formulares, bem como de adequar velhas e novas palavras ao rígido limite do verso
heróico levava ao ouvido treinado a justa mistura de familiaridade com o toque de surpresa
natureza fragmentária destes textos, encontramos suas doutrinas formuladas acima de tudo
por meio de proposições individuais. O maior exemplo disso é, sem sombra de dúvida,
Heráclito, cujos textos que nos chegaram são dotados de enorme força expressiva, mas não se
pode desprezar, de modo algum, o irresistível chamado de Parmênides, quando este nos
convida a investigar os caminhos do ser. Estes textos parecem funcionar com a mesma força
47
autônoma de alguns versos de Hesíodo, como “a metade é maior do que o todo 48” ou
desta escolha, num momento onde a escrita em prosa já estava bem estabelecida e já tinha se
mostrado mais adequada para o discurso filosófico, ainda é uma dificuldade interpretativa
bastante significativa.
Uma explicação possível é a pretensão de caráter lato daquele discurso. Como já vimos,
foi só no quarto século a.C., com o estabelecimento das escolas filosóficas de Atenas, que a
independente e começou a travar um diálogo mais fechado entre aqueles que a ela se
dedicavam. Os pensadores anteriores a este período falavam e escreviam não só uns para - ou
contra - os outros, como também para toda a sociedade. Em outras palavras, o sentimento de
tempo era muito forte e isso deve ter influído bastante na formulação e na expressão de seus
pensamentos.
como Anaximandro, parece ter servido para a construção de suas próprias imagens e o
resultado é que, ainda que eles quisessem afirmar-se, cada um deles, como os porta-vozes
de um novo tipo de saber, a poesia e os poetas nunca deixaram de ser o pano de fundo a
48
Trab. 40. νήπιοι, οὐδὲ ἴσασιν ὅσῳ πλέον ἥμισυ παντὸς
49
Trab. 694. μέτρα φυλάσσεσθαι· καιρὸς δ' ἐπὶ πᾶσιν ἄριστος.
48
partir do qual eles construíram seus discursos. Não é o momento, aqui, de apresentar uma
análise detalhada do pensamento de cada um, mas antes de mostrar que a formulação e a
expressão de suas questões permaneceu largamente atrelada à forma poética. Aquilo que
chegou a ser considerado como uma ruptura com o mito e a poesia, parece antes ter sido
um continuum.
Ainda que Anaximandro tenha escrito em prosa, sua dicção foi descrita por Simplício
(In phys. 24.13) como altamente poética. De fato, ele fazia uso frequente dos símiles
homéricos. Apenas para citar um exemplo, descreve o sol como “um círculo de fogo
semelhante à roda de uma carruagem, com um furo semelhante ao bocal de um fole.” (Aécio
corriqueiras facilita a compreensão e desencanta o mundo, coisa que , mais tarde a filosofia
Heráclito teve o cuidado de formular seus pensamentos numa linguagem que trouxe
da poesia tradicional os meios efetivos de expressão para torná-la mais plausível. Seus
aforismas parecem funcionar com a mesma força autônoma de alguns versos de Hesíodo e
de Homero.
Platão, mais do que todos, fez uso de diversas estratégias oriundas da poesia para
comunicar seu pensamento, seja criando mitos, como o da caverna na República, ou ainda o
da parelha alada, no Fedro, seja adaptando algum já existente, como o mito das raças em
isento de influência do discurso poético, mas isso não quer dizer que o estagirita estivesse
50
Ver adiante, terceiro capítulo.
49
alheio às questões levantadas pela poesia. Além da sua Poética, as diversas citações poéticas
que ele faz em sua obra, notadamente em Ética a Nicômaco, são testemunhos disso.
O exame de como alguns filósofos lidaram com dois tópoi poéticos fortemente
conhecido e dispensa apresentação. Uma vez que retornarei à questão adiante, basta, para o
momento, lembrar que Homero e Hesíodo o empregaram desde o primeiro verso de cada um
de seus principais poemas, sendo que em Hesíodo, “Musas” é mesmo a primeira palavra de
ambos.
recebeu a inspiração para o canto, estava apartado dos homens, pastoreando suas ovelhas nas
encostas do monte Hélicon 51. Quanto a Homero, ele mesmo nunca se afasta dos homens, mas
Ulisses o faz, tanto na descida ao Hades, quanto no episódio do canto das Sereias, onde ele
ordena a seus companheiros para taparem-se os ouvidos para que só ele ouvisse o relato. Este
tópos parece querer reforçar que o conhecimento não é algo acessível a todos, mas apenas a
alguns.
Xenófanes rejeita ambos os tópoi radicalmente. Rejeita a separação dos homens, não
como figura de linguagem, mas como ação: ele jamais se afastou dos homens. Ao contrário,
51
Teog. 22-23. αἵ νύ ποθ' Ἡσίοδον καλὴν ἐδίδαξαν ἀοιδήν,/ ἄρνας ποιμαίνονθ' Ἑλικῶνος ὕπο
ζαθέοιο.
50
passou mais de setenta anos cantando entre eles 52. Uma vez que ele se apresentava como um
peregrino, deve ter sido oportuno para ele lançar mão da poesia, mas o fez separando-a de
suas raízes divinas por meio de seu ceticismo e de sua crítica moral, para apresentar seu
pensamento no seio das competições poéticas nas cidades que visitava. A inspiração como
fonte do conhecimento é posta em cheque: “Os deuses de início não mostram tudo aos
Hesíodo resultaram na visão de uma representação de deuses imorais. Por conta disso, ele
antropocentrismo que a este se segue, o que vem à tona é, conforme vimos há pouco, a
O tema do afastamento dos homens também está presente em Heráclito, sob forma de
ação: o efésio procurou afastar-se do convívio dos homens, o que certamente contribuiu para
Entretanto, sua obra não está isenta de influência mitopoética, não só na forma,
conforme atesta o seu estilo oracular, como também no conteúdo. Neste quadro, ele reconhece
que a comunicação verbal entre deuses e homens é possível, ainda que problemática; o senhor
52
DK 21 B 8. ἤδη δ' ἑπτά τ' ἔασι καὶ ἑξήκοντ' ἐνιαυτοὶ/ βληστρίζοντες ἐμὴν φροντίδ' ἀν' Ἑλλάδα
γῆν·
53
DK 21 B 18. οὔ τοι ἀπ' ἀρχῆς πάντα θεοὶ θνητοῖσ' ὑπέδειξαν,/ ἀλλὰ χρόνωι ζητοῦντες
ἐφευρίσκουσιν ἄμεινον.
54
DK 22 B 93. ὁ ἄναξ, οὗ τὸ μαντεῖόν ἐστι τὸ ἐν Δελφοῖς, οὔτε λέγει οὔτε κρύπτει ἀλλὰ σημαίνει.
51
Vimos então que tanto em Xenófanes quanto em Heráclito o mito e a poesia
ambos os casos, estes não foram estruturantes de suas obras. Ainda que incorporando temas e
formas expressivas poéticas, estes pensadores puseram em marcha uma verdadeira máquina
de guerra contra os poetas, se bem que, no caso particular de Heráclito, ele atacou igualmente
o status destes elementos é um dos problemas filosóficos cruciais apresentados pelo poema,
coisa que tem sido ignorada pela tendência, ainda hoje persistente, de separar mito e lógos,
tendência esta que ignora que tanto um quanto outro são expressões da mesma dificuldade: a
conta o encontro com a deusa que diz que é preciso que “te instruas: tanto do intrépido
verdadeira. 56” Na segunda parte, a deusa discorre sobre a natureza da única via de
escolha (κρíσις) entre as duas vias possíveis de investigação, o caminho do ser e o caminho do
não-ser.
Há dois aspectos, para o que interessa este trabalho, a serem salientados. Primeiro, que
este núcleo está formulado sob os conceitos retóricos da persuasão (πειθώ) e de sua
55
Cf. Morgan (2000) p.67.
DK 28 B 1.28-30. χρεὼ δέ σε πάντα πυθέσθαι/ ἠμὲν Ἀληθείης εὐκυκλέος ἀτρεμὲς ἦτορ/ ἠδὲ βροτῶν
56
caminho da persuasão, e esta acompanha a verdade 57, enquanto o caminho do que não é não
pode ser objeto de investigação porque o que não é não pode ser nem conhecido nem dito 58.
Além do mais, se o que não é não admite pensamento ou expressão, ele é incapaz de
persuadir. Desta forma, ele é desprovido da consequência primária da verdade, qual seja, a
persuasão.
assim como Díke, Elpís e Aidôs em Hesíodo 59. Uma acompanha a verdade e a outra afasta a
Necessidade mantém [o ser] nas amarras do limite (B8. 30-31). Estas personificaões estão
resultando num meio extremamente eficaz de comunicar os rigores das articulações lógicas
57
DK 28 B 2.4. Πειθοῦς ἐστι κέλευθος (Ἀληθείηι γὰρ ὀπηδεῖ).
58
DK 28 B 2.5-8. ἡ δ' ὡς οὐκ ἔστιν τε καὶ ὡς χρεών ἐστι μὴ εἶναι,/ τὴν δή τοι φράζω παναπευθέα
ἔμμεν ἀταρπόν·/ οὔτε γὰρ ἂν γνοίης τό γε μὴ ἐὸν (οὐ γὰρ ἀνυστόν)/ οὔτε φράσαις.
59
Por personificações, entendemos forças que agem no homem e que são hipostatizadas, no quadro da
expressão mítica, o que, de certa maneira, dá a entender que o homem foi arrebatado por uma força
exterior que o levou a agir de determinada forma. Algumas destas personificações ganham
representações antropomórficas, como é o caso de Afrodite, Diónisos e muitos outros. Outras são
rarefeitas, diáfanas, como Díke (Trab.223), Aidôs e Nêmesis (Trab.198), que são descritas por
Hesíodo como vestidas de ar, ou ainda Elpís e os males contidos no pote de Pandora, dos quais
Hesíodo não nos dá nenhuma descrição positiva, limitando-se a dizer que agem em silêncio, pois Zeus
privou-lhes da voz (Trab.104). Não tentaremos estabelecer por que algumas destas personificações são
mais concretas do que as outras, tarefa que nos parece ser mais impossível do que desnecessária. Por
outro lado, quando nos damos conta de que a hýbris não recebeu, por parte de Hesíodo, nenhum tipoo
de personificação, percebemos que há aí um contraste importante: por não ser personificada, hýbris
não pode ser externa ao homem, o que nos convida a pensar que o poeta a tinha na conta de uma força
interna, essencial, contra a qual o homem tem que se bater para alcançar a vida boa. Retornaremos a
isto quando tratarmos do mito das raças.
53
O tema do afastamento dos homens aparece duas vezes. No proêmio ele é mais evidente
e já aparece mesmo no primeiro verso (DK B 1.1), com uma diferença significativa com
relação a Hesíodo: agora é o homem quem se desloca até a deusa, e não a deusa quem vem até
ele. O texto do proêmio mostra que houve esforço e mérito da parte do narrador. Desta forma,
a acolhida da deusa é justificada, num claro contraste à escolha voluntariosa das Musas de
Hesíodo, quando estas resolveram ensinar-lhe o canto nas encostas do Hélicon. A segunda
aparição deste tema ocorre na apresentação das duas vias de investigação 60. Aqui, pela
explicitado: o narrador se afasta da maioria dos mortais porque estes pensam de forma
confusa, igualando ser e não-ser. Este motivo será repetido por Platão no mito da caverna,
mas em Parmênides este afastamento só se deu porque foi mediado por divindades que são ao
O tema da inspiração foi modificado para revelação. Em vez do poeta falar com a voz
das Musas, ou destas falarem por seu intermédio, o narrador do poema ouve a fala da deusa.
Por isso, Koning entende que Parmênides estava ciente das críticas que seus
antecessores já tinham lançado contra Hesíodo. Assim, ele transformou o tópos da iniciação
60
DK 28 B 6.3-9. πρώτης γάρ σ' ἀφ' ὁδοῦ ταύτης διζήσιος <εἴργω>,/ αὐτὰρ ἔπειτ' ἀπὸ τῆς, ἣν δὴ
βροτοὶ εἰδότες οὐδὲν/πλάττονται, δίκρανοι· ἀμηχανίη γὰρ ἐν αὐτῶν/ στήθεσιν ἰθύνει πλακτὸν νόον·
οἱ δὲ φοροῦνται/ κωφοὶ ὁμῶς τυφλοί τε, τεθηπότες, ἄκριτα φῦλα,/ οἷς τὸ πέλειν τε καὶ οὐκ εἶναι
ταὐτὸν νενόμισται/ κοὐ ταὐτόν, πάντων δὲ παλίντροπός ἐστι κέλευθος.
Pois afasta-te desta primeira via de investigação/ em seguida daquela em que os mortais que nada
sabem/forjam, bicéfalos; pois despreparo guia em frente/ em seus peitos um espírito errante; eles são
levados,/ tão surdos como cegos, estupefatos, hordas indecisas,/ para os quais o existir e o não ser
valem o mesmo/ e não o mesmo, de todos o caminho é de ida e de volta.
61
Cf. Koning (2010) p.181-183.
54
As opiniões dos mortais são apresentadas como distintas da verdade 62, numa nítida
reação à crítica de Xenófanes. Mas Parmênides não é um cético. Sua deusa lhe ordena que se
instrua sobre todas as coisas, isto é, tanto a verdade, coisa impossível para Xenófanes, quanto
determinar às pessoas sobre quais assuntos elas deviam se instruir, o que vai contra a visão do
efésio de que elas devem investigar por si próprias. Parmênides parece responder a esta crítica
Outro pensador a ser visitado com relação às figuras que estamos tratando é
Empédocles.
Resumindo ao máximo o teor da sua doutrina, seu mundo é constituído por quatro
elementos – ou raízes: ar, terra, fogo e água, que se combinam e se separam incessantemente
As forças de união e de separação são chamadas por ele Amor (Φιλία) e Discórdia
(Νεῖκος), respectivamente. Amor une elementos distintos num arranjo harmonioso que
Discórdia penetra na Esfera, abalando esta unidade e precipitando a separação. Das partes
mas é provável, embora não fique claro a partir dos fragmentos remanescentes de sua obra,
62
DK B 1.30. ἠδὲ βροτῶν δόξας, ταῖς οὐκ ἔνι πίστις ἀληθής.
63
DK 28 B 7. οὐ γὰρ μήποτε τοῦτο δαμῆι εἶναι μὴ ἐόντα·/ ἀλλὰ σὺ τῆσδ' ἀφ' ὁδοῦ διζήσιος εἶργε
νόημα/ μηδέ σ' ἔθος πολύπειρον ὁδὸν κατὰ τήνδε βιάσθω,/ νωμᾶν ἄσκοπον ὄμμα καὶ ἠχήεσσαν
ἀκουήν/ καὶ γλῶσσαν, κρῖναι δὲ λόγωι πολύδηριν ἔλεγχον/ ἐξ ἐμέθεν ῥηθέντα. μόνος δ' ἔτι μῦθος
ὁδοῖο/ λείπεται ὡς ἔστιν· ταύτηι δ' ἐπὶ σήματ' ἔασι
Pois isto não, nunca hás de domar não entes a serem;/ mas o que pensas, separa desta via de
investigação;/ nem o hábito multitudinário desta via ao longo te force/ a vagar o olhar sem escopo e
ressoar ouvido/ e língua, mas discerne pela palavra a litigiosa contenda por mim proferida.
55
que haja também grandes ciclos de união e de separação, fazendo com que o universo seja
O problema é que a vida dos homens é curta demais para acompanhar todo este eterno
movimento de união e separação dos elementos. Daí resulta que os pensamentos dos homens
são confusos, na medida em que tomam a pequena parte que experimentam pelo todo. Isto se
de comunicar-lhes a verdade.
Para tanto, lançou mão, além de outros recursos como o símile 64 e dos motivos do
afastamento dos homens e da inspiração. Mais uma vez, estes motivos foram rearranjados
para servir a propósitos próprios. O problema da relação entre linguagem e mundo está,
talvez, mais explicitamente presente aqui do que em qualquer outro pensador grego que tenha
ser um mortal com quem os deuses vêm ao encontro ou de ir ao encontro com o divino, ele
mesmo apresenta-se como um deus 65, decaído entre os homens causa de um falso
juramento 66.
discurso. Neste contexto, quando um deus jura em falso, ele instaura uma cisão entre as
palavras e o mundo, cisão esta que deve ser instanciada com sua própria separação do mundo
divino. Tudo isto se dá sob o âmbito da Discórdia, força que além de presidir a separação dos
64
Em DK 31 B 23.1-8, ele compara a união dos elementos à tarefa de um pintor que, misturando
cores, dá origem a árvores, homens, mulheres, animais e pássaros.
65
DK 31 B 112.3. χαίρετ'· ἐγὼ δ' ὑμῖν θεὸς ἄμβροτος, οὐκέτι θνητός.
alegrai-vos; eu para vós um deus imortal, não mais mortal.
66
DK 31 B 115.13-14. τῶν καὶ ἐγὼ νῦν εἰμι, φυγὰς θεόθεν καὶ ἀλήτης,/ νείκεϊ μαινομένωι πίσυνος.
Destes, também eu agora sou, dos deuses banido, errante, em furioso ódio tendo confinado. Para a
tradução dos textos de Empédocles, segui José Cavalcanti de Souza (1991).
56
elementos, preside também a separação entre as palavras e as coisas. Deste modo, a ação
unificadora do Amor deve ser entendida não só como (re)unificadora dos elementos, mas
A distância entre o divino Empédocles e os mortais é tão grande que ele é obrigado a
recorrer à Musa para que esta lhe diga “do que é lícito a efêmeros ouvir 68.” Ora, esta é a
única referência de Empédocles à deusa e uma vez que ela é essencialmente ligada à palavra,
pede à Musa para que ela lhe ensine a falar em termos humanos.
A figura da inspiração sofreu aqui uma inversão total com relação ao seu uso habitual.
Ela vinha sendo usada como instrumento de justificação de um conhecimento adquirido por
um mortal. Mas isto agora está fora de questão: Empédocles é divino, o que equivale dizer
que ele sabe tudo e seu conhecimento é dispensado de justificações. O recurso à inspiração
recai então sobre o problema da linguagem, seus limites e seu aspecto convencional,
dentre todas/ (as coisas) mortais, nem algum fim em destruidora morte/ mas somente mistura
homens 69” e B9.5, onde o tema da convenção da linguagem dos homens, que insistem em
chamar mistura de geração e separação de morte, retorna e ao qual o deus se conforma: “por
A figura da inspiração também estava presente na obra de Platão, assumindo valores ora
negativo, ora positivo. No Íon ela foi francamente rejeitada, na medida em que esta permitia
67
Cf. Morgan (2009) p.60.
68
DK 31 B 3.4. ἄντομαι, ὧν θέμις ἐστὶν ἐφημερίοισιν ἀκούειν.
69
DK 31 B 8. ἄλλο δέ τοι ἐρέω· φύσις οὐδενὸς ἔστιν ἁπάντων/ θνητῶν, οὐδέ τις οὐλομένου θανάτοιο
τελευτή,/ ἀλλὰ μόνον μίξις τε διάλλαξίς τε μιγέντων/ ἔστι, φύσις δ' ἐπὶ τοῖς ὀνομάζεται ἀνθρώποισιν.
70
DK 31 B 9.5. νόμωι δ' ἐπίφημι καὶ αὐτός.
57
que os poetas falassem algo verdadeiro sem nenhum conhecimento de causa. No Fedro ela é a
causa do primeiro discurso de Sócrates, mas exatamente por ser uma fala inspirada, o discurso
precisou ser refeito. Mas esta figura é admitida, em alguma medida: a Musa foi substituída
pelo daimon que acompanhava Sócrates, sem, no entanto lhe revelar nada, apenas
aconselhando-o a não tomar uma determinada atitude. Esta atuação do daimon restrita à
negativa mostra, por via indireta, que no que diz respeito à sabedoria, estamos sempre por
nossa conta e risco. Ainda assim, o Sócrates platônico lançou mão deste recurso como forma
Por vezes ele segue estritamente o padrão herdado da tradição poética. Os mitos da caverna e
de Er, da República e o mito da parelha alada do Fedro, acatam a lição de que o homem
precisa se distanciar dos demais para aceder ao conhecimento. Nestes mitos, o distanciamento
ainda é mais radical: a alma precisa separar-se do corpo, já que este é um entrave para o
conhecimento. Por vezes ele adapta e atenua esta figura, como é o caso da chegada de
Sócrates à casa de Agatão, no início do Banquete, quando ele atrasa a entrada na casa,
isolando-se dos demais, por determinação do seu daimon. Por outro lado, de volta ao Fedro,
Sócrates atribui ao distanciamento da cidade (238d) o motivo de ele ter proferido um discurso,
seu primeiro discurso sobre o amor, invoca as Musas de modo inspirado (237a), o que o leva,
mais tarde(242d), a repudiar esta fala e comprometer-se a compor outra, dando ao motivo do
Não se trata aqui de analisar mais de perto os usos que Platão fez dos elementos
poéticos que ele incorporou na sua obra. Existem outros estudos mais competentes
especialmente dedicados a isso. Mas importa salientar que o mito expressa algo que a
linguagem racional e científica é incapaz de expressar. Isso é especialmente útil para filósofos
58
que acreditam num mundo transcendente, como Parmênides e Platão. A descrição do mundo
das formas e a contemplação destas pela alma liberta do corpo são coisas absolutamente
impossíveis de serem descritas por um discurso dito racional 71. Isso mostra que o elemento
mítico do discurso filosófico não pode ser simplesmente dispensado ou dissecado e extirpado
perfeitamente de acordo com a visão de Most: a veracidade foi o primeiro fator que ele
apontou como influência implícita da poesia na filosofia; sua forma de expressão é a poesia e
esta, por sua vez, ainda que conquiste algum grau de autonomia, na lírica e nos encômios, por
exemplo, jamais estará – nem ao menos tentará estar - completamente dissociada do mito e da
Musa. Assim sendo, qualquer referência que doravante fizer à poesia, o mito estará sempre
implicado. Finalmente, o mito, segundo esta concepção, não é o antípoda da razão, não é
irracional. Ao contrário, é uma razão que ultrapassa, sem ao menos se pôr como questão, a
própria razão.
1.3. Conclusão.
ser antes uma construção do pensamento atual para tentar entender o ambiente intelectual
grego daquele período. Neste sentido, até mesmo a filosofia, entendida como um saber
específico que se rege mais por sua metodologia própria do que por um objeto específico de
estudo, deve ser posta em questão. Por outro lado, dado o caráter histórico do surgimento da
filosofia, o processo deste surgimento pode ser melhor apreciado quando contrastado com o
substrato cultural de onde ele emergiu. Para tanto, a noção de reflexividade nos é de grande
valia.
71
Cf Morgan (2000) p.4.
59
O fragmento 40 de Heráclito, na medida em que trás à cena pensadores muito distintos,
nos dá uma boa mostra do que pode ser entendido como reflexividade: uma longa e ampla
discussão sobre o conhecimento, sua natureza e seu alcance. Mesmo que dentro deste
movimento, agônico como a própria natureza do pensamento grego, tenha havido momentos
de negação da poesia, esta nunca deixou de estar presente, seja através de pensadores que
reconheciam o seu valor como matriz cultural, como foi o caso de Aristóteles, seja
determinando uma pauta de assuntos a serem investigados, seja devido a sua incontestável
força expressiva.
tradição poética que se perpetuou no discurso filosófico. Esta verdade versava sobre como
o homem devia conduzir sua própria vida e sobre os constituintes do mundo. Isto se deu
num modo de pensamento sintético que foi capaz de propor, numa narrativa
elementos fundamentais – os princípios – para dar conta da totalidade das coisas que
existem.
Segundo esta abordagem, o mito não é o antípoda da razão. Ao contrário, é uma razão
que ultrapassa, sem ao menos se por como questão, a própria razão. Não se pode nem ao
menos falar de incorporação do mito no discurso filosófico, pois isso supõe uma separação
entre mito e filosofia que efetivamente não havia naquele momento. É certo que houve uma
insatisfação, ou mesmo um incômodo por parte daqueles pensadores com relação ao discurso
60
2. Em busca de Hesíodo
convencionou chamar “pré-socrático” foram obrigados a lidar com um acervo literário pré-
existente, de onde Hesíodo desponta como uma das figuras centrais. Cabe então partir em
busca de Hesíodo, quer dizer, cabe tentar entendê-lo desde seu papel na poesia épica, suas
semelhanças e diferenças com relação a Homero, para construirmos uma visão mais próxima
dos passos que o poeta beócio deu na marcha reflexiva do pensamento grego, sempre
lembrados de que a interpretação alegórica não será empregada nesta pesquisa devido ao
entendimento de que não houve, por parte de Hesíodo, uma expressão alegórica, já que nos
parece o poeta jamais intentou falar de forma velada, o que faria com que sua mensagem só
fosse alcançável para alguns, mas antes pretendeu que sua mensagem fosse dirigida ao
espectro mais amplo possível. Desta forma, toda tentativa de perseguir o pensamento do poeta
O presente capítulo terá então o propósito de tornar a imagem do poeta mais nítida para
que possamos lidar com a sua obra e com os problemas que ela suscita a partir de um ponto
que nos assegure um grau mínimo de intimidade com a questão. Desta forma, esta etapa será
dividida em três seções, onde a primeira investigará a imagem do poeta. Para tanto, será
necessário esclarecer o que significa estarmos lidando com o segundo grande poeta grego, isto
de caipira, a bem dizer, que muitos estudiosos contemporâneos ainda fazem dele, levando-os
dados supostamente biográficos que o próprio autor nos fornece. A segunda seção realizará
um levantamento não exaustivo da recepção contemporânea dos versos que motivam nossa
61
deste levantamento, e ainda nesta mesma seção, já começaremos a construir o nosso próprio
entendimento, que será reforçado com o exame semântico e pragmático dos termos - sujeitos,
verbos declarativos e objetos - que compõem cada um dos versos em questão, a ser
Apesar de renomado poeta, a imagem de Hesíodo sempre foi ofuscada pela de Homero.
aspecto: “Simônides disse que Hesíodo era o jardineiro, enquanto Homero era o tecelão de
Esta imagem é tão persistente no tempo que não foi por acaso que Hugo Koning
intitulou sua tese sobre o poeta como “The other poet: the ancient reception of Hesiod.”
Dentre outros aspectos, Koning afirma que a imagem de Hesíodo nunca está completamente
desvinculada da de Homero 73, pois mesmo quando este não está explicitamente mencionado,
ele permanece como a referência principal contra a qual o entendimento de Hesíodo será
construído 74.
72
Gnomologium Vaticanum Graecum, 1144, f.222. in Hesiod (2006) p. 170-171. Tradução do autor.
Este testemunho pode suscitar o entendimento de que Hesíodo seria anterior a Homero. A questão é
objeto de debates. Most, em sua tradução de Teogonia, Os Trabalhos e os Dias e Testemunhos, lista
cinco testemunhos que consideram Homero anterior a Hesíodo, cinco que os consideram
contemporâneos e dois que levam Hesíodo na conta de anterior a Homero (Most in Hesiod, 2006, pág.
165-171.). Atualmente predomina o entendimento de que Hesíodo é de fato posterior a Homero
porque embora a Teogonia e o Catálogo das Mulheres tenham realmente falado de deuses e de heróis,
podendo ser percebidos como matéria para os poemas homéricos, há, na Teogonia, um esforço
sistematizador jamais exibido em nenhuma obra de Homero. Além do mais, as noções morais
abordadas em Os Trabalhos e os Dias alcançam um nível de abstração inexistente naqueles poemas. O
Catálogo das Mulheres não foi estudado nesta pesquisa.
73
Não levaremos em conta aqui as questões sobre a existência factual dos dois poetas. A simples
preservação de suas obras e a enorme influência que elas exerceram no desenvolvimento da cultura
grega são justificativas mais do que suficientes para os incontáveis estudos que suscitaram. Nosso
estudo é apenas mais um que se incorpora a esta lista.
74
Cf. Koning (2010) pág.111.
62
Rousseau dá testemunho desta percepção ao entender que a moral apresentada por
Homero, a qual legitimava a conquista dos bens pela violência e chega mesmo a designar o
modelo de conduta proposto pelo poeta, o vizinho “rico que se apressa a arar e a plantar/ e
Carrière vai mais além e diz que Hesíodo frequentemente compõe seus versos a partir
de e contra Homero para anunciar sua visão de mundo e, principalmente, sua visão moral 77.
Jaeger refere-se a Hesíodo como o “segundo educador da Grécia 78”, o que suscitou, de
nossa parte, um esclarecimento sobre o que significa este “segundo”, que não deve ser
entendido nem na ordem temporal, uma vez que as questões relativas à datação são, não só
imprecisas, como também de pouca relevância para o propósito desta pesquisa, nem na ordem
de grandeza, uma vez que os gregos jamais demonstraram qualquer sinal de estima e
admiração pelo segundo colocado em qualquer competição. Podemos então propor outra
dialética hegeliana, que o poeta ocupa com relação a Homero. Isto implica em procurar
descobrir o cantor destes versos pelo enfoque das atenções nas semelhanças e nas diferenças
que ele carrega e abre em relação a Homero, o primeiro educador grego 79.
quádruplo deslocamento de Hesíodo com relação a Homero: do herói para o homem comum,
pois enquanto este cantava as proezas dos homens semidivinos e de suas relações com os
deuses, Hesíodo situa-se em outro momento da história humana, dizendo que pertencemos à
75
Trab. 22-23. πλούσιον, ὃς σπεύδει μὲν ἀρόμεναι ἠδὲ φυτεύειν/ οἶκόν τ' εὖ θέσθαι·
76
Cf. Rousseau in Blaise, Judet de la Combe & Rousseau (1996) pág.125.
77
Cf. Idem (1996) pág.411.
78
Jaeger (1995) pág. 59.
79
Cf. Mantovaneli in Hesíodo (2011) pág. 153.
63
raça de ferro, raça inferior à dos heróis; da guerra para a “ágora”, isto é, da vida guerreira
para o cotidiano, o que vai desembocar na proposta de uma nova moral; da glória para a
“hýbris 80”, o que vem a ser uma consequência desta nova moral: enquanto a realização
máxima da vida do herói era a morte gloriosa para ter seu nome lembrado, o problema central
da vida do homem da raça de ferro é o de evitar a desmedida, a única maneira de evitar que
Díke se abata sobre ele, como uma reparação aos seus atos insanos; e, por fim, a separação
entre deuses e homens. Embora todos estejam interligados, o terceiro deslocamento é o que
desencadeará a sua questão pela justiça e pelo trabalho - via de consecução da justiça - temas
O problema da imagem que se faz de Hesíodo, ainda que isso possa parecer uma
discussão supérflua, parece influir na compreensão que se pode alcançar de suas obras. Clay
observa que embora recentemente alguns estudiosos tenham se esforçado para mudar o
quadro, “a imagem do fazendeiro rústico dos confins da Beócia a quem as Musas inspiraram
o canto, mas que, entretanto, permaneceu atrelado a uma sabedoria rural ainda povoa a
Esta visão de Hesíodo como um poeta caipira assume contornos dramáticos quando
lembramos que foi de Hesíodo a primeira voz que se ergueu, no mundo grego, na primeira
pessoa, para falar dos problemas da vida humana cotidiana, da lida diária, de etétyma, e que
também ousou repreender os reis, avaliando-os não pela origem aristocrática de ascendência
80
Embora Hesíodo seja conhecido como o poeta da Justiça e do Trabalho e o desenrolar desta
pesquisa chegará a destacar a Justiça como o valor supremo para a raça de ferro, predomina aqui o
entendimento de que a Justiça em si é inapreensível na sua totalidade e o homem só a conhece
episodicamente e a partir de um evento que desencadeia a sua busca. Este evento é a “hýbris”.
81
Cf. Mantovaneli in Hesíodo (2011) pág. 159.
82
Clay (2003) pág.2.
64
divina, mas pelo seu fraco desempenho na função, chamando-os de “comedores de
presentes” e de “néscios, não sabem que a metade é maior do que o todo. 83”
É certo que as possíveis notas biográficas que o poeta dá ao longo de seus poemas
suscitam alguma especulação sobre sua vida e que os críticos se lançam nesta empreitada com
o intuito de alcançar uma melhor compreensão sobre sua obra, mas o fato é que aqueles que
se atêm mais às questões biográficas tendem, de um modo geral, a ver em Hesíodo um poeta
de recursos limitados ou a levar a especulação biográfica para pontos que simplesmente não
Embora seja difícil de explicitar uma relação de causa e efeito, talvez seja por isso que
West vê em Hesíodo um poeta cujo discurso não obedece a um plano preestabelecido 84 e, por
isso, vê também pouca conexão entre o proêmio e o restante da obra 85; um poeta a quem a
palavra “argumento” nem mesmo se aplica, já que seus “argumentos” para justiça e para o
trabalho são essencialmente simples, sendo a justiça boa porque os deuses a recompensam e a
hýbris má porque os deuses a castigam 86. A partir desta leitura, West resolve a dificuldade
imposta pelo destaque que Hesíodo dá a Hécate na Teogonia, propondo que o pai de Hesíodo
era um adorador de Hécate, a ponto de ter dado a um de seus filhos – Perses – o mesmo nome
do pai da deusa 87. Conforme veremos no próximo capítulo, o papel desta deusa na obra de
Hesíodo pode receber outra leitura e nos mostrar um grau de articulação entre os diferentes
episódios narrados por Hesíodo que aqui não são sequer vislumbrados.
83
Cf. Trab. 39 e 40.
84
Cf. West in Hesiod (1978) pág 46.
85
Idem pág 136-137.
86
Idem pág 49.
87
Idem pág 278.
65
As especulações biográficas parecem ter contaminado até mesmo os historiadores.
Peixoto 88 relata que para Edwards, o autor de Hesiod’s Ascra, não há evidências de que o
litígio entre os irmãos tenha sido julgado em Téspias, a pólis a qual a Ascra de Hesíodo era
possivelmente integrada, interpretando o authí, o aqui e agora do verso 35, “Julguemos aqui
nossa crise/ com retribuições retas de Zeus, as mais justas. 89”, como uma referência a Ascra.
Stoddard conta que Willamowitz é capaz de apontar dois momentos distintos no modo
com que Hesíodo dialoga com Perses 90, sendo o primeiro entre os versos 11- 382, antes do
segundo, onde Hesíodo, após um veredito favorável, encontra-se mais confiante enquanto
Perses está mais disposto a receber os ensinamentos que lhe são dirigidos.
Stoddard fala também de um grupo de estudiosos, com o qual ela parece se identificar,
dias. Seguindo as observações de Schmidt, ela afirma que a imagem de Perses não oscila, mas
evolui ao longo da trama. Perses teria então acatado os conselhos do irmão e no momento em
que este inicia sua lição sobre a agricultura, aquele já estaria convencido da necessidade de
trabalhar.
Quanto ao problema específico do julgamento, ela segue Clay, no que esta sustenta que
88
Peixoto (2012) pág. 58-59.
89
Trab. 35-36. ἀλλ’ αὖθι διακρινώμεθα νεῖκος /ἰθείῃσι δίκῃς, αἵ τ’ ἐκ Διός εἰσιν ἄρισται.
90
Apud Stoddard (2004) pág.21.
91
Por “unitários” podemos entender um grupo de intérpretes que entende que cada narrador de cada
poema - o autonomeado “Hesíodo” da Teogonia e o “Eu” que quer dizer verdades a Perses em Os
Trabalhos e os Dias - foi especialmente criado pelo autor dos poemas, com vistas aos propósitos
específicos de cada obra. Entre os unitários, há alguns radicais, como Nagy e Griffith, que rejeitam
qualquer validade a qualquer informação biográfica fornecida por Hesíodo, considerando-as como
puras criações poéticas.
66
irmãos de forma que a mensagem didática do poema pudesse alcançar uma audiência muito
maior 92.
O trabalho de Stoddard foi alvo de críticas por parte de Moura. Segundo este autor, a
biografistas veem Hesíodo como um pastor rude que produz uma poesia sem sofisticação em
função de sua origem humilde. Já os unitários, acreditam na ideia da ficção poética e tentam
Moura aponta o “texto em si” como categoria problemática, já que este é “desvinculado
cultura grega que é obtido fora – e acrescentamos anterior à abordagem – do texto. Outro
também digna de nota é a de que “a pergunta sobre o estatuto verídico ou não deste “eu”
Moura tem razão. De fato, a separação entre biografistas e unitários parece algo forçada
mencionados aqui, como os de Carrière, Koning e Rousseau, apenas para citar alguns, que
contribuíram enormemente para aprofundar a compreensão das relações internas dos poemas
dias sem colocar como questão o grau de historicidade envolvido. Estes autores não podem
92
Cf. Stoddard (2004) pág. 23.
93
Cf. Moura in Hesíodo (2012) pág.20-22.
67
ser considerados nem unitários nem biografistas. Não sabemos nem mesmo se eles podem ser
reunidos sob uma terceira rubrica, se é que isso tem alguma relevância. Entretanto, as
texto grego de quase três mil anos sem um conhecimento prévio da cultura grega. Mas
também há que se concordar que alegar, como faz West, que o pai de Hesíodo era um
adorador de Hécate e que por isso nomeou seu irmão com o nome do pai de deusa para
explicar a aparente incongruência do destaque dado a uma deusa obscura extrapola o âmbito
explicação proposta por Stoddard parece ser muito mais plausível e muito mais fundamentada
no próprio texto da Teogonia e servirá mesmo de alicerce para a leitura intertextual entre esta
Do mesmo modo, dizer, como Willamowitz, que Hesíodo dialoga com Perses de um
determinado modo antes do desfecho do julgamento e de outro, mais confiante, após ter
recebido um veredito favorável, parece quase delirante quando se leva em conta que em
Perses parece ter servido de motivo para introduzir a discussão sobre a justiça e, uma vez a
Quanto à ligação entre a falta de refinamento poético e a sua possível origem humilde,
68
A primeira é que mesmo na antiguidade, a poesia de Hesíodo não era vista exatamente
como bela, mas antes como sábia. Exemplo disso é o Certame entre Homero e Hesíodo. Esta
foi uma lenda tão difundida na antiguidade que Koning listou dela treze versões distintas,
distribuídas num intervalo de tempo que vai desde o século VII AC ao XII AD, onde em todas
elas Hesíodo sai vencedor. Como em todas as lendas, existem variações entre as versões, mas
em nenhuma delas Hesíodo vence pela beleza de seus versos. Na maioria das vezes o motivo
política. Como é o caso da versão mais completa dentre todas, datada de IV AC, onde o rei
alegando que um poema que fala sobre agricultura e sobre a paz é muito mais útil para a
unitários apenas por comodidade – parece se contentar com muito pouco de Hesíodo. Se uma
passagem ou uma articulação entre passagens parece obscura, eles lançam mão de
extrapolações biográficas ou dizem que a poesia de Hesíodo é assim mesmo, progride sem
É preciso, portanto, escolher com quem estamos lidando: com um poeta caipira ou com
o “mestre de muitos”, como o chamou Heráclito 95? Os unitários ficaram com a segunda
opção e têm o mérito de ao menos tentar forçar os limites da nossa compreensão do poeta.
Em terceiro, e talvez mais importante, rebaixá-lo por ser camponês parece mais ser um
preconceito de nossa época do que uma categoria do pensamento grego. Lembrando da lição
94
Cf Koning (2010) pág. 212-233 e em particular a tabela da pág. 230.
95
Ainda que Heráclito tenha exaltado Hesíodo para depois rebaixá-lo, dizendo que ele não sabia que a
noite e o dia são um, Heráclito escolheu Hesíodo por estratégia retórica: para apresentar-se como
sábio, ele tinha de superar um sábio amplamente reconhecido. Não faria sentido nenhum, sobretudo
para um grego, bater-se contra um “zé ninguém”.
69
de Moura mencionada acima de que é preciso ter um conhecimento adequado do mundo
grego arcaico para se poder interpretar um texto daquela época, é preciso situar melhor o
status do camponês e, como uma coisa implica na outra, o status do pastor também deve ser
investigado.
Neste sentido, o trabalho de Haubold 96 é um auxílio valioso. Ele nota que, de acordo
com a épica grega, é apenas com o advento da agricultura que os homens tornaram-se
propriamente humanos. Os homens da raça de ouro, que “viviam como deuses 97”, não
precisavam trabalhar a terra: “farta dava fruto/ espontânea, muito e sempre 98.” A vida sem
agricultura é então muito distinta da nossa. É coisa para deuses, como os homens divinos da
raça de ouro, ou para seres quase bestiais, na medida em que os homens da raça de bronze,
que “nada de trigo/ comiam 99” foram extintos “devastando uns aos outros pelas próprias
mãos 100”, tal como os peixes, as feras e as aves aladas que se devoram uns aos outros por não
“É vão equiparar-me ao homem mais robusto/ de hoje, que sobre a terra come pão 102”, diz
Odisseu nos jogos com os feácios. Em outra oportunidade, o mesmo Odisseu, disfarçado
como mendigo e em disputa verbal com Eurímaco, mostra-se orgulhoso em ser capaz de bater
96
Cf Haubold (2010) pág.16-18.
97
Trab.112. ὥστε θεοὶ δ' ἔζωον.
98
Trab.117-118. καρπὸν δ' ἔφερε ζείδωρος ἄρουρα/ αὐτομάτη πολλόν τε καὶ ἄφθονον.
99
Trab. 146-147. οὐδέ τι σῖτον/ ἤσθιον.
100
Trab. 152. καὶ τοὶ μὲν χείρεσσιν ὑπὸ σφετέρῃσι δαμέντες.
101
Trab. 277-279. ἰχθύσι μὲν καὶ θηρσὶ καὶ οἰωνοῖς πετεηνοῖς/ ἔσθειν ἀλλήλους, ἐπεὶ οὐ δίκη ἐστὶ μετ'
αὐτοῖς·/ ἀνθρώποισι δ' ἔδωκε δίκην.
Aos peixes, às feras e às aves aladas,/ que se devorem. Justiça nnão há entre eles./ Aos homens, sim,
deu a Justiça, muito mais nobre.
102
Od. 8.221-222. τῶν δ' ἄλλων ἐμέ φημι πολὺ προφερέστερον εἶναι,/ ὅσσοι νῦν βροτοί εἰσιν ἐπὶ
χθονὶ σῖτον ἔδοντες. A este respeito, Haubold ainda faz referência aos versos 9.89 e 10.101 da
Odisséia, 6.142 e 21.465 da Ilíada, assim como aos versos 364-366 do Hino Homérico a Apolo.
70
seu oponente não só nas artes da guerra, mas também na agricultura 103, de onde se vê que a
faina da lavoura não era exclusividade dos homens das camadas sociais inferiores.
agricultura continuava sendo vista como um saber nobre: Segundo este, “o melhor trabalho e
o melhor saber é a agricultura”, pois “incita os lavradores a serem corajosos, já que aquilo
de que precisam, ela faz crescer e nutre fora dos muros. Por isso é também a vida mais
nobre, pois, ao que nos parece, torna os cidadãos melhores e mais bem dispostos para com a
comunidade. 104”
Ainda segundo Haubold 105, a imagem dos pastores é percebida de modo diferente. O
pastoreio é associado a formas de existência que são pré ou sub-humanas, como os Cíclopes,
que podem ser considerados, em muitos aspectos, como a mais extrema expressão de
selvageria pré-agrícola. De fato, eles são “dissímiles do homem comedor de pão 106”, e
alimentam-se de “agrestes cabras, nunca afugentadas/ pela passagem do homem 107”. “Não
plantam nem aram 108”: “Carecem de rebanho/ e campos semeados, sem cuidado e sem/
messe durante todo o tempo delongado;/ balando, as cabras pastam no vazio humano 109.”
103
Cf. Od.18.366-386.
104
Xenofonte. Econômico 6.10. συμπαροξύνειν δέ τι ἐδόκει ἡμῖν καὶ εἰς τὸ ἀλκίμους εἶναι ἡ γεωργία
ἔξω τῶν ἐρυμάτων τὰ ἐπιτήδεια φύουσά τε καὶ τρέφουσα τοὺς ἐργαζομένους. διὰ ταῦτα δὲ καὶ
εὐδοξοτάτη εἶναι πρὸς τῶν πόλεων αὕτη ἡ βιοτεία, ὅτι καὶ πολίτας ἀρίστους καὶ εὐνουστάτους
παρέχεσθαι δοκεῖ τῷ κοινῷ.
105
Cf Haubold (2010) pág.18.
106
Od.9.190-191. καὶ γὰρ θαῦμ' ἐτέτυκτο πελώριον, οὐδὲ ἐῴκει/ ἀνδρί γε σιτοφάγῳ,
107
Od.9.118-119. ἐν δ' αἶγες ἀπειρέσιαι γεγάασιν/ ἄγριαι·
108
Od.9.108. οὔτε φυτεύουσιν χερσὶν φυτὸν οὔτ' ἀρόωσιν,
109
Od.9.121-124. ἄλγεα πάσχουσιν κορυφὰς ὀρέων ἐφέποντες./ οὔτ' ἄρα ποίμνῃσιν καταΐσχεται οὔτ'
ἀρότοισιν, /ἀλλ' ἥ γ' ἄσπαρτος καὶ ἀνήροτος ἤματα πάντα/ ἀνδρῶν χηρεύει, βόσκει δέ τε μηκάδας
αἶγας.
71
normas 110”, assim como em suas relações com os deuses: “pois Zeus porta-broquel não
chega a preocupar/ Cíclopes, nem um outro Olímpio: somos bem/ mais fortes 111.”
mesmo na Teogonia o situa num duplo limiar. Como pastor, a quem as Musas se dirigem no
vocativo plural (Teog. v.26) e, portanto, não a ele em específico, habita o espaço
semiselvagem dos campos de pasto – não cultivados, mas já submetidos a algum tipo de
controle humano. Como poeta escolhido pelas Musas dentre os pastores, situa-se entre o canto
divino que canta a raça dos eternos e sagrados entes imortais (Teog. v.21) e as vergonhas da
terra que se resumem aos ventres (Teog. v.26). O ventre é, de fato, aquilo que aproxima o
homem das bestas. Hesíodo estabelece, então, não uma definição, mas o lugar do homem: este
de cada poema, sejam eles criações poéticas ou o próprio Hesíodo falando em diferentes
etapas de sua vida, estão perfeitamente adequados para o conteúdo de cada poema. A
Teogonia demanda efetivamente um auxílio divino para falar com verdade de temas que não
podem ser testemunhados por nenhum homem. Já Os trabalhos e os dias falam de uma
verdade que está não só ao alcance, mas também é fundamental para o homem da raça de
ferro. Além do mais, a conquista desta verdade independe, em grande parte, do auxílio da
em que os poemas devem ser lidos: “a poesia, no sentido estrito de canto divinamente
humanas. Ao lermos Os Trabalhos e os Dias depois de ter lido a Teogonia, sabemos que
O trânsito do pastor para o camponês é então algo significativo para o ouvido grego.
Koning 114, num amplo levantamento sobre a recepção moderna dos enigmáticos versos
intrapoética e a outra interpoética. De acordo com esta última, a oposição entre ψεύδεα πολλά e
algumas, como falsas. Nesta perspectiva - diga-se de passagem, bem de acordo com o espírito
agonístico grego - alguns apontam outros teogonistas, Ferécides talvez, como alvo de um
ataque por parte de Hesíodo. Outros acreditam que poetas ainda mais antigos seriam o alvo,
mas a maioria reconhece Homero como principal endereçado, sobretudo quando se leva em
consideração a íntima semelhança destes versos com o verso 203 do canto XIX da Odisséia,
“sabia dizer muitas mentiras semelhantes aos fatos 115”, com o qual o narrador da Odisséia
Numa perspectiva intrapoética, estes versos podem ser lidos como uma admissão, por
parte de Hesíodo, de que a poesia combina verdade e falsidade e Hesíodo estaria, de certa
forma, antecipando Sólon: “poetas, com frequência, mentem 116”. Alguns entendem que
Hesíodo assume dependência total das Musas, podendo estas fazê-lo mentir ou dizer a
113
Haubold (2010) pág. 19.
114
Koning (2010) p. 259-61.
115
ἴσκε ψεύδεα πολλὰ λέγων ἐτύμοισιν ὁμοῖα. Tradução do autor.
116
Sólon. Fr. 202 Martina. πολλὰ ψεύδονται ἀοιδοί.
73
verdade. Há quem considere que Hesíodo já avisa que a linguagem é incapaz de representar a
Koning 117 alia-se aos intérpretes da corrente interpoética e entende que Hesíodo
apresenta-se como um poeta que fala a verdade e tem Homero na conta de um ficcionista, mas
o foco principal da sua pesquisa é o de entender como as imagens dos dois poetas foram
construídas na antiguidade através da recepção de suas obras. Neste quadro, a oposição entre
verdade e ficção é uma das linhas de força que separa as imagens de Hesíodo e Homero na
geral, Hesíodo como um poeta preocupado com a verdade, que compunha mais por técnica do
que por inspiração, com um conteúdo didático, voltado para conselhos e de estilo e linguagem
simples. Homero, por sua vez, era recebido como um ficcionista, que compunha mais por
inspiração do que por técnica, cuja poesia provocava profundas alterações no espírito do
oposição binária são obviamente reducionistas e devem ser manuseados com cautela, já que
com freqüência as fronteiras podem ser transpostas e Hesíodo pode parecer divinamente
inspirado e seus versos causarem impacto profundo, enquanto Homero pode ser percebido
Arrighetti reconhece nestes versos uma adaptação do verso 203 do canto 19 da Odisséia,
onde o narrador homérico intervém, ao término da fala que Odisseu, disfarçado de mendigo e
sem ser reconhecido pela esposa, dirige a Penélope, e pontua: “sabia dizer muitas mentiras
símeis aos fatos.” Segundo o autor, Hesíodo dirige uma censura não a Homero, mas a
117
Koning (2010) p. 258.
118
Arrighetti (1996) p. 58.
74
Para Nagy a Teogonia de Hesíodo é uma resposta mais abrangente e sistemática às
diversas teogonias locais que devem ter circulado por toda a Grécia. Mas seu foco maior não
isto é, como um ataque a outros poetas, ou até mesmo como um ataque a uma personagem da
literatura homérica. Vejamos em seguida alguns estudiosos que encaram a questão como um
Rudhardt 120 não se restringe aos versos 27 e 28, mas estende o espectro de sua análise
para o que chama de “vocação do poeta”, ou seja, a transformação que as Musas operam em
Hesíodo, fazendo-o, de pastor, um poeta. Sua investigação abarca, portanto, os versos 22 a 34.
terceira para a primeira pessoa. De fato, quando Hesíodo se nomeia no poema, no verso 22, o
faz na terceira pessoa: “Elas um dia a Hesíodo ensinaram belo canto. 121” Logo após a fala
das Musas, o narrador retorna, agora na primeira pessoa: “Assim falaram as filhas do grande
Zeus verídicas,/ e por cetro deram-me um ramo, a um loureiro viçoso/ colhendo-o (...) 122”.
Rudhardt conclui, apoiado também na censura que as Musas endereçam no verso 26,
“Pastores agrestes, vis infâmias e ventres só, 123” não só ao pastor, mas a toda raça humana,
Rudhardt também reconhece a semelhança entre a fala das Musas e o verso 203 do
canto 19 da Odisséia, mas entende que as ψεύδεα de Odisseu são fatos corriqueiros, sem nada
119
Nagy (1996) p. 41.
120
Rudhardt (1996) p. 25-39.
121
Teog. 22. αἵ νύ ποθ’ Ἡσίοδον καλὴν ἐδίδαξαν ἀοιδήν.
122
Teog 29-31. ὣς ἔφασαν κοῦραι μεγάλου Διὸς ἀρτιέπειαι,/καί μοι σκῆπτρον ἔδον δάφνης ἐριθηλέος
ὄζον/ δρέψασαι, θηητόν· ἐνέπνευσαν δέ μοι αὐδὴν. Grifo nosso.
123
Teog.26. ποιμένες ἄγραυλοι, κάκ' ἐλέγχεα, γαστέρες οἶον,
75
de extraordinário, mas que trazem como marca a verossimilhança. A Teogonia, por outro
lado, não tem nada de comum. Os fatos narrados são inalcançáveis à mente humana, mas
verdadeiros. Fica então estabelecida uma hierarquia: A Teogonia é superior à Odisséia, mas
as Musas, como regentes do discurso, encantam, seja por uma narrativa fictícia, seja pela
verdade.
Mas há ainda outra hierarquia a ser assinalada. O saber das Musas é superior ao saber
que elas propiciaram ao poeta, na medida em que o canto que elas inspiram abrange o futuro e
que o canto que elas mesmas apresentam no Olimpo, abrange o presente, o futuro e o passado
a expressão contida no verso 32 não refere a duas coisas distintas, “o que é” e “o que será”, o
que exigiria a repetição do artigo. Deste modo, “o que foi e será” é outro modo de dizer
“sempre”, o que corresponde exatamente ao conteúdo que o poeta deve glorificar - ἵνα
Por outro lado, o canto que elas cantam para Zeus, no Olimpo, inclui τ’ ἐόντα, que refere
à raça dos homens - ἀνθρώπων γένος, o que só ficará esclarecido no verso 50. Lá, elas cantam
para dar prazer a Zeus, para que ele contemple a totalidade do cosmos. Aqui, o canto de
Hesíodo é também didático, isto é, endereçado aos homens, com o foco nos deuses 126.
124
Teog. 32. ἵνα κλείοιμι τά τ’ ἐσσόμενα πρό τ’ ἐόντα,
125
Teog 38. εἴρουσαι τά τ’ ἐόντα τά τ’ ἐσσόμενα πρό τ’ ἐόντα..
126
Cf. Clay (2000) pág. 65-67. Clay ainda sublinha o espantoso da questão: para o pensamento
filosófico subsequente, o que é eterno passará a ser expresso por τὸ ἔον, enquanto que para Hesíodo,
isto designa as coisas em devir. Este contraste deve ter se mostrado instigante para os pensadores de
então, que se puseram a seguinte questão: “como aquilo que é eterno (os deuses) pode ter tido uma
origem?”
76
Leclerc 127 vê na passagem um duplo propósito. Além de marcar a diferença entre deuses
e homens, as Musas colocam o poeta num lugar privilegiado, alguém que se situa entre o
humano e o divino, o que será reforçado pelo presente do cetro, no verso 30 e a inspiração do
canto, no verso 31. Nesta leitura, o duplo saber das deusas opõe-se à ignorância dos pastores,
que representam aí toda a humanidade. Não existe, deste modo, oposição real entre verdade e
mentira, já que ambas, em conjunto, constituem a totalidade do saber, na medida em que elas
Lembra então que nos versos 93 a 97, Hesíodo vai afirmar que é por causa das Musas e de
Apolo que existem os poetas, que aquele a quem as Musas amam é abençoado e de sua boca
flui doce voz 128. Ao descrever a raça dos heróis em Os Trabalhos e os Dias, Hesíodo faz
129
alusão aos dois principais ciclos da poesia épica, o tebano e o troiano . Quando se leva em
conta que o mito das raças é uma das ἐτήτυμα que Hesíodo conta a Perses, é necessário admitir
que Hesíodo assumiu como verdade a palavra de outros poetas, o que pode comprometer a
percepção de que Hesíodo, nessa passagem dos versos 27 e 28 da Teogonia, visava um ataque
a outros poetas.
segundo a autora, esta pretensa polêmica não está presente nem na fala das Musas e nem nos
versos 94-103, que dizem que é por graça das Musas e de Apolo que existem os poetas – que
se frise o plural – e que aquele a quem as Musas amam é feliz e este homem afortunado
propicia, a quem o ouvir, o esquecimento dos pesares e das aflições. Além do mais, assinala
127
Cf. Leclerc (1993) p.204.
128
Teog. 93-97. τοίη Μουσάων ἱερὴ δόσις ἀνθρώποισιν./ἐκ γάρ τοι Μουσέων καὶ ἑκηβόλου
Ἀπόλλωνος/ ἄνδρες ἀοιδοὶ ἔασιν ἐπὶ χθόνα καὶ κιθαρισταί,/ἐκ δὲ Διὸς βασιλῆες· ὁ δ’ ὄλβιος, ὅντινα
Μοῦσαι/ φίλωνται· γλυκερή οἱ ἀπὸ στόματος ῥέει αὐδή.
129
Trab. 161-65. καὶ τοὺς μὲν πόλεμός τε κακὸς καὶ φύλοπις αἰνὴ/τοὺς μὲν ὑφ’ ἑπταπύλῳ Θήβῃ,
Καδμηίδι γαίῃ, /ὤλεσε μαρναμένους μήλων ἕνεκ’ Οἰδιπόδαο, /τοὺς δὲ καὶ ἐν νήεσσιν ὑπὲρ μέγα
λαῖτμα θαλάσσης/ἐς Τροίην ἀγαγὼν Ἑλένης ἕνεκ’ ἠυκόμοιο.
77
que embora ἀληθέα e ψεύδεα formem, de fato, uma oposição para os mortais, essa oposição
inexiste para os deuses, donde se pode concluir que a autora lê a partícula δὲ, do verso 28,
como aditiva – já que as Musas dominam todas as modalidades possíveis de discurso –, e não
como adversativa, o que solicitaria a presença da partícula μέν no verso anterior 130.
Clay reconhece a distinção entre ἀληθέα e ἔτυμα como crucial, não só para a
compreensão desta passagem, como também para a compreensão de toda a obra de Hesíodo,
já que
são raros e até mesmo excepcionais e mesmo cada sinônimo exprime uma nuance própria que
não pode ser negligenciada, à pena de empobrecer o conteúdo da mensagem que eles são
A divisão das leituras possíveis em intrapoéticas ou interpoéticas deve ser encarada com
cautela. Divisões deste tipo são sempre artificiais e são criadas para atender a propósitos
específicos. Para o entendimento do conjunto da obra nenhuma leitura deve ser descartada: é
bem possível que ambas coexistam e se complementem, o que significa que não constituem
uma oposição verdadeira. Por isso mesmo, nenhuma deve prevalecer totalmente sobre a outra.
130
ἴδμεν ψεύδεα πολλὰ λέγειν ἐτύμοισιν ὁμοῖα, /ἴδμεν δ’ εὖτ’ ἐθέλωμεν ἀληθέα γηρύσασθαι. Grifo
nosso.
131
Clay (2003) p. 60-1.
132
Levet (1976) p. 3-4 e p. 4, nota 1.
78
Entretanto, os argumentos de Leclerc acerca das menções positivas que Hesíodo faz a outros
poetas, tanto na passagem da Teogonia quanto no mito das raças, e a observação de Clay,
lançando mão do mesmo texto das Musas contido em Teog. 80-103, levam ao entendimento
de que a tensão em questão concentra-se na distância entre deuses e homens e não entre
poetas. Além do mais, com relação a presente questão, nossa abordagem destes versos será
marcadamente intrapoética, já que a fala das Musas será confrontada com a fala do narrador
de Os trabalhos e os dias.
Isto não significa que estejamos convencidos de que não há, na obra de Hesíodo, um
ataque a Homero ou talvez a outros poetas, o que seria quase descabido dado à forte
agonística presente no espírito grego, mas apenas que este espírito não se encontra nestes
versos especificamente.
construir a nossa compreensão de que Hesíodo apresentou uma proposta ética civil em
segundo a qual os verdadeiros sinônimos são raros e até mesmo excepcionais, e que cada
sinônimo exprime uma nuance própria que não pode ser negligenciada, à pena de empobrecer
o conteúdo da mensagem que eles são destinados a nos transmitir 134; e assumindo que a
escolha dessas palavras não foi mera casualidade em Hesíodo, pretendemos investigar as
133
Cf. Hesíodo (2011).
134
Cf. Levet (1976) p. 3-4 e p. 4, nota 1.
79
Para levarmos a cabo tal tarefa, será necessário investigar, por inteiro, os três versos que
pura para por em evidência a relação existente entre quem fala através de cada verbo e o
endereçado específico daquela fala determinada pelo verbo e isto solicita que outros versos de
cada poema sejam incorporados à investigação. Uma vez que λέγειν e γηρύσασθαι são
empregados para designar falas distintas das Musas, começamos a divisar a possibilidade de
elas falarem para públicos distintos, comunicando coisas distintas. Já o verbo μυθησαίμην,
empregado pelo narrador de Os trabalhos e os dias, aqui identificado com o próprio Hesíodo,
parece falar para duas audiências distintas por meio do mesmo verbo, isto é, para Perses e
para os reis comedores de presentes, mas, no fundo, a audiência é uma só, englobando tanto o
seu irmão, quanto os reis e nós mesmos. Sua audiência é a raça de ferro, a raça humana.
Desta forma, os versos serão abordados por um viés único, que se mostra indissolúvel,
mas que engloba, a um só tempo, uma leitura semântica e uma pragmática. Começaremos
examinando os sujeitos que falam: Musas e Hesíodo, para, em seguida examinarmos como
cada sujeito fala, o que será delimitado por cada um dos verbos declarativos constantes nos
versos em tela, sem esquecer da cláusula restritiva apresentada pelas deusas no verso 28 da
Teogonia, “εὖτ' ἐθέλωμεν” (se queremos), na esperança de chegar a compreender que sentido
Hesíodo quis atribuir a cada um dos complementos daqueles verbos declarativos, isto é, que
sentido do termo estudado relacionando-o com outros. Para tanto, estaremos frequentemente
alterando as traduções sobre as quais estamos nos apoiando, de forma que, salvo quando
80
explicitado, todas as traduções dos textos gregos estudados até o final deste capítulo devem
Levet chama atenção para a singularidade de a língua grega arcaica apresentar não duas
palavras, mas dois grupos de palavras para significar verdade, sendo um composto de palavras
negativas e o outro, de palavras positivas, enquanto só havia uma única família de palavras
designando a noção de falso – ψεύδεα - e seus correlatos, mentira, erro e engano 135. As palavras
que compõem os dois grupos ligados à expressão da verdade, ainda que frequentes em Homero,
a família de ἀτρεκής 138, construída sobre o adjetivo τρέκος, que significa torto, deformado,
presente em documentos escritos em linear B, mas já ausente em Homero. Por último vem a
família de νημερτής 139, que é aparentada a ἁμαρτάνω. Das palavras positivas temos a família
135
Daí se pode reforçar o entendimento de que os dois grupos que designam a noção de verdade são
complementares, e não opostos. Eles tratam de modos distintos de apreensão, compreensão e
comunicação do real.
136
Cf. Levet (1976) p.14.
137
Levet confirma a derivação de ἀληθής do verbo λανθάνω a partir da constatação da ocorrência do
substantivo λήθη em Ilíada II.33. Cf. Levet (1976) p.14.
138
Cf. Idem, ibidem p.8.
139
Cf. Idem, ibidem p.12.
81
composta por ἐτεός, ἔτυμος, e ἐτήτυμος 140, cuja etimologia não é conhecida, mas que originou,
Na origem de todas essas palavras está o modo como os gregos arcaicos conceberam o
grande medida, fiéis até o período helenista: a realidade imprime sua marca no sujeito,
discurso que aporta sobre a verdade. A primeira delas é σάφα εἰδέναι, que conjuga o advérbio
“saber”. Daí resulta perfeitamente compreensível que a imensa maioria das metáforas gregas
ligadas ao saber façam referência ao sentido da visão, como é o caso das alegorias do Bem e
Outro verbo frequentemente modificado pelo advérbio σάφα é εἰπεῖν donde se percebe
que a clareza exigida ao ver e ao saber é transferida à comunicação deste saber. A única forma
que viu e sabe claramente que lhe transmita um relato seguro e claro.
Mas as palavras não conseguem reproduzir o real tal como ele é, uma vez que elas
constituem o veículo subjetivo de uma realidade objetiva. Dito de outro modo, o espírito
grego deu-se conta desde cedo que, de um lado, as palavras não são as coisas, e de outro, que
o indivíduo sensibilizado pelo real raciocina sobre o real que se instalou nele mesmo, através
140
Cf. Idem, ibidem p.8.
82
necessariamente subjetiva, das diferentes modalidades concretas dos modos de dizer a
verdade. Tal descrição é comparável à que o aspecto verbal dá à ação. Por isso, essas palavras
Desta forma, ἀτρεκής intervém após uma captura espontânea do real exterior, do qual é
feita em seguida abstração pela consciência que o apreendeu. Mas a transmissão desse real
isto é, a realidade que se instalou naquela consciência e que deve conservar a pureza objetiva
original. Há, por assim dizer, uma vontade ativa de passividade da parte do emissor do
do real subjetivo e, em seguida, sobre este mesmo real subjetivo, quando é necessária ou
suficientes para assegurar uma captura isenta de erro do real. Nestas condições, em
comparação ao real que é exterior, toda reflexão da consciência sobre ela mesma e sobre o
real subjetivo que ela contém só pode ser expressa por uma negação. O aspecto de verdade
refletido por esta palavra é tal que o que é qualificado pelo adjetivo concerne essencialmente a
141
Cf. Idem, ibidem p. 163 e 236-7.
142
Cf. Idem, ibidem p. 139-40 e 238.
143
Cf. Idem, ibidem p. 159 e 238.
83
As palavras positivas ἐτεός, ἔτυμος, e ἐτήτυμος, descrevem uma apropriação diferente.
Elas designam aquilo que é autêntico dentro de um sistema de conhecimento que faz da
verdade um elemento subjetivo, separado do real objetivo - ainda que este seja sua origem e
critério - mas que se revela conforme ao que é após uma verificação de identidade entre o dito
e o real. A primeira dessas palavras, ἐτεός, reflete uma realidade pensada e suposta que se
por conseguinte, ocorre na maioria das vezes como advérbio. Por fim, ἐτήτυμος parece ser a
criação mais recente da família e sua natureza permite atribuir àquilo que ela qualifica um
conteúdo mais objetivo, ou menos subjetivo. Por conta disso, ἐτήτυμος é suscetível de
corresponder ao mesmo tempo à realidade real verificável e verificada. Desse modo, a palavra
pode ser entendida como uma fusão das duas primeiras, implicando a existência de uma
conjectura verificada, situando-se no limite das reflexões sobre o real e a verdade possíveis à
Uma vez que ἀληθές é palavra por demais conhecida, dispensamo-nos de tecer maiores
considerações sobre ela nesta introdução, mas é certo que voltaremos a abordá-la ao longo do
estudo.
Por ora, basta salientar que as concepções subjetivas arcaicas do real e do verdadeiro
144
Cf. Idem, ibidem p. 191 e 239.
84
2.3.2 Sujeitos
Os sujeitos que falam são, evidentemente, as Musas, para os versos da Teogonia, e Ἐγώ,
2.3.2.1 Musas
depararem com um discurso que se apresenta como tendo sido inspirado pelas deusas gregas
do canto: uma leitura radicalmente cética pode enxergar aí um artifício retórico empregado
por um poeta, artifício este que aufere credibilidade ao próprio discurso, apresentando como
divinas palavras que foram proferidas por um mortal. Outros vão procurar reconhecer neste
tipo de obra categorias com as quais já estão familiarizados, tais como ontologia,
epistemologia ou ética, dando pouca atenção à forma com que o discurso foi construído.
Nesta redução, muita coisa é perdida: aqueles versos não foram compostos para
descrever um estado de coisas, mas antes, para produzir um efeito na audiência, o prazer, e,
Quando a audiência grega ouvia uma fala ritmada em versos hexâmetros dactílicos, já sabia,
de imediato, que o discurso ordinário havia cessado e que estava aberta uma porta para outro
tipo de discurso 145 e sabia pôr-se na sintonia própria – termo adequadamente musical – para
entrar em harmonia com o discurso que estava se anunciando. Este era a fala das Musas, dos
oráculos e, talvez, dos videntes. É exatamente assim que Hesíodo descreve o encontro da
transformadoras” 146.
145
Cf. Robbiano (2006) p.37-40.
146
μετάτροπα ἔργα τελεῦσι
85
A Grécia antiga e clássica conheceu muitos modos das Musas. Elas podem ter sido três,
cinco, sete ou nove. Elas podem ter sido filhas de Apolo ou de Zeus e, mesmo como filhas de
Zeus, elas podem ter sido filhas de mães distintas tais como Ploúsia, Píeros ou Mnemósine 147,
variando segundo as versões. Seu papel como inspiradoras do canto é atestado em diversos
poemas que nos chegaram. Apenas para citar os principais, as Musas figuram no primeiro
verso da Ilíada, da Odisséia, da Teogonia e em Os Trabalhos e os Dias, o que vale dizer que
Em Homero elas eram referidas no singular, sem que o poeta lhes atribuísse nome, local
de origem ou filiação 148, ainda que por vezes elas fossem invocadas no plural, como na
abertura do Catálogo das Naus 149, mas jamais nomeadas. Ou ainda quando o narrador
homérico invoca a ajuda das deusas para poder dizer quais heróis mataram e quais foram
mortos depois que Poseídon incitou os aqueus a retomarem a batalha que estava sendo
perdida para os troianos 150. O traço comum a todas essas variações é o papel que elas
poemas e a apresentação das deusas que o poeta nos legou parece ter sido amplamente
assimilada em toda a Grécia, não só devido ao caráter pan-helênico de sua poesia, mas
também, e talvez, sobretudo, pelo fato de que sua apresentação das Musas indica uma reflexão
com que eles se relacionam com as deusas. O primeiro, e mais evidente, é o fato de Hesíodo
ter se nomeado na Teogonia, no verso 22. Ainda que seu nome não esteja presente no segundo
147
Cf. Skarsouli (2006) p.210.
148
Cf. Il.1.1 e Od. 1.1.
149
Cf. Il.2.484.
150
Cf. Il.14.508 ss.
86
poema, não resta dúvida quanto à sua autoria. Assim sendo, o ἐγώ que quer dizer as verdades
O segundo é bem mais sutil. Homero, após invocar o auxílio da Musa, coloca-se do lado
“destas coisas, deusa filha de Zeus, conte-nos. 151” Nos versos 485-6 do canto II, no início do
Catálogo das Naus, além de colocar-se do lado da audiência, Homero assinala uma distancia
entre ele e a deusa que radica sobre a questão do conhecimento: “[sois] divinas, todo-
presentes, todo sapientes,/ nós, nada mais sabendo, só a fama ouvimos. 152” Hesíodo jamais
se identifica com a audiência. Desde o princípio, o poeta parece falar como co-autor.
Enquanto nos Hinos Homéricos a frase formular ἄρχομαι ἀείδειν precede o nome da divindade
a ser cantada, que tem seu nome no acusativo, isto é, como objeto do canto, Hesíodo faz uso
ἀείδειν ). Ele não canta as Musas nem elas cantam para ele e para a audiência. Ele canta com
ao lado das deusas como co-autor, é apenas o primeiro passo de uma caminhada que o
permitirá falar por si próprio sem que com isso sua fala tenha uma autoridade menor.
Entendemos também que esta atitude foi, se não a primeira, certamente a mais antiga que se
constituição deste discurso humano autônomo foi lenta. Muito tempo depois de Hesíodo,
pensadores hoje reconhecidos como filósofos, tais como Parmênides, que foi levado pelas
filhas do Sol até a presença da deusa, Empédocles, que era ele mesmo um deus, e mesmo
151
Tradução e grifo nosso.
152
Tradução de Haroldo de Campos, grifo nosso.
87
Sócrates, que sempre acatou as interdições de seu dáimon, ainda lançavam mão do divino
2.2.3.2 Ἐγώ
ἐγώ, que é o narrador do poema, é uma tarefa bastante complexa. Em primeiro lugar, porque é
impossível dissociá-lo por completo das Musas e a investigação sobre as deusas no item
anterior já manifestou isso de forma explícita: é por obra das Musas que existem poetas e é
Em segundo lugar, porque ao investigar este ἐγώ, pretendemos dar conta, ainda que
minimamente, dos narradores dos dois poemas hesiódicos aqui estudados, sem entrar na
Hesíodo 153. Para além de sua possível existência factual ou não, Hesíodo foi uma construção
preservação deste mesmo espírito, precisamente através do conjunto de poemas que o povo
Portanto, ἐγώ, identificado com Hesíodo, é uma dupla construção: das Musas que o
fizeram nascer para o mundo da poesia e do povo grego que não o deixou morrer como poeta.
Estes dois acontecimentos parecem-nos suficientes para deixar as questões históricas de lado
e acolher a existência de Hesíodo, bem como a autoria dos poemas que lhes foram atribuídos.
153
Alguns eruditos contemporâneos, tais como Nagy e Lamberton, tendem a interpretar Hesíodo como
a cristalização de uma tradição de poesia didática, bem como sua voz pessoal como uma construção
genérica no seio de uma tradição. Cf. Clay (2003) p. 3; Koning (2010) p. 7, n. 24, sustenta que a
questão é irrelevante, uma vez que os gregos tomaram a existência de Homero, Hesíodo e de
Anacreonte como tão reais quanto a existência de seus deuses, e sobre esses erigiram sua cultura.; Já
Naddaf (2005) p. 66, vê Hesíodo como uma personagem histórica, que viveu numa sociedade em vias
de secularização. que testemunhou e participou de importantes câmbios históricos. Nossa posição
emparelha com a de Naddaf.
88
O narrador do primeiro poema é um pastor. Não se pode afirmar com segurança que o
do segundo seja um camponês: ele jamais diz que o é ou foi. Mas talvez ele nos dê uma pista:
ao falar da navegação, ele diz categoricamente não ser versado no assunto e solicita o auxílio
das Musas para discorrer sobre a questão 154. Já para falar sobre os trabalhos do campo, bem
como qualquer outro assunto no decorrer do poema, esse auxílio não é solicitado, o que
O narrador do primeiro poema fala da origem de todas as coisas desde o princípio 155 (ἐξ
mundanas e cotidianas e, mesmo sem recorrer às Musas, seu tom é de autoridade, ainda que
poucas vezes seja autoritário. Seu maior desejo é endireitar um caráter mal formado através de
Como, então, fundir duas vozes tão distintas em uma única pessoa? O primeiro passo é
manter os dois poemas na ordem exata em que vêm sendo referidos. Em outras palavras, é
passo é mergulhar naquilo que os dois narradores têm em comum, isto é, o recurso às Musas.
Já ficou claro que a presença delas é muito maior no primeiro poema do que no segundo. Isso
se dá porque as deusas vão se retirando à medida que Hesíodo vai se tornando músico. Dito
de outra forma, a inspiração que as Musas causaram a Hesíodo não era da ordem da mania, do
delírio poético que Platão descreve no Fedro 157 e no Íon 158, que faz com que os poetas digam
coisas sábias sem serem, eles mesmos, sábios nas coisas que dizem. Depois de cantar a
Teogonia, Hesíodo aprendeu a ordem de Zeus e é pautado nela, como já fica evidente no
proêmio de Os Trabalhos e os Dias, que ele olha para o mundo e não só a reconhece como
154
Cf. Trab. 646-663.
155
Teog. 115.
156
Teog. 114.
157
Fedro 265b
158
Íon 533e
89
intervém para corrigir os desvios desta ordem, o que quer dizer que ele se vê – e foi visto
Conforme veremos, os verbos empregados por Hesíodo servem para demarcar os limites
2.3.3.1 Λέγειν
Hesíodo não nos dá muitos detalhes quando narra seu encontro com as Musas, assim
sendo é preciso operar uma reconstrução da cena. É de se supor que ele estivesse só. Wissman
assinala que mesmo os poucos detalhes fornecidos por Hesíodo já são característicos de um
encontro com o divino. Em primeiro lugar, ele estava nas encostas do Monte Hélicon. As
montanhas são locais propícios para o encontro entre um deus e um homem. Suas encostas são
uma região intermediária entre o mundo dos deuses, o cume, e o mundo dos homens, o vale.
Os carneiros que pastoreava são as vítimas sacrificiais mais comuns. Por fim, o pastor mesmo é
alguém cuja atividade exige grandes períodos de isolamento neste ambiente limítrofe entre
humano e divino, tendo como única companhia precisamente as vítimas sacrificiais 159. Se isto
procede, as deusas dirigem suas palavras a um homem que representa todos os pastores, cuja
rudeza agreste e vergonha de sua condição que se reduz à animalidade do ventre são, por sua
reforçado pelo fato das Musas abrindo sua fala na segunda pessoa do plural: “Patores agrestes,
vis infâmias (...)”. Só mais adiante, ao receber o cetro, a voz e a instrução do canto 160, é que
estará consumada a transformação do pastor em poeta. Enquanto as Musas falam, Hesíodo está
em plena metamorfose.
159
Wissman (1996) p. 26-7.
160
Cf. Teogonia v.30-4.
90
Se a transformação de pastor em poeta é o cerne da questão desta passagem, deve haver
carreado por cada verbo. O discurso ligado a λέγειν - ψεύδεα πολλὰ - corresponderia então ao
Como há muito mais pastores do que poetas, a transformação implica também numa
cosmos, não podem mesmo ser em grande número. De fato, ao término do proêmio, o poeta
pede às Musas que cantem, desde o princípio, as coisas que por primeiro vieram a ser, e estas
Por outro lado, πολλὰ ainda requer algum esclarecimento. Deve ser percebido sob a
eles diferentes, ψεύδεα πολλὰ podem ser muitas e distintas e assim, à capacidade humana de
correspondem distintas formas de discurso que cobrem um amplo espectro que parte da
semelhança com a realidade até a mentira completa, ou ao engano perfeito, ou ao erro mais
pelas Musas de Apáte - engano. “As Musas sabem dizer a Alétheia e a Apáte, que se
161
Teog. 114-120. ταῦτά μοι ἔσπετε, Μοῦσαι Ὀλύμπια δώματ’ ἔχουσαι/ ἐξ ἀρχῆς, καὶ εἴπαθ’, ὅτι
πρῶτον γένετ’ αὐτῶν. /ἤτοι μὲν πρώτιστα Χάος γένετ’· αὐτὰρ ἔπειτα /Γαῖ’ εὐρύστερνος, πάντων ἕδος
ἀσφαλὲς αἰεὶ /ἀθανάτων οἳ ἔχουσι κάρη νιφόεντος Ὀλύμπου/, Τάρταρά τ’ ἠερόεντα μυχῷ χθονὸς
εὐρυοδείης,/ ἠδ’ Ἔρος, ὃς κάλλιστος ἐν ἀθανάτοισι θεοῖσι.
Dizei-me isto, Musas que tendes o palácio olímpico/dês o começo e quem dentre eles primeiro
nasceu./ Sim bem primeiro nascei Caos, depois também/ Terra de amplo seio, de todos sede
irresvalável sempre,/ dos imortais que têm a cabeça do olimpo nevado,/ e Tártaro nevoento no fundo
do chão de amplas vias,/ e Eros, o mais belo entre Deuses imortais.
91
assemelha (...) à Alétheia. A fórmula é notável: em primeiro lugar, porque representa um
estágio intermediário entre o plano mítico, o da dupla Apáte, e o plano racional, o das
engano da ambiguidade. 162” Desta forma, o problema da ambiguidade da fala das deusas
Essa multiplicidade dispersa é reunida sob o verbo λέγειν cuja raiz, λεγ, remete a contar,
enumerar, arranjar, ou ainda, reunir e catalogar. Em uma palavra, a função das Musas.
que no extremo pertence ao homem e aos seus limites 163. Nesta leitura, as deusas manifestam
Nesse sentido, convém lembrar que Empédocles, que se apresentava como um deus,
denunciava a diferença de linguagem entre deuses e os mortais efêmeros que, incapazes de ver
“nascer” ou “morrer 164”. Perante esta limitação humana, o deus concordava em seguir aquele
costume 165.
tão grande que ele é obrigado a recorrer à Musa 166, deusa especialista da palavra para que esta
lhe ensine como falar com os homens 167. A figura da inspiração sofreu aqui uma inversão de
162
Detienne (1988) pág. 42-43.
163
Leclerc (1993) p. 211.
164
Cf. DK 31 B 8, 9 e 15.
165
DK 31 B9.5. ἣ θέμις <οὐ> καλέουσι, νόμωι δ' ἐπίφημι καὶ αὐτός.
166
Morgan observa que Musa é uma divindade ausente na cosmologia de Empédocles. Cf. Morgan
(2000) pág. 61. Isto pode ser entendido como mais um indício da influência de Hesíodo no
pensamento de Empédocles.
167
DK 31 B 3.3-4. καὶ σέ, πολυμνήστη λευκώλενε παρθένε Μοῦσα,/ ἄντομαι, ὧν θέμις ἐστὶν
ἐφημερίοισιν ἀκούειν,
E a ti, de muita memória, de alvos braços, ó virgem Musa/ eu te peço, do que é lícito a efêmeros ouvir.
Tradução de José Cavalcante de Souza.
92
uso: enquanto as Musas de Hesíodo lhe transmitem um saber que nenhum mortal alcança, as
Musas de Empédocles ensinam-lhe a falar, através de língua dos homens, o saber que ele, por
“Que tais coisas sejam consideradas semelhantes às reais.”- Heráclito – “O senhor, de quem
é o oráculo em Delfos, nem diz nem oculta, mas dá sinais” - e Parmênides que salientou a
Desta forma, Hesíodo abriu a questão clássica acerca da verdade para a poesia e para a
filosofia.
2.3.3.2 Γηρύσασθαι
autoridade. Neste sentido, ao empregar este verbo solene, as Musas a reivindicam para si e
Leclerc observa que o verbo γηρύσασθαι só é empregado por duas vezes em Hesíodo e
jamais em Homero. Na poesia épica, sua única ocorrência fora de Hesíodo se dá no Hino
verso 260 de Os Trabalhos e os Dias, que mostra que Díke, quando ultrajada, corre para junto
de Zeus “e denuncia (γηρύετ) a mente dos homens injustos. 170”. No Hino Ηomérico a Hermes
168
Ver os textos em grego no capítulo anterior.
169
Nagy (1996) p. 41.
170
Trab. 260. γηρύετ’ ἀνθρώπων ἀδίκων νόον.
93
o verbo ocorre no momento em que este deus, para dissolver de vez a tensão instaurada entre
ele e Apolo por conta de ter roubado as vacas do irmão, toma a lira e, como na tradução de
Ordep Serra, “soltou (γηρύετ) a voz num rompante, som amável a seguia. 171”
Talvez o conteúdo do canto de Hermes contribua para algum esclarecimento do que está
em questão. Tomando a lira e lançado a voz, Hermes proclamou os deuses e a terra escura e
contou como eles se originaram, bem como o lote que coube a cada um. A primeira deusa a
ser gloriada foi Mnemósine, a mãe das Musas. Em seguida, em ordem de antiguidade, Hermes
celebrou a geração de cada deus imortal 172. Em outras palavras, o deus cantou uma teogonia.
A passagem guarda tão nítida semelhança, que chega ao ponto de parecer ser uma síntese dos
Olimpo, logo após a cena da conversão de Hesíodo em poeta. Lá elas gloriam no canto o ser
venerando dos deuses desde o começo: a Terra, o Céu e os que deles nasceram.
Na Teogonia, o canto das Musas tem sua finalidade explicitada no verso 55: elas cantam
para oblívio de males e pausa de aflições, exatamente o efeito buscado, e atingido, por
Hermes ao lançar mão de semelhante canto. Parece que não há atribulação que resista à
dessa ordem afeta os deuses, o que faz com que Díke permaneça entre os homens atenta a
Deste modo, γηρύσασθαι parece dizer respeito a um modo especial de enunciação que
assinala mais a autoridade de quem fala do que o conteúdo da mensagem veiculada. Ainda
que a deusa Díke anuncie algo que não seja da ordem das coisas eternas, por tratar-se das
171
H.H. Hermes, 426. γηρύετ' ἀμβολάδην, ἐρατὴ δέ οἱ ἕσπετο φωνή.
172
Cf. Hino Homérico a Hermes, v. 428-32.
94
múltiplas possibilidades do homem de transgredir a ordem fixada por Zeus, apenas um deus
estabilidade das coisas eternas, assim como sobre a multiplicidade do presente na sua
totalidade – e mais uma vez é preciso atentar para o fato de Hesíodo ter sido instruído, no
verso 32 da Teogonia, a cantar as coisas que eram e que serão, mas não das que são – a
possibilidade de comunicação humana fica restrita a reunir – λέγειν – e narrar, como espero
concessiva do verso 28, “se queremos – εὖτ’ ἐθέλωμεν”, entendemos que esta observação das
deusas está de algum modo relacionada com a convocação de Hesíodo para o canto. Em
nenhum momento o poeta apresenta, como Parmênides o fez, alguma justificativa para a sua
eleição. Tudo o que ele diz é que pastoreava. Não nos apresenta nenhum mérito, seja por
origem, seja por conduta, seja por qualquer outro critério. Pensamos então que as deusas o
escolheram por um ato de vontade e através deste ato, que guindou Hesíodo de sua condição
A famosa e enigmática passagem da fala das Musas está perfeitamente integrada aos
versos que a antecedem, assim como aos subsequentes. No verso 25, a divindade das Musas é
acentuada e contrastada com a humanidade bruta do verso 26. Elas sabem dizer as coisas
como elas se mostram para os homens, verso 27, e também anunciar coisas que só os deuses
podem conhecer, verso 28. O poeta dá seu testemunho desta fala das deusas verdadeiras –
pessoa, verso 22, e passa a falar na primeira, versos 29 e 30. Está consumada a conversão do
95
pastor em poeta. Só agora ele pode ter acesso “às coisas que serão e que eram”, bem como
mostram a ele sob um novo aspecto: deixam de aparecer como aproximações da realidade,
ψεύδεα πολλὰ e ele pode conhecer e transmitir as coisas como elas são, ἐτήτυμα μυθησαίμην.
2.3.3.4 Mυθησαίμην
Para Roussaeu 173, ἀληθέα γηρύσασθαι foi cunhada com o firme propósito de contrapor-se
a ἐτήτυμα μυθησαίμην. Dentre os diversos exemplos que o autor fornece sobre a ocorrência da
fórmula homérica ἀληθέα μυθήσασθαι 174, aquele que ocorre em Ilíada VI. 682- 684 é o que
bater-se com Aquiles, Heitor vai ao palácio para despedir-se de Andrômaca e do filho. Lá
chegando não os encontra e indaga a uma criada sobre o paradeiro da esposa, ao que esta lhe
responde:
O relato que a criada dá, nos versos que se seguem, sobre o real paradeiro de
Andrômaca assemelha-se ao depoimento de uma testemunha que revela algo que ela mesma
viu ou ouviu, isto é, algo que ela sabe a partir de sua própria experiência.
173
Cf. Roussaeau (1996) p. 113.
174
Cf. Il.6.382; Od.14.125;17.15;18.342.
96
Da mesma ordem de verdade parece ser a informação que Deméter, no Hino Homérico
Enquanto a expressão aqui empregada para “contar a verdade” foi ἐτήτυμα μυθήσασθαι,
Pouco adiante, no mesmo hino, há uma ocorrência de ἀληθέα μυθήσασθαι que pode
contribuir para melhor compreensão da escolha de Hesíodo; após ser informada por Hélio que
sua filha tinha sido raptada por Hades com a aquiescência de Zeus 176, Deméter deixa o
Olimpo e, assumindo o aspecto de uma velha vai ter à casa de Celeu, rei de Elêusis 177.
Indagada pelas filhas deste quem era e o que a trazia ali, deusa lhes responde:
Ainda que Rousseau não o assinale, é importante observar que o conteúdo dos três
175
H.H. Dem. 44-46.
176
Cf, H.H. Dem.74-87.
177
Cf, H.H. Dem.93-104.
178
H.H. Dem. 120-121.
179
H.H. Dem.122-132.
97
coisas acessíveis à experiência sensível. O primeiro e o terceiro foram introduzidos pela
mesma fórmula: ἀληθέα μυθήσασθαι, enquanto o segundo o foi por ἐτήτυμα μυθήσασθαι, a
Assim sendo, a observação de Stoddard acerca do uso hesiódico dos termos ἀληθέα e
ἐτήτυμα pode contribuir para esclarecer o sentido que Hesíodo quis dar ao verso 10 de Os
Hesíodo o primeiro termo está ligado à ideia de “não esquecimento”, coisas eternas que, por
Como foi visto acima que o dizer de um deus é um ato de autoridade que é designado
pelo verbo γηρύσασθαι, a fórmula ἀληθέα μυθήσασθαι resulta inconsistente. Além do mais, o
termo, ἐτήτυμα, termo que será examinado abaixo, parece apontar para um tipo de verdade que
é mais implicada com as coisas mortais e mutáveis, coisas que o homem só pode conhecer
pela experiência direta e, assim mesmo, em parte, o que vai solicitar um modo próprio de
enunciação.
Ora, também foi visto acima que a possibilidade de comunicação humana ficou restrita
a reunir – λέγειν – e narrar – μυθησαίμην. Dentre estas duas, μυθησαίμην aponta, como
assinala Couloubaritsis 181, para “um modo de falar carregado de autoridade e que produz um
efeito.” Deste modo, a opção por ἐτήτυμα μυθησαίμην parece surgir de modo quase natural
Mas a questão permanece em aberto enquanto não nos debruçarmos sobre os objetos
180
Cf. Stoddard (2004) p. 84.
181
Couloubaritsis (2008) p.17.
182
Notar a equivalência métrica entre ἀληθέα γηρύσασθαι, ἀληθέα μυθήσασθαι e ἐτήτυμα
μυθησαίμην.
98
2.3.4 Objetos
das palavras gregas a serem estudadas é uma tentativa de descrever o modo como um sujeito
que percebe e pensa entra em contato com o real que se instalou nele - que é diferente da
realidade – reflete e tira daí qualquer coisa antes de transmiti-lo a outro. Ciente da
possibilidade de uma distorção – os termos que expressam a verdade por meio de negação,
ἀληθής, ἀτρεκής νεμερτής, são evidência disso - o pensamento grego arcaico procurou
O problema da verdade está ligado então, por um lado, a uma consciência e por outro à
conformidade dessa consciência à realidade: a verdade é tanto o objetivo a ser alcançado por
uma consciência quanto matéria de intercâmbio verbal por meio do diálogo. Este supõe a
comunicação, entre duas ou mais consciências, de um saber que é - nunca é demais insistir -
Uma vez que a ocorrência das palavras ligadas ao verdadeiro e ao falso em Hesíodo é
compreendê-las, bem como para detectar alguma modificação de emprego que o poeta de
183
Cf Levet (1976) p. 4, 22, 57 e 73.
99
2.3.4.1 Ἀληθέα
Ἀληθέα, ou melhor, seu singular, ἀληθής, é a palavra mais antiga do sistema grego de
expressão da verdade. Trata-se de um adjetivo que está carregado de uma concepção sensorial
amplamente aceita, mas como esse verbo possui o duplo significado de “escapar à
*ληθος 185, presente na escrita micênica, mas já desaparecido ao tempo de Homero, que é
ignorância, ausência de contato com alguma coisa. O sentido de “esquecer” é mais recente e
está registrado no verso 227 da Teogonia de Hesíodo como Λήθη, a divindade filha de Éris,
inicial *ληθος de ignorância e velamento que é dissipado pela passagem da luz sobre a
consciência. O objeto ou fato desvelado permanecerá visível na mente enquanto estiver retido
pela memória. Se a memória o perde, o velamento retorna, agora como esquecimento, Λήθη.
Dessa forma, é perfeitamente possível que λήθη 186 signifique simultaneamente escapar à
percepção e esquecer. Por outro lado, é somente no relato que ἀληθής pode cumprir seu duplo
184
Cf. Levet (1976) p. 90 e 104.
185
Cf. Idem, ibidem p. 16, 96 e 240.
186
A ocorrência de λήθη como substantivo é atestada em Il.II. 33.
100
papel de “não-velado-desvelante”: não-velado para quem sabe e fala claramente e desvelante
Do exposto, fica evidente também que essa concepção de verdade só pode ser expressa
pragmática de ἀληθής: a palavra está destinada ao diálogo, sobretudo o diálogo direto, onde a
veracidade de ἀληθής está sempre implícita. Uma vez que a percepção implica em
espontaneidade, não há, nesse estágio da relação do pensamento grego com a aquisição e
de uma terceira pessoa ou narrativa em discurso indireto parece modificar a natureza da noção
descrita pela palavra, mas não nos ocuparemos dela aqui, já que os versos de Hesíodo que nos
Nestor, no canto III a Odisséia, quando o jovem pergunta ao ancião sobre as condições
187
Cf. Levet (1976) p.84
101
Segundo Levet, esta é a situação básica de um diálogo onde a solicitação da verdade
está implicada. Se Telêmaco emprega a palavra no acusativo neutro singular, é porque o real
lhe é algo fundamentalmente ignorado. Trata-se de uma unidade abstrata e velada. Já para
Nestor, que conhece, o real é visado como algo concreto e múltiplo, daí o uso do plural. Há
Uma passagem da Ilíada nos permite contrastar a idéia de ἀληθής com a de νημερτής. No
canto VI, Heitor está à procura de Andrômaca para despedir-se e interroga algumas servas
Impaciente, ele lhes apresenta diversas hipóteses, dando-lhes, por conseguinte, margem
de escolha. Ora, a escolha é sempre objeto de livre apreciação. Mesmo se a informação obtida
for objetiva, isto é, verdadeira, ela não deixará de ser subjetiva dada a possibilidade de
escolha introduzida pelo solicitante. Por isso ele introduz sua demanda com o adjetivo
νημερτής 189.
realidade que não é patente, estabelece um limite entre o que é e o que é dito. Neste caso, tem-
188
Cf. Idem, ibidem p.71.
189
Cf. Idem, ibidem p. 148.
102
se uma interpretação, coisa que o espírito arcaico percebia como uma nova realidade que,
caso se mostre de acordo com o real, é qualificada como ausência de erro 190.
O critério de verdade reside tanto no espetáculo objetivo da vida – sua fonte e referência
final – quanto na atitude interior daquele que o descreve. Esta modalidade de expressão põe
aquela que toma a palavra relata ao senhor, da forma mais pura e simples possível, o que elas
Os adjetivos ἀληθής e νημερτής não são sinônimos. As diferenças que os separam estão
enquanto a serva a possui. A passagem examinada confirma que, para o espírito grego
construído 193.
Uma passagem no canto XIV da Odisséia permite observar como ἀληθής se relaciona
com ψεῦδος. Conversando com Ulisses ainda disfarçado como mendigo, Eumeu queixa-se
dos viajantes que chegam ao palácio de Penélope contando histórias mirabolantes sobre o
190
Cf. Idem, ibidem p.141.
191
Cf. Idem, ibidem p.142.
192
Cf. Idem, ibidem p.80.
193
Cf. Idem, ibidem p.149.
103
enganam, não querem contar [as coisas] verdadeiras.
A realidade é o critério para que Eumeu possa afirmar que eles enganam (ψεύδοντ’):
Odisseu não retorna. O que se contrapõe ao engano dos visitantes é uma verdade negada -
οὐδ’ ἐθέλουσιν. Nenhum desses contadores de histórias jamais viu ou ouviu falar de Odisseu.
A verdade, nesse caso é a humilde confissão de ignorância. O engano não é uma deformação
conhecimento – no caso, da falta dele – e o falante se constitui numa barreira entre o ouvinte e
a realidade. Se, ao contrário, a realidade é interior ao sujeito que fala, o ouvinte é privado, não
estabelecia uma diferença marcante entre a realidade e o real conhecido e procurava um modo
de expressão pela palavra que reduzisse ao máximo essa diferença: ao tempo de Homero, o
sabe tem ao seu dispor, se assim o desejar, outras formas de expressão da verdade, onde cada
uma delas corresponde a um modo específico de raciocínio que lhe complete o conhecimento,
194
Cf. Idem, ibidem p. 82-86.
104
Leclerc elenca duas posições 195, sem, entretanto, discuti-las. Para a primeira posição, o
adjetivo designa a qualidade das coisas: dizer ἀληθής significa “reproduzir num discurso
qualquer coisa que existe e não se esconde do mundo.” Para a segunda posição, trata-se de
uma qualidade do enunciado, isto é, “dizer a verdade de forma que o objeto em questão seja
trazido à luz, não fique mais escondido.” Ela destaca ainda a possibilidade de se associar a
palavra em oposição ao esquecimento. Bom exemplo disso é a apresentação que Hesíodo faz
de Nereu, nos versos 233-36 da Teogonia. Lá o velho do mar é descrito como verdadeiro, ou
sincero (ἀληθής), porque não esquece as leis (οὐδε θέμιστων λήθηται) e lembra que em Homero
este termo é empregado em situações que supõem uma exposição completa do objeto ou fato.
Stoddard 197 investiga mais fundo essa questão. Para ela, o que importa aqui não é tentar
estabelecer a etimologia precisa de ἀληθής, mas antes entender qual o sentido que Hesíodo
atribuiu à palavra. Para tanto, recorre a três passagens da Teogonia. A primeira compreende
195
Cf. Leclerc (1993) p.69-70 e nota 214.
196
Cf. Wissman (1996) p.18.
197
Cf. Stoddard (2004) p. 81-2.
105
Surge daí um aspecto paradoxal: as filhas de Zeus e Memória (Mnemósine) têm por
função o esquecimento, aqui expresso com uma palavra, λησμοσύνην que pertence à mesma
A segunda passagem abrange os versos 102 e 103, descreve o estado a que é levado
aquele que ouve o cantor, servo das Musas, hineando a glória dos deuses:
Por fim, Stoddard recorre à apresentação de Nereu, entre os versos 233 e 236:
Nereu é ἀληθής, que Leclerc traduziu como “sincero, verdadeiro”, e que Torrano
traduziu como “sem esquecimento”. Ele é aquele que não esquece, o que equivale dizer
esquecimento, a segunda mostra que esquecer é o mesmo que não lembrar, e a terceira, num
106
movimento especular, mostra que lembrar é não esquecer. Mas ainda há algo a acrescentar e
para isso é preciso retornar à diferença entre o saber das Musas e o saber que elas inspiram a
Hesíodo.
No verso 38 que o canto das Musas abrange as coisas que são, as coisas que serão e as
que eram (τά τ' ἐόντα τά τ' ἐσσόμενα πρό τ' ἐόντα). Já foi visto que as deusas podem dizer tudo o
que pode ser dito a respeito destas coisas, isto é, elas podem dizer verdades e falsidades. Por
outro lado, no verso 32, elas ordenam Hesíodo a cantar as coisas que serão e as que eram (ἵνα
ἐόντα). No contexto das duas primeiras passagens estudadas, as coisas que são (τ' ἐόντα)
designam exatamente as coisas que devem ser esquecidas: os males, as aflições e os pesares,
coisas passageiras, coisas que o homem já conhece através de e dentro dos limites de sua
começar a ser compreendido a partir do contraste entre as coisas eternas (τά τ' ἐσσόμενα πρό τ'
ἐόντα) e as coisas que são (τ' ἐόντα). Acreditamos que o exame de ἐτήτυμα e de ψεῦδος ajudará
2.3.4.2. Ἐτήτυμα
Esta palavra ocorre sob duas formas na obra de Hesíodo e sempre no plural. Na sua
forma simples, ἔτυμα, no verso 27 da Teogonia e na sua forma redobrada, ἐτήτυμα, no verso 10
de Os Trabalhos e os Dias. Uma vez que a forma redobrada é a forma que Hesíodo vai
empregar para caracterizar o seu próprio discurso no segundo poema, será esta que vamos
198
Stoddard acompanha Clay (2000: 65-67) no entendimento de que não há distinção entre as coisas
que serão e as que foram. Cf Stoddard (2004) p. 80, n.49. Seguimos as duas autoras no que toca este
entendimento.
107
guardar a partir do próximo capítulo. Na presente etapa do estudo as formas simples e
redobradas serão respeitadas de acordo com a ocorrência em cada caso particular visitado.
Clay sustenta a possibilidade, rejeitada por Levet 199, das palavras dessa família serem
derivadas de εἶναι (ser, existir) e designa - talvez a ponto de se confundir com elas - as coisas
verificadas por um critério objetivo, quase experimental e parece estar ligada ao verbo ἐτάζω,
que significa “verificar”. Estas realidades experimentais estão ao alcance de todos os homens,
mesmo os mais rudes e contrastam, neste sentido, com as ἀληθέα que referem a algo além do
Arrighetti 202entende que Hesíodo polemiza diretamente contra Odisseu, sustenta que as
ἔτυμα do verso 27 da Teogonia são as coisas verdadeiras de onde as ψεύδεα πολλά tomam o
aspecto, como é o caso das mentiras de Odisseu, que são semelhantes às verdades 203. Já com
cenário poético grego uma inovação no modo de expressão característico da tradição épica:
ele renuncia ao que era um privilégio para Homero, isto é, o conhecimento de uma linguagem
dos deuses e constrói seu poema numa linguagem humana. Disto discordamos em parte, já
que entendemos que Hesíodo coloca-se como uma ponte entre estas duas instâncias, o divino
e o humano e, para fazê-lo, ele deve forçosamente conhecer a linguagem dos deuses, mas
199
Cf. Levet (1976) p.3.
200
Cf. Clay (2003) p. 60-61.
201
Cf. Wissman (1996) p. 18.
202
Cf. Arrighetti (1996) p. 60.
203
Od. 19.203. ἴσκε ψεύδεα πολλὰ λέγων ἐτύμοισιν ὁμοῖα·
108
Stoddard 204 faz uma leitura semelhante deste verso. Segundo a autora, o recurso a
ἐτήτυμα μυθησαίμην é a marca de que Os Trabalhos e os Dias não é um poema inspirado, mas
Acatando a observação de Levet 205 de que ἐτήτυμα engloba as outras duas palavras da
Os versos 290-330 do canto II da Ilíada contam que pouco antes de deixar Áulis, um
presságio se apresentou aos gregos e foi interpretado por Calcas como o sinal da vitória sobre
os troianos no decurso de dez anos. Nove anos são passados e os aqueus, desgastados,
idêntico ao real objetivo. O que está em jogo aqui é a noção essencial de verificação e ἐτεὸν
No canto XX da Ilíada, Enéias critica os guerreiros que cobrem seus adversários com
injúrias e os compara às mulheres encolerizadas que nas suas discussões lançam, umas às
204
Cf. Stoddard (2004) p.84.
205
Cf. Levet (1976) p.239.
109
uns verdadeiros, outros não. 255
O aêdo limitou-se a descrever as asserções e ἐτεά funciona aqui como adjetivo. Levet
acrescenta que para um observador neutro, estes insultos constituem hipóteses que podem e
devem ser verificadas. É a noção subjetiva de hipótese que determina o emprego de ἐτεός 206.
está em jogo.
Aqui, com precisão (ἔτυμος) designa um elemento subjetivo que se revela positivamente
objetivo. É a palavra que convém para qualificar o conteúdo de uma afirmação quando se
apresenta-se a Penélope e relata um encontro que teria tido com o próprio Odisseu. O narrador
206
Levet (1976) p.168.
110
O comentário é paralelo ao diálogo e é o narrador quem julga a personagem. Este sabe
que Odisseu mente e pode constatar que as ficções narradas assumem a aparência de relações
verossímeis. Os elementos ἔτυμα corresponderiam ao real tal como ele seria se as palavras se
Sobre ἔτυμος, Levet conclui que representa o conteúdo de toda conjectura, afirmação ou
evocação que reflete fielmente o real. A palavra é empregada quando é preciso salientar que,
estando a realidade ausente, mascarada ou escondida por trás de uma visão ou de um relato
subjetivo, o enunciado coincide com o que é objetivamente, sem que esteja aí implicado um
Levet alerta que não é difícil nem descrever nem interpretar os empregos homéricos da
palavra, mas é difícil explicar sua evolução semântica e precisar a natureza exata da categoria
Só há uma ocorrência da palavra como adjetivo na Ilíada. No canto XXII. 438-9, o aêdo
conta que Andrômaca ainda não sabia da morte de Heitor porque nenhum mensageiro
207
Cf. Levet (1976) p.165.
208
Cf. Idem, ibidem p.183.
209
Notar a semelhança entre este verso e H.H. Dem. 46: οὔτ' οἰωνῶν τις τῇ ἐτήτυμος ἄγγελος ἦλθεν.
111
O caráter de verdadeiro do mensageiro é garantido pelo fato de que suas palavras
representariam a realidade tal como ela é. Todas as demais ocorrências da palavra na Ilíada
são adverbiais.
No canto I. 558-9, Hera, após ter visto Tétis abraçada aos joelhos de Zeus, entende que
É importante assinalar aqui o caráter de suposição (ὀΐω), por parte de Hera. A esposa de
Zeus não dispõe, ao menos no momento, de uma realidade factual contra qual ela possa
realizar a verificação.
No canto XIII. 111-2, uma nova hipótese é considerada como idêntica ao que é.
Agamêmnon é apontado como o responsável pelas sucessivas perdas dos gregos e pela
No canto XVIII. 128, após Aquiles ter anunciado à mãe sua decisão de voltar ao
combate para vingar Pátroclo, mesmo sabendo que destino lhe reservava a Moira, sua mãe
112
Sim, filho, se tais são realmente os fatos, não é mal
Nas três ocorrências aqui estudadas, ἐτήτυμον foi empregado como advérbio e pode ser
Na Odisséia ἐτήτυμον ocorre apenas uma vez como advérbio, no canto IV. 157, quando
Pisístrato, filho de Nestor, confirma a suspeita de Menelau que supunha ter diante dele
reforça a solicitação de um relato em conformidade com a realidade precisamente por ser este,
dentre todos os advérbios possíveis, o que possui o aspecto mais objetivo e o menos subjetivo,
destacando-se assim das demais palavras da família: uma vez que ἐτεός e ἔτυμος remetem a
hipóteses, a ação do sujeito sobre o conteúdo do real que está gravado nele é evidentemente
mais forte. Com ἐτήτυμος a intervenção do sujeito sobre o real se pretende bem mais atenuada,
Já quando a palavra é empregada como adjetivo, uma ligeira diferença com relação à
Ilíada pode ser notada: nas duas ocorrências, há uma negação envolvida. No primeiro caso, no
verso 241 do canto III, Telêmaco afirma a Mentor que não há possibilidade de Odisseu
retornar:
põe em dúvida a intenção da ama de lhe relatar a realidade subjetiva que se instaurou na sua
retorno de Odisseu não é encarado como uma hipótese, mas como uma afirmação que não
corresponde à realidade. Assim sendo, não se trata de ἔτυμος nem de ἐτεός, ambos mais
próximos de hipóteses a serem confirmadas. Tampouco houve uma revelação de algo oculto,
o que solicitaria o uso de ἀληθής, nem relato não deformado do real, que demandaria ἀτρεκής,
nem mesmo apreensão isenta de erro, onde, nesse caso, νημερτής seria mais apropriado. Desta
forma, ἐτήτυμος surge aqui como a própria realidade factual, ainda que, no caso em tela esta
A partir do que acabamos de estudar, é possível ler a fórmula ἐτήτυμα μυθησαίμην como
um discurso que fala sobre as coisas humanas, sobre o modo humano de apreender a realidade
e de agir nela, proferido por alguém investido de autoridade para falar sobre estas coisas, mas
isto não é tudo. É preciso ter sempre em mente que ἐτήτυμα carrega sempre consigo o caráter
de hipótese, o que convida à verificação e faz dela a palavra mais adequada para um discurso
114
2.3.4.3 Ψεύδεα
Ψεῦδος e ψεύδεσθαι ainda não tinham, à época homérica, a significação que vieram a
alcançar no período clássico. Aqui eles se opõem a ἀληθής e sua família. Lá eles formam o
quase contrário de ἔτυμος, na medida em que sua presença implica a existência de uma
objetiva.
conhecimento seguro da matéria evocada impede, salvo ação contrária da consciência, a sua
dos elementos que dispõe, correndo o risco de errar 210. Vale notar que, se o objeto se subtrai,
ele permanece encoberto, logo não há desocultamento ou desvelamento. Por isso, ψεῦδος não
se opõe a ἀληθής.
Na Ilíada, canto IV, versos 365-400, Agamêmnon acusa Diomedes de ser inferior ao pai.
210
Cf Levet (1976) p. 201.
115
Agamêmnon é detentor de um saber (ἐπιστάμενος), mas não o declara de forma clara
(σάφα εἰπεῖν), que é, sem dúvida, uma expressão equivalente a ἀληθής. Mas esta só seria
também sem possibilidadade de, após ter ouvido o relato, ir, ele mesmo fazer a verificação
daquilo que ouviu. Mas Estênolo sabe que a fala do Atreide não corresponde à realidade e é
por isso que está em condição de dizer que Agamêmnon mente. O nível de conhecimento
alcançado por Estênolo coloca-o em posição de igualdade com relação a Agamêmnon: ambos
Mas ο ψεῦδος do rei dos aqueus repousava sobre um conhecimento seguro. É preciso
também examinar como a palavra se comporta numa situação de falta de informação clara. No
apresenta a Menelau em Esparta com Odisseu. No verso 140, a rainha pergunta a si mesma:
Um observador externo ao diálogo pode ser levado a qualificar uma narrativa como
desconectados da realidade, mas semelhantes, não às coisas, mas aos enunciados que podem
ser qualificados como ἔτυμα, como no verso 203 do canto XIX da Odisséia, onde o aêdo
confrontação com o real. Ela permanece em situação de ignorância - λήθη, que é o verdadeiro
contrário de ἀληθής.
Nos versos 19 e 20 do canto III da Odisséia, Atenas instrui Telêmaco a procurar Nestor e
Como Levet observa, se o conhecimento de Nestor for insuficiente, ele não recorrerá à
fantasia de inventar fábulas. É mais provável que confesse sua ignorância 211. O autor ainda
acrescenta que ψεῦδος não é antônimo direto de νημερτές na medida em que “este é o
realidade tal como ficou gravada nele”. Em outras palavras, o espírito deve permanecer
Podemos observar que ψεῦδος pode ser empregado tanto em situações de deformação
voluntária da verdade, algo que entendemos como mentira, como é o caso de Agamêmnon e o
211
Cf. Levet (1976) p.208.
212
Levet (1976) p. 208.
117
de Odisseu, quanto numa situação de formulação de uma hipótese que visa completar a
realidade, como é o caso de Helena. Neste último, ψεῦδος assemelha-se mais a um engano.
Para que ψεῦδος assuma o significado de mentira, é necessário que outra pessoa que não o
emissor do enunciado tenha pleno conhecimento da verdade e saiba, portanto, que a fala em
questão não corresponde à realidade. Em nenhum dos casos há uma avaliação moral: quando
alheio à psicologia do conhecimento ao tempo de Homero. Decerto ele existe, mas se situa
κερδαλέος, δόλος - que não enfoca a descrição do processo pelo qual o espírito consegue
2.3 Conclusão
Ao contrário da maioria, que entende que Hesíodo está assegurando a verdade de sua
fala e denuncia da mentira da poesia de outros poetas, entendemos que Hesíodo aponta para a
distância entre o divino e o humano, tomada pelo viés epistemológico, isto é, pela questão do
saber e de sua expressão. Segundo este olhar, a diferença radical entre o saber divino e o saber
humano, ainda que intransponível, admite gradações, que são expressas por ψεύδεα πολλὰ, e
dentro deste gradiente o humano pode se aproximar do divino. Entre os muitos enganos
humanos (ψεύδεα πολλὰ) e o saber divino (ἀληθέα) cabe um saber propriamente humano
(ἐτήτυμα) que permite ao homem agir segundo as determinações daquilo que lhe é
inalcançável – o divino.
118
Analisados em conjunto, estes poemas apontam para a enorme distância entre deuses e
homens, distância esta que radica, insistimos, na questão do saber e de sua transmissão. Se
Hesíodo acentua esta distância, o faz para se apresentar como elemento de ligação entre estas
É possível ler a fórmula ἐτήτυμα μυθησαίμην como um discurso que fala sobre as coisas
humanas, proferido por alguém investido de autoridade para falar e que fala sobre as coisas
humanas, sobre o modo humano de apreender a realidade e de agir. É preciso ter sempre em
mente que ἐτήτυμα carrega sempre consigo o caráter de hipótese, herdado de ἐτεός e de ἔτυμος,
o que convida à verificação, o que faz dela a palavra mais adequada para um discurso
a este princípio, seu discurso endereçado aos homens cuja mente oscilante (ψεύδεα πολλά)
condena-os a estarem sempre rondando, sem jamais alcançarem a realidade onde estão
119
3. A construção do discurso humano
humano. Para tanto, não só é preciso perseguir os pares de oposição divino x humano que o
poeta constrói a partir de alethéa x etétyma, como também é preciso segui-los obedecendo ao
trânsito do pastor para o camponês. Em outras palavras, é preciso partir da Teogonia e chegar
a Os trabalhos e os dias. Isto será feito em três momentos, a cada um correspondendo uma
mais especificamente, que põem em relevo a tensão entre deuses e homens. A segunda seção
será dedicada ao mito de Prometeu em suas duas versões apresentadas por Hesíodo, uma em
cada poema, já que este mito é o grande ponto de articulação entre as duas obras. A terceira
Entretanto, examinar o modo como Hesíodo constrói seu discurso implica também, e
Enquanto Homero dava livre voz às suas personagens, a ponto de Stoddard 213 observar
onde o narrador descreve o ponto de vista ou o estado emocional de uma personagem, na obra
de Hesíodo, a presença do narrador é muito mais marcante e não apenas pelo fato de ele se
apresentar nos seus poemas, seja nomeando-se, como faz na Teogonia, seja por meio do “Eu”
que conduz toda a narrativa de Os trabalhos e os dias. O poeta beócio vai mais longe: os
diálogos, diretos ou indiretos, são muito mais escassos do que em Homero, limitando-se a 34
versos dos 1022 da Teogonia e 12 versos em 828 de Os trabalhos e os dias, de onde se pode
concluir que são passagens que o poeta considera de suma importância e quer emprestar a elas
213
Cf. Stoddard (2004) p.38.
120
um colorido especial. Mesmo na descrição das tarefas ligadas à navegação 214, onde confessa
sua inexperiência com relação às fainas do mar e declara que só é capaz de transmitir aqueles
ensinamentos porque as Musas o ensinaram (Μοῦσαι γάρ μ' ἐδίδαξαν) 215, não são as deusas
Precisamente neste ponto radica a mais significativa diferença entre os dois poetas. Na
abertura do Catálogo das Naus 216, Homero apresenta-se como uma boca para Musa falar e
um ouvido para ouvir o que ela canta, o que é, em outras palavras, a própria encarnação da
tradição oral. Passada a inspiração, já não sabe falar. Já Hesíodo foi ensinado, isto é,
incorporou o canto que as deusas lhe inspiraram. Dito de outra forma, a inspiração que as
Musas causaram a Hesíodo não é da ordem da mania, do delírio poético que Platão descreve
no Fedro 217 e no Íon 218, que faz com que os poetas digam coisas sábias sem serem, eles
Além do mais, Homero concentrou seu foco nos deuses olímpicos. É bem verdade que
em algumas passagens aborda deuses mais antigos, mas seu modelo cosmogônico era outro,
onde Oceano e Tétis eram apresentados como a origem dos deuses 219 e não há ali nenhuma
preocupação evidente. Ele quis nos apresentar um relato que abarcasse toda a história do
universo, este, para os gregos, plenamente identificado com o divino. Isto resultou numa
narrativa onde se pode distinguir claramente duas fases, a primeira, de mudança e conflito
214
Cf. Trab. 618-93.
215
Trab. 662.
216
Il. 2.484-86. Ἔσπετε νῦν μοι Μοῦσαι Ὀλύμπια δώματ' ἔχουσαι·/ ὑμεῖς γὰρ θεαί ἐστε πάρεστέ τε
ἴστέ τε πάντα,/ ἡμεῖς δὲ κλέος οἶον ἀκούομεν οὐδέ τι ἴδμεν·
217
Fedro 265b
218
Íon 534 a-d.
219
Il. XIV. 201. Ὠκεανόν τε θεῶν γένεσιν καὶ μητέρα Τηθύν,
121
Assim, o pastor da Teogonia fala da origem de todas as coisas desde o princípio (v.115,
ἐξ ἀρχῆς), mas para tanto recebe o auxílio das Musas (v.114), enquanto o camponês de Os
trabalhos e os dias fala das coisas humanas e de como o homem deve se conformar à ordem
divina, mas, mesmo sem recorrer às Musas e seu maior desejo é endireitar um caráter mal
Daí resulta que Hesíodo é um poeta preocupado em marcar sua presença no texto e
também quer dar conta do todo de um modo sistemático. Em outras palavras, seu pensamento
3.1 Teogonia
se problemático, pois difere dos padrões normais dos hinos homéricos 220 que empregam o
pessoa do plural 221. O emprego do genitivo ablativo associado ao verbo dá a entender que o
poeta encara seu canto como uma produção conjunta entre ele e as Musas. Enquanto Homero
e os aêdos dos Hinos colocavam-se do lado da audiência, Hesíodo manifesta de saída seu
status de coautor. Ele começa com as Musas, a partir das Musas, para, ao longo de sua
trajetória poética, mas já na Teogonia, assumir o controle do seu discurso e orientá-lo para
220
Cf. Hinos homéricos 2, 11, 13, 16, 26 e 28.
221
Homero lança mão da primeira pessoa do plural para referir-se a si mesmo em apenas duas
ocasiões, coincidentemente, ambas envolvendo as Musas e onde o poeta coloca-se ao lado da
audiência. Uma, no décimo verso da Odisséia, onde lemos a conclusão da invocação à deusa: τῶν
ἁμόθεν γε, θεά, θύγατερ Διός, εἰπὲ καὶ ἡμῖν. Outra, no canto II da Ilíada, nos versos 485-6: ὑμεῖς γὰρ
θεαί ἐστε πάρεστέ τε ἴστέ τε πάντα,/ ἡμεῖς δὲ κλέος οἶον ἀκούομεν οὐδέ τι ἴδμεν·, onde, antes de
lançar-se à tarefa de enumerar as forças gregas em Tróia, o poeta pede o auxílio das Musas.
222
Esta interpretação encontra respaldo no escólio ao verso 1 da Teogonia: ἀπο τῶν Μουσῶν
ποιούμεθα τοῦ λέγειν. Cf. Clay (2000) p. 53.
122
Orientar o discurso para termos humanos significa que há uma tensão entre divino e
humano e esta tensão radica, sobretudo na temporalidade. De fato, deuses são eternos, isto é,
223
Pequenas, porém necessárias, modificações à tradução de Torrano estão assinaladas em itálico.
123
κούρην τ' αἰγιόχοιο Διὸς γλαυκῶπιν Ἀθήνην
Φοῖβόν τ' Ἀπόλλωνα καὶ Ἄρτεμιν ἰοχέαιραν
ἠδὲ Ποσειδάωνα γαιήοχον ἐννοσίγαιον 15
καὶ Θέμιν αἰδοίην ἑλικοβλέφαρόν τ' Ἀφροδίτην
Ἥβην τε χρυσοστέφανον καλήν τε Διώνην
Λητώ τ' Ἰαπετόν τε ἰδὲ Κρόνον ἀγκυλομήτην
Ἠῶ τ' Ἠέλιόν τε μέγαν λαμπράν τε Σελήνην
Γαῖάν τ' Ὠκεανόν τε μέγαν καὶ Νύκτα μέλαιναν 20
ἄλλων τ' ἀθανάτων ἱερὸν γένος αἰὲν ἐόντων.
αἵ νύ ποθ' Ἡσίοδον καλὴν ἐδίδαξαν ἀοιδήν,
deslocamento das Musas de seu tempo eterno para a temporalidade humana. Este movimento
se inicia no verso 2, com um verbo no presente do indicativo (ἔχουσιν), a única forma verbal
possível para designar o eterno, e se completa com o emprego do aoristo ἐδίδαξαν, no verso 22,
que marca a finitude característica dos homens 224. O imperfeito do verso 10 parece estar fora
do emprego usual grego, mas expressa temporalmente o que já tinha sido apresentado
espacialmente pelo deslocamento das Musas de sua morada sagrada para os limites da morada
humana. Este verbo é então a perfeita expressão do movimento de transição entre o tempo
temporal das deusas se dá em direção ao passado, pela via do imperfeito que, mesmo
guardando a sua dimensão eterna de continuum, aponta para o que o homem precisa saber: a
origem das coisas. A consumação entrada das Musas na ordem de tempo humana é marcada
pelo aoristo do verso 22 (ἐδίδαξαν). No verso 24, “Elas um dia a Hesíodo ensinaram belo
canto” (τόνδε δέ με πρώτιστα θεαὶ πρὸς μῦθον ἔειπον), o aoristo ἔειπον mostra que elas já
“verdadeiro a cada instante”, onde cada ação só acontece uma vez. Elas entraram no âmbito
da história.
224
Cf. Clay (2000) p. 54-56.
124
Na verdade, ainda que isto não altere a percepção de que há, de fato, um conflito entre
ordens temporais distintas, nem Clay nem Stoddard, que também aborda os aspectos
temporais envolvidos neste texto 225, levaram em conta os aoristos ἐνεποιήσαντο, no verso 7, e
para a forma repentina e voluntariosa com que as Musas decidem ir ter com o poeta e inspirar-
lhe o canto.
Entre os versos 10 e 22, é o poeta, e não as Musas, quem descreve também o conteúdo
do canto das deusas. Trata-se de um catálogo onde dezenove divindades são nomeadas,
começando por Zeus e terminando com Gaia, Oceano e a negra Noite, e não segue um
Em linhas gerais, o catálogo parece seguir a ordem inversa do que mais tarde, no verso
116, Hesíodo solicitará às deusas, isto é, uma apresentação ἐξ ἀρχῆς, do Caos ao cosmos 226.
Que as Musas comecem seu canto por Zeus não é de surpreender: elas cantam a culminação
É exatamente isso que Hesíodo quer cantar, ainda que numa cronologia ascendente e
mais compatível com o entendimento humano, a partir de e com as Musas. Outros traços do
“argiva” para Hera (v.12) não condiz com a proposta de uma teogonia universal. A menção a
Dione (v.17) um verso após e na mesma posição de Afrodite (v.16) parece mais homérica do
que hesiódica. Em Homero, a deusa é apresentada como filha de Zeus e Dione. A Afrodite
225
Cf. Stoddard (2004) p.130, onde a autora acata os ensinamentos de Clay.
226
Os versos 44-52, que compreendem o segundo canto das Musas já no Olimpo, endereçado a Zeus e
que serão analisados adiante, parecem ser uma antecipação do conteúdo do poema a partir do verso
115 e asseguram o caráter programático do proêmio da Teogonia.
125
que surgirá nos versos 188-200 da Teogonia é Urânida. O destaque dado a Noite parece seguir
Por fim, o verso 21 sugere que a nomeação dos deuses está incompleta, enquanto a
tarefa que Hesíodo se propõe a partir do verso 116, tido pela maioria como o verdadeiro início
do poema, tem a pretensão de ser exaustiva. Muitos estudiosos têm tentado resolver essa
desconcertante apresentação do primeiro canto das Musas. Entendemos que este canto pode
servir para deixar claro, desde a abertura do poema, que os deuses, em sua intimidade, são
inatingíveis. Todo e qualquer contato entre eles e os mortais devem ser precedidos de uma
Se esta interpretação está correta, a diferença entre o canto das Musas no Hélicon e o
canto que o poeta solicitará mais tarde é intencional. Ela mostra o contraste entre os deuses
vistos pelo ponto de vista divino e os deuses vistos pelo ponto de vista humano.
Tendo começado sua descida no verso 10, as Musas chegam à morada humana nos
Isto é, ao limite entre o mundo humano e o divino, isto é, os pastos isolados propícios
pelo aoristo do verso 22. Lá, um indivíduo com um nome, Hesíodo, é o receptor dos
ensinamentos das deusas. A voz que descreve a chegada das deusas é a mesma que apresenta
227
Talvez estas discrepâncias, que serão corrigidas ao longo do poema, possam funcionar como base
de sustentação para os que argumentam em favor da leitura interpoética. Ainda assim, somos de
opinião de que o foco na tensão entre divino e humano pode nos levar a caminhos mais esclarecedores
do que se nos ativermos à querela entre poetas.
126
agora seu nome. No que Clay define como a “mais explícita autoapresentação de um
narrador em toda a história da literatura grega 228”, Hesíodo une o momento presente da sua
fala ao passado recente de sua iniciação e o passado mítico da cosmogonia, o que coloca o seu
papel de ponte sobre o incontornável abismo que separa homens e deuses em forte evidência.
Não por acaso, as Musas mudam de nome e endereço. No verso 25, “Mousas
Musas já não são as do Hélicon, como no verso 1 e, no trânsito do Hélicon para o Olimpo, a
palavras no verso 26, “Pastores agreste, vis infâmias e ventres só” (ποιμένες ἄγραυλοι, κάκ’
ἐλέγχεα, γαστέρες οἶον), são um reforço da tese central que lemos em Hesíodo: a distância entre
deuses e homens. Não é o poeta que é acusado de ser “apenas ventre”, mas toda a raça
humana.
Creio ser este um bom momento para ratificar nossa opção por uma leitura intrapoética
dos versos ligados à fala das Musas. Nenhuma tensão é maior do que o encontro entre o
humano e o divino. Procurar nesta passagem uma tensão contra outros poetas é desnecessário.
Com frequência esquece-se de que em alguns versos adiante, na passagem dos reis e poetas,
não há nenhuma tensão entre poetas: todos devem sua origem às Musas e a Apolo. Pautados
mendigo se mede ao mendigo, aêdo a aêdo” (καὶ πτωχὸς πτωχῷ φθονέει καὶ ἀοιδὸς ἀοιδῷ), a
Teogonia, como também esquecem que o contexto do verso do qual lançam mão é o da Boa
Éris, onde a ação é exercida si próprio e não dirigida contra o outro. 229
228
Clay (2000) pág. 57.
229
Cf. Hesíodo (2011) pág.187-188.
127
A tensão destes versos é então interna ao texto. O alvo das deusas, insistimos, é toda a
raça humana e as ψεύδεα πολλὰ que elas sabem dizer têm um acento mais epistemológico do
que moral. Como Clay observa, ψεύδεα abarca não somente as distorções voluntárias
involuntárias 230.
Ao final de seu encontro com as deusas, nos versos 30-32, Hesíodo recebe o duplo dom
do cetro de ramo loureiro e a voz divina, que lhe confere autoridade e capacidade para cantar:
Trata-se de uma passagem que muito tem intrigado os leitores. Alguns comentadores
igualam poesia e profecia, mas além destas serem distintas, não há, na Teogonia, nenhuma
alusão ao futuro. Recordando o que já tratamos acima, τά τ' ἐσσόμενα πρό τ' ἐόντα, “as coisas
que serão e que eram” não são duas coisas distintas, futuro e passado. Levando-se em conta o
verso 33, “impeliram-me a hinear o ser dos venturosos sempre vivos” (καί μ' ἐκέλονθ' ὑμνεῖν
μακάρων γένος αἰὲν ἐόντων), “as coisas que serão e eram” são as coisas eternas, em outras
palavras, a raça dos bem-aventurados. De fato é esta a tarefa que Hesíodo recebe – e cumpre
- na Teogonia: cantar o ser dos entes eternos. Mas esta não é a totalidade do conhecimento das
deusas. Logo em seguida, elas retornam ao Olimpo para “hineando, alegrar o grande espírito
230
Cf. Clay (2000) p. 61.
128
no Olimpo/dizendo o presente futuro passado 231”. Mas lá, seu canto é diferente do de
Quanto a essa diferença de conteúdo entre os dois cantos, alguns eruditos a ignoram,
sustentando que o verso 32 é uma forma abreviada do verso 38. Segundo Clay, τ' ἐόντα refere-
se à raça dos homens e dos poderosos gigantes, conforme o verso 50. Uma vez que as Musas
cantam para Zeus o cosmos em sua totalidade, isto inclui a raça dos homens mortais e os
É curioso observar que τ' ἐόντα inclui os homens, isto é a seres que estão imersos no
devir. Somente mais tarde, quando o pensamento filosófico lançar a pergunta sobre como o
que é eterno pode vir a ser, τ' ἐόντα passará a designar o que é eterno e não o que está no
devir 232. Para esta inversão, as contribuições de Xenófanes, Parmênides e Epicarmo foram,
231
Teog. 36-37. ὑμνεῦσαι τέρπουσι μέγαν νόον ἐντὸς Ὀλύμπου,/ εἴρουσαι τά τ' ἐόντα τά τ' ἐσσόμενα
πρό τ' ἐόντα.
232
Cf. Clay (2000) pág. 66-67 e nota 71.
233
DK 21 B 14. 1-2.
234
DK 28 B 8. 5-6.
129
A indagação de Epicarmo coloca Hesíodo como fonte do problema:
Como pode? Não tem de onde vir nem para onde ir.
Finda esta digressão necessária, retornemos ao segundo canto das Musas, contido nos
versos 43-50 para observarmos que ele é totalmente marcado por referências temporais.
Como Stoddard observa, ao longo de oito hexâmetros, seis deles contêm palavras que
mostram total engajamento ao tempo linear humano, todas elas em posições proeminentes ao
longo dos versos, o que significa que o poeta pretendia dar enorme ênfase a esta questão 235.
235
Marcações deste tipo estão completamente ausentes no primeiro canto. A única palavra que guarda
alguma relação com a temporalidade nos versos 1-21 é ἐννύχιαι, no verso 10, mas o que está em jogo
130
Esta mudança fundamental na perspectiva do tempo parece resultar da transformação de
pastor em poeta, que acabou de acontecer. É importante ter em mente que os dois cantos são
Hesíodo. Um dos principais propósitos, senão o único, de apresentar novamente o canto das
enquanto no segundo estes abundam, Hesíodo nos traz presente o enorme abismo que separa
estas duas instancias, que podem ser expressas com o encontro da ἀληθέα atemporal com o
âmbito mortal e temporal de ἐτήτυμα. O poema que se seguirá é o resultado deste encontro,
bem como o cumprimento da ordem que Hesíodo recebeu das deusas (ἐνέπνευσαν δέ μοι αὐδὴν/
θέσπιν, ἵνα κλείοιμι τά τ' ἐσσόμενα πρό τ' ἐόντα v.31-32), o que equivale dizer que é Hesíodo
E ainda há mais a dizer: Hesíodo canta a raça dos imortais, é certo, mas sempre sob a
perspectiva temporal humana. Um olhar sobre a descrição do Tártaro parece confirmar esta
visão.
Tal como as Musas do Hélicon são apresentadas nos versos 1 a 21 como vivendo fora
Nenhuma indicação temporal aparece num trecho de 99 versos 236. Assim sendo, tanto os
deuses de cima quanto os deuses de baixo, os do Tártaro, vivem em outra ordem temporal.
aqui não é uma ordenação temporal, apontando apenas para uma parte do dia. Como Stoddard
observa: “Se as Musas são apresentadas num movimento eterno de dançar e cantar, dizer
simplesmente que elas o fazem à noite não ordenará, de forma alguma, suas ações num aspecto
cronológico.” Cf. Stoddard (2004) p. 132.
236
Cf. Teog.720-819.
131
Entretanto, o poeta mede a distância entre o céu e a terra e, em seguida entre a terra e o
Tártaro não em termos relativos ao espaço, mas ao tempo. É pelo tempo da queda de uma
bigorna, nove dias e nove noites, que estas distâncias são relatadas 237.
A noção de equidistância entre terra e céu e terra e Hades também está presente em
Homero 238. O episódio hesiódico guarda significativa semelhança com a descrição da queda
Não resta dúvida de que Hesíodo tinha esta passagem em mente quando compôs seus
versos, mas, mais do que a polêmica entre poetas, entendo que o que está em jogo aqui é,
mais uma vez, a distância entre deuses e homens. O que é um dia para um deus vira nove para
um homem 240. O instrumento que Hesíodo elegeu para medir a passagem do tempo também
remete ao texto homérico. A bigorna é o instrumento por excelência de Hefesto. O fogo pode
ser empregado pelo cozinheiro. O martelo pode ser empregado pelo carpinteiro, ou mesmo na
homem tem de concreto para relacionar-se com Hefesto. A bigorna é Hefesto visto pelo
termos humanos.
Mas ainda há mais a ser dito sobre a descrição do Tártaro. Para reafirmar a distância
entre deuses e homens, Hesíodo torna a própria noção de tempo ainda mais confusa.
237
Cf. Teog. 720-723.
238
Cf. Il.8.16.
239
Cf. Il.1.591-2.
240
É interessante lembrar que nove é o número das Musas hesiódicas, o que faz supor que a escolha
do número não é ingênua.
132
Quando a bigorna termina sua queda, estamos no Tártaro, num ambiente onde as “leis
da física 241” não se aplicam. Após termos encontrado a Noite e o Dia como unidades de
medida de espaço, lemos que a Noite é uma substância física, um líquido que pode ser
vazado, num lugar imediatamente abaixo das raízes da Terra 242. Alguns versos adiante, temos
a descrição das casas da Noite, escondidas por negras nuvens, onde Noite e Dia se encontram
e se saúdam 243.
Hesíodo parece querer mostrar que o domínio dos deuses é algo de outra ordem, fora de
espaço e de tempo – tão fora dos limites da compreensão humana que o nosso conhecimento
derivado da nossa experiência pura e simplesmente perde valor. É exatamente por isso que ele
É certo que Hesíodo recebeu das Musas a autoridade e inspiração para o canto,
com as deusas é mais complexa do que pode parecer e, nesta complexidade, ele assegura para
si não só o papel de construtor da trama daquele poema, como também a autoridade para
Nos versos 52 a 79 da Teogonia, Hesíodo nos diz que as Musas foram geradas na Piéria
depois de Zeus ter se deitado por nove noites consecutivas com Mnemósine. Seus nomes já
241
Entre aspas e em itálico para assinalar o anacronismo.
242
Teog 726-728. τὸν πέρι χάλκεον ἕρκος ἐλήλαται· ἀμφὶ δέ μιν νὺξ/ τριστοιχὶ κέχυται περὶ δειρήν·
αὐτὰρ ὕπερθε/ γῆς ῥίζαι πεφύασι καὶ ἀτρυγέτοιο θαλάσσης.
Cerca-o um muro de bronze. A noite em torno/ verte-se três vezes ao redor do gargalo. Por cima/ as
raízes da terra plantam-se e do mar infecundo.
243
Teog. 744-749. καὶ Νυκτὸς ἐρεμνῆς οἰκία δεινὰ/ ἕστηκεν νεφέλῃς κεκαλυμμένα κυανέῃσι./ τῶν
πρόσθ' Ἰαπετοῖο πάις ἔχει οὐρανὸν εὐρὺν/ ἑστηὼς κεφαλῇ τε καὶ ἀκαμάτῃσι χέρεσσιν/ ἀστεμφέως,
ὅθι Νύξ τε καὶ Ἡμέρη ἆσσον ἰοῦσαι/ ἀλλήλας.
A casa terrível da Noite trevosa/ eleva-se aí oculta por escuras nuvens./ Defronte o filho de Jápeto
sustém o céu amplo/ de pé, com a cabeça e infatigáveis braços/ inabalável, onde Noite e Dia se
aproximam/ e saúdam-se cruzando o grande umbral.
133
podem ser vistos como uma explicitação de suas potências e enquanto uma delas, Urânia
(Celeste), sendo a Musa da astronomia, é a própria representação de todo saber acerca dos
deuses, as outras oito relacionam-se diretamente com diferentes modos de expressão humana.
São elas, Clío (Glória), Euterpe (Alegria), Thalía (Festa), Melpômene (Dançarina), Terpsícore
que acompanha os reis venerandos 244.” Uma vez que cada Musa corresponde a um aspecto
O que causa estranheza é o fato do protegido desta Musa ser o rei, e não o poeta. Como
Laks coloca a questão, é o caso de se perguntar por que a superioridade de Calíope está ligada
à função política da palavra, e não à função poética 245. Alguns autores contemporâneos que se
debruçaram sobre esta questão entendem que a superioridade da palavra do rei é apenas
aparente e que serve para reforçar o papel que o próprio Hesíodo desempenha no poema. De
nossa parte, devo adiantar que concordo com esta leitura e pretendo apenas contribuir para
Para aprofundar esta questão, é preciso atentar para os versos que se seguem aos da
apresentação das Musas, pois, deste momento até o verso 103, Hesíodo descreverá o modo
como os reis se servem da palavra e traçará um paralelo entre reis e poetas. Mas isso ainda é
insuficiente: será preciso também relacionar esta passagem com outras na obra de Hesíodo,
244
Καλλιόπη θ’· ἡ δὲ προφερεστάτη ἐστὶν ἁπασέων./ἡ γὰρ καὶ βασιλεῦσιν ἅμ’ αἰδοίοισιν ὀπηδεῖ.
(Teog. 79-80). Tradução de Torrano, com modificações.
245
Laks (1996) p. 84.
134
Teogonia, bem como o proêmio e ainda outras passagens de Os Trabalhos e os Dias, coisa
O modo com que os reis se servem da palavra é descrito pelos versos 80 a 93:
O papel dos reis é o de decidir as sentenças com reta justiça (v.86-87, διακρίνοντα
θέμιστας/ ἰθείῃσι δίκῃσιν) e isso é feito em público, isto é, na ágora (v.86, πάντες ἐς αὐτὸν ὁρῶσι
διακρίνοντα θέμιστας). E eles o fazem facilmente, persuadindo com brandas palavras (v.84,
γλυκερὴν χείουσιν ἐέρσην), isto é, suas sentenças não são acatadas por conta de sua autoridade,
135
mas acolhidas devido ao encantamento das palavras de mel, que vertidas pelas Musas, fluem
de sua boca. Graças a isso, as gentes o olham (v. 86, πάντες ἐς αὐτὸν ὁρῶσι) como a um Deus
(v.92, θεὸν ὣς). Laks, oportunamente, evoca a imagem de Nestor, que é essencialmente aquele
que sabe resolver disputas por meio da palavra 246, ainda que este poder de Nestor jamais seja
É bem verdade que este paralelo é aberto assinalando uma diferença: os poetas e
citaristas existem por obra das Musas e de Apolo, enquanto os reis provêm de Zeus, mas essa
diferença é rapidamente subsumida pelo e no poder das Musas. Em primeiro lugar, a palavra
θέμιστας/ ἰθείῃσι δίκῃσιν). As retas sentenças são as θέμιστες, isto é, normas sagradas da
246
Laks (1996) p. 84.
136
tradição oral que eram pronunciadas por quem tinha autoridade para resolver disputas.
Quando nos lembramos da passagem que fala sobre Nereu, vemos lá que este é dito ἀληθής
(Teog. 233) exatamente porque não se esquece delas (Teog. 235-236, οὐδὲ θεμίστων/ λήθεται).
A seu turno, o poeta provoca o esquecimento dos pesares (v.102-3 ἐπιλήθεται οὐδέ τι
lembrança dos reis e o esquecimento que o poeta provoca. Ambos estão inequivocamente sob
Da boca de ambos flui doce palavra (v.83-4, τῷ μὲν ἐπὶ γλώσσῃ γλυκερὴν χείουσιν ἐέρσην,/
τοῦ δ’ ἔπε’ ἐκ στόματος ῥεῖ μείλιχα· ), o que é reforçado no passo que trata apenas do poeta
(v.97, γλυκερή οἱ ἀπὸ στόματος ῥέει αὐδή). Ambos realizam ações transformadoras (v.89,
μετάτροπα ἔργα τελεῦσι.; v.93, μετὰ δὲ πρέπει ἀγρομένοισι. e v.103, ταχέως δὲ παρέτραπε) que
são recebidas como presentes das deusas (v.94, τοίη Μουσάων ἱερὴ δόσις ἀνθρώποισιν e v.103,
δῶρα θεάων) porque são benéficas à comunidade: a ação do rei, que é a lembrança da sentença
justa, não concerne apenas às partes envolvidas. A solução pacífica de um conflito particular
fortalece a comunidade na medida em que todos se sentem protegidos pela justiça que nela
Por outro lado, há que se ter em mente que com frequência os poetas também falavam
na ágora. Assim sendo, o esquecimento das atribulações que eles proporcionavam a quem os
ouvia estendia-se a todos os membros da comunidade. Sua ação, em última análise, também é
política.
137
Para Skarsouli 247, é significativo que Memória e Musas estejam intimamente ligadas à
noção de persuasão, e Calíope é personificação desta noção. Apenas ela pode assegurar aos
reis o dom das Musas e ligar a poesia à função real da persuasão. Skarsouli interpreta a
proteção de Calíope aos reis como uma dependência do rei em relação ao poeta, já que o
Para Stoddard, os versos 80-103 servem para explicitar o papel de Hesíodo no poema,
retomando e expandindo temas que já estavam propostos. Tal como Skarsouli, Stoddard
retorna aos versos 30-33, e assinala que, ao receber o duplo dom das deusas - o cetro e a voz
distância que separa o humano do divino, Stoddard afirma que aquele que é escolhido como
poeta é, desde então, uma ponte entre estas duas instâncias e os dois presentes que o poeta
recebe das deusas são signos claros deste poder. Já que o cetro representa acima de tudo a
autoridade para falar e ser ouvido, Hesíodo decalca a sua imagem por sobre a função
judiciária do rei. O segundo dom das Musas, αὐδὴν θέσπιν 249, é a mais perfeita explicitação do
poder com que as Musas o distinguiram, já que a sua tradução literal implica numa voz
Laks 251 entende que a palavra do poeta é anterior à do rei, na medida em que esta releva
poeta, ao menos a que Hesíodo recebe das Musas, é de uma natureza quase teórica 252. De fato,
nos versos 32 e 33, Hesíodo recebe das deusas a missão de gloriar as coisas que serão e que
247
Cf. Skarsouli (2006) p.214.
248
Cf. Stoddard (2003) p.7-9.
249
Cf.Teog. 31-32.
250
Cf. Stoddard (2003) p.6.
251
Cf. Laks (1996) p.88.
252
Nunca é demais recordar que o poeta fala do mundo divino, domínio ao qual o mundo político do
rei deve se conformar. Logo, a primazia do poeta sobre o rei deve-se ao fato de que ele trata de coisas
mais nobres.
138
eram e de hinear a raça bendita dos entes eternos 253. Assinala também que o canto de Hesíodo
imediatamente após deixarem Hesíodo no Hélicon 254. Este canto tem em Zeus seu principal
destinatário e nada ali sugere que o deus esteja envolvido em alguma disputa judiciária ou
ainda que necessite esquecer alguma dor. Em outras palavras, Zeus não necessita de nenhum
dos efeitos atribuídos ao discurso jurídico ou poético. O prazer proporcionado por este canto é
Calíope, a promessa de uma mediação bem sucedida entre a teoria e a prática 256.
imagem e o modo de agir do rei foram construídos com base na imagem e no modo de agir do
Hesíodo, de pastor em poeta. Os versos 94-103 são um espelho do episódio da iniciação, aqui
refletido para que a imagem possa ficar mais viva para o ouvinte.
Por outro lado, entendemos que a superação do rei pelo poeta proposta pelos
comentadores visitados torna-se mais clara se levarmos em conta Os trabalhos e os dias. Com
efeito, logo no proêmio deste poema, ainda que Hesíodo o abra com a tradicional invocação
às Musas, é a Zeus que o poeta se dirige, conforme se lê nos versos 8 a 10: “Zeus trovejante,
que nas altas moradas habita,/vem! Vê e escuta: com justiça corrige as sentenças,/ tu! Eu,
253
Teog. 32-33. θέσπιν, ἵνα κλείοιμι τά τ’ ἐσσόμενα πρό τ’ ἐόντα, /καί μ’ ἐκέλονθ’ ὑμνεῖν μακάρων
γένος αἰὲν ἐόντων.
Divino para que eu glorie o futuro e o passado/ impeliram-me a hinear o ser dos venturosos sempre
vivos.
254
Cf. Teog. 36-76.
255
Cf. Laks (1996) pág 89.
256
Cf. Laks (1996) pág 91.
257
Trab.8-10. Ζεὺς ὑψιβρεμέτης, ὃς ὑπέρτατα δώματα ναίει./ κλῦθι ἰδὼν ἀίων τε, δίκῃ δ’ ἴθυνε
θέμιστας/ τύνη· ἐγὼ δέ κε Πέρσῃ ἐτήτυμα μυθησαίμην.
139
Por meio destes versos, o poeta solicita uma ação ao deus: corrigir, com justiça, as
sentenças. Estas sentenças, como já vimos, são as θέμιστες, as normas sagradas da tradição
oral, que, como tal, não podem ser tortas ou erradas. A questão é esclarecida mais adiante, nos
versos 38-41, com a censura que Hesíodo dirige aos reis comedores de presentes: os reis são
os néscios, que não sabem que a metade é maior que o todo. Então, Zeus é convocado pelo
poeta para resolver um problema na Terra: os reis estão se afastando de Calíope e esquecendo
É justamente para preencher o espaço deixado pela ação ineficaz dos reis que Hesíodo
se apresenta na cena dramática do poema. “Eu, por mim, a Perses quero dizer as verdades”,
diz o verso 10. Para realizar este ato de dizer as verdades num contexto judicial, que é o ponto
de partida do poema, é preciso estar investido de uma autoridade especial e Hesíodo preenche
este requisito, se nos lembrarmos do cetro que ele recebeu das Musas no verso 30 da
Teogonia.
É bem verdade que o cetro ainda pode suscitar alguma ambiguidade, como Stoddard
alerta, uma vez que além dos reis, poetas como o próprio Hesíodo, sacerdotes como Crises e
profetas como Tirésias o empunham 258. Mas os versos 35 e 36 de Os trabalhos e os dias não
dão margem a qualquer dúvida: “Julguemos aqui nossa crise/ com retribuições retas de Zeus,
as mais justas. 259” Julgar uma crise não é, decididamente, uma atribuição nem de um poeta,
nem de um profeta, mas antes de um rei. Se Hesíodo tem autoridade 260 para exercer esta
Zeus altitonante, que as mais altas moradas habita,/ vem! Vê e esuta: com justiça, endireita as
sentenças.
258
Cf. Stoddard (2003) p. 7 e n.14.
259
ἀλλ’ αὖθι διακρινώμεθα νεῖκος /ἰθείῃσι δίκῃς, αἵ τ’ ἐκ Διός εἰσιν ἄρισται (Op. 35-36).
260
Hesíodo jamais diz que ele mesmo é capaz de lembrar-se das θέμιστες, mas pautado no
conhecimento da verdade que ele quer dizer ao seu irmão, está autorizado a assumir o papel do rei e,
quando se leva em conta que essa verdade não é a verdade que lhe foi transmitida pelas Musas –
140
Com base nesta autoridade, o poeta assume uma posição muito mais ousada em relação
às Musas. Entre os versos 104 e 115 ele se dirige às deusas para, numa atitude bem diferente
da de Homero para com estas, pedir-lhes exatamente o que ele quer que elas digam 262 - ou
seja, como surgiram primeiro os deuses, a terra, os rios, o mar, o céu estrelado, os deuses que
estabeleceram no Olimpo, o que equivale dizer como surgiu o cosmos de Zeus – e como ele
quer que elas o façam, isto é, desde o princípio, para que a narrativa resulte inteligível para
ouvidos humanos.
Há momentos, que ela chama de pontos nodais, em que o poeta faz escolhas, antecipando ou
retardando a apresentação de alguma linhagem divina. Segundo a autora, estes pontos nodais
não são episódios aleatórios que estão lá devido à falta de ordenação que alguns consideram
melhor compreensão de como o poeta marca a sua presença na construção de seu próprio
texto, isto é, na construção do discurso humano. Para o que nos interessa aqui, o Hino a
Uma questão que se impõe aqui é perguntar por que o poeta escolheu aquele momento
em específico para inserir aquele episódio específico. É certo que esta escolha envolveu uma
ἀληθέα – mas antes uma verdade – ἐτήτυμα – aqui entendida como uma sabedoria puramente humana,
que é alcançada pela investigação das coisas proporcionadas pela experiência, pode-se constatar que a
fala de Hesíodo não é inspirada por nenhum deus, e sim que ele funda sua autoridade num tipo
particular de conhecimento por ele conquistado.
261
πάντες ἐς αὐτὸν ὁρῶσι διακρίνοντα θέμιστας /ἰθείῃσι δίκῃσιν· ὁ δ’ ἀσφαλέως ἀγορεύων /αἶψά τι
καὶ μέγα νεῖκος ἐπισταμένως κατέπαυσε· (Teog. 85-87)
262
εἴπατε δ' ὡς τὰ πρῶτα θεοὶ καὶ γαῖα γένοντο (108); ἐξ ἀρχῆς, καὶ εἴπαθ', ὅτι πρῶτον γένετ' αὐτῶν.
(115); ταῦτά μοι ἔσπετε Μοῦσαι Ὀλύμπια δώματ' ἔχουσαι(114)
263
Cf. Clay (2000). Pág.13.
141
alteração da sequência cronológica estrita da narrativa 264. Por outro lado, deve-se investigar
também por que Hesíodo dedicou tanto espaço 265 a uma deusa tão obscura. Os estudiosos que
seguem a leitura biográfica de Hesíodo veem aí uma ligação pessoal ou familiar entre o poeta
e a deusa. Hécate é filha de Perses (v.409), o mesmo nome do irmão de Hesíodo. Segundo
estes, talvez o pai dos irmãos tenha querido homenagear a deusa com a escolha deste nome
Mas o momento onde Hécate é apresentada permite levantar outra hipótese. O hino a
episódio que se segue ao nascimento do pai dos deuses e dos homens é Prometeu. As três
narrativas juntas ocupam o centro do poema. Nossa hipótese é a de que os três episódios
devem ter alguma interligação e devem também ter importância significativa para a
arquitetura do poema.
Ambos os episódios envolvem uma antecipação narrativa com o que diz respeito à
ordem cronológica natural. Na história de Prometeu, Hefesto e Atena, que só vieram a nascer
depois da vitória final de Zeus contra os Titãs e Tifeu, são convocados à cena para adornar a
primeira mulher. E a atribuição das honras que Zeus faz a Hécate 266 aponta para a partilha que
só ocorrerá após a vitória final de Zeus. Desta forma, os dois episódios já preparam o leitor
264
A árvore genealógica de Hécate remonta a Gaia, Ponto e Urano. Hécate é filha de Perses e de
Astéria. Peres, por sua vez, é filho de Euríbia, que é filha de Gaia e Ponto, enquanto Astéria é filha de
Phoebe, uma das Titanides, ou seja, é filha de Gaia e Urano. Deste modo, o nascimento de Hécate
poderia ter sido apresentado bem antes no poema, mas Hesíodo interrompe a apresentação dos filhos
de Gaia para introduzir a linhagem da Noite (vv.211-232) e depois retornar à linhagem de Ponto
(vv.233-337). Mas antes de chegar a Hécate, há uma nova pausa para a apresentação da linhagem de
Urano (vv.338-403), onde Stix é apresentada como o juramento dos deuses. Só depois disso é que
vem o Hino a Hécate.
265
Teog. 411-453.
266
VV 411-412. A distinção de Zeus é apresentada logo no início do Hino.
142
Se Hécate é uma deusa obscura, isso não quer dizer que ela não seja poderosa. Sua
ascendência remonta a Gaia, Urano e Pontos, deuses primordiais, o que equivale dizer que ela
já poderia ter sido apresentada antes, mas Hesíodo optou por postergar esta apresentação.
Além do mais, ela é filha única, o que quer dizer que nela está concentrado todo o poder
Entretanto, apesar de tê-la honrado desde o começo, Zeus não se casa com ela. A deusa
permanece virgem e vai exercer o papel de guardiã das crianças (κουροτρόφος, v. 450)
humanas.
É possível entrever aqui uma manobra política de Zeus 267. Ao derrotar os Titãs e Tifeu
ele vai, decerto impor uma nova ordem ao mundo, mas honrando Hécate - e é ele quem a
honra, e não ela a ele - ele preserva algo da ordem dos deuses primordiais. Zeus não é um
revolucionário, mas um ordenador. Por outro lado, ao preservar a virgindade de Hécate, ele
evita a possibilidade de vir a ser destronado por um filho desta deusa obscura e poderosa 268.
Ao fazer da deusa κουροτρόφος, seu poder fica dirigido aos mortais. Por intermédio de Hécate,
Zeus cria simultaneamente um elo entre ele e a ordem dos deuses mais antigos do universo e
Os versos 416-418 mostram que Zeus ainda lhe reservou outro papel importantíssimo
entre os homens, que é o de mediadora dos sacrifícios dirigidos aos demais deuses.
267
Na verdade a grande articulação política de Zeus já tinha sido iniciada no episódio anterior ao Hino
a Hécate, Styx. Zeus fez desta o Juramento dos deuses e ganhou o apoio de seus quatro poderosos
filhos. Cf Teog 383-403
268
Como é sabido, esta possibilidade só será contornada em definitivo quando o Cronida engolir
Métis e parir Atena.
143
Desta forma, os homens são obrigados a honrá-la tal como o próprio Cronida o faz.
Nesta função, a deusa decide quais os sacrifícios devem ser aceitos e quais serão recusados 269.
Neste sentido, como observa Santoro 270, Hesíodo faz deste hino, inserido no corpo – e
não na abertura – do poema, um metapoema que pode ser entendido como um sacrifício,
também dito erga pelos gregos, à Hécate, para que esta acolha o seu canto e o torne efetivo
com relação a diversos deuses, Hesíodo tenta expressá-lo através da etimologia 271, ligando
seu nome ao de Zeus, como é o caso do verso 4 de Os trabalhos e os dias. Como Clay
observa, isso não passaria de mera curiosidade se não fosse a evidente relevância teológica – e
cosmológica – que o poeta quer sublinhar com esse tipo de manobra 272.
O primeiro é que, sendo a deusa descendente de Gaia Urano e Pontos, ela poderia ter sido
apresentada muito antes. A linhagem de Ponto, o mais recente dos três deuses, é apresentada a
partir do verso 233. Numa sequência estritamente cronológica ἐξ ἀρχῆς, a deusa deveria ter
sido nomeada naquele momento. Em segundo lugar, a mediação que Hécate exerce nos
sacrifícios que os homens prestam aos deuses necessita um esclarecimento que só será
apresentado mais tarde: a própria necessidade dos homens prestarem sacrifício aos deuses é
uma das principais funções do mito de Prometeu, mas este só será apresentado após o
nascimento de Zeus.
269
O caráter voluntarioso da deusa é muito semelhante ao que as Musas exibem no verso 28. O verbo
εθέλω aparece 5 vezes nos versos 429-447. Talvez essa tenha sido a forma que Hesíodo encontrou
para explicar o desconcertante fato de os deuses concederem seus favores a uns os e recusarem a
outros.
270
Comunicação pessoal.
271
A ligação de incorporação entre Zeus e Métis fica evidente a partir do epíteto metíhta Zeús, assim
como a existente entre Afrodite e Urano pelo epíteto urânida.
272
Cf Clay (2000) p.138.
144
O Hino a Hécate contém ainda um catálogo de atividades humanas:
guerra são atividades que parecem ser mais ligadas à aristocracia, algo que parece contradizer
mais, a agricultura, essencial no segundo poema, está ausente deste catálogo. A pesca, por sua
Clay tenta resolver este problema alegando que o catálogo mostra os homens vistos do
ponto de vista dos deuses e que estes estão menos interessados no cotidiano, na vida humana
ordinária, do que nos seus extremos. Assim, o que desperta sua atenção são reis, guerreiros e
heróis que buscam a eternidade pela glória – κύδος – e os estratos mais baixos da vida
humana. Foi precisamente a um pastor que as Musas, voluntariosas como Hécate, revelaram
suas verdades. De qualquer forma, prossegue Clay, é exatamente esta camada mediana,
Trabalhos e os Dias, o que reforça a necessidade de ler os dois poemas em conjunto para que
146
O que Clay não parece perceber é que as atividades particulares tomadas em si pouco
importam. O que está em questão é a atividade - o trabalho 273, para ser mais preciso - em
perfeito acordo com a vontade da deusa. O trabalho começa a surgir, na obra de Hesíodo,
A relação entre o trabalho e o sacrifício, ambos imposições dos deuses aos homens,
permeia todo o catálogo de atividades apresentado, mas é nos versos 440-442 que ela se torna
mais evidente: é preciso suplicar a Hécate, como deusa intermediadora dos sacrifícios, e a
Posêidon Treme-terra, senhor dos mares, para obter sucsesso na pesca. O mesmo se dá, ainda
que a súplica tenha sido omitida, quanto à atuação conjunta de Hécate e Hermes. É de se
supor, a partir destes dois momentos, que a deusa se faz presente em todo e qualquer
sacrifício que deve anteceder qualquer empreitada humana, atuando, por exemplo, junto com
Ares, nos sacrifícios voltados para a guerra, e assim por diante.Voltaremos a isto mais tarde,
3.2 Prometeu
Nada mais difícil em Hesíodo do que falar sobre Prometeu. Se, com relação ao mito das
raças, temos em Vernant um ponto de referência seguro para nos apoiarmos e a partir do qual,
várias e interessantes leituras deste mito foram desenvolvidas, ainda nos falta, com relação ao
As diversas versões de Prometeu existentes na literatura grega fazem com que Carrière
suspeite tratar-se de um mito muito antigo e que talvez a versão de Hesíodo – isto é, as duas
273
Ainda que o verbo ἐργάζονται só apareça uma vez na descrição das atividades humanas constantes
no Hino a Hécate, e mesmo assim ligado à navegação, coisa que Hesíodo repudia em Os rabalhos e os
Dias, entendo que ele se aplica a todas as atividades humanas descritas no Hino. Eis o verso: καὶ τοῖς,
οἳ γλαυκὴν δυσπέμφελον ἐργάζονται, (“e aos que lavram o mar de ínvios caminhos.”, Teog.440)
147
ocorrências próximas, mas distintas, de Prometeu tanto na Teogonia quanto em Os Trabalhos
e os Dias – resulte de uma coletânea de diferentes versões pré-existentes. O fato é que, além
das versões de Ésquilo e Platão, sabe-se, através da fábula 42 de Higino, que ao final da
antiguidade vários episódios ligados a Prometeu eram amplamente conhecidos, mas nenhum
completo dentre todos 274. O resultado é que o Prometeu hesiódico é, no dizer de Carrière,
“um texto denso e comprimido, que funciona por alusão referencial ou por elipse. 275”
É preciso “descomprimir” o texto. Isso significa investigar como cada versão do mito
se relaciona com os demais elementos do poema que a contém, como as duas versões se
relacionam entre si e, no limite, como os dois poemas se relacionam entre si, já que este mito
O mito de Prometeu é uma narrativa sobre a condição humana. Mas é também uma
cosmos. Uma vez que, para este livro, a construção do discurso humano é o que mais
interessa, concentraremos a atenção no aspecto humano da narrativa. O que importa aqui é ter
em mente que, tal como no Hino a Hécate, que antecede o nascimento de Zeus, o mito de
Prometeu, que se segue ao nascimento do Cronida, também fala sobre o homem. A leitura da
Teogonia como um poema que fala dos deuses é um hábito tão cristalizado entre nós que
274
Mesmo este não é uma compilação completa.
275
Cf. Carrière (1987) p. 328-9.
148
Aqui ele cumpre a função de apresentar, como parte de um encadeamento de narrativas, a
gênese e a arquitetura do cosmos de Zeus. Talvez seja por isso que as dramáticas
consequências que o episódio acarretará para os homens sejam apresentadas como uma
aparente digressão.
Entre os versos 507 e 534, Hesíodo conta o destino dos filhos de Jápeto, Atlas,
Menécio, Prometeu e Epimeteu. Este último é o primeiro a ser comentado, nos versos 511 –
513, e Hesíodo só diz que ele foi um mal desde o começo, ao aceitar a mulher enviada por
Zeus:
o sem-acerto Epimeteu
virgem.
παρθένον.
sendo mais mencionado na Teogonia. Desta forma, as duas versões do mito já se apresentam
intimamente ligadas desde o início da apresentação da primeira versão. Uma vez que Atlas e
Menécio não apresentam interesse para a presente questão, não serão abordados aqui. De
Prometeu, o que é anunciado em primeira mão é o seu castigo e a sua libertação posterior por
Héracles:
Vemos então que o confronto entre Zeus e Prometeu, bem como os castigos, tanto para
se levarmos em conta que este poema é claramente divido entre uma parte mítica e uma parte
que contém ensinamentos que Hesíodo fundamenta nos mitos, vemos que o mito de Prometeu
ocupa o centro da narrativa mítica, precedido pelo mito das duas Lutas – que serve também
para apresentar a disputa jurídica entre o poeta e seu irmão, introduzindo assim a necessidade
de regular os ganhos pela via do trabalho - e seguido pelo mito das raças, com o qual,
adiantamos, guarda uma relação muito mais profunda do que se tem atentado. Prometeu
que o nascimento de Zeus ocupa na Teogonia, o que confirma, segundo a lógica paratática
que domina a poesia de Hesíodo, seu status de mito fundador da condição humana.
150
Em conjunto, os dois textos de Prometeu apresentam cinco elementos componentes
principais: o banquete em Mecona, onde há o ardil de Prometeu contra Zeus 276; o roubo do
fogo, que é a segunda afronta do filho de Jápeto ao Cronida 277; o castigo a Prometeu 278; a
feitura da mulher/Pandora, que é o castigo imposto aos homens pela falta de Prometeu 279; e o
Destes episódios, apenas dois figuram em ambas as versões, o roubo do fogo e a feitura
Quanto aos dois episódios que figuram apenas na Teogonia, o banquete tem como
momento, apenas assinalar que os males ali contidos muito se assemelham a alguns dos filhos
de Éris, aqueles desprovidos de voz – Fadiga, Olvido, Fome, Dores - apresentados nos versos
276
Teog. 535-537. καὶ γὰρ ὅτ' ἐκρίνοντο θεοὶ θνητοί τ' ἄνθρωποι/ Μηκώνῃ, τότ' ἔπειτα μέγαν βοῦν
πρόφρονι θυμῷ/ δασσάμενος προύθηκε, Διὸς νόον ἐξαπαφίσκων
Quando se discerniam deuses e homens mortais/em Mecona, com ânimo atento dividindo ofertou/
grande boi a trapacear o espírito de Zeus
277
Teog. 565-566 ἀλλά μιν ἐξαπάτησεν ἐὺς πάις Ἰαπετοῖο/ κλέψας ἀκαμάτοιο πυρὸς τηλέσκοπον
αὐγὴν
Porém o enganou o bravo filho de Jápeto:/ furtou o brilho longevisível do infatigável fogo
e Trab. 50-52. κρύψε δὲ πῦρ· τὸ μὲν αὖτις ἐὺς πάις Ἰαπετοῖο/ ἔκλεψ' ἀνθρώποισι Διὸς παρὰ
μητιόεντος.
Ocultou o fogo. Mas de novo o bravo filho de Jápeto/ roubou-o para os homens de Zeus astucioso.
278
Cf. Teog. 520-528.
279
Cf.Teog. 570-589 e Trab. 59-89.
280
Cf. Trab. 93-98. ἀλλὰ γυνὴ χείρεσσι πίθου μέγα πῶμ' ἀφελοῦσα/ ἐσκέδασ', ἀνθρώποισι δ' ἐμήσατο
κήδεα λυγρά./ μούνη δ' αὐτόθι Ἐλπὶς ἐν ἀρρήκτοισι δόμοισιν/ ἔνδον ἔμεινε πίθου ὑπὸ χείλεσιν οὐδὲ
θύραζε/ ἐξέπτη· πρόσθεν γὰρ ἐπέμβαλε πῶμα πίθοιο.
Mas a mulher, retirando com as mãos a grande tampa do jarro/ espalhou epreparou duras penas para
os homens/ e ali só Esperança, em morada inabalável,/ ficou dentro do jarro, abaixo das bordas, e não
transpôs/ os umbrais, pois logo repôs a tampa do jarro.
281
Cf. Teog. 556-557. ἐκ τοῦ δ' ἀθανάτοισιν ἐπὶ χθονὶ φῦλ' ἀνθρώπων /καίουσ' ὀστέα λευκὰ θυηέντων
ἐπὶ βωμῶν.
Por isso aos imortais sobre a terra a grei humana /queima os alvos ossos em altares turiais.
151
226-232 282 da Teogonia, como destinados aos homens, ou seja, não afligem os imortais. Elpís,
a Esperança, será discutida mais adiante, quando abordar as noções morais de Hesíodo.
Como se vê, o homem é uma presença e uma preocupação constante para Hesíodo, já no
bojo do seu poema dedicado aos deuses. Neste sentido, os versos 535 e 536 da Teogonia são
Então, o encontro em Mecona tratava da questão crucial de decidir o que é ser deus e o
que é ser homem. A pertinência deste problema fica explicitada no verso 108 de Os Trabalhos
e os Dias: “que têm a mesma origem deuses e homens mortais”, onde o poeta explica que
ambos provêm da mesma origem 284. A questão não é de pouca importância e Hesíodo não só
a apresenta num momento central da Teogonia, como também retorna a ela num momento
capital de Os Trabalhos e os Dias, que é a passagem do mito de Prometeu para o mito das
raças.
e mesmo que a resposta definitiva seja impossível, o resultado desta decisão está claramente
manifesto no verso 42 de Os Trabalhos e os Dias: “os deuses mantêm oculto aos homens o
sustento 285”.
Sua resposta não vai nos dar uma definição do homem, mas seu lugar no mundo.
Homens e deuses, a partir de Mecona, estão separados e mesmo em oposição, já que os deuses
282
αὐτὰρ Ἔρις στυγερὴ τέκε μὲν Πόνον ἀλγινόεντα /Λήθην τε Λιμόν τε καὶ Ἄλγεα δακρυόεντα
/Ὑσμίνας τε Μάχας τε Φόνους τ' Ἀνδροκτασίας τε /Νείκεά τε Ψεύδεά τε Λόγους τ' Ἀμφιλλογίας τε
/Δυσνομίην τ' Ἄτην τε, συνήθεας ἀλλήλῃσιν, /Ὅρκόν θ', ὃς δὴ πλεῖστον ἐπιχθονίους ἀνθρώπους
/πημαίνει, ὅτε κέν τις ἑκὼν ἐπίορκον ὀμόσσῃ·
Éris hedionda pariu Fadiga cheia de dor, /Olvido, Fome e Dores cheias de lágrimas, /Batalhas,
Combates, Massacres e Homicídios, /Litígios, Mentiras, Falas e Disputas, /Desordem e Derrota
conviventes uma da outra, /e Juramento, que aos sobreterrâneos homens /muito arruina quando
alguém adrede perjura. Grifo nosso.
283
Teog. 535-536. καὶ γὰρ ὅτ' ἐκρίνοντο θεοὶ θνητοί τ' ἄνθρωποι /Μηκώνῃ,
284
Trab. 108. ὡς ὁμόθεν γεγάασι θεοὶ θνητοί τ' ἄνθρωποι
285
Trab. 42 Κρύψαντες γὰρ ἔχουσι θεοὶ βίον ἀνθρώποισιν.
152
ocultaram o sustento aos homens. Como consequência desta separação, além da necessidade
do sacrifício - “por isso aos imortais sobre a terra a grei humana/ queima os alvos ossos em
altares turiais. 286”, surge também a necessidade do trabalho: “senão facilmente trabalharias
A ocultação do sustento, por sua vez, foi causada pela ocultação do fogo. É importante
lembrar que o tema do fogo é mencionado nos dois poemas. Isto indica que o fogo cumpre um
papel fundamental na relação entre deuses e homens. Na Teogonia, o fogo que Zeus oculta é
diferente do fogo que retorna aos homens. O irado Zeus “depois sempre deste ardil lembrado
/negou nos freixos a força do fogo infatigável /aos homens mortais que sobre a terra
habitam. 288”, mas o filho de Jápeto “furtou o brilho longevisível do infatigável fogo /em oca
férula 289.”
Entendemos que Hesíodo não empregou palavras distintas por acaso. Assim sendo,
entendo que o fogo de Zeus, ou melhor, a centelha do seu raio, simboliza aquela
espontaneidade criadora e criativa que os homens compartilhavam com os deuses, uma vez
que homens e deuses procedem da mesma origem. O fogo de Prometeu integra a nova ordem
homem na cultura. A marca da entrada do homem na cultura é, por sua vez, a entrada no
mundo do trabalho.
286
Teog. 556-557. ἐκ τοῦ δ' ἀθανάτοισιν ἐπὶ χθονὶ φῦλ' ἀνθρώπων/ καίουσ' ὀστέα λευκὰ θυηέντων ἐπὶ
βωμῶν.
287
Trab. 43-44. ῥηιδίως γάρ κεν καὶ ἐπ' ἤματι ἐργάσσαιο, /ὥστε σε κεἰς ἐνιαυτὸν ἔχειν καὶ ἀεργὸν
ἐόντα·
288
Teog. 562-564. ἐκ τούτου δἤπειτα χόλου μεμνημένος αἰεὶ /οὐκ ἐδίδου μελίῃσι πυρὸς μένος
ἀκαμάτοιο /θνητοῖς ἀνθρώποις οἳ ἐπὶ χθονὶ ναιετάουσιν· Grifo nosso.
289
Teog. 566-567. κλέψας ἀκαμάτοιο πυρὸς τηλέσκοπον αὐγὴν /ἐν κοίλῳ νάρθηκι· Grifo nosso.
153
O tema do trabalho está ausente no Prometeu da Teogonia 290, só aparecendo em Os
Trabalhos e os Dias. Neste poema, há uma sutil clivagem a ser examinada. Além do mais, os
versos que introduzem o mito neste poema guardam uma profunda ressonância com a idade
do ouro:
Todas as palavras ligadas ao trabalho aqui presentes são expressas em termos de ἔργον.
290
Ou só aparece de forma indireta, já que a necessidade do sacrifício implica na necessidade do
trabalho: é preciso cuidar dos rebanhos para poder realizar as hecatombes; é preciso cultivar a terra
para fazer as libações com vinho, farinha e mel.
154
Nesta segunda descrição, o trabalho foi substituído pela dura fadiga. Em grego, ἔργον
Tudo leva a crer que esta segunda descrição aborda a raça de ouro do ponto de vista da
raça de Hesíodo, a raça de ferro, de vida tão dura que ele preferia ter morrido antes ou nascido
depois 291, enquanto a primeira abordava a raça de ouro a partir do ponto de vista desta própria
raça, que vivia como os deuses, isto é, livre de penas, fadigas e cansaços 292.
Dentro da leitura aqui desenvolvida, que vê, entre outras coisas, a separação entre
deuses e homens expressa por palavras cuidadosamente empregadas pelo poeta, a partir da
distinção entre ἀληθέα e ἐτήτυμα, passando pela distinção entre eterno e efêmero; Hefesto e a
bigorna; bem como a diferença entre o freixo e a férula, a distinção entre ἔργον e πόνος me
parece capital: estando o ἔργον reservado aos deuses e aos homens que lhes são próximos,
enquanto o πόνος é a parte que cabe ao comum dos mortais, a conversão do πόνος em ἔργον é
É preciso esclarecer como ἔργον está sendo entendido aqui. Se, por um lado, a tradução
do grego Ἔργα καὶ ἡμεραι por “Os trabalhos e dias” já ficou consagrada, por outro, a
tradução de ἔργα por “trabalho” é bastante problemática. Em primeiro lugar pela visão
contemporânea de trabalho: não se encontra na Grécia antiga uma grande função humana
chamada trabalho e que recobre todos os ofícios. Cada um deles constitui um tipo particular
de ação que produz sua própria obra. É exclusivamente em função de seu valor de uso que
cada produto era fabricado e a meta era torná-lo o mais perfeito possível. Não existia lá a
291
Trab. 174-175. Μηκέτ' ἔπειτ' ὤφελλον ἐγὼ πέμπτοισι μετεῖναι /ἀνδράσιν, ἀλλ' ἢ πρόσθε θανεῖν ἢ
ἔπειτα γενέσθαι.
Quem dera, eu não tivesse nascido na quinta raça,/ mas tivesse antes morrido, ou nascido mais tarde.
292
Trab. 110-114. Χρύσεον μὲν πρώτιστα γένος μερόπων ἀνθρώπων/ ἀθάνατοι ποίησαν Ὀλύμπια
δώματ' ἔχοντες./ οἳ μὲν ἐπὶ Κρόνου ἦσαν, ὅτ' οὐρανῷ ἐμβασίλευεν·/ ὥστε θεοὶ δ' ἔζωον ἀκηδέα θυμὸν
ἔχοντες / νόσφιν ἄτερ τε πόνων καὶ ὀιζύος,
Primeiro a raça de ouro, de homens falantes,/ criaram os imortais que habitam olímpias moradas./ Era
no tempo de Kronos, quando reinava no céu./ Viviam como deuses, tendo o ânimo isento de penas/
sem dor, nem cansaço.
155
idéia de um processo produtivo de conjunto cuja divisão permitisse obter do trabalho em geral
uma palavra, πόνος, que se aplica a todas as atividades que exigem esforço penoso e não
somente às tarefas produtivas com valores socialmente úteis. Ἔργον é, para cada coisa, para
cada ser, o produto de sua própria força de realização, de sua virtude, de sua ἀρετή. A ênfase
do ἔργον recai, portanto, na própria ação produtiva, na πράξις, e não no produto, no ποίημα. É
justamente nesta perspectiva que deve ser lido o verso 382 do poema, ὧδ' ἔρδειν, καὶ ἔργον ἐπ'
ἔργῳ ἐργάζεσθαι, que traduzimos como “assim obra: trabalho sobre trabalho trabalha”, mas
que deve ser lido como “assim obra (ὧδ' ἔρδειν): a força de realização (ἔργον) na própria
obra (ἐπ' ἔργῳ) se atualiza (ἐργάζεσθαι)”. Em outras palavras, ao endereçar este conselho, não
só a seu irmão, como também à audiência, Hesíodo quer dizer que o efeito mais importante do
trabalho se dá em quem trabalha, e não sobre o produto do trabalho. É certo que o trabalho dá
seus frutos, mas o fruto maior é a modificação que ele opera em quem trabalha, conduzindo-o,
pelo hábito do trabalho, à excelência, à virtude, à ἀρετή. A estreita ligação que Hesíodo vê
entre trabalho e virtude, entre ἔργον e ἀρετή fica dramaticamente patente na famosa passagem
dos caminhos:
156
ῥηιδίως· λείη μὲν ὁδός, μάλα δ' ἐγγύθι ναίει·
Muitos séculos mais tarde, a escritora francesa George Sand reapresentou a questão da
conversão de πόνος em ἔργον praticamente nos mesmos termos: “Deixai-me fugir da ilusão
É o entusiasmo pelo esforço penoso, e não a rejeição a este, que possibilita esta conversão.
Por outro lado, não existe excelência, não existe virtude, sem esforço penoso. Só a partir
deste, aquela é alcançada. Este ponto de partida para a virtude foi dado a todos os homens
indistintamente a partir da ocultação do sustento, por parte dos deuses. Todos os homens
ficaram, desde então, destinados a trabalhar. Cabe a cada um aceitar ou recusar, tal como
Daí resulta uma visão do homem como um ser ambíguo, oscilante entre o divino e o
bestial. Na medida em que é o único ente que presta culto aos deuses, o homem aproxima-se
trabalha e sacrifica aos deuses e não o inverso. Privado do fogo, não há nem trabalho nem
sacrifício possível e o homem se afasta dos deuses, tendendo para as bestas que se devoram
umas às outras, de quem devem se manter distintos por desígnio de Zeus 294.
293
Le Monde. Dossiers & documents. n. 51. Avril 2006. pag.1.
294
Trab. 276-279. τόνδε γὰρ ἀνθρώποισι νόμον διέταξε Κρονίων,/ ἰχθύσι μὲν καὶ θηρσὶ καὶ οἰωνοῖς
πετεηνοῖς/ ἔσθειν ἀλλήλους, ἐπεὶ οὐ δίκη ἐστὶ μετ' αὐτοῖς·/ ἀνθρώποισι δ' ἔδωκε δίκην,
Pois o Cronida dispôs aos homens a lei/ Aos peixes, às feras e às aves aladas,/ que se devorem./Justiça
não há entre eles./Aos homens, sim, deu a Justiça.
157
Passamos agora a examinar o segundo ponto comum entre as duas versões hesiódicas
Se nossa interpretação sobre a diferença entre o fogo que foi ocultado por Zeus e o fogo
que foi retornado por Prometeu tem algum fundamento, a chegada da mulher/Pandora tem um
significado simbólico e alude à mudança de natureza, à queda, sofrida pelo homem como
consequência do embate entre o Cronida e o titânida. Pandora solicita um olhar muito mais
simbólico do que antropológico, sob a pena de ficarmos discutindo questões feministas que
não estão contidas e nem cabem no mito, isto é, sob a pena de perdermos o mito.
Vale lembrar que a imagem da mulher como encarnação das qualidades negativas da
Kathryn Stoddard compartilha do mesmo ponto de vista. Para ela, a criação da mulher,
Pandora e o pote são a marca da ruptura dos deuses com os homens e do consequente
fim da raça de ouro, bem como de uma tomada de consciência da diferenciação de gênero –
295
Stoddard (2004) pag. 156.
158
não há nenhuma menção à mulher na raça de ouro, ela só surge na raça de prata – e da vida
No plano simbólico, isto está expresso pelas seguintes divisões sucessivas: primeiro
Prometeu dividiu as carnes; depois homens e deuses, que têm a mesma origem 296, dividiram-
mulheres “amontoam em seu ventre o esforço alheio 298”, Hesíodo convoca a reprovação das
Em uma palavra, Pandora simboliza a vida permeada por males inevitáveis. Estes males
parecem ser os filhos de Éris, aos quais os deuses são imunes 300. Só mesmo entre os homens
eles podem se manifestar. Então Hesíodo os colocou todos num pote e enviou-os aos homens
junto com Pandora, pura e simplesmente porque a tomada de consciência de um único traço
somente a primeira fêmea humana, mas a noiva, com todos os seus adornos e esplendor
sedutor. Sua chegada inaugura a instituição do matrimônio, que tal como o sacrifício aos
296
Trab. 108. ὡς ὁμόθεν γεγάασι θεοὶ θνητοί τ' ἄνθρωποι
que têm mesma origem deuses e homens mortais.
297
Stoddard (2004) pag. 156-157.
298
Teog. 599. ἀλλότριον κάματον σφετέρην ἐς γαστέρ' ἀμῶνται·
299
Teog. 26. ποιμένες ἄγραυλοι, κάκ' ἐλέγχεα, γαστέρες οἶον,
Pastores agrestes, vis infâmias e ventres só,
300
Até mesmo o Juramento é diferente para deuses e homens. O Juramento dos homens é um dos
filhos de Éris: “Juramento, que aos sobreterrâneos homens/ muito arruina quando alguém adrede
perjura.” (Teog. 231-232. Ὅρκόν θ', ὃς δὴ πλεῖστον ἐπιχθονίους ἀνθρώπους/ πημαίνει, ὅτε κέν τις
ἑκὼν ἐπίορκον ὀμόσσῃ· e), enquanto o Juramento dos deuses é Styx: “fez dela própria o grande
juramento dos Deuses.” (Teog. 400. αὐτὴν μὲν γὰρ ἔθηκε θεῶν μέγαν ἔμμεναι ὅρκον)
159
deuses e o trabalho, são as coordenadas que delimitam a condição humana. Sendo mortais, os
homens são compelidos a se reproduzirem. Para continuarem vivos enquanto espécie, mas,
diferente das bestas que praticam o incesto, os homens são os únicos a regularem sua
Por ser humana, a esposa é ambígua. Por ser um presente dos deuses, é irrecusável:
aquele que evitar o casamento terá uma velhice miserável 301; aquele que consegue uma má
esposa está igualmente arruinado, mas aquele que consegue uma boa esposa terá o melhor
destino possível para um homem 302: uma vida inteira de males misturados aos bens, conforme
atestam os versos 610 da Teogonia “para este desde cedo ao bem contrapesa o mal
constante. 303”, e o verso 179 de Os trabalhos e os dias, ao final do mito das raças: “Ainda
pelo trabalho. Um precioso auxílio com o qual os que têm uma má esposa e os que não têm
nenhuma não podem contar. Estes últimos versos que acabamos de examinar têm sido
sistematicamente ignorados pela leitura feminista – que não é exclusividade das mulheres – de
301
Teog. 603-605. ὅς κε γάμον φεύγων καὶ μέρμερα ἔργα γυναικῶν/ μὴ γῆμαι ἐθέλῃ, ὀλοὸν δ' ἐπὶ
γῆρας ἵκηται/ χήτει γηροκόμοιο·
Quem fugindo a núpcias e a obrigações com mulheres/ não quer casar-se, atinge a velhice funesta/
sem quem o segure
302
Trab. 702-706. οὐ μὲν γάρ τι γυναικὸς ἀνὴρ ληίζετ' ἄμεινον/ τῆς ἀγαθῆς, τῆς δ' αὖτε κακῆς οὐ
ῥίγιον ἄλλο,/ δειπνολόχης, ἥ τ' ἄνδρα καὶ ἴφθιμόν περ ἐόντα/ εὕει ἄτερ δαλοῖο καὶ ὠμῷ γήραϊ δῶκεν.
Um homem não consegue nada melhor do que mulher/ dedicada, nem há pior/ desgraça do que a
má,/parasita, que o marido, por mais forte que seja,/consome sem fogo e à velhice precoce o condena.
e Teog.607-610. ᾧ δ' αὖτε γάμου μετὰ μοῖρα γένηται,/ κεδνὴν δ' ἔσχεν ἄκοιτιν, ἀρηρυῖαν πραπίδεσσι,/
τῷ δέ τ' ἀπ' αἰῶνος κακὸν ἐσθλῷ ἀντιφερίζει/ ἐμμενές·
A quem vem o destino de núpcias/ e cabe cuidosa esposa concorde consigo,/ para este desde cedo ao
bem contrapesa o mal constante.
303
Teog. 610. τῷ δέ τ' ἀπ' αἰῶνος κακὸν ἐσθλῷ ἀντιφερίζει.
304
Trab. 179. ἀλλ’ ἔμπης καὶ τοῖσι μεμείξεται ἐσθλὰ κακοῖσιν.
160
Ao longo destes últimos parágrafos estivemos abordando, de forma indistinta e quase
espontânea, as duas versões do mito de Prometeu. Neste trajeto, algumas passagens do mito
das raças foram visitadas. Observemos mais de perto a intimidade que estes dois importantes
Zeus já liga imediatamente o início do mito de Prometeu com o fim do mito das raças.
dos tempos e no nível do divino, continua a afetar a humanidade no presente, por meio de um
fenômeno cotidiano, mas eternamente presente – a ativa vida da colmeia sempre foi assim.
Desta forma, prossegue Stoddard, “Hesíodo age como uma ponte entre ἀληθέα e ἔτυμος,
compreensível, uma vez que o que está em jogo é a decisão sobre o que é ser deus e o que é
ser humano. Logo, o enfoque deve incidir sobre a diferença entre ambos, e não sobre a
isenção quase absoluta do trabalho, bastando apenas um dia para garantir o sustento de um
305
Teog. 594-602. ὡς δ' ὁπότ' ἐν σμήνεσσι κατηρεφέεσσι μέλισσαι/ κηφῆνας βόσκωσι, κακῶν
ξυνήονας ἔργων·/ αἱ μέν τε πρόπαν ἦμαρ ἐς ἠέλιον καταδύντα/ ἠμάτιαι σπεύδουσι τιθεῖσί τε κηρία
λευκά,/ οἱ δ' ἔντοσθε μένοντες ἐπηρεφέας κατὰ σίμβλους/ ἀλλότριον κάματον σφετέρην ἐς γαστέρ'
ἀμῶνται·/ ὣς δ' αὔτως ἄνδρεσσι κακὸν θνητοῖσι γυναῖκας/ Ζεὺς ὑψιβρεμέτης θῆκε, ξυνήονας ἔργων/
ἀργαλέων.
Tal quando na colméia recoberta abelhas/ nutrem zangões,/ emparelhados de malefício,/ elas todo o
dia até o mergulho do sol/ diurnas fadigam-se e fazem os brancos favos,/ eles ficam no abrigo do
enxame à espera/ e amontoam no seu ventre o esforço alheio,/ assim um mal igual fez aos homens
mortais/ Zeus tonítruo
306
Stoddard (2004) pag. 157.
161
ano, e totalmente realizada no mito das raças, onde diz que os homens da raça de ouro
transição da vida do homem da raça de ouro, quando os homens viviam “bem longe dos
males, bem longe da dura fadiga/ das doenças dolorosas que trazem morte aos homens 308”,
para a vida do homem da raça de ferro: “Dez mil pesares já estavam lançados aos
homens 309”, verso que articula o verso 609 do Prometeu da Teogonia, “para este desde cedo
ao bem contrapesa o mal constante.”, com o verso 179 de Os Trabalhos e os Dias, no início
da raça de ferro: “ainda assim, para eles bens estarão mesclados aos males”, o que prova
Para finalizar com esta análise, é preciso salientar que a construção do discurso humano
tornou-se, a partir de então, necessária. Uma vez decidido o que é ser deus e o que é ser
remanescentes na terra vestidas são todas vestidas de ar, o que equivale dizer que nos são
inacessíveis. E mesmo estas também podem deixar os homens, o que significará o fim da
humanidade. Portanto, é imperioso que o homem descubra o seu norte. Se o homem era um
elemento secundário e passivo na primeira versão 310 do mito, na segunda a questão do homem
ocupa o centro da narrativa, não para dizer o que é o homem, mas para explicar como ele veio
307
Trab. 112. ὥστε θεοὶ δ' ἔζωον ἀκηδέα θυμὸν ἔχοντες
308
Trab. 91-92. νόσφιν ἄτερ τε κακῶν καὶ ἄτερ χαλεποῖο πόνοιο/ νούσων τ' ἀργαλέων, αἵ τ' ἀνδράσι
κῆρας ἔδωκαν.
309
Trab. 100. ἄλλα δὲ μυρία λυγρὰ κατ' ἀνθρώπους ἀλάληται·
310
Após ter definido o que é ser deus e o que é ser homem, o poema segue seu fluxo e conta os eventos
finais da constituição do cosmos divino e os homens desaparecem do cenário, só retornando no verso
967, quando surgem referências aos heróis, que compõem o final do poema. Estudos mais recentes
começam a levantar a hipótese de considerar o Catálogo das mulheres como um poema que se situa
entre a Teogonia e Os Trabalhos e os Dias, na medida em que o primeiro trata dos deuses, o segundo
dos heróis e o terceiro dos homens. Até onde eu saiba, estes estudos estão em andamento. O próprio
mito de Prometeu, neste poema, parece mais ser uma digressão, já que surge no bojo da narrativa da
linhagem de Jápeto, e conta o destino de cada um de seus filhos, Menécio, Atlas, Prometeu e
Epimeteu.
162
a chegar à situação presente e, a partir daí, descobrir como ele deve agir. Em outras palavras,
O curso da investigação mostrou que o vínculo mais forte entre os dois poemas é o mito
de Prometeu. Desta forma, a passagem da Teogonia para Os trabalhos e os dias foi feita por
esta porta, mas, ainda que isto nos encaminhe para o mito das raças, dada a enorme intimidade
existente entre estas duas narrativas, é preciso, antes disso, recuperar alguns aspectos do
proêmio deste último poema, assim como traçar algumas considerações sobre as duas Lutas
para que se possa acompanhar mais de perto a marcha do pensamento do poeta. O problema
das duas Lutas será visto com maior detalhe no próximo capítulo.
Conforme já vimos, entre os versos 8 e 10, Zeus é convocado para corrigir, com justiça,
as sentenças (δίκῃ δ' ἴθυνε θέμιστας). Esta é a preocupação central de Hesíodo neste poema, já
Este poder de Zeus já estava anunciado desde o verso 7: “fácil o torto endireita e
enfraquece o nobre” (ῥεῖα δέ τ' ἰθύνει σκολιὸν καὶ ἀγήνορα κάρφει 311
). O verbo ἰθύνει (corrigir,
endireitar) aparece duas vezes neste trecho, ligando claramente σκολιὸν (torto) e θέμιστας
(sentenças), mostrando que são as sentenças que estão tortas e devem ser corrigidas.
Entretanto, vimos também que, uma vez que estas são divinas, elas não podem estar erradas.
O erro está em quem as aplica e quem as aplica está representado no verso 7 pelo epíteto
311
Modificamos aqui nossa tradução para ἀγήνορα. Cf. Hesíodo (2011). pág. 117, onde tinhamos
optado por “arrogante”, guardando assim um pouco da sonoridade da palavra. Aqui, interessa
assinalar que ninguém escapa do poder de Zeus.
163
ἀγήνορα (nobre) 312. Deste modo, para fazer isto, Zeus deve enfraquecer o poder de quem as
administra.
administração da justiça, mas o poeta não visa uma usurpação de poder e aplicar corretamente
ele mesmo as sentenças. Seu propósito é educar Perses e os ouvintes de modo que todos
assumam um comportamento que previne o estabelecimento das disputas na ágora. Por isso
ele lança mão das duas Lutas, a primeira verdade que ele conta ao irmão.
ágora, ele o liga à Luta má: “Uma traz a guerra e a discórdia funesta,” (v.14. ἣ μὲν γὰρ
πόλεμόν τε κακὸν καὶ δῆριν ὀφέλλει). A outra Luta é mais antiga, o que equivale dizer, é mais
proeminente. O verso 19 diz que é muito melhor para os homens (ἀνδράσι πολλὸν ἀμείνω), pois
desperta até mesmo o indolente para o trabalho (v.20.ἥ τε καὶ ἀπάλαμόν περ ὁμῶς ἐπὶ ἔργον
ἐγείρει·).
justiça como questão central do poema. O mito das duas Lutas introduz o trabalho como a via
de consecução da justiça. Tudo isto nos leva ao mito de Prometeu, já que este conta como a
necessidade do trabalho surgiu para o homem, por imposição divina. Este mito, por sua vez,
está intimamente ligado, desde a sua primeira parte, ainda na Teogonia, ao mito das raças, que
312
Acatamos a interpretação que Pucci dá a este verso, entendo que ἀγήνορα só pode se referir aos
nobres “pois somente estes administram a justiça e somente um nobre pode ser dito ἀγήνορα”. Cf.
Pucci (1996) pág.202-203. Pucci ainda menciona a ressonância que o verso de Hesíodo guarda com
Il.16. 387. οἳ βίῃ εἰν ἀγορῇ σκολιὰς κρίνωσι θέμιστας. Rousseau tem entendimento semelhante. Cf.
Rousseau (1996) pág.100-101.
164
3.3.1 Apresentação
O mito das raças é introduzido por três versos (vv. 106-8) que dizem:
Este último verso constitui-se num ponto importantíssimo para a compreensão da visão
quinta raça, a maioria dos os deuses já se tinha retirado do convívio dos mortais 313, restando
Cada uma das idades está aparentada com um metal, cujo nome toma e cuja sucessão se
ordena do mais ao menos precioso, do superior ao inferior; ouro, prata, bronze, ferro. Insere,
entre as duas últimas, a raça dos heróis, que não possui correspondente metálico. Sua inserção
no relato das idades é indispensável para completar o quadro dos seres invisíveis que engloba
313
Ainda que o verso 108 seja considerado duvidoso por alguns, ele não altera em nada a
compreensão do texto, parecendo antes reforçá-la: ὁμόθεν pode significar tanto origem consanguínea
quanto proximidade no espaço. No primeiro caso, deuses e homens têm a mesma origem, Γαῖα, Terra.
No segundo, reforça a ideia de que deuses e homens conviviam e chegavam mesmo a produzir filhos
semidivinos de seus encontros. Daí até a partida de Pudor e Partilha, o afastamento entre deuses e
homens foi se dando progressivamente. Cf. Moura in Hesíodo (2012) pág. 73, nota 14.
314
Trab. 198-200. λευκοῖσιν φάρεσσι καλυψαμένω χρόα καλὸν/ ἀθανάτων μετὰ φῦλον ἴτον
προλιπόντ' ἀνθρώπους/ Αἰδὼς καὶ Νέμεσις·
belo corpo escondido em brancas vestes,/ à tribo dos imortais irão, abandonando os homens,/ Pudor e
Partilha.
165
os deuses, os demônios, os heróis e os mortos. De um lado, um mito genealógico que explica
a decadência – e não a origem, pois esta já estava estabelecida como a mesma dos deuses - da
humanidade, de outro, uma divisão estrutural do mundo divino que possibilita a inserção dos
(vv. 143-4), heróis a quarta (vv. 157-9) e, por fim, a quinta, de ferro (vv.173-6).
O poeta não poderia ter sido mais minucioso no que se à ordenação temporal, dando a
A introdução de cada raça é assinalada por numerais ordinais que funcionam como
advérbios de tempo, o que sugere, à primeira vista, uma sucessão em ordem cronológica
linear, em ordem decrescente de valor. O poeta nos dá ainda outras referências temporais: a
raça de ouro viveu no tempo da Cronos 315, que é anterior a Zeus; a raça de bronze, numa
época em que o ferro não existia 316; os heróis formaram a raça que nos precedeu 317; por fim, a
As raças de ouro e prata foram criadas pelos olímpicos 319. Zeus criou as raças de bronze
e dos heróis 320. Aceitando-se a autenticidade do verso 173d, Zeus “forjou outra raça de
315
Trab. 111. οἳ μὲν ἐπὶ Κρόνου ἦσαν, ὅτ' οὐρανῷ ἐμβασίλευεν·
Era no tempo de Kronos, quando reinava no céu.
316
Trab. 151. χαλκῷ δ' εἰργάζοντο· μέλας δ' οὐκ ἔσκε σίδηρος.
com o bronze trabalhavam, pois não havia negro ferro.
317
Trab. 160. ἡμίθεοι, προτέρη γενεὴ κατ' ἀπείρονα γαῖαν.
semideuses. Precedem a nossa na terra sem fim.
318
Trab. 176. νῦν γὰρ δὴ γένος ἐστὶ σιδήρεον·
pois agora é a raça de ferro:
319
Trab. 109-110. Χρύσεον μὲν πρώτιστα γένος μερόπων ἀνθρώπων/ ἀθάνατοι ποίησαν Ὀλύμπια
δώματ' ἔχοντες.
Primeiro a raça de ouro, de homens falantes/criaram os imortais que habitam olímpias moradas.
127-128. Δεύτερον αὖτε γένος πολὺ χειρότερον μετόπισθεν/ ἀργύρεον ποίησαν Ὀλύμπια δώματ'
ἔχοντες,
166
Quanto ao fim de cada raça, os homens da raça de ouro “morriam como que enlaçados
pelo sono. 322”. Os homens de prata foram escondidos por Zeus encolerizado 323. Já os homens
de bronze “devastaram-se uns aos outros pelas próprias mãos 324”, enquanto os heróis foram,
uns devastados pela guerra, uns em Tebas 325, outros em Tróia 326. Esta menção aos heróis do
ciclo trágico e do ciclo épico mostra que Hesíodo reverencia outros poetas e reforça o nosso
entendimento de que os versos 27 e 28 da Teogonia não podem ser lidos como um ataque aos
poetas gregos.
A raça de ferro ainda está viva, mas sob ela paira uma ameaça: “Zeus findará com esta
raça de homens falantes/ assim que nascerem com brancas melenas 327”.
Quanto ao destino pós-morte de cada raça, os homens de ouro “são anjos por vontade
de Zeus grandioso,/ nobres sobre a terra, guardiões de homens mortais. 328” Os homens de
prata são “chamados subterrâneos bem aventurados pelos mortais,/ secundários, mas ainda
assim, honra os acompanha 329”, o que quer dizer que eles são, de alguma forma, venerados
pelos homens viventes, isto é, os homens da raça de ferro. Os homens de bronze, “desceram à
E uma segunda raça, muito pior, em seguida,/ de prata, criaram os deuses que habitam olímpias
moradas,
320
Trab. 143-144. Ζεὺς δὲ πατὴρ τρίτον ἄλλο γένος μερόπων ἀνθρώπων/χάλκειον ποίησ',
Zeus pai, outra raça – terceira – de homens falantes/ de bronze, fez ...
157-158. αὖτις ἔτ' ἄλλο τέταρτον ἐπὶ χθονὶ πουλυβοτείρῃ/ Ζεὺς Κρονίδης ποίησε.
de novo, outra quarta sobre a terra multinutriz/ Zeus Cronida fez.
321
Trab. 173d. Ζεὺς δ'αὖτ' ἀλλο γένος θῆκεν μερόπων ἀθρώπων
e Zeus forjou outra raça de homens falantes
322
Trab. 116. θνῇσκον δ' ὥσθ' ὕπνῳ δεδμημένοι· ἐσθλὰ δὲ πάντα
Morriam como que enlaçados pelo sono.
323
Trab. 138. Ζεὺς Κρονίδης ἔκρυψε χολούμενος, οὕνεκα τιμὰς
Zeus Cronida, encolerizado, os escondeu.
324
Trab. 152. καὶ τοὶ μὲν χείρεσσιν ὑπὸ σφετέρῃσι δαμέντες
325
Trab. 162-163. τοὺς μὲν ὑφ' ἑπταπύλῳ Θήβῃ, Καδμηίδι γαίῃ,/ ὤλεσε μαρναμένους μήλων ἕνεκ'
Οἰδιπόδαο,
Uns, na Tebas de sete portas, terra de Cadmo,/ devastou, ao combaterem pelos rebanhos de Édipo.
326
Trab. 165. ἐς Τροίην ἀγαγὼν Ἑλένης ἕνεκ' ἠυκόμοιο.
327
Trab. 180-181. Ζεὺς δ' ὀλέσει καὶ τοῦτο γένος μερόπων ἀνθρώπων,/ εὖτ' ἂν γεινόμενοι
πολιοκρόταφοι τελέθωσιν.
328
Trab. 122-123. τοὶ μὲν δαίμονες ἁγνοὶ ἐπιχθόνιοι τελέθουσιν/ ἐσθλοί, ἀλεξίκακοι, φύλακες θνητῶν
ἀνθρώπων,
329
Trab. 141-142. τοὶ μὲν ὑποχθόνιοι μάκαρες θνητοὶ καλέονται, δεύτεροι, ἀλλ' ἔμπης τιμὴ καὶ τοῖσιν
ὀπηδεῖ.
167
casa do frio Plutão,/ anônimos 330”, em outras palavras, foram completamente esquecidos
pelos vivos, que não lembram nem mesmo de seus nomes. Dentre os heróis, “alguns foram
envolvidos com destino de morte 331”, enquanto outros foram levados por Zeus para a Ilha dos
Bem-aventurados 332.
As raças também são apresentadas de modo comparativo. A raça de ouro vivia como os
deuses 333; a raça de prata é bem inferior 334 e em nada parecida com a de ouro 335; a de bronze
não se parece com a de prata 336; a dos heróis é mais justa e mais nobre; por fim, a raça de
ferro parece ser a pior de todas, pois poeta preferia ter morrido antes ou nascido depois 337.
Hesíodo silencia sobre o destino final de sua própria raça – a nossa, caso a ameaça que
sobre ela paira se concretize. Tampouco nos diz se haverá uma sexta, caso Zeus nos
extermine.
articulada em termos comparativos que indicam uma ordem decrescente de valor. A descrição
do modo de vida de cada raça dá a impressão de apresentar uma história da humanidade, onde
nenhuma raça é uma forma modificada da precedente. O presente não parece ser resultado do
330
Trab. 153-154. βῆσαν ἐς εὐρώεντα δόμον κρυεροῦ Ἀίδαο,/ νώνυμοι.
331
Trab. 166. ἔνθ' ἦ τοι τοὺς μὲν θανάτου τέλος ἀμφεκάλυψε.
332
Trab. 168-172. τοῖς δὲ δίχ' ἀνθρώπων βίοτον καὶ ἤθε' ὀπάσσας/ Ζεὺς Κρονίδης κατένασσε πατὴρ
ἐς πείρατα γαίης./ καὶ τοὶ μὲν ναίουσιν ἀκηδέα θυμὸν ἔχοντες/ ἐν μακάρων νήσοισι παρ' Ὠκεανὸν
βαθυδίνην,/ ὄλβιοι ἥρωες.
333
Trab.112. ὥστε θεοὶ δ' ἔζωον ἀκηδέα θυμὸν ἔχοντες
Viviam como deuses, tendo o ânimo isento de penas.
334
Trab.127. Δεύτερον αὖτε γένος πολὺ χειρότερον μετόπισθεν
E uma segunda raça, muito pior, em seguida,
335
Trab.129. χρυσέῳ οὔτε φυὴν ἐναλίγκιον οὔτε νόημα·
no porte e na mente desigual à dourada.
336
Trab.144. χάλκειον ποίησ', οὐκ ἀργυρέῳ οὐδὲν ὁμοῖον,
de bronze, criou. Nada parelhos à raça de prata.
337
Trab. 174-176. Μηκέτ' ἔπειτ' ὤφελλον ἐγὼ πέμπτοισι μετεῖναι/ ἀνδράσιν, ἀλλ' ἢ πρόσθε θανεῖν ἢ
ἔπειτα γενέσθαι./ νῦν γὰρ δὴ γένος ἐστὶ σιδήρεον·
Quem dera eu não tivesse nascido na quinta raça,/ mas tivesse antes morrido, ou nascido mais tarde/
pois agora é a raça de ferro.
168
passado: uma vez que cada nova raça só é introduzida após o desaparecimento da anterior, a
Uma vez que este mito é a passagem mais comentada de todo o poema na atualidade e
proposta por Jean-Pierre Vernant 338, nada mais natural que esta seja adotada como ponto de
partida e que se passe em revista algumas das que se a seguem para a construção de uma
simultaneamente, da separação entre deuses e homens, uma vez que entre estes existem as
raças de ouro, prata, bronze e dos heróis; da compreensão da estratificação da sociedade indo-
européia em três camadas constituintes, cada uma desempenhando uma função própria, a
saber, a função real, a função guerreira e a função produtora 339; e, por fim, dá conta da
tempo presente e a segunda a de um futuro mítico e negro onde a injustiça dominará e levará
Zeus a extinção dos homens (vv. 173-201), Vernant propõe que as seis raças sejam agrupadas
em três pares:
338
Cf. VERNANT, J-P. (1990) p.22-50.
339
Cf. Vernant (1990) pág. 46 e nota 103.
340
Idem, ibidem. pág. 31. “O texto mostra, entretanto, que na realidade não há uma Idade do Ferro,
mas dois tipos de existência humana, rigorosamente opostos, num dos quais se situa Dike, em outro
apenas Hýbris.”
169
segundo uma ordem de decadência mais ou menos progressiva, mas uma
construção com três andares, cada um se dividindo em dois aspectos
complementares. Essa arquitetura que regula o ciclo de idades é também
aquela que preside ao ordenamento da sociedade humana e do divino; o
“passado”, tal como o compõe a estratificação das raças, estrutura-se sob o
modelo de uma hierarquia intemporal de funções de valores. Cada par de
idades acha-se, então, definido, não somente pela sua situação na série (as
duas primeiras, as seguintes, as últimas), mas também por uma qualidade
temporal particular, estreitamente associada ao tipo de atividade que lhe
corresponde. Ouro e prata: são idades de vitalidade totalmente jovem; bronze
e heróis: uma vida adulta, que ignora o jovem e o velho ao mesmo tempo;
ferro: uma existência que se degrada ao longo de um tempo envelhecido e
gasto 341.
Com isto, descreve cada par em função do comportamento que cada uma adota no que
respeita à justiça ou à desmedida. Em outras palavras, de acordo com a transitividade que
cada par apresenta no eixo Díke – Hýbris. Assim sendo, o primeiro par, composto pelas raças
de outro e prata, apresenta uma transição de Díke para Hýbris; o segundo, composto pelas
raças de bronze e a dos heróis, apresenta uma transição de Hýbris para Díke, enquanto o
último, composto pela raça de ferro do presente e a raça do futuro, apresentaria um
deslocamento de Díke para Hýbris 342.
Ouro-Prata Díke-Hýbris
Bronze-Heróis Hýbris-Díke
341
Idem, ibidem. pág. 44. O itálico visa por em evidência que Vernant atribui uma temporalidade
particular ao mito.
342
Cf. Idem, ibidem. pág. 28-32.
170
Por ser referência, é natural que esta tese suscite críticas e correções. Exatamente a
partir destas, cada um dos estudiosos que serão visitados em seguida construiu sua
pretensão de exaustão, visando tão somente à conquista de uma compreensão própria desta
De um modo geral, estas críticas e correções incidem sobre quatro pontos que, no
Seria o tempo hesiódico linear, levando à extinção total da raça humana, como sugere
Córdova 343, pautada nos advérbios de tempo e nos numerais empregados para introduzir cada
raça, ou seria um tempo cíclico que prevê a retomada de tempos melhores, como sugere
Vernant, apoiando-se no lamento de Hesíodo, quando este diz que preferia ter morrido antes
De fato, a partir dos versos 174-176, citados há pouco, parece que qualquer das opções é
um destino melhor do que o negro “agora” da raça de ferro, o que faz supor um tempo
cíclico, já que se por um lado a aparente sequência de queda que acompanha a sucessão das
raças – ainda que interrompida pela raça dos heróis – parece atingir o seu auge com a
destruição final da raça de ferro, por outro, o desejo de nascer depois dá indício de que o
metálicas, provocada pelo surgimento da raça dos heróis entre a raça de bronze e a raça de
343
Cf. Córdova in Hesíodo (1986) pág. xlvii-liv.
171
ferro 344, que Vernant tenta resolver com o seu esquema de seis raças orientadas no eixo Dike-
Hýbris.
Daí deriva o terceiro problema: se o “agora” da raça de ferro, que ainda é melhor do que
o futuro que o poeta profetiza para esta raça, já é injusto, haja vista a manifestação, por parte
do poeta, do desejo de que nem ele nem seu filho fossem justos, já que, nestes tempos, melhor
parte cabe ao injusto 345, como é possível aceitar a transição de Díke para Hýbris que Vernant
propõe para os dois momentos desta mesma raça, uma vez que a raça à qual pertencemos não
pode ser caracterizada como justa? Por conseguinte, surge a questão; será que esta clivagem é
admissível?
O quarto problema que tem inquietado os pesquisadores diz respeito à sucessão das
abordar o mito. Em primeiro lugar, entende que o mito das raças é um mito genealógico,
ainda que esta genealogia não seja apresentada aqui nos moldes de diferentes linhagens de
divindades da Teogonia, mas pela enumeração sucessiva de raças - γένη - distintas, produzidas
Em segundo lugar, o autor aponta para uma limitação do nosso modo contemporâneo de
pensar. É difícil saber se o homem arcaico acreditava na literalidade de seus mitos. E mesmo
em caso afirmativo, nada garante que o pensamento arcaico não tivesse algum nível de
344
Os estudiosos são unânimes ao considerar que este é um mito de origem oriental e que Hesíodo
inseriu a raça dos heróis na sua recriação do mito.
345
Trab. 270-272. νῦν δὴ ἐγὼ μήτ' αὐτὸς ἐν ἀνθρώποισι δίκαιος/ εἴην μήτ' ἐμὸς υἱός, ἐπεὶ κακὸν
ἄνδρα δίκαιον/ ἔμμεναι, εἰ μείζω γε δίκην ἀδικώτερος ἕξει.
346
Cf. Couloubaritsis (1996) pp. 485-487.
172
consciência da existência de alguma distorção 347 entre aquilo que um mito conta e aquilo que
ele significa.
Dito de outro modo, o discurso genealógico incorpora a “mentira” para dizer a verdade.
Os mitos, se são realmente mitos, devem fracionar no tempo tudo aquilo que
eles trazem para o discurso e separar seres que estão juntos, mas que se
distinguem por sua posição e seu poder, e daí constroem discursos e
gerações dos [seres] não-gerados. E uma vez que eles nos ensinaram da
maneira como eles podem fazê-lo, eles permitem àquele que refletiu reunir
os elementos fracionados.
Δεῖ δὲ τοὺς μύθους, εἴπερ τοῦτο ἔσονται, καὶ μερίζειν χρόνοις ἃ λέγουσι, καὶ
διαιρεῖν ἀπ' ἀλλήλων πολλὰ τῶν ὄντων ὁμοῦ μὲν ὄντα, τάξει δὲ ἢ δυνάμεσι
διεστῶτα, ὅπου καὶ οἱ λόγοι καὶ γενέσεις τῶν ἀγεννήτων ποιοῦσι, καὶ τὰ
ὁμοῦ ὄντα καὶ αὐτοὶ διαιροῦσι, καὶ διδάξαντες ὡς δύνανται τῷ νοήσαντι ἤδη
συγχωροῦσι συναιρεῖν 348.
uma narrativa temporal para manifestar segundo engendramentos sucessivos até mesmo o que
é eterno.
Por isto, Couloubaritsis entende que a abordagem de um mito genealógico deve incluir
entre deuses e homens, com a raça de ouro ocupando a posição de proximidade máxima dos
máximo, por conta da partida para o Olimpo de Αἰδώς e Νέμεσις, de Pudor e Partilha (v.197-
201), a leitura sincrônica mostra que mortais e imortais existem desde sempre.
347
Couloubaritsis retira o termo distorção das técnicas de interpretação alegórica que filósofos
posteriores aplicaram aos mitos. Eles eliminavam aquilo que não estava de acordo com a filosofia
devido às distorções - διαστροφάς - dos poetas. Cf. Couloubaritsis (1996) pág.486.
348
Plotino. Eneada III, 5,9, 24-29.
173
Desta forma, a origem comum entre deuses e homens passa a ser o tempo e se as
afirmações contidas na narrativa de que os deuses ou Zeus fizeram ou fez tal ou tal raça, isto
Esta partilha pode ser entendida a partir do destino pós-morte dos homens das raças
anteriores. Para tanto, é preciso ter em mente que todos estes mortos transmutados fazem
parte do presente dos homens da raça de ferro, ainda que invisíveis. Os homens da raça de
ouro tornaram-se, por vontade de Zeus, os δαίμονες ἁγνοὶ ἐπιχθόνιοι (v.122.), enquanto os da
raça de prata, ainda que δαίμονες inferiores, recebem honras (vv.141-142). Os homens de
um duplo destino pós-morte: uns permaneceram sob o anonimato que cobriu os homens da
raça de bronze, enquanto outros receberam um destino semelhante à vida dos homens da raça
de ouro. Os homens da raça de ferro não recebem nenhum destino pós-morte e como o seu
futuro parece ser ainda mais terrível do que sua vida presente, o artifício da clivagem desta
pela posição da raça dos heróis entre a raça de bronze e a raça de ferro, sem fugir ao esquema
não em três pares, mas em dois trios, sendo o primeiro composto pelas raças de ouro, prata e
bronze e o segundo, composto por heróis, ferro presente e ferro futuro 349, num arranjo que
pode ser percebido com maior facilidade mediante o recurso à tabela abaixo:
349
Cf. Couloubaritsis (1996) p. 495.
174
Isto permite entrever dois ciclos distintos de transitividade direta de Díke para Hýbris,
atenuando assim a aparente interrupção da queda introduzida pela raça dos heróis, já que por
meio deste ordenamento pode-se ainda estabelecer um paralelo entre estes dois trios no que
respeita o eixo Díke – Hýbris. A posição que a raça de ouro ocupa no primeiro ciclo é
ocupada pela raça dos heróis no segundo e tanto a raça de ouro quanto a raça dos heróis são a
expressão da Díke, ainda que a raça dos heróis seja inferior à de ouro; em seguida,
respectivamente em cada ciclo de três raças, vêm as raças de prata e ferro, que correspondem
a um estágio inicial de Hýbris; por último, bronze, no primeiro trio e ferro futuro, no segundo,
podem ser vistos como expressão da Hýbris guerreira, da violência em estado puro, que já
No que diz respeito à sucessão discreta ou contínua das raças, Couloubaritsis entende
que há uma acentuada distância entre as duas primeiras raças e as demais. Sem entrar no
pautado no verso 144, “de bronze fez, nada parelhos à raça de prata.” (χάλκειον ποίησ', οὐκ
ἀργυρέῳ οὐδὲν ὁμοῖον), que entre prata e bronze não há nenhuma semelhança. Ainda que
continuidade entre as raças de bronze e heróis é garantida pelo verso 158, “Zeus Cronida fez,
mais justa e mais nobre.” (Ζεὺς Κρονίδης ποίησε, δικαιότερον καὶ ἄρειον). Ao dizer que os
heróis são mais justos e mais nobres do que a raça anterior, Hesíodo teria admitido alguma
350
Cf. Couloubaritsis (1996) p. 502.
175
justiça e nobreza aos homens de bronze. A referência à raça de ferro dois versos adiante,
“semideuses. Precedem a nossa na terra sem fim” (ἡμίθεοι, προτέρη γενεὴ κατ' ἀπείρονα γαῖαν),
contribui para encurtar a distância entree as raças e torná-las, de algum modo, semelhantes.
Mas ao dizer que a raça dos heróis é apenas a raça que antecedeu a nossa, Couloubaritsis
ignorou a presença de ἡμίθεοι abrindo o verso, o que, a meu ver, marca uma distância que não
pode ser desprezada, tanto em relação à raça de bronze, quanto à de ferro, ainda que a ideia de
continuidade entre as raças soe interessante: Hesíodo menciona três raças num intervalo de
quatro versos, coisa que não faz em nenhum outro momento da narrativa.
Clay 351 rejeita a divisão da raça de ferro em ferro presente e ferro futuro. Por outro lado,
acata a lição de Vernant quanto à discussão sobre a relação Díke – Hýbris. Mantendo o
número de raças em cinco, ela chama atenção para o fato, bastante ignorado entre os
Clay justifica sua posição argumentando que a criação dos homens, primeiro pelos
deuses, na primeira e na segunda raça e depois somente por Zeus, deve atender a algum
propósito. Neste sentido, a raça de bronze foi a primeira raça feita por Zeus e somos muito
mais próximos desta raça do que pensamos, na medida em que “é a primeira raça a sofrer a
morte anônima na casa de Hades (...) e partilha conosco este caráter específico da
mortalidade humana. 352”, o que leva a crer que para ela, a sucessão é contínua. Além do
mais, a raça de bronze permite articular a Teogonia com os Trabalhos e os Dias, na medida
351
Cf. Clay (2003) p.81-100.
352
Clay. (2003) pag. 91.
176
em que há uma espantosa semelhança entre os homens da raça de bronze, que “vieram do
freixo, terrível e forte 353” e os Gigantes, a quem as Musas devem cantar juntamente com a
raça dos homens 354. Os versos 185-187 355, onde os Gigantes são apresentados de uma forma
que evoca os ferozes homens de bronze, também autorizam Clay a supor que a raça humana
A partir daí, Clay tenta articular a origem dos homens descrita no mito das raças com a
origem dos homens apresentada na Teogonia, sem levar em conta o verso 108 de Os
trabalhos e os dias, que assegura que deuses e homens têm a mesma origem. Neste ponto,
afastamo-nos dela, entendendo que o mito das raças não trata da origem dos homens, questão
já respondida pelo verso citado. O mito tratará então da origem de outra coisa.
Entretanto, no que respeita Díke, Clay sustenta que esta não encontra espaço na era de
ouro. Uma vez que a abundância imperava, não havia necessidade de trabalho, nem de
propriedade privada e nem de competição pelo sustento, seja pela via da boa ou da má Éris.
Por conseguinte, não havia nenhuma necessidade de Díke. Seguindo este raciocínio temos que
Díke (v.9. δίκῃ δ' ἴθυνε θέμιστας). Em uma palavra, Díke é corretiva e isto pressupõe uma
A este respeito, já tinhamos tentado, em trabalho anterior, contornar este problema que
também toca a questão da temporalidade, já que a era de ouro viveu no tempo de Cronos, e
353
Trab. 145. ἐκ μελιᾶν, δεινόν τε καὶ ὄβριμον·
354
Teog.50-51. αὖτις δ' ἀνθρώπων τε γένος κρατερῶν τε Γιγάντων/ ὑμνεῦσαι.
e ainda o ser de homens e poderosos Gigantes/ hineando.
355
Teog.185-187. γείνατ' Ἐρινῦς τε κρατερὰς μεγάλους τε Γίγαντας,/ τεύχεσι λαμπομένους, δολίχ'
ἔγχεα χερσὶν ἔχοντας,/ Νύμφας θ' ἃς Μελίας καλέουσ' ἐπ' ἀπείρονα γαῖαν.
[Terra]... gerou as Erínias duras, os grandes Gigantes/ rútilos nas armas com longas lanças nas mãos/ e
Ninfas chamadas Freixos sobre a terra infinita.
177
considerar a vigência de duas ordens distintas no mundo, a de Cronos e a de Zeus, e, a partir
daí, nos perguntarmos se falar em Dike sob a vigência de Cronos não parecerá fora de
propósito. 356”. Neste trabalho, apontamos para o problema: o fato da Justiça só se manifestar
em face de uma quebra da ordem. Por isso, Hesíodo apresenta-a vestida de ar. Díke é
Ao rejeitar a cisão da raça de ferro, Clay rejeita também a concepção cíclica do tempo
mítico sustentada por Vernant e Couloubaritsis, argumentando que esta visão solapa por
completo o caráter parenético do mito: “Por que preocupar-se se dias melhores virão? 357”
Aqui encerramos nossos comentários sobre a posição de Clay, com relação ao mito das
raça de ferro é o verbo ser, no verso 176: νῦν γὰρ δὴ γένος ἐστὶ σιδήρεον· (“Pois agora é a raça
de ferro.”). Todos os demais ocorrem no futuro, salvo o verbo μείγνυμι, que ocorre no futuro
do perfeito: ἀλλ' ἔμπης καὶ τοῖσι μεμείξεται ἐσθλὰ κακοῖσιν (Trab.179. “ainda assim, para eles
bens estarão mesclados aos males”), o que mostra que o estabelecimento dos males entre os
homens é uma condição que se dá desde o princípio, conforme Hesíodo anunciou na única
menção a Epimeteu na Teogonia: “que foi um mal dês o começo - ἐξ ἀρχῆς - aos homens
come-pão, 358”, e reforçou ao fim da versão de Prometeu em Os trabalhos e os dias, com outro
verbo no perfeito, ou seja, o resultado presente de algo que se deu no passado: ἄλλα δὲ μυρία
λυγρὰ κατ' ἀνθρώπους ἀλάληται· (Trab. 100. “Dez mil pesares já estão lançados aos homens.”). Os
356
Mantovaneli (2007) pag.10.
357
Clay (2003) pag. 85.
358
Teog. 512. ὃς κακὸν ἐξ ἀρχῆς γένετ' ἀνδράσιν ἀλφηστῇσι·
178
bens só surgem no verso 609 da Teogonia, ainda assim, condicionados ao casamento e à boa
esposa. Em suma, os males extrínsecos fazem parte da condição humana desde sempre, desde
os versos 50-51 da Teogonia, que colocam os homens ao lado dos Gigantes, no início do
processo cosmogônico.
Por outro lado, há o mal intrínseco, a hýbris. Esta surge na raça de prata 359 e, nesta raça,
restringe-se ao desrespeito para com o semelhante e a recusa ao sacrifício aos deuses. Ainda
que a palavra hýbris não figure na apresentação da raça de bronze, ela está indubitavelmente
presente lá, mudando apenas sua manifestação, assumindo o caráter de violência física
desmedida.
Ora, estas manifestações particulares da hýbris não são exclusividade de cada raça, mas
ao contrário, estão incorporadas desde sempre na vida humana. Os heróis não estavam livres
dela. Embora Hesíodo não fale de uma hýbris heróica, ele decerto a conhecia muito bem, haja
vista as menções que ele faz aos ciclos tebano e troiano. Talvez mesmo o duplo destino pós-
morte que ele reservou aos heróis, mandando uns para a Ilha dos Bem-Aventurados e outros
para a morte comum dos homens de bronze e de ferro seja um reconhecimento da presença da
Mais uma palavra acerca de hýbris. Esta não é uma deusa como Díke, Aidôs e Nêmesis.
Tampouco se assemelha aos filhos e netos da Noite - aflições que só afetam aos homens -
igualmente divinos. Também não é uma hipostasia como Elpís. Hýbris é humana,
essencialmente humana, eternamente humana e sempre dentro do homem. Por isso, por estar
dentro, o poeta não a personificou de nenhuma forma, pois isto lhe daria um aspecto externo.
Por isso Zeus deu Díke aos homens e a mais ninguém, nem aos deuses nem às bestas.
359
Trab. v.134. ἀφραδίῃς· ὕβριν γὰρ ἀτάσθαλον οὐκ ἐδύναντο.
179
Díke, não a palavra, é certo, mas o radical, faz sua primeira aparição, no mito das raças,
Este é o momento em que os deuses começam a se retirar do convívio dos mortais. Clay
entende que há continuidade entre a raça dos heróis e a raça de ferro. Apenas, por conta do
retraimento dos deuses, o sangue divino vai se diluindo 360. De fato, os heróis participam do
divino em níveis distintos. Aquiles é filho de uma deusa com um mortal. Ulisses é filho de
Laerte, que é filho de Autólico, que é filho de Hermes. Heitor é praticamente um homem
Díke é o presente de Zeus aos homens no momento de sua retirada. É o norte invisível
da ação humana para contrabalançar a hýbris que está totalmente presente na raça de ferro: os
versos 182-186 dão, no seio da apresentação da raça de ferro, uma descrição acurada do
comportamento que os homens de prata tinham entre si: “e pai não se assemelhar aos filhos,
for mais amigo, como sempre tem sido./ Virá, tão logo envelheçam, o desrespeito dos
filhos,/lançando censuras com duras palavras. 361”. O verso 187 mostra o descaso com os
360
Cf. Clay (2003) pag. 91.
Trab. 182-188. οὐδὲ πατὴρ παίδεσσιν ὁμοίιος οὐδέ τι παῖδες/ οὐδὲ ξεῖνος ξεινοδόκῳ καὶ ἑταῖρος
361
ἑταίρῳ,/ οὐδὲ κασίγνητος φίλος ἔσσεται, ὡς τὸ πάρος περ./ αἶψα δὲ γηράσκοντας ἀτιμήσουσι
τοκῆας/·μέμψονται δ' ἄρα τοὺς χαλεποῖς βάζοντες ἔπεσσι.
180
deuses, igualmente presente na raça de prata: “Não vêem o olho dos deuses 362”. Já os versos
189 e 192, “é a força do braço: um saqueará a cidade do outro.” e “É a lei do mais forte e
pudor/ não haverá. 363”, retratam a hýbris do homem de bronze, igualmente espelhada na raça
de ferro. Em suma, não há nada de novo, o homem sempre foi e é assim. Se não guardar a
justiça, a ruína é certa. Hesíodo não faz nenhuma profecia, apenas expõe sua sabedoria.
por nos ajudar a compreender a assimilação de alguns heróis aos homens da raça de ouro.
Para este, a questão central do mito é a polaridade máxima entre as raças de ouro e a de
ferro futuro, acatando, à primeira vista, o esquema de Vernant. “As demais raças servem para
intermediar estas posições, mostrando como as diferenças entre ambas foram constituídas e
análise da raça de ouro , quando diz que nesta não há traços de uma sociedade organizada,
logo, não há moral 365. Os frutos abundantes, o mel fornecido pelas abelhas e as ovelhas
lanosas são mais dádivas espontâneas da natureza 366 do que produtos do trabalho agrícola.
Por outro lado, entende que é possível identificar aspectos de Díke começando a serem
delineados, através do destino pósmorte destes homens, na medida em que são convertidos em
362
Trab. 187. σχέτλιοι, οὐδὲ θεῶν ὄπιν εἰδότες· οὐδέ κεν οἵ γε.
363
Trab. 189. χειροδίκαι· ἕτερος δ' ἑτέρου πόλιν ἐξαλαπάξει· e Trab.192. δίκη δ' ἐν χερσί·
364
Carrière (1987) pag. 316.
365
Cf. Carrière (1987) pag. 170-176.
366
Trab. 117-118. καρπὸν δ' ἔφερε ζείδωρος ἄρουρα/ αὐτομάτη πολλόν τε καὶ ἄφθονον.
A terra farta dava fruto/ espontânea, muito e sempre.
367
Trab. 126. πλουτοδόται· καὶ τοῦτο γέρας βασιλήιον ἔσχον. Já estão assimilados à função real. A
tarefa judiciária e distributiva de riquezas é a mesma que os reis terrestres devem cumprir, mas os reis
de Hesíodo são comedores de presentes.
181
mortais 368”, estão bem próximos das noções abstratas que o poeta personifica como Aidôs e
Dike. Ambas vestem-se de ar, trazendo na invisibilidade a marca da abstração. Todas estas
deusas são, no fundo, atributos de Zeus. Na teologia hesiódica, Zeus domina o sistema
político e moral.
Carrière também entende que é com a raça de prata que surge o primeiro traço de
moralidade: a longa permanência ao lado da mãe – sem nehuma referência à figura do pai –
os impede de amadurecer 369, mas não percebe que a articulação Díke - Hýbris que Vernant
atribui ao par formado pelas raças de ouro e prata é problemática. Se, segundo suas próprias
palavras, não há traços de uma sociedade organizada nem moral na raça de ouro, não há Díke.
Esta, necessita de algo anterior a ela mesma para que possa se manifestar, necessita da Hýbris,
que faz, como já vimos, aqui na raça de prata, a sua primeira aparição, manifestando-se como
um desrespeito ao outro e aos imortais. A transição de Díke para Hýbris entrevista por
Em outras palavras, surgem, juntas a recusa de prestar culto aos deuses, condição que já
tinha sido estabelecida no mito de Prometeu, e a violência contra o próximo, que se manifesta,
neste primeiro momento, pela falta do respeito ao outro, condição precípua para a vida em
comum.
Carrière, tal como Clay, vê semelhança entre os homens da raça de bronze e os gigantes,
mas entende que a única semelhança entre estes é temática. Os homens de bronze são
causa definida. Uma vez que não formam um exército, não se pode dizer que se dedicam à
guerra. Sua violência os levava necessariamente à morte, de forma que Zeus nem ao menos se
368
Trab. 122. ἐσθλοί, ἀλεξίκακοι, φύλακες θνητῶν ἀνθρώπων,
369
Trab. 130-131. ἀλλ’ ἑκατὸν μὲν παῖς ἔτεα παρὰ μητέρι κεδνῇ/ ἐτρέφετ’ ἀτάλλων, μέγα νήπιος, ᾧ
ἐνὶ οἴκῳ·
Por cem anos o filho ficava ao lado da mãe digna crescia brincando – grande néscio – dentro de casa.
182
deu ao trabalho de extingui-los: seu fim foi o do extermínio recíproco e eles desceram
Por outro lado, entende que Hesíodo já começa, a partir daqui, a construir sua crítica aos
valores guerreiros da ética homérica. A guerra é o campo das atividades mais selvagens. Visto
deste modo, o destino pósmorte desta raça parece ser um reforço a esta crítica, projetando a
figura paterna, os da raça de bronze podem muito bem ter a sua violência atribuída à ausência
da mãe. De fato, não há nenhuma referência à presença nem da mãe nem de nehuma outra
espectro da hýbris humana, que se manifesta pelo desrespeito aos deuses, pelo desrespeito ao
semelhante e pela violência física que beira a bestialidade 371. As raças subsequentes estarão
marcadas para sempre pela hýbris. Vista por este prisma, a grande distância entre as raças de
Entretanto a raça de bronze é apresentada em clara ruptura com relação à raça de prata –
são “nada parelhos à raça de prata. 372”. Por outro lado, seu vínculo com os heróis é bem
nítido: o herói “é mais justo e mais nobre 373” que os homens da raça de bronze. Isto quer
dizer que há uma comparação possível. Há uma identidade que viabiliza a diferença. A
370
Carrière (1987) pag.203.
371
Hesíodo retornará a esta questão alguns versos a frente, em 274-278, reforçando a necessidade de
regulação da conduta humana pela Justiça. Nesta passagem, o eco da vida dos homens da raça de
bronze é visível, na medida em que as bestas tem destino semelhante, aniquilando-se uns aos outros:
Ὦ Πέρση, σὺ δὲ ταῦτα μετὰ φρεσὶ βάλλεο σῇσι/ καί νυ Δίκης ἐπάκουε, βίης δ’ ἐπιλήθεο
πάμπαν./τόνδε γὰρ ἀνθρώποισι νόμον διέταξε Κρονίων,/ ἰχθύσι μὲν καὶ θηρσὶ καὶ οἰωνοῖς
πετεηνοῖς/ἔσθειν ἀλλήλους, ἐπεὶ οὐ Δίκη ἐστὶ μετ’ αὐτοῖς·
Ó Perses, tu, então, guarda isto na mente:/ escuta a Justiça e esquece a desmedida de vez!/ Pois o
Cronida dispôs aos homens a lei./ Aos peixes, às feras e às aves aladas,/ que se devorem. Justiça não
há entre eles.
372
Trab. 144. οὐκ ἀργυρέῳ οὐδὲν ὁμοῖον.
373
Trab. 158. Ζεὺς Κρονίδης ποίησε, δικαιότερον καὶ ἄρειον.
183
identidade em questão é a violência física, que na quarta raça se manifesta através da guerra,
Esta organização social está manifesta através dos nomes das citades citadas, Tebas e
Tróia, nos versos 162 e 165, respectivamente. Na apresentação desta raça aparecem os únicos
nomes próprios em toda a narrativa, os de Cadmo, Édipo e Helena, também uma clara
de Édipo para a primeira e o rapto de Helena para a segunda. Ambas foram empreendidas
visando uma reparação a uma violência sofrida. Os heróis não se batem gratuitamente como
Os heróis são também, ao mesmo tempo e no mesmo verso, semideuses e a raça que nos
precedeu 375, isto é, Hesíodo é bastante cuidadoso ao apontar que esta raça está a meio
Entretanto, não havia ainda entre eles o sentido de coletividade integrada a um corpo
social. Para usar a expressão de Carrière, “ainda não eram os guerreiros de Atena 376”. Para
usar a visão de Platão, ainda não estavam dispostos a dar suas vidas em holocausto pela
Apesar disto, os heróis eram o modelo cultural que Hesíodo dispunha para apresentar
aos gregos sua concepção de vida moral justa. Para conseguir seu intento, o poeta foi de uma
simplicidade surpreendente: introduziu uma divisão no seio desta raça, reservando para uns
um destino de morte semelhante ao fim dos homens de bronze 377 e para outros, uma vida livre
de cuidados na Ilha dos Bem-Aventurados. É importante assinalar: esta vida que os heróis que
374
Trab. 154. νώνυμνοι·
375
Trab. 165. ἡμίθεοι, προτέρη γενεὴ κατ’ ἀπείρονα γαῖαν.
376
Carriére (1987) pag.221.
377
Trab. 162-164.
184
foram levados para a Ilha dos Bem-Aventurados levam é muito próxima ou talvez igual
Os verdadeiros heróis hesiódicos não são brutos que mais se assemelham aos homens de
bronze. São imortais que vivem num paraíso de fertilidade. Graças a Zeus, tornam-se os
grandes proprietários das terras férteis do outro mundo. Carrière vê aqui a integração perfeita
das três funções contidas nas sociedades indo-européias: são, ao mesmo tempo, tempo reis,
guerreiros e agircultores. Num momento onde a pólis está em vias de se organizar, Hesíodo
inscreve dentro da história mítica uma metamorfose iniciática da função guerreira. À medida
ataques e saques que constituíam o exercício habitual da função guerreira, onde também os
nobres perdiam o monopólio da guerra com o advento das falanges hoplitas, era cada vez
mais necessário fundar novas bases de hierarquização social em conformidade com a lição da
boa Éris 378. O guerreiro metamorfoseado deverá também assumir a função de criador de
justiça, pois é daí que resulta a fertilidade da terra e a prosperidade de toda a coletividade,
conforme mostram em conjunto a passagem dos Reis e Poetas, na Teogonia, e o díptico das
duas cidades 379, em Os trabalhos e os dias, onde figura um verso excepcional, que descreve a
cidade justa na sua relação de dependência da atividade humana para com a lei de Zeus: para
estes a cidade germina e nela o povo floresce. (τοῖσι τέθηλε πόλις, λαοὶ δ' ἀνθεῦσιν ἐν αὐτῇ·) 380.
Mas cabe ainda perguntar, já que ele não os nomeou, quem eram estes heróis que
Hesíodo salvou, enviando-os para as Ilhas dos Bem Aventurados. É quase certo que os gregos
o sabiam tão bem que foi desnecessário nomeá-los, mas para nós, só resta especular.
Se Hesíodo constrói sua crítica aos valores guerreiros da ética homérica a partir de
própria formulação épica, ele precisa buscar dentro daquele acervo de heróis alguns que
378
Cf. Carriére (1987) pag. 254.
379
Cf. Trab. 222-247.
380
Trab. 227.
185
possam se conformar ao seu intento. Ele precisa, portanto, buscar heróis que tenham
sobrevivido à guerra, suprema expressão da èris má, como veremos mais adiante, para inseri-
Neste sentido, Príamo e Heitor poderiam ter sido bons nomes, homens justos e amados
por seu povo, mas tiveram seu destino de morte em Tróia. Aquiles aparece como a negação
máxima do ideal hesiódico, pois, além do destino de morte, escolheu a guerra para eternizar
seu nome.
Carrière nos acena com a possibilidade de Menelau, a partir dos versos Od.4.563-
567 381, onde é dito Menelau não receberá o destino de morte em Argos, mas antes, será
levado pelos imortais para os Campos Elísios. Nestor, evocado por Laks 382 por conta da sua
palavra apaziguadora, pode ser outro nome que nos permita entender um pouco melhor o que
está em jogo. Do mesmo modo, Odisseu era amado pelos habitantes de Ítaca e sua ausência
propiciou a instalação dos excessos dos pretendentes. Mas Hesíodo parece dar um passo além:
negando-se a nomear os heróis que foram levados para as Ilhas dos Bem Aventurados,
qualquer homem habitante da cidade pacífica pode passar a aspirar por este status de novo
Aquiles, conforme a expressão usada por Rousseau 383 para referir-se ao novo modelo de
O que surge daí é a percepção de que a promulgação das retas sentenças e a distribuição
equitativa de bens conquistados sem o recurso à violência são o meio de aceder a um modo de
381
Od.4.563-567. σοὶ δ' οὐ θέσφατόν ἐστι, διοτρεφὲς ὦ Μενέλαε,/ Ἄργει ἐν ἱπποβότῳ θανέειν καὶ
πότμον ἐπισπεῖν,/ ἀλλά σ' ἐς Ἠλύσιον πεδίον καὶ πείρατα γαίης/ ἀθάνατοι πέμψουσιν, ὅθι ξανθὸς
Ῥαδάμανθυς,/ τῇ περ ῥηΐστη βιοτὴ πέλει ἀνθρώποισιν·
Quanto a ti, Menelau, prole de Zeus, os deuses/decidem que não cumpras teu destino em Argos/
nutriente de cavalos: aos confins do plaino/ Elísia, onde Radamanto, o louro está,/ te enviam os
numes. O homem vive fácil lá.
382
Cf. Laks (1996) pág. 84.
383
Cf. Rousseau (1996) pág.125.
186
Se compararmos os versos 172, 173 e 173a, “Felizes heróis! Para eles doces frutos,
espontâneos/dão os brotos da terra, três vezes ao ano./longe dos imortais. Para eles Cronos é
rei 384”, que descrevem os heróis bem aventurados, com os versos 111 e 112, alusivos à raça
de ouro - “Era no tempo de Cronos, quando reinava no céu./ Viviam como deuses, com ânimo
isento de penas. 385”; e ainda com os versos 117 a 119 - “A terra farta dava fruto/ espontânea,
muito e sempre. E eles, contentes/ tranqüilos, partilhavam os bens, que eram muitos 386”, que
também descrevem a vida dos homens da raça de ouro, a semelhança fica posta em evidência.
homens da raça de ouro, Hesíodo lança o lamento que introduz a apresentação da raça de
ferro, a raça à qual tanto ele quanto nós pertencemos: “Quem dera eu não tivesse nascido na
quinta raça,/mas tivesse antes morrido, ou nascido mais tarde/pois agora é a raça de
ferro: 387”. À primeira vista, parece que a situação desta raça é irremediável, sobretudo
quando se pensa que a apresentação de raça de ferro se encerra com os versos 200 e 201: “Só
restarão tristes pesares/ aos homens mortais. Contra o mal, não haverá defesa. 388” De fato, o
verso 202 nos leva a crer que Hesíodo mudou de assunto: “Conto, agora, um conto aos reis,
Acontece que o poeta não abandona mais a raça de ferro. Daí até o final do poema, ele
trata sempre das coisas desta raça. É para ela que ele endereça seus conselhos. E no final do
poema lemos: “Feliz e abastado é aquele que todo este saber/ sabendo, trabalha isento
384
Trab. 172, 173, 173ª. ὄλβιοι ἥρωες, τοῖσιν μελιηδέα καρπὸν/ τρὶς ἔτεος θάλλοντα φέρει ζείδωρος
ἄρουρα./ τηλοῦ ἀπ᾽ ἀθανάτων: τοῖσιν Κρόνος ἐμβασιλεύει.
385
Trab. 111-112. οἳ μὲν ἐπὶ Κρόνου ἦσαν, ὅτ' οὐρανῷ ἐμβασίλευεν· ὥστε θεοὶ δ' ἔζωον ἀκηδέα θυμὸν
ἔχοντες.
386
Trab. 117-119. τοῖσιν ἔην· καρπὸν δ’ ἔφερε ζείδωρος ἄρουρα/ αὐτομάτη πολλόν τε καὶ ἄφθονον·
οἳ δ’ ἐθελημοὶ/ ἥσυχοι ἔργ’ ἐνέμοντο σὺν ἐσθλοῖσιν πολέεσσιν.
387
Trab. 174-176. Μηκέτ’ ἔπειτ’ ὤφελλον ἐγὼ πέμπτοισι μετεῖναι/ ἀνδράσιν, ἀλλ’ ἢ πρόσθε θανεῖν ἢ
ἔπειτα γενέσθαι. / νῦν γὰρ δὴ γένος ἐστὶ σιδήρεον·
388
Trab. 200-201. τὰ δὲ λείψεται ἄλγεα λυγρὰ/ θνητοῖς ἀνθρώποισι· κακοῦ δ' οὐκ ἔσσεται ἀλκή.
389
Trab. 202. Νῦν δ' αἶνον βασιλεῦσιν ἐρέω φρονέουσι καὶ αὐτοῖς·
187
Isto mostra claramente que Hesíodo vê a possibilidade de uma vida feliz dentro dos
limites impostos pelos deuses aos homens. Para usar a expressão de Carrière, é possível
reaproximar os polos maximamente opostos do mito das raças, a raça de ouro e o futuro da
raça de ferro 390. Esta aproximação é possível no texto de Hesíodo, mas ela passa
Vamos aos textos, partindo da raça de ferro (v.826-827), passando pela raça dos heróis
O adjetivo εὐδαίμων, que Hesíodo emprega no verso 826 para designar o homem que
segue seus conselhos, é muito próximo semânticamente de μακάρων que no verso 171
qualifica a ilha, a Ilha dos Bem-Aventurados, para onde os heróis. O adjetivo ὄλβιος é atribuído
tanto ao homem da raça de ferro bem educado (εὐδαίμων τε καὶ ὄλβιος ὃς τάδε πάντα) quanto aos
felizes heróis (ὄλβιοι ἥρωες). Se o adjetivo recebeu duas traduções (abastado e feliz) é porque
390
Cf. Carrière (1987) pag. 316.
188
ele, de fato, as comporta, designando a um só tempo as condições materiais necessárias para
se levar uma vida confortável e o estado anímico que estas condições ajudam a produzir.
Segundo Hesíodo, vale ressaltar, a felicidade não se reduz a isto. Tudo isto, por sua vez,
remete a ὥστε θεοὶ, que descreve o modo de vida dos homens da raça de ouro no verso 112. A
fórmula ἀκηδέα θυμὸν ἔχοντες (v. 112 e 171) equipara o modo de vida dos heróis que foram
levados para as Ilhas dos Bem Aventurados à vida dos homens da raça de ouro. Estes vivem
como deuses (ὥστε θεοὶ). Desta forma, mirando o modelo mais próximo, a raça dos heróis,
que precede a nossa na terra sem fim (v.160), o homem da raça de ferro pode alcançar a Idade
do Ouro e mesmo transcendê-la (ὥστε θεοὶ). É certo este homem não leva esta vida boa
(ἀκηδέα θυμὸν ἔχοντες) daqueles heróis e dos homens da raça de ouro, mas ele pode
aproximar-se dela trabalhando (ἐργάζηται) pautado num saber (πάντα εἰδὼς) e subordinando-se
aos deuses, isto é, mantendo-se isento perante os imortais (ἀναίτιος ἀθανάτοισιν), conforme o
Evitar exageros (ὑπερβασίας ἀλεείνων, v.826) parece ser um eufemismo para a hýbris, o
mal interno, do qual o homem deve se resguardar acima de tudo. A este respeito, devemos
retornar à questão do herói como modelo para a raça de ferro, pois esta raça remete o homem
da raça de ferro tanto à raça de ouro quanto à raça de bronze e também à de prata:
189
ἀνδρῶν ἡρώων θεῖον γένος, οἳ καλέονται
Hesíodo lista três raças no espaço de cinco versos, algo único neste mito e que parece
apontar para algo de comum entre as raças. O ponto comum é a hýbris. Já vimos que a raça
dos heróis é como um cadinho que funde as hýbrides distintas das raças anteriores e as
transmite fundidas para a nossa raça. De fato, os ciclos tebano e troiano, mencionados na
apresentação desta raça, evocam as desmedidas dos heróis, seja na guerra (raça de bronze),
seja no governo das cidades, seja na casa (raça de prata). Daí o duplo destino pós-morte desta
raça, uns indo para o Hades, outros para as Ilhas dos Bem Aventurados. Ao olhar para os
heróis como modelos, os homens da raça de ferro podem escolher seu caminho e descobrem,
perspectiva no modo de encarar o deus Cronos. Este, que na Teogonia era um deus terrível,
devorador de seus próprios filhos, passa a ser, em Os Trabalhos e os Dias, o rei pacífico de
um tempo e de um local paradisíacos, presente tanto para os homens da raça de ouro quanto
Como veremos em seguida, Platão guardou este aspecto pacífico do deus no seu
tratamento do mito das raças, mas antes de abordar o mito em Platão, é importante inventariar
o que foi conquistado até aqui com o recurso aos estudiosos visitados.
No que diz respeito à temporalidade, Couloubaritsis sustenta que o mito deve ser
abordado pelo viés da sincronia e da diacronia, lembrando que o mito genealógico obedece
outra lógica distinta da nossa e esta é a lógica da distorção. Os demais, atentos à estrutura
narrativa, necessariamente ordenada no tempo, respeitam o tempo linear, que aponta para o
190
Quanto à queda, Couloubaritsis rearranja em trios a estrutura proposta por Vernant,
contornando o problema. Enquanto Córdova e Carrière não atacam o problema, Clay rejeita a
clivagem da raça de ferro e coloca a raça de bronze no centro da narrativa, tentando ligar Os
trabalhos e os dias à Teogonia, no que diz respeito às origens do homem. Todos os demais
problemática. Hýbris surge no mito antes de Díke, dando a entender que é não só
aos homens para sanar a falta essencial humana e trazer/reconduzir o homem para junto dos
deuses.
Quanto à sucessão das raças, esta parece tender mais para a continuidade do que para a
aparente discreção que uma primeira leitura do mito pode sugerir, mas a proximidade ou
distância entre as raças não está suficientemente esclarecida, se é que isso é possível. O mito
das raças parece contar a história do surgimento cumulativo da hýbris, partindo do desrespeito
ao próximo e da recusa das honras aos deuses, característicos da raça de prata, passando pela
violência física própria à raça de bronze. Todos estes comportamentos são integrados na raça
dos heróis, que, entretanto, conhece Díke, por meio de alguns dos seus membros. Esta mescla
de todas as hýbrides com a possibilidade de Díke parece ser o legado da raça dos heróis para a
raça de ferro.
crescente nos últimos anos. Prova disto é o recente volume Plato & Hesiod 391, publicado em
391
Boys-Stones & Haubold (2010).
191
2010, reunindo vários pesquisadores em torno da questão. Lá, encontramos listadas algumas
Em sua contribuição para este livro, Most 392 afirma que Platão “ocupou-se
consideravelmente de Hesíodo ao longo de toda a sua carreira” e que, “na maioria dos casos
Neste mesmo estudo, Most nos oferece um levantamento, ainda não exaustivo, de
diversas citações de Hesíodo ao longo de todo o corpus platônico. Lá são encontradas três
passagens da República e uma do Crátilo que fazem alusão ao mito das raças. São elas
Haulbould, 394 no mesmo volume afirma que o mito das raças é a passagem hesiódica
favorita de Platão e acrescenta à lista de referências ao mito das raças na obra de Platão as
passagens Leis 713.c5 – d3 e Político 268e4 - 274e4. Estas referências são igualmente
atestadas por El Murr 395num trabalho dedicado à presença da raça de ouro no Político,
igualmente publicado em Plato & Hesiod. Por serem restritas à raça de ouro, a passagem do
Nosso recurso a Platão vai, de certa forma, na contramão dos estudos investigados neste
por Hesíodo, procuramos aqui lançar mão de Platão para melhor entender a lição do poeta no
392
Most (2010) pag. 52-67.
393
Cf. Most (2010) pag. 54-55.
394
Cf. Haubould (2010) pag.11-30.
395
El Murr (2010) pag. 276-297.
192
Mesmo assim, é preciso assinalar que nossa consulta ao uso platônico do mito das raças
passagem em que Sócrates e Fedro discutem sobre o rapto de Orítia por Bóreas 396. Lá,
Sócrates rechaça duas leituras possíveis do mito. A primeira seria uma leitura histórica, onde
o mito explicaria que a força do vento Norte (Bóreas) teria provocado o deslizamento de
algumas rochas no local onde Orítia se encontrava, causando sua morte. A segunda, uma
leitura alegórica superficial e poética, transformaria a morte da jovem num rapto e ela teria
sido levada pelo vento e desaparecido para sempre. Em seguida, o filósofo apresenta sua
razão para não se ocupar destas leituras: ele ainda não tinha sido capaz de cumprir a
determinação do oráculo de Delfos de investigar-se a si mesmo para saber quem ele era.
Coisa semelhante, fazemos aqui: embora reconhecendo que a obra de Hesiódo se abra
para diversas leituras possíveis, é imperioso que assumamos uma e a ela nos dediquemos. Já
no primeiro capítulo, descartamos a leitura alegórica e há pouco, optamos por seguir outro
rumo que não o de uma leitura do mito como uma história da humanidade, presente em
ainda que este nos tenha acenado a possibilidade de uma leitura ao mesmo tempo sincrônica e
diacrônica do mito das raças. Resta-nos então seguir o caminho de Sócrates e procurar extrair
do mito das raças de Hesíodo uma investigação sobre quem somos nós, não, é claro, nossa
pessoa, mas procurar saber quem somos enquanto homens, o que quer dizer que pretendemos
Deste modo, o mito das raças de Hesíodo, que já ficou demonstrado ser uma
396
Cf. Fedro 229b- 230a.
193
dias, é a continuação de uma explanação sobre a condição humana e para entendê-lo melhor,
Lá, no livro III, a referência a Hesíodo é escamoteada e o mito é introduzido como uma
nobre mentira 397 de origem fenícia 398, sendo usado para explicar a existência dos distintos
Mas o deus que vos modelou, àqueles dentre vós que eram aptos para
governar, misturou-lhes ouro à sua composição, motivo por que são mais
preciosos; aos auxiliares, prata; ferro e bronze aos lavradores e demais
399
artífices .
O Sócrates platônico, narrador do mito, faz a ressalva que “do ouro pode acontecer de
nascer uma prole argêntea, e da prata uma áurea, e assim todos os restantes, uns dos
outros 400”. Por isso os chefes devem exercer a máxima vigilância sobre as crianças,
397
Rep. 414.b8-c2. Τίς ἂν οὖν ἡμῖν, ἦν δ' ἐγώ, μηχανὴ γένοιτο τῶν ψευδῶν τῶν ἐν δέοντι γιγνομένων,
ὧν δὴ νῦν ἐλέγομεν, γενναῖόν τι ἓν ψευδομένους πεῖσαι μάλιστα μὲν καὶ αὐτοὺς τοὺς ἄρχοντας, εἰ δὲ
μή, τὴν ἄλλην πόλιν;
E agora, como arranjaremos maneira de, com uma nobre mentira, daquelas que se forjam por
necessidade, e de que há pouco falavamos, convencer disso, sobretudo os próprios chefes, e, se não
for possível, o resto da cidade?
398
Rep. 414 c.4-7. Μηδὲν καινόν, ἦν δ' ἐγώ, ἀλλὰ Φοινικικόν τι, πρότερον μὲν ἤδη πολλαχοῦ
γεγονός, ὥς φασιν οἱ ποιηταὶ καὶ πεπείκασιν, ἐφ' ἡμῶν δὲ οὐ γεγονὸς οὐδ' οἶδα εἰ γενόμενον ἄν,
πεῖσαι δὲ συχνῆς πειθοῦς.
Não é nenhuma mentira nova, mas da Fenícia, coisa já sucedida anteriormente em muitas partes,
segundo contam e fazem crer os poetas, mas que não aconteceu entre nós, nem sei se sucederá, e só se
pode acreditar a custa de um sólido poder de persusão.
399
Rep.415a4-7.
400
Rep. 415b 1-4. ἔστι δ' ὅτε ἐκ χρυσοῦ γεννηθείη ἂν ἀργυροῦν καὶ ἐξ ἀργύρου χρυσοῦν ἔκγονον καὶ
τἆλλα πάντα οὕτως ἐξ ἀλλήλων. τοῖς οὖν ἄρχουσι καὶ πρῶτον καὶ μάλιστα παραγγέλλει ὁ θεός,
194
identificando qual a matéria que predomina na composição de cada criança para que ela possa
ser levada a tornar-se um adulto capacitado a desempenhar a função que lhe é própria 401.
Não há, no texto, nenhuma referência à raça dos heróis, o que contribui ainda mais para
“Sabes de algum expediente para fazer acreditar neste mito? 402” – ainda que retorne, mais
Hesíodo eram apresentadas como sucedidas no tempo, agora coexistem na cidade e apontam
para a organização da divisão dos poderes dentro dela. O tempo do mito, ao menos como
Mais adiante, ainda na República, ao tratar das honras que se devem aos valentes e
401
Cf.Rep. 415.b3-c6.
402
Rep. 415.c7.τοῦτον οὖν τὸν μῦθον ὅπως ἂν πεισθεῖεν, ἔχεις τινὰ μηχανήν;
403
Rep.468.e4-469.a2.
195
nobres sobre a terra, guardiães de homens mortais. 404
Interessa aqui observar que além de Hesíodo ter sido citado nominalmente,
passagem introduz, pela menção a Ajax, a raça dos heróis, que tinha sido suprimida na
primeira menção ao mito, juntamente com o nome do poeta. Por fim, tal como no mito de
Hesíodo, não são todos os heróis, mas apenas os melhores dentre estes, os que recebem o
destino pós-morte reservado aos homens da raça de ouro, sendo mesmo equiparados a estes.
heróis e os homens da raça de ouro, é dotada de fundamento e isto permite entender um dos
motivos mais fortes de Hesíodo, isto é, o de fazer saber que o homem pode, por meio da ação
nobre e justa, reaproximar-se dos deuses, com quem partilha a mesma origem.
A importância dos guardiões - não dos gênios, mas dos vivos - para o sucesso ou
insucesso da cidade fica mais clara no livro VIII 405, quando Sócrates discorre sobre as
(...) que haverá no meio de vós” e da mistura do ferro com a prata e do bronze com o ouro
surgirá uma anomalia. Como consequência, emergirá a sedição dos homens de ferro e de
Dentre eles serão investidos os chefes que não têm espírito para guardião,
nem para discernir as raças de Hesíodo, nem a de ouro, de prata, de bronze e
404
Córdova e Evellyn-White adotam ἀλεξίκακοι, que foi empregado por Platão no lugar de ἐπιχθόνιοι.
405
Rep. 546. d 8-547.b7.
196
de ferro que haverá no meio de vós. Misturando-se o ferro com a prata e o
bronze com o ouro, surgirá uma desigualdade e uma anomalia desarmônica,
que, uma vez constituídas, onde quer que apareçam, produzem sempre a
guerra e o ódio. É desta geração que devemos dizer que surge a discórdia,
onde quer que apareça. E nós diremos, disse ele, que as Musas falaram bem.
Força é que o façam, retruquei, já que são Musas. A seguir a isto, o que
dizem as Musas? Quando surge a discórida, disse eu, ambas essas raças, a de
ferro e a de bronze, voltam-se para o lucro, posse de terras e de casas, ouro e
prata; por sua vez, a raça de ouro e a de prata, como não são carecidas, mas
dotadas por natureza da verdadeira riqueza que é a das almas, conduzem à
virtude e à antiga constituição.
Ecoa neste trecho o final da apresentação da raça de ferro que Hesíodo retrata lá em Os
trabalhos e os dias.
Neste momento, a inspiração hesiódica atinge o clímax. Tudo está presente: o nome de
Hesíodo, as Musas e todas as raças, já que a raça dos heróis foi definitivamente incorporada à
raça de ouro na passagem visitada acima, dando oportunidade para que as raças de ferro e de
bronze formem uma só, como já estava delineado desde a nobre mentira. Para coroar, o tom
em Os trabalhos e os dias.
197
Entendemos que o futuro que colore a profecia atribuida às Musas por Sócrates é
francamente retórico. Na verdade ele se refere à realidade concreta – às ἐτήτυμα – das cidades
É o caso então de retornar a Hesíodo e investigar se ele, de fato, fazia ali uma profecia
ou se mirava o presente. É claro que temos como ponto de partida os versos que introduzem a
raça de ferro.
Aqui o poeta exclui o antes e o depois e afirma que o problema está no agora. Mas isto
seria resolver o problema com uma parte dele, já que estes versos fazem parte da narrativa do
mito das raças, que apresenta uma temporalidade obscura. Temos então de procurar alguma
Alguns versos adiante, logo após a fábula do gavião e do rouxinol, no díptico das
(vv.225-37) à desgraça que se abate sobre aqueles que baniram Díke (vv.238-47). O que se
vê então é uma brevíssima descrição da cidade bem ordenada onde cada um cumpre sua
função, contraposta à descrição da cidade injusta nos versos que se seguem, dando, neste
segundo trecho, conta apenas e tão somente das consequências da inobservância desta
ordenação. Hesíodo apela para a experiência do ouvinte – novamente ἐτήτυμα – para que
todos vejam o quadro que ele pinta com palavras: de um lado, a terra dá alimento, as ovelhas
198
ficam pesadas de lã e as mulheres parem filhos que parecem com os pais; de outro, os
castigos de Zeus: fome, flagelos, infertilidade das mulheres, guerras e catástrofes, enfim, o
No livro IV das Leis, Platão retoma o tema da raça de ouro 406. Nesta passagem o
filósofo fala que muito antes de existirem as mais antigas cidades conhecidas, existia, no
tempo de Cronos, um Estado tão excelentemente constituído que serviu de modelo para a
Platão diz que Cronos sabia da disposição naturalmente oscilante do homem e, por amor
aos homens, designou como reis e governantes, não seres humanos, mas de uma raça mais
divina, nomeadamente daímones, para nos governar, e distribuir entre os homens a paz, o
senso de honra, as leis e a justiça 407. Por conta disso, devem os homens, por todos os meios,
imitar a vida da época de Cronos, dando a essa ordenação o nome de lei 408.
desapareceu quando Cronos reinava e os homens desta raça foram convertidos em “daímones
Leis 713 a.4-b.4. Πάνυ μὲν οὖν. τῶν γὰρ δὴ πόλεων ὧν ἔμπροσθε τὰς συνοικήσεις διήλθομεν, ἔτι
406
προτέρα τούτων πάμπολυ λέγεταί τις ἀρχή τε καὶ οἴκησις γεγονέναι ἐπὶ Κρόνου μάλ' εὐδαίμων, ἧς
μίμημα ἔχουσά ἐστιν ἥτις τῶν νῦν ἄριστα οἰκεῖται.
Ótimo! Longas eras antes que existissem até mesmo essas cidades das quais indicamos a formação
anteriormente, existia no tempo de Cronos, conta-se, um governo e fundação sumamente prósperos,
com base nos quais o melhor dos estados atualmente existentes foi moldado.
407
Leis 713.c.5-d.3. γιγνώσκων ὁ Κρόνος ἄρα, καθάπερ ἡμεῖς διεληλύθαμεν, ὡς ἀνθρωπεία φύσις
οὐδεμία ἱκανὴ τὰ ἀνθρώπινα διοικοῦσα αὐτοκράτωρ πάντα, μὴ οὐχ ὕβρεώς τε καὶ ἀδικίας μεστοῦθαι,
ταῦτ' οὖν διανοούμενος ἐφίστη τότε βασιλέας τε καὶ ἄρχοντας ταῖς πόλεσιν ἡμῶν, οὐκ ἀνθρώπους
ἀλλὰ γένους θειοτέρου τε καὶ ἀμείνονος, δαίμονας, οἷον νῦν ἡμεῖς δρῶμεν τοῖς ποιμνίοις καὶ ὅσων
ἥμεροί εἰσιν ἀγέλαι·
Cronos estava ciente de que nenhum ser humano, por sua natureza (como já explicamos) tem a
capacidade de ter controle absoluto de todos os assuntos humanos sem se tornar locupletado de
insolência e injustiça, assim, ponderando sobre estes fatos, designou como reis e governantes para
nossas cidades não seres humanos, mas sim seres de uma raça mais divina, nomeadamente, os
daímones, da mesma forma que nós governamos os rebanhos de animais domesticáveis por lhes
sermos superiores
408
Leis 713 e.6-a.2. ἀλλὰ μιμεῖσθαι δεῖν ἡμᾶς οἴεται πάσῃ μηχανῇ τὸν ἐπὶ τοῦ Κρόνου λεγόμενον
βίον, καὶ ὅσον ἐν ἡμῖν ἀθανασίας ἔνεστι, τούτῳ πειθομένους δημοσίᾳ καὶ ἰδίᾳ τάς τ' οἰκήσεις καὶ τὰς
πόλεις διοικεῖν, τὴν τοῦ νοῦ διανομὴν ἐπονομάζοντας νόμον.
Por isso devemos, por todos os meios, imitar a vida na época de Cronos, tal como a tradição a retrata,
ordenando tanto nossos lares quanto nossos estados, dando a esta ordenação o nome de lei.
199
epikhthónioi”, isto é, “anjos sobre a terra”, e estes, por sua vez, são associados ao batalhão
em “gênios puros sobre a terra, nobres, afastando os males, como guardiães dos mortais”
parece reforçar este entendimento, mas, como já vimos, incluindo entre eles os bons heróis .
O papel atribuído ao deus é esclarecedor, pois é precisamente Cronos quem reina na Ilha dos
Bem-Aventurados, para onde, segundo Hesíodo, alguns dos heróis foram enviados. Assim,
referências a Cronos e aos “daímones”, nas Leis, funcionam como um reforço da inclusão dos
heróis na República. Lá, como também em Hesíodo, os melhores dentre eles são considerados
Retornando a Hesíodo, se o herói, por ser mais justo e mais nobre, é um modelo de
ação, a posição da raça na narrativa não pode ser outra: a raça que precedeu a nossa na terra
sem fim, conforme o verso 160 do poema. O máximo de excelência que nossa raça pode
aspirar está representado pelo bom herói, que ainda está muito longe dos deuses – e a
audiência de Hesíodo sabia bem disso. Paralelo a isso, Hesíodo parece igualmente preocupado
em chamar atenção para o perigo que representa a extrema radicalização da Hýbris, que ele
projeta para o futuro exatamente para nos mostrar quais condutas devem ser evitadas agora.
Este agora nos leva a mais um uso platônico do mito das raças, não mencionado por
nenhum dos autores de Plato & Hesiod, do qual já tinhamos lançado mão anteriormente 409.
No livro I das Leis, 644 d 8-e 4, ao apresentar a imagem do teatro das marionetes, o
cada um de nós é uma marionete, um brinquedo dos deuses – dos quais nada
sabemos – e que somos movidos pelos nossos sentimentos interiores que,
409
Cf. Hesíodo (2011) pag. 219.
200
como tendões ou cordéis, nos arrastam em movimentos de oposição
recíproca; e aqui jaz a linha divisória entre a virtude e o vício.
Por isso, o homem deve obedecer ao fio condutor sagrado da avaliação, e esta deve ser
assumida como lei. Esse fio condutor, flexível e uniforme, visto que é de ouro – ao passo que
os demais são de ferro - leva o homem ao rumo correto da ação, pois é capaz de
assegurar que a raça áurea dentro de nós possa derrotar as outras raças 410.
mito das raças. Platão, à diferença de nós, pensadores contemporâneos, não interpreta o mito,
mas reconta-o, para que ele permaneça vivo e sua mensagem não se perca. E permanecendo
Seu emprego na República permite entender, junto com Vernant, que o mito foi usado
para colocar em evidência a existência dos distintos extratos sociais da cidade. Mas com
relação à questão da temporalidade no mito, o que vemos são as raças coexistindo no tempo, a
As referências aos daímones, tomadas em conjunto, tanto na República quanto nas Leis,
permitem entender que os heróis se constituem em modelos de conduta, mas é apenas nas
Leis, que a questão fica esclarecida. O fio condutor de ouro é exatamente aquilo que assegura
que a raça áurea dentro de nós – na condição de indivíduos - derrote as outras raças. A
analogia da cidade com a alma, apresentada na República, projeta-se então para Leis, de
410
Leis. 645. b1.
201
forma que a luta travada entre a raça áurea e as demais dentro de nós seja percebida como
Esta luta remete o homem da raça de ferro a uma escolha entre a Boa Luta, encarnada
pelos demais heróis e também pelos homens da raça de bronze, ambos anônimos no Hades, e
3.4 Conclusão
Hesíodo é um poeta cioso em marcar sua presença no corpo de seus poemas. Ele já
começa a Teogonia com as Musas e a partir das Musas, mas sempre com o intuito de assumir
o controle do discurso e orientá-lo para termos humanos. Uma prova disso é a diferença entre
os dois cantos das Musas, ainda no proêmio deste poema: no primeiro (v.10-22), há um
segundo (v. 43-50), após a sua conversão de pastor em poeta, é temporalmente estruturado e
pode ser considerado um resumo do canto que ele pedirá mais adiante (v.116-ss.) às deusas,
especificando como elas devem proceder - ἐξ ἀρχῆς. Nesta manobra, o poeta parece querer
Mas a relação do poeta com as deusas na busca pelo controle do discurso é ainda mais
complexa. Ele assegura para si, além do papel de condutor da trama de seus poemas, – eu, por
mim, quero dizer verdades a Perses – a autoridade para mediar conflitos. Depois de
demonstrar, na passagem dos reis e poetas (Teog. 80-103) que sua fala também é política, ele
chama para si a função jurídica que está sendo mal desempenhada pelos reis comedores de
presentes.
202
O Hino a Hécate começa a delinear o lugar do homem no mundo, à medida que trás à
baila dois temas fundamentais, o do sacrifício aos deuses, do qual a deusa é uma
intermediadora incontornável, e o do trabalho, onde ela está presente em todas as obras dos
homens.
final da versão de Os trabalhos e os dias, onde seu papel como acolhedor de Pandora será
explicitado. Além do mais, o símile do zangão (Teog. 594-601) parece ser uma metáfora da
vida do homem da raça de ferro, o que já liga a primeira versão hesiódica de Prometeu ao
mito das raças no outro poema. Neste segundo poema, o vínculo entre Prometeu e o mito das
raças é reforçado, desta feita com as referências à raça de ouro (Trab. 43-44 e, sobretudo, 90-
92).
Como mito que fala sobre a condição humana, o mito de Prometeu retoma e aprofunda
os temas introduzidos pelo Hino a Hécate explicando a necessidade do sacrifício como marca
da submissão humana aos deuses, e do trabalho, que começa a ser apresentado como forma de
reaproximação aos deuses, já que “quem trabalha é muito mais caro aos deuses” (Trab. 309).
Pandora simboliza a tomada de consciência da própria finitude. A vida é permeada por males
inevitáveis para os homens. Então Hesído os colocou todos num pote e enviou-os aos homens
junto com Pandora, pura e simplesmente porque a tomada de consciência de um único traço
Este mito introduz também a polaridade entre πόνος (sofimento ou fadiga) e ἔργον
(realização da obra). É possível notar que dentro do mito ἔργον só ocorre no início da versão
de Os trabalhos e os dias, isto é, antes da ocultação do fogo por Zeus e do roubo do fogo,
203
efetuado por Prometeu. A constatação de que o fogo oculto por Zeus no freixo difere do fogo
roubado pelo titã na férula é mais uma marca da separação entre deuses e homens. A partir de
então, ἔργον é substituído por πόνος e a meta do homem passa a ser a conversão de πόνος em
ἔργον, num misto de culto e reaproximação do homem com a divindade. Daí em diante, todas
Dentro da leitura que estamos tentando desenvolver, que vê a separação entre deuses e
homens expressa por palavras cuidadosamente escolhidas pelo poeta, a partir da distinção
entre ἀληθέα e ἐτήτυμα, aos pares de oposição entre divino e humano - Musas x pastores
capítulo anterior, somam-se os pares Hefesto x bigorna; Στύξ (Stix) x Ὅρκος (Juramento);
freixo x férula e ἔργον (realização da obra) x πόνος (sofrimento ou fadiga), este último
Por fim, uma vez que é neste mito que fica decidido o que é ser homem e o que é ser
que oriente o homem sobre como agir num mundo que é divino.
Apesar da enorme dívida que a recepção contemporânea do mito das raças tem a Jean-
Pierre Vernant, a interpretação deste mito continua sendo uma pedra de escândalo e algumas
da interrupção da sequência de queda das raças metálicas, provocada pelo surgimento da raça
dos heróis entre a raça de bronze e a raça de ferro. O terceiro problema é duplo: a clivagem da
necessita de Díke põe em cheque todo este arranjo estrutural proposto por Vernant, abrindo a
possibilidade de uma abordagem do mito como uma história do surgimento da hýbris, em suas
diferentes manifestações, como o mal intrínseco dos homens, que vem se somar aos males
extrínsecos, introduzidos no mito de Prometeu. Díke passa a ser encarada como o presente de
Zeus aos homens contra este mal, sendo, portanto, algo que só diz respeito aos homens e
posterior à hýbris.
Nesta perspectiva, a raça dos heróis, que é ao mesmo tempo uma raça de semideuses,
mais justa e mais nobre do que a de bronze e a que antecedeu a nossa na vasta terra (v.158-
160), é também a raça que integrou em si todas as possibilidades da hýbrides exibidas pelas
raças de prata e de bronze. Carregando a terrível contradição de ser justa e violenta, ela teve o
seu destino pós-morte cindido entre um destino semelhante ao da raça de ouro, digno de um
O recurso a Platão parece corroborar nossa leitura, já que ele fez com que a raça dos
heróis fosse totalmente identificada com a de ouro, deixando a raça de prata discretamente
perspectiva filosófica e fazendo com que todas coexistam sempre, num primeiro momento, na
cidade, como raça dirigente, raça de guardiões e raça de trabalhadores, e depois, já em Leis,
dentro de cada um de nós. Com isso, as questões ligadas à temporalidade do mito, à sucessão
discreta ou contínua das raças e à cisão da raça de ferro, com a profecia sobre a destruição
desta raça no futuro, simplesmente desaparecem. O tempo do mito é o presente e o drama das
raças se dá na cidade e em nós, sendo fundamental “assegurar que a raça áurea dentro de
205
Não foi por acaso que Hesíodo colocou a raça dos heróis imediatamente antes da nossa
no corpo de sua narrativa e concentrou os seus três predicados – são semideuses; são mais
justos e mais nobres do que a raça de bronze; e são a raça que antecedeu a nossa na terra – em
três versos consecutivos (158-160). É para ela que o homem de ferro tem que olhar para
resolver a sua contradição de ser, ao mesmo tempo, um ser violento e dotado de senso de
justiça.
Platão, ou melhor, o recurso ao recurso que Platão fez deste mito, nos permite entender que
todos os aspectos do tempo estão incluídos, na medida em que fala muito mais da condição
206
4. As noções morais em Hesíodo.
medida em que a deusa, por ser intermediadora dos sacrifícios, está presente em cada sucesso
Como ficou demonstrado, a partir do estudo do mito de Prometeu, a decisão entre o que
é ser deus e o que é ser homem resultou na separação necessária entre deuses e homens. Este
mito mostra ainda o surgimento dos males externos e inevitáveis que atacam o homem, fome,
doenças, fadiga, velhice, morte, males que fundam a necessidade do trabalho, do qual o fogo
O mito das raças, por sua vez, pode ser entendido como a história da hýbris. Narrado no
modo genealógico, este mito mostra como hýbrides distintas vão surgindo e sedimentando-se
na alma humana. Em outras palavras, a hýbris, em suas distintas manifestações, faz parte da
natureza humana. Ao contrário dos males contidos no pote de Pandora, que são externos, a
hýbris é interna ao homem. Isto nos convida a pensar que, diferente dos outros, este é um mal
que é, em alguma medida, passível de controle, o que introduz, ainda que de modo implícito,
o tema da responsabilidade 411. Além do mais, boa parte de suas manifestações – mentira,
escárnio, sentenças tortas e outras – está ligada à palavra 412 e mesmo a violência física não
Desta forma, o discurso propriamente humano que Hesíodo buscava desde o primeiro
verso da Teogonia, só pode ser um discurso moral. Neste capítulo, para investigar este
411
Cf. Córdova in Hesíodo (1986) pág. L-LII.
412
Por outro lado, a palavra é também a marca do homem e estruturante da civilização, o que deixa
claro que a palavra, seja ela criação do homem ou criadora dele, carrega em si a mesma ambiguidade
essencial do homem.
207
discurso moral, estaremos totalmente no âmbito de Os trabalhos e os dias, mas a presença,
enquanto o homem existir sobre a terra – e a partir daí começar a perseguir a concepção
contra pais e irmãos, seja na pólis, contra hóspedes e companheiros. A isto, soma-se a
desconsideração para com os deuses. O resultado é exatamente a hýbris descrita para a raça de
O saque à cidade e a lei do mais forte remetem à hýbris característica da raça de bronze.
Em suma, a hýbris da raça de ferro é a perfeita integração das hýbrides das raças anteriores.
Como demonstrou Platão, está presente dentro de nós e na cidade. O mito das raças é uma
Ao construir a cidade, o homem leva sua hýbris, como Platão o mostrou, para o seio
dela. E no seio da cidade (vv.190-192) há alguém que não encontra alegria: o homem que
guarda o juramento, que é justo e que é bom: “Não terá alegria quem jura certo, nem é justo/
Entendemos aqui, junto com Carrière, que os três predicados pertencem ao mesmo
homem e não a homens distintos. Do mesmo modo, seu contrário é triplamente caracterizado
(193-194) – o homem mau, que fala de modo tortuoso e que presta falso juramento: “O
covarde lesará o varão,/ lançando palavras esquivas, sobre as quais jurará.”. O autor
observa que os desvios da justiça são todos de ordem verbal. São palavras e sentenças tortas,
209
mentiras, querelas e falsos juramentos. São os filhos de Éris portadores de palavra descritos
entre lógos e érgon, à qual corresponde uma separação social entre ricos e pobres, pautando-
disputas da ágora sob o argumento de que apenas os que já têm o sustento garantido podem
dedicar-se a elas. Os pobres estão, segundo esta leitura, excluídos dos debates da ágora 414.
Concordamos com Carrière quando este diz que Hesíodo entende que a administração
da Justiça implica num saber: os reis comedores de presentes são uns tolos que não sabem que
a metade é maior do que o todo 415, mas discordamos da exclusão dos pobres do discurso
Cf. Teog. 229-231. Νείκεά τε Ψεύδεά τε Λόγους τ' Ἀμφιλλογίας τε Δυσνομίην τε, (...),Ὅρκόν.
413
414
Cf. Carrière (1987) pag. 296-303.
415
Trab. 40. νήπιοι, οὐδὲ ἴσασιν ὅσῳ πλέον ἥμισυ παντὸς
210
político proposta pelo autor. Pela via de aquisição da riqueza preconizada por Hesíodo,
constrói-se, junto com esta, um caráter justo. Ao menos é esta a lição que recebemos do poeta.
O que Carriére entende como concentração de poder nas mãos dos ricos pode ser lido como
uma exortação a Perses – e à audiência, isto é, nós - para concentrar seus esforços no trabalho
e desviar os olhos dos bens dos outros; para cessar de querer conquistar os bens pela força do
braço ou pela palavra esquiva. O trabalho é para Hesíodo o único caminho da virtude.
É possível ver aí um deslocamento do particular para o geral, dos casos concretos para a
abstração. Tudo se passa como se Hesíodo quisesse mostrar que todas as virtudes e todas as
faltas incidem sobre o mesmo princípio 416, ainda que Hesíodo queira coroar o homem
trabalhador com o sucesso material e o prestígio social, como é patente nos já visitados
Nada aqui permite identificar o homem que guarda o juramento, que é justo e que é
bom, com alguém de nível social superior ou inferior. A moral se universaliza e em outras
passagens do poema ela vai ser mesmo o motor de uma ascensão social – algo impensável em
Homero - como nos versos 308-310: “pelo trabalho os homens são ricos de gado e de bens/ e
quem trabalha é muito mais caro aos deuses também/ [e o mesmo serás para os homens:
Com relação à hýbris, o poeta se porta de modo diferente. Ela é decerto universalizada,
mas para fazê-lo, ele sente necessidade de abordá-la destacando os extratos sociais - “A
desmedida é má para o pobre mortal. Nem mesmo o nobre/ a pode aguentar facilmente. É
esmagado por ela. 418” Hesíodo ataca os valores morais da poesia épica. Por isto enfatiza o
416
Para Hesíodo, este princípio tem um nome: Zeus.
417
Trab. 308-310. ἐξ ἔργων δ' ἄνδρες πολύμηλοί τ' ἀφνειοί τε,/ καί τ' ἐργαζόμενος πολὺ φίλτερος
ἀθανάτοισιν/ [ἔσσεαι ἠδὲ βροτοῖς· μάλα γὰρ στυγέουσιν ἀεργούς].
418
Trab. 214-215. ὕβρις γάρ τε κακὴ δειλῷ βροτῷ, οὐδὲ μὲν ἐσθλὸς/ῥηιδίως φερέμεν δύναται, βαρύθει
δέ θ’ ὑπ’ αὐτῆς.
211
Para Hesíodo, a justiça de seu tempo não está de acordo com a justiça de Zeus, o que já
está claro desde o verso 9 do poema, onde ele convoca a presença de Zeus: “vem! Vê e escuta:
com justiça endireita as sentenças, 419”. Com os versos 35 a 39 ele torna a questão mais clara:
“Mas não terás segunda chance/ de agires assim. Julguemos aqui nossa arenga/ com retas
sentenças vindas de Zeus, as melhores./ Pois a nossa herança já foi repartida e muito/ levaste
trocas. 420” O que está em jogo é a corrupção, ativa por parte de Perses e passiva por parte dos
reis. O direito virou pura força, afastada do seu fundamento, e a palavra está presente tanto na
Bens não devem ser roubados; dados por deus são bem melhores.
Pois se alguém, pela força do braço, alcança a riqueza,
ou a consegue pela palavra, o que com frequência
acontece quando o lucro ilude a mente
dos homens e Perfídia afugenta Pudor 325
facilmente os deuses escurecem e mínguam a casa.
Ainda que neste texto a força do braço seja mencionada antes da palavra, a lição geral é
a de que a violência pela palavra é anterior e fundadora da violência física, tanto na sucessão
Trab. 35-39. ἀλλ’ αὖθι διακρινώμεθα νεῖκος/ ἰθείῃσι δίκῃς, αἵ τ’ ἐκ Διός εἰσιν ἄρισται./ ἤδη μὲν γὰρ
420
κλῆρον ἐδασσάμεθ’, ἄλλα τε πολλὰ/ ἁρπάζων ἐφόρεις μέγα κυδαίνων βασιλῆας/ δωροφάγους, οἳ
τήνδε δίκην ἐθέλουσι δικάσσαι.
212
das raças – primeiro o desrespeito da raça de prata e depois a força bruta da raça de bronze –
verbal.
Até o presente momento, o esforço para perseguir a concepção Hesiódica de Justiça não
fez mais do que mostrar a hýbris como constituinte essencial da natureza humana, tão humana
que o poeta não fez dela nenhum tipo de personificação. A hýbris é humana e não existe fora
do homem. É preciso então prosseguir neste esforço de alcançar Díke, a deusa vestida de ar
(ἠέρα ἑσσαμένη, Trab.223). É preciso buscar algo anterior, mais profundo. O proêmio de Os
opostos 421: Zeus tanto dá força quanto enfraquece; ofusca o brilhante e ilumina o obscuro;
O verso 9, “vem! Vê e escuta: com justiça endireita as sentenças, 423”, mostra com
bastante precisão o que o poeta espera de Zeus, isto é, endireitar as sentenças, e como ele
espera que o Cronida o faça: “com justiça”. Este verso ilumina todo o poema. Não só as
transformações de Zeus descritas nos versos precedentes não são voluntariosas, mas são feitas
segundo um princípio, a justiça, que se mostra um instrumento nas mãos do deus, como
também este é o eixo de todas as modificações que Hesíodo tenta operar em Perses, nos reis e
421
Trab. 5-7. ῥέα μὲν γὰρ βριάει, ῥέα δὲ βριάοντα χαλέπτει,/ ῥεῖα δ’ ἀρίζηλον μινύθει καὶ ἄδηλον
ἀέξει,/ ῥεῖα δέ τ’ ἰθύνει σκολιὸν καὶ ἀγήνορα κάρφει.
pois fácil fortalece, e fácil ao forte faz falir,/ fácil o brilho escurece e o escuro esclarece/ fácil o torto
endireita e enfraquece o arrogante.
422
Transcrevemos nossa nota sobre a tradução de ἀγήνορα em Hesíodo (2011) pag 117. “Pietro Pucci
(BLAISE , F; JUDET de la COMBE , P.; ROUSSEAU 1996 : p.203) esclarece tratar-se de um epíteto
reservado aos nobres que ressalta a força e o poder destes. Uma vez que o que está em jogo aqui
envolve justamente os valores que Hesíodo quer inverter, há algo de negativo neste epíteto que optei
por traduzir por “arrogante”.” A isto, acrescentamos que também procuramos preservar algo da
sonoridade do termo: arrogante parece ser o termo que mais se aproxima da sonoridade de agénora,
respeitando, ao mesmo tempo o significado.
423
Trab. 9. κλῦθι ἰδὼν ἀίων τε, δίκῃ δ’ ἴθυνε θέμιστας.
213
na audiência ao longo de toda a obra, na medida em que se reserva a tarefa de dizer
“verdades” a Perses.
alcançar a visão que o poeta tem da primeira, parece sensato seguir investigando as verdades
contidas no poema.
4.2 Éris.
trabalhos e os dias, é introduzida sob a forma de uma retificação, pelos versos 11-13:
Todos os estudiosos visitados concordam que há, nos três versos citados acima, uma
referência aos versos 224-225 da Teogonia, onde a Luta – Éris – é apresentada como filha da
Noite 424. Mas ainda há algo a acrescentar: a possibilidade de receber louvor ou censura, isto é
de ser qualificada como boa ou má, é a marca da entrada no âmbito da moral. Por isso, esta
oposição ao mundo dos deuses. A terra é, portanto, o lugar onde a distinção entre as Lutas
adquire sentido. Pode-se perceber aqui, mais uma vez, a oposição entre alétheia e etétyma. O
Para Rousseau, a oposição entre as Lutas é expressa numa fórmula que condensa
diversas expressões da Ilíada sem que nenhuma delas seja reproduzida exatamente. Guiado
424
Teog. 224-225. Νὺξ ὀλοή· μετὰ τὴν δ' Ἀπάτην τέκε καὶ Φιλότητα/ Γῆράς τ' οὐλόμενον, καὶ Ἔριν
τέκε καρτερόθυμον.
Noite funérea. Depois pariu Engano e Amor /e Velhice funesta e pariu Éris de ânimo cruel.
214
pela leitura de que Hesíodo intenta reverter os paradigmas morais da tradição épica fazendo-
se valer da própria composição épica, o autor ressalta que importa então descobrir qual o
sentido desta distinção entre as Lutas e qual o papel que Hesíodo lhe destina dentro do projeto
do poema, que será o de construir um novo modelo de herói. Dentro desta perspectiva, aceitar
Perses como um homem regrado pelos modelos da ética épica pode ser uma chave útil para a
compreensão do que está sendo criticado e do que está sendo exaltado, e é exatamente isso
que Hesíodo faz com as Lutas: critica uma e exalta outra 425.
Já Carrière faz um acurado levantamento de passagens da Ilíada onde Éris figura, das
quais destacamos três 426. Em Il.4.440-41, “Terror, Temor e Luta, sanha que não cessa,/ irmã
e sócia de Ares, matador de gente. 427”, Éris surge divinizada, como irmã de Ares; em Il.1.6-7,
“desde que por primeiro a discórdia apartou/ o Atreide, chefe de homens e o divino
da disputa entre Menelau e Páris, o primeiro diz que devem afastar-se “Aqueus e Troianos, já
429
que muito sofrestes/por causa da minha disputa contra Alexandre, desde o princípio ”. A
primeira passagem destaca o aspecto gurreiro da Luta, enquanto nas outras duas, bem como
das demais passagens por ele assinaladas, o que está em jogo é o caráter jurídico ligado à
disputa de bens.
Na Teogonia, Éris é hipostatizada, tal como na primeira passagem homérica citada, mas,
desta feita, como filha da Noite e, através de sua descendência 430, pode-se ver que encampa os
dois aspectos, o guerreiro e o jurídico. Tal como em Homero, Éris é sempre má 431.
425
Cf. Rousseau (1996) pag. 120-125.
426
Cf. Carriére (1987) pag. 704.
427
Il.4.440-441. Δεῖμός τ' ἠδὲ Φόβος καὶ Ἔρις ἄμοτον μεμαυῖα,/ Ἄρεος ἀνδροφόνοιο κασιγνήτη
ἑτάρη τε. Tradução de Haroldo de Campos, com modificações.
428
Il.1.6-7. ἐξ οὗ δὴ τὰ πρῶτα διαστήτην ἐρίσαντε/ Ἀτρεΐδης τε ἄναξ ἀνδρῶν καὶ δῖος Ἀχιλλεύς.
429
Il.3.99-100. Ἀργείους καὶ Τρῶας, ἐπεὶ κακὰ πολλὰ πέπασθε /εἵνεκ' ἐμῆς ἔριδος καὶ Ἀλεξάνδρου
ἕνεκ' ἀρχῆς· Tradução do autor.
430
Teog. 226-232. αὐτὰρ Ἔρις στυγερὴ τέκε μὲν Πόνον ἀλγινόεντα/Λήθην τε Λιμόν τε καὶ Ἄλγεα
δακρυόεντα/ Ὑσμίνας τε Μάχας τε Φόνους τ' Ἀνδροκτασίας τε/ Νείκεά τε Ψεύδεά τε Λόγους τ'
215
Em Os trabalhos e os dias, Hesíodo introduz uma inovação tremenda: há duas Érides, e
não uma. E mais, uma é boa, enquanto a outra é má. Os aspectos, jurídico e guerreiro, estão
presentes, mas ambos no âmbito da Éris má 432. Estes aspectos, é importante assinalar,
coincidem exatamente com o somatório das hýbrides das raças de prata e de bronze, o que
A Éris boa é encontrada no cotidiano dos homens. Está fincada no seio da cidade do
mesmo modo que Zeus a fincou nas raízes da terra 433. A Éris boa tem uma função definida,
que é apresentada, não por acaso 434, logo em seguida: despertar o homem – até o indolente –
para o trabalho 435, que é primeiro apresentado de um modo geral, abstrato, para depois ser
especificado por ações: arar, plantar, bem dispor a casa 436, e mais tarde por ofícios: oleiro,
carpinteiro, poeta e mendigo 437. Tudo isto está referido a um agente, o vizinho 438, que pode se
desdobrar em qualquer uma das atividades ou em qualquer um dos ofícios e é o modelo a ser
imitado 439.
Ἀμφιλλογίας τε/ Δυσνομίην τ' Ἄτην τε, συνήθεας ἀλλήλῃσιν,/ Ὅρκόν θ', ὃς δὴ πλεῖστον ἐπιχθονίους
ἀνθρώπους/ πημαίνει, ὅτε κέν τις ἑκὼν ἐπίορκον ὀμόσσῃ·
Éris hedionda pariu Fadiga cheia de dor,/ Olvido, Fome e Dores cheias de lágrimas,/ Batalhas,
Combates, Massacres e Homicídios,/ Litígios, Mentiras, Falas e Disputas,/ Desordem e Derrota
conviventes uma da outra,/ e Juramento, que aos sobreterrâneos homens/ muito arruina quando
alguém adrede perjura.
431
Καρτερόθυμον, de ânimo cruel e στυγερὴ, hedionda, segundo a tradução de Torrano para os versos
225 e 226 repectivamente.
432
Trab.14. ἣ μὲν γὰρ πόλεμόν τε κακὸν καὶ δῆριν ὀφέλλει, (Uma traz a guerra e a discórdia funesta).
433
Trab.18-19. θῆκε δέ μιν Κρονίδης ὑψίζυγος, αἰθέρι ναίων,/ γαίης [τ'] ἐν ῥίζῃσι καὶ ἀνδράσι πολλὸν
ἀμείνω·
Fincou-a o Cronida altirregente que mora no éter/ nas raízes da terra; é muito melhor para os homens.
434
A importância do trabalho é enfatizada pela repetição da palavra nos versos 20 e 21.
435
Trab.20. ἥ τε καὶ ἀπάλαμόν περ ὁμῶς ἐπὶ ἔργον ἐγείρει·
Esta desperta ao trabalho até o indolente.
436
Trab.22-23. ὃς σπεύδει μὲν ἀρόμεναι ἠδὲ φυτεύειν/ οἶκόν τ' εὖ θέσθαι·
que se apressa a arar, e a plantar/e bem dispor a casa.
437
Trab.25-26. καὶ κεραμεὺς κεραμεῖ κοτέει καὶ τέκτονι τέκτων, /καὶ πτωχὸς πτωχῷ φθονέει καὶ
ἀοιδὸς ἀοιδῷ.
O oleiro provoca o oleiro e carpinteiro ao carpinteiro,/ mendigo se mede ao mendigo, aedo ao aedo.
438
Trab.23-24. ζηλοῖ δέ τε γείτονα γείτων/ εἰς ἄφενος σπεύδοντ'·
E vizinho emula vizinho/ que corre atrás da riqueza.
439
Trab.21. εἰς ἕτερον γάρ τίς τε ἴδεν ἔργοιο χατίζων
pois anseia por trabalho ao olhar para o outro.
216
Vários comentadores avaliam negativamente os verbos ligados às ações entre vizinhos
(ζελοῖ), oleiros e carpinteiros (κοτέει), bem como entre mendigos e entre aedos (φθονέει), nos
versos 23, 25 e 26, aqui traduzidos por “emula”, “provoca” e “se mede”, precisamente para
enfatizar o aspecto construtivo da lição. É certo que estes verbos, tomados em si, podem ter
um valor negativo, mas no contexto onde ocorrem eles são indubitavelmente positivos, na
direcionado para si e não contra o outro 440: ao olhar para o vizinho “rico” – este adjetivo foi
intencionalmente omitido quando abordamos há pouco o verso 22, para podermos recuperá-lo
agora - o homem corre atrás da riqueza 441, e não do rico, e vai envidar esforços para ser rico
da mesma forma, sem querer apossar-se da riqueza do outro por meio de disputas jurídicas ou
pelo roubo 442. Hesíodo está plenamente consciente disso: “Esta é a boa Luta para os
mortais 443.”.
A presença da boa Luta no seio da cidade da raça de ferro mostra que o homem desta
raça, por mais que possa vir a se aproximar ao do da raça de ouro, não é, ao contrário deste,
isento de tensões. A paz da raça de ferro é ausência de pólemos, mas não de agôn.
Por isso Havelock tem razão ao dizer que ocorreu, na escalada que se inicia na Ilíada,
intelectual” e prossegue: “um conceito nasceu, ou antes, recebeu expressão linguística, coisa
440
Trab. 195-196 mostram a ação de Zêlos sob a égide da Luta má. São quase sinônimos. ζῆλος δ'
ἀνθρώποισιν ὀιζυροῖσιν ἅπασι/ δυσκέλαδος κακόχαρτος ὁμαρτήσει στυγερώπης.
Inveja perseguirá aos homens – desgraçados, todos –/ horripilante – alegra-se com a dor alheia –
asquerosa.
441
Trab. 24. εἰς ἄφενος σπεύδοντ'·
que corre atrás da riqueza.
442
Nunca é demais lembrar que o poeta quer recompensar aquele que se dedica ao trabalho com o
sucesso, o prestígio e a riqueza.
443
Trab. 24. ἀγαθὴ δ' Ἔρις ἥδε βροτοῖσιν.
444
Cf. Havelock (1996) pag. 227.
217
Entretanto, parece que Havelock comete um deslize no seu estudo sobre o mito das
Lutas. Sua análise é voltada para demonstrar a progressão de uma argumentação lógica no
seio dos versos de Hesíodo. Mas, segundo o autor, o poeta só consegue sustentá-la até o verso
completa e acabada exatamente neste espaço, entre os versos 11 e 26. Aí Hesíodo apresenta
suas duas Lutas, diz que uma é boa e outra é má, qual a origem de ambas, como elas se
dispuseram de tal forma e quais são os efeitos de uma e outra para os homens. Havelock não
percebe que daí em diante, entre os versos 27 e 39, o poeta não está mais falando de forma
adesão a esta pode ser danosa. Em outras palavras, Hesíodo está tratando de um caso concreto
à luz da norma, mas não pela via jurídica e sim pela didática.
Um ponto importante precisa ser sublinhado: do bojo da apresentação das duas Lutas,
surge o trabalho como o modo humano de se engajar na boa Luta. Deste modo, o trabalho
pode ser boa ou má. Isto parece ser uma marca no pensamento hesiódico. Suas verdades são
noções morais e, como tal, ambíguas. Demandam sempre um princípio que oriente a sua
445
Cf. Havelock (1996) pag. 227.
446
Trab. 27. Ἔρις κακόχαρτος.
218
4.3 Pónos – Érgon
O trabalho é a atividade humana fundamental para Hesíodo. Para melhor entender a sua
importância no bojo de sua obra é necessário operar uma síntese dos diferentes aspectos do
mesmo tema que são abordados em diferentes momentos dos dois poemas.
A relação visceral entre Luta e trabalho acabou de ser posta em evidência. A relação
entre trabalho e sacrifício está presente tanto no Hino a Hécate quanto no mito de Prometeu.
deixando sempre claro que todos estes aspectos visam uma reconciliação com o divino, o que,
Uma vez que a construção do discurso é uma questão de extrema importância para a
nossa investigação, vale salientar que o trabalho é também o ponto de união, ou de transição,
para o mito que se segue à narrativa das duas Lutas em Os trabalhos e os dias, isto é, o
episódio de Prometeu, que o apresenta como imposição divina. Isto nos convida a questionar
Ao contrário de West, entendemos que o tema do trabalho, após ter sido introduzido no
poema pela narrativa das duas Lutas, não sairá mais de pauta e permeará todas as relações
447
West (1966) pag. 46-49.
219
Para observar mais de perto as relações entre homens e deuses, é necessário retornar à
Teogonia: as atividades humanas descritas no Hino a Hécate serão o ponto de partida para
esta síntese.
220
νίκην προφρονέως ὀπάσαι καὶ κῦδος ὀρέξαι.
Nesta passagem, a deusa aparece presidindo diversas atividades humanas que englobam
tanto as que estão sob a égide da Luta má – não devemos perder de vista que esta é uma
imposição dos deuses 448 - como o combate homicida (v.432, ἠδ' ὁπότ' ἐς πόλεμον φθισήνορα
θωρήσσωνται), quanto os trabalhos que compõem a Luta boa, como o pastoreio de bois, cabras
e ovelhas (v.445-446, βουκολίας δὲ βοῶν τε καὶ αἰπόλια πλατέ' αἰγῶν/ ποίμνας τ' εἰροπόκων ὀίων) e
até mesmo a administração da justiça (v.430-431, ἔν τε δίκῃ βασιλεῦσι παρ' αἰδοίοισι καθίζει/ ἔν
448
Trab. 15-16. σχετλίη· οὔ τις τήν γε φιλεῖ βροτός, ἀλλ' ὑπ' ἀνάγκης/ ἀθανάτων βουλῇσιν Ἔριν
τιμῶσι βαρεῖαν.
Cruel. Nenhum mortal a ama, mas forçados/ pela vontade dos imortais, honram a luta opressora.
221
Mas se Hécate preside todas estas atividades, o faz de forma indireta, pela via do
sacrifício 449, a forma por excelência do homem se relacionar com os deuses. Hesíodo reserva
à deusa um papel específico com relação ao sacrifício, o que faz dela uma interface entre o
humano e o divino. Como Clay observa 450, ela interfere em favor dos homens junto a outros
deuses, como é o caso dos navegantes que suplicam a Hécate e ao troante Treme-terra (v.441
εὔχονται δ' Ἑκάτῃ καὶ ἐρικτύπῳ Ἐννοσιγαίῳ), ou dos pastores, a quem a deusa, junto com
Hermes aumenta o rebanho de bois, de cabras e de ovelhas (v.444-446, σὺν Ἑρμῇ ληίδ' ἀέξειν·/
O quadro geral da passagem é a descrição de uma cidade em paz que funciona como
modelo divino a ser perseguido e este motivo é retomado na descrição da cidade justa, onde
todas as relações entre os homens estão em acordo com as trocas justas de Zeus.
449
Teog. 416-420. καὶ γὰρ νῦν, ὅτε πού τις ἐπιχθονίων ἀνθρώπων/ ἔρδων ἱερὰ καλὰ κατὰ νόμον
ἱλάσκηται,/ κικλήσκει Ἑκάτην· πολλή τέ οἱ ἔσπετο τιμὴ/ ῥεῖα μάλ', ᾧ πρόφρων γε θεὰ ὑποδέξεται
εὐχάς,/ καί τέ οἱ ὄλβον ὀπάζει, ἐπεὶ δύναμίς γε πάρεστιν.
Hoje ainda, se algum homem sobre a terra/ com belos sacrifícios conforme os ritos propicia/ e invoca
Hécate, muita honra o acompanha/ facilmente, a quem a Deusa propensa acolhe a prece/ e torna-o
opulento, porque ela tem força.
450
Cf. Clay (2003). pag. 138.
222
ἰθείας καὶ μή τι παρεκβαίνουσι δικαίου,
τοῖσι τέθηλε πόλις, λαοὶ δ’ ἀνθεῦσιν ἐν αὐτῇ·
Εἰρήνη δ’ ἀνὰ γῆν κουροτρόφος, οὐδέ ποτ’ αὐτοῖς
ἀργαλέον πόλεμον τεκμαίρεται εὐρύοπα Ζεύς·
οὐδέ ποτ’ ἰθυδίκῃσι μετ’ ἀνδράσι Λιμὸς ὀπηδεῖ 230
οὐδ’ Άτη, θαλίῃς δὲμεμηλότα ἔργα νέμονται.
τοῖσι φέρει μὲν γαῖα πολὺν βίον, οὔρεσι δὲ δρῦς
ἄκρη μέν τε φέρει βαλάνους, μέσση δὲ μελίσσας·
εἰροπόκοι δ’ ὄιες μαλλοῖς καταβεβρίθασι·
τίκτουσιν δὲ γυναῖκες ἐοικότα τέκνα γονεῦσι· 235
θάλλουσιν δ’ ἀγαθοῖσι διαμπερές· οὐδ’ ἐπὶ νηῶν
νίσονται, καρπὸν δὲ φέρει ζείδωρος ἄρουρα.
campo de cada deus, o que nos permite inferir que a deusa desempenhava a mesma função de
sacrifício aos deuses surgiu da decisão do que é ser deus e o que é ser homem 451. Desde então
452
os homens ficaram obrigados a reverenciar os deuses . Em Os trabalhos e os dias a
necessidade do trabalho é igualmente uma imposição dos deuses aos homens 453. O trabalho se
apresenta, ao fim desta narrativa, como algo penoso (v.91, χαλεποῖο πόνοιο), num claro
451
Teog. 535-536. καὶ γὰρ ὅτ' ἐκρίνοντο θεοὶ θνητοί τ' ἄνθρωποι /Μηκώνῃ,
quando deuses e homens mortais decidiam quem eram em Mecona
452
Cf. Teog. 556-557. ἐκ τοῦ δ' ἀθανάτοισιν ἐπὶ χθονὶ φῦλ' ἀνθρώπων /καίουσ' ὀστέα λευκὰ θυηέντων
ἐπὶ βωμῶν.
Por isso aos imortais sobre a terra a grei humana /queima os alvos ossos em altares turiais.
453
Trab. 42-46. Κρύψαντες γὰρ ἔχουσι θεοὶ βίον ἀνθρώποισιν. /ῥηιδίως γάρ κεν καὶ ἐπ' ἤματι
ἐργάσσαιο,/ὥστε σε κεἰς ἐνιαυτὸν ἔχειν καὶ ἀεργὸν ἐόντα· /αἶψά κε πηδάλιον μὲν ὑπὲρ καπνοῦ
καταθεῖο, /ἔργα βοῶν δ' ἀπόλοιτο καὶ ἡμιόνων ταλαεργῶν.
Os deuses mantêm oculto aos homens o sustento/senão, facilmente trabalharias por um dia/ e o tinhas
por um ano, mesmo ficando ocioso,/ e logo içavas o leme acima do fumo/ e os trabalhos de bois e
sofridas mulas seriam largados.
223
(ἐργάσσαιο) por um dia/ e o tinhas por um ano, mesmo ficando ocioso (ἀεργὸν)/(...)/ e os
Este contraste pode ser entendido como uma comparação entre a vida da raça de ferro e
a vida da raça de ouro, nos faz acatar a proposta de Carrière de que πόνος e ἔργον são duas
representações da mesma realidade 454. Daí o nosso entendimento de que a tarefa humana
ἔργον, como uma forma do homem reaproximar-se dos deuses, já que os homens da raça de
ouro viviam com deuses (Trab. 112, ὥστε θεοὶ δ' ἔζωον ἀκηδέα θυμὸν ἔχοντες.)
Cabe ainda observar que todas as palavras ligadas ao trabalho aqui presentes são
Nesta segunda descrição, o trabalho foi substituído pela dura fadiga. Em grego, ἔργα foi
454
Cf. Carrière (1987) pag. 525.
224
Tudo leva a crer que esta segunda descrição aborda a raça de ouro do ponto de vista da
raça de Hesíodo, a raça de ferro, de vida tão dura que ele preferia ter morrido antes ou nascido
depois 455, enquanto a primeira abordava a raça de ouro a partir do ponto de vista da própria
raça de ouro, que vivia como os deuses, isto é, livre de penas, fadigas e cansaços 456.
É importante repetir: o contraste entre ἔργον e πόνος nos parece capital: estando o ἔργον
reservado aos deuses e aos homens que lhes são próximos, enquanto o πόνος é a parte que
cabe ao comum dos mortais, a conversão do πόνος em ἔργον é também uma forma de culto e
A observação de Carrière ainda suscita outra: a palavra πόνος está ausente de todas as
exortações ao trabalho dirigidas a Perses. Isto não significa que Hesíodo queira iludir o irmão.
Na famosa passagem dos caminhos ele deixa claro que a missão exige esforço (ἱδρῶτα) e
455
Trab. 174-175. Μηκέτ' ἔπειτ' ὤφελλον ἐγὼ πέμπτοισι μετεῖναι /ἀνδράσιν, ἀλλ' ἢ πρόσθε θανεῖν ἢ
ἔπειτα γενέσθαι.
Quem dera eu não tivesse nascido na quinta raça,/ mas tivesse antes morrido, ou nascido mais tarde.
456
Trab. 110-114. Χρύσεον μὲν πρώτιστα γένος μερόπων ἀνθρώπων/ ἀθάνατοι ποίησαν Ὀλύμπια
δώματ' ἔχοντες./ οἳ μὲν ἐπὶ Κρόνου ἦσαν, ὅτ' οὐρανῷ ἐμβασίλευεν·/ ὥστε θεοὶ δ' ἔζωον ἀκηδέα θυμὸν
ἔχοντες / νόσφιν ἄτερ τε πόνων καὶ ὀιζύος,
Primeiro a raça de ouro, de homens falantes,/ criaram os imortais que habitam olímpias moradas./ Era
no tempo de Kronos, quando reinava no céu./ Viviam como deuses, tendo o ânimo isento de penas/
sem dor, nem cansaço.
225
Neste contexto, o poeta convida sempre seu irmão a encarar o trabalho como realização
e não como fadiga: “assim obra: trabalho sobre trabalho trabalha.” (Trab. 382, ὧδ' ἔρδειν,
καὶ ἔργον ἐπ' ἔργῳ ἐργάζεσθαι.)”, verso este que interpretamos como: “assim obra (ὧδ' ἔρδειν): a
força de realização (ἔργον) na própria obra (ἐπ' ἔργῳ) se realiza (ἐργάζεσθαι.)”. Em outras
palavras, Hesíodo quer dizer que o efeito mais importante do trabalho se dá em quem
O estudo da raça dos heróis mostrou que esta pode funcionar como uma ponte entre as
Zeus 457. Deste modo, o vetor que parte da raça de ferro e busca a reconciliação via raça dos
heróis aponta para a raça de ouro, mas na verdade, se este vetor é realmente uma
reconciliação com o divino, ele deve apontar para além do humano, reconduzindo o olhar para
a cidade de Hécate, que, em última análise é o modelo divino da cidade justa que Hesíodo
A passagem remete mais à cidade de Hécate do que à vida na era da raça de ouro
porque, a despeito de uma inegável semelhança com a vida paradisíaca desta raça, é a terra
arada quem dá frutos, o que implica na necessidade do esforço. Nesta passagem ainda, torna-
se evidente a visão que Hesíodo tem da submissão do homem - e da sua vida política – às leis
à vida vegetal, no verso 227, aqui traduzido da forma mais literal possível: “para estes, a
cidade germina e o povo floresce (τοῖσι τέθηλε πόλις, λαοὶ δ' ἀνθεῦσιν ἐν αὐτῇ· )”.
Deste cenário emerge o trabalho como noção moral. Numa de suas mais belas
457
Trab. 168-173.
226
ocioso como um zangão sem ferrão, da mesma raiva:
consomem o trabalho das abelhas, os lerdos, 305
e o comem. Que te empenhes em articular obras certas
e a abastecer a despensa na hora oportuna.
Pelo trabalho os homens são ricos de gado e de bens
e quem trabalha é muito mais caro aos deuses também
[e o mesmo serás para os homens: odeiam os lerdos.] 310
Trabalho não é vergonha. Vergonha é não trabalhar
se trabalhares, logo te inveja o preguiçoso
porque enriqueces. Sucesso e glória acompanham a riqueza.
Seja lá para quem for, trabalhar é melhor,
se desvias a mente dos bens do vizinho 315
para o trabalho e ganhas teu pão, como te aconselho.
τῷ δὲ θεοὶ νεμεσῶσι καὶ ἀνέρες ὅς κεν ἀεργὸς
ζώῃ, κηφήνεσσι κοθούροις εἴκελος ὀργήν,
οἵ τε μελισσάων κάματον τρύχουσιν ἀεργοὶ 305
ἔσθοντες· σοὶ δ' ἔργα φίλ' ἔστω μέτρια κοσμεῖν,
ὥς κέ τοι ὡραίου βιότου πλήθωσι καλιαί.
ἐξ ἔργων δ' ἄνδρες πολύμηλοί τ' ἀφνειοί τε,
καί τ' ἐργαζόμενος πολὺ φίλτερος ἀθανάτοισιν
[ἔσσεαι ἠδὲ βροτοῖς· μάλα γὰρ στυγέουσιν ἀεργούς]. 310
ἔργον δ' οὐδὲν ὄνειδος, ἀεργίη δέ τ' ὄνειδος.
εἰ δέ κεν ἐργάζῃ, τάχα σε ζηλώσει ἀεργὸς
πλουτεῦντα· πλούτῳ δ' ἀρετὴ καὶ κῦδος ὀπηδεῖ.
δαίμονι δ' οἷος ἔησθα, τὸ ἐργάζεσθαι ἄμεινον,
εἴ κεν ἀπ' ἀλλοτρίων κτεάνων ἀεσίφρονα θυμὸν 315
ἐς ἔργον τρέψας μελετᾷς βίου, ὥς σε κελεύω.
O verso 311 é a moral da história: “Trabalho não é vergonha, vergonha é não trabalhar.
(ἔργον δ' οὐδὲν ὄνειδος, ἀεργίη δέ τ' ὄνειδος. )”. Mas a passagem mostra também que o trabalho é
uma forma de culto aos deuses, na medida em que “quem trabalha é muito mais caro aos
deuses também (v.310, καί τ' ἐργαζόμενος πολὺ φίλτερος ἀθανάτοισιν ). Este aspecto tem sido
negligenciado por diversos estudiosos de Hesíodo, para quem o poeta camponês visava
apenas o sucesso e a glória.Tal leitura não leva em conta a exigência do trabalho como
227
condição necessária para ser caro aos deuses (φίλτερος ἀθανάτοισιν ). São estes os homens a
relação entre trabalho, moral e culto aos deuses. No que diz respeito à formação do caráter,
sendo a terra uma deusa, ensina também a justiça os que podem aprendê-la,
pois aos que lhe prestam os melhores serviços, dá em troca muitos bens 459.
Nesta perspectiva, trabalhar a terra significa acatar a necessidade do trabalho que foi
imposta pelos deuses aos homens desde o mito de Prometeu. Por outro lado,
Nestas passagens, Xenofonte parece fazer uma referência implícita a Hesíodo, por
abordar o tema do trabalho agrícola, ao qual o poeta era amplamente associado, associando o
Investigar Esperança é algo desesperador. Sobre este tema, os melhores filólogos, entre
eles Willamowitz, Nestle e Solmsen, confessaram sua impotência 462. West intrigou-se com o
458
Xenofonte. Econômico, VI, 10.
459
Idem, ibidem, V, 12.
Idem, ibidem, XIX, 17.
461
O uso verbal que Hesíodo faz de esperança (ἔολπα, espero) leva-me a pensar que não há outra
tradução possível para o termo ἐλπίς.
228
paradoxo provocado pela saída dos males de dentro do pote e a permanência de Esperança em
seu interior, levantando a seguinte questão: “O que significa isto, que os males estão entre os
homens porque saíram do pote, enquanto Esperança está entre os homens porque ficou
dentro dele?”. Outra pergunta dá a entender que, segundo o autor, a Esperança é vista por
Hesíodo como um bem: “O que Esperança estava fazendo dentro do pote se este é um pote de
males?”. Por fim, West expressa abertamente seu incômodo: “É ilógico fazer o mesmo pote
estudiosos que se dedicaram ao tema. Assim sendo, pretendo elencar as posições de alguns
dos estudiosos que se debruçaram sobre este problema e, longe de pretender resolvê-lo de
uma vez por todas, pretendemos apenas propor uma leitura que possa ao menos amenizar este
desconforto.
de West. O motivo deste é o seguinte: ver um mesmo pote servindo a propósitos distintos ao
mesmo tempo agride a coerência. Ora, Hesíodo operava em outra modalidade discursiva, a
poesia, onde a necessidade de coerência não impera. Talvez seja interessante – na medida em
que formos capazes de fazê-lo – descartá-lo por um tempo, se é que queremos nos aproximar
do pensamento do poeta. Isto não significa andar às cegas. Partimos então do texto
tal como consta em Os trabalhos e os dias, para relacioná-lo com as demais ocorrências -
um todo, para enfim estabelecer uma discussão com alguns estudiosos que se debruçaram
sobre o problema. Além de West, para quem, como já vimos, a Esperança é um bem, Vernant
462
Carrière (1987) pág. 590.
463
West (1978) pág.169-170.
229
e Clay , que a vêm como uma ilusão, Córdova, para quem é um mal e Carrière, que a vê como
Isto posto, passemos à apresentação dos trechos do poema onde figura Esperança. Esta
Em seguida, ao fim de um lamento motivado pela injustiça que ele vê campear ao seu
464
Para um levantamento mais amplo sobre a bibliografia atinente ao caso, ver Carrière (1987) pág.
590-602 e Clay (2003) pág 103, nota 7.
230
Agora eu mesmo justo entre os homens não quereria ser 270
e nem meu filho, porque é um mal homem justo ser
quando se sabe que maior justiça terá o mais injusto
mas espero isto não deixar cumprir-se o tramante Zeus.
νῦν δὴ ἐγὼ μήτ' αὐτὸς ἐν ἀνθρώποισι δίκαιος 270
εἴην μήτ' ἐμὸς υἱός, ἐπεὶ κακὸν ἄνδρα δίκαιον
ἔμμεναι, εἰ μείζω γε δίκην ἀδικώτερος ἕξει.
ἀλλὰ τά γ' οὔπω ἔολπα τελεῖν Δία μητιόεντα.
Outra ocorrência de forma verbal ocorre nos versos 475-476, estimulando Perses ao
trabalho:
Por fim, numa ocorrência dupla, o substantivo retorna nos versos 498-501:
surgimento no poema e serão examinadas nesta ordem. Neste exame, pretendemos também
231
Assim sendo, Esperança faz sua primeira aparição no poema no final de um mito que
começa com o desaparecimento do alimento e termina com a dispersão dos males pelo
mundo. Nesta passagem, o poeta põe quatro elementos em relação: a mulher, o pote, os males
soltos no mundo e Esperança. Ainda que nem todas as relações entre estes elementos venham
a ser efetivamente empregadas na presente investigação, elas seguem listadas, sem a menor
pretensão de ser uma lista exaustiva, na esperança de poder contribuir para futuros estudos.
Segundo Clay, a mulher e o pote podem ser vistos como duplos um do outro 465. Ambos
são feitos de argila, ambos são depósitos que guardam a perpetuação da vida e, enquanto
aquela foi apresentada na Teogonia como um belo mal 466, este continha os males que se
Existe, por conseguinte, uma relação entre a mulher e os males: no plano de Zeus, ela
foi concebida como um mal que parece um bem 467. Além do mais, ela recebeu sua voz de
verso 273, “mas espero isto não deixar cumprir-se o tramante Zeus” (ἀλλὰ τά γ' οὔπω ἔολπα
τελεῖν Δία μητιόεντα)” e dos versos 475-6, “espero que/ te alegres juntando a colheita dentro
de casa” (καί σε ἔολπα/ γηθήσειν βιότου αἰρεύμενον ἔνδον ἐόντος)”, relacionam-se, de alguma
465
Clay (2004) pág. 124.
466
Teog. 585. αὐτὰρ ἐπεὶ δὴ τεῦξε καλὸν κακὸν ἀντ' ἀγαθοῖο,
Após ter criado belo o mal em vez de um bem.
467
Trab. 57-58. τοῖς δ' ἐγὼ ἀντὶ πυρὸς δώσω κακόν, ᾧ κεν ἅπαντες /τέρπωνται κατὰ θυμὸν ἑὸν κακὸν
ἀμφαγαπῶντες.
a eles,em troca do fogo, darei um mal com o qual todos/ se alegrarão, cumulando de agrados seu
próprio mal.
468
Trab. 79-80. τεῦξε Διὸς βουλῇσι βαρυκτύπου· ἐν δ' ἄρα φωνὴν/ θῆκε θεῶν κῆρυξ, ὀνόμηνε δὲ
τήνδε γυναῖκα
por vontade de Zeus trovejante. Voz/ acrescenta o arauto dos deuses e nomeia a mulher
469
Trab. 104. σιγῇ, ἐπεὶ φωνὴν ἐξείλετο μητίετα Ζεύς.
em silêncio, pois da voz lhes privou Zeus pensante.
232
O pote e os males guardam entre si uma relação de continente e conteúdo que foi
conteúdo. O que significa Elpís dentro do pote? Se for mantida a relação do pote com os
males, Esperança está fora do mundo, pois o pote isolava os males do mundo:
homem algum controle sobre ela, como sugerem os versos 368-369? “Farta-te do pote no
início e no fim./ Sê comedido no meio. Poupar o fundo é inútil”. (Ἀρχομένου δὲ πίθου καὶ
λήγοντος κορέσασθαι,/ μεσσόθι φείδεσθαι· δειλὴ δ' ἐν πυθμένι φειδώ.) No caso da Esperança, o
poeta lança mão de dois usos distintos da mesma coisa, o pote, em momentos diferentes.
Enquanto fechado, isolava todo o seu conteúdo do mundo, males e Esperança. Depois de
aberto, coloca certamente Esperança em oposição aos males, mas será que isola Esperança do
algo que está dentro de cada homem nascido de mulher. “Só os homens esperam”, diz
233
Clay 470. Estando dentro de cada homem, Esperança parece ser, de fato, algo que está sujeito a
algum controle.
melhor entendido a partir de uma observação de Vernant. Este diz que Esperança deve ser
entendida a partir da visão de mundo de Hesíodo e que este não era um pessimista radical. A
vida, para o poeta é uma mistura de bens e de males, conforme atestam os versos 607 de
Teogonia e 179 de Os trabalhos e os dias 471. A partir daí, tendência do homem é perseguir – e
É preciso, antes de tudo, observar quais são os males contidos no pote de Pandora. De
acordo com os versos 91-93, estes são a fadiga, as doenças e a velhice. As duas últimas são
físicas e, ligadas à nossa condição de mortais, inevitáveis. Já a fadiga – πόνος – foi imposta
pelos deuses como condição de sobrevivência. Todos são inevitáveis e estão no mundo, em
As doenças que trazem velhice e a morte são a própria expressão da condição dos
homens de mortais. São incontornáveis. Assim sendo, se Esperança opõe-se aos males, opõe-
se a πόνος. Este sim é mais sujeito a algum controle por parte do homem.
Quanto a este, o homem tem três atitudes possíveis: ou sucumbe ao peso da fadiga, ou
transforma-o em ἔργον, como vimos acima, ou tenta evitá-lo, como discutiremos mais
adiante.
que ele mesmo diz que espera. Como já vimos, no verso 273 ele diz: “mas espero isto não
deixar cumprir-se o tramante Zeus,”. Este verso ocorre ao final de um violento desabafo:
470
Clay (2003) pág. 103.
471
Vernant (1979) pág. 126.
234
quando se sabe que maior justiça terá o mais injusto,
mas espero isto não deixar cumprir-se o tramante Zeus,
νῦν δὴ ἐγὼ μήτ' αὐτὸς ἐν ἀνθρώποισι δίκαιος 270
poeta acaba de explicar aos reis de seu tempo o modo de agir de Díke, nos versos 258-263:
O comportamento destes reis é bastante semelhante aos reis da cidade injusta que ele
só homem mau que maquina vilezas.” (v.240-241, ξύμπασα πόλις κακοῦ ἀνδρὸς ἀπηύρα/ ὅστις
importância para o poeta. Tanto é assim que vinte versos mais adiante ele retorna ao ponto,
especificando quem é este homem mau que maquina vilezas : “reis que tramam vilezas/ e
deturpam transações com palavras esquivas” (v.261-262, βασιλέων οἳ λυγρὰ νοεῦντες/ ἄλλῃ
acrescentar que esta lei não é somente punitiva. Zeus também recompensa a cidade justa, o
que confirma a interpretação de Vernant, que diz que para o poeta, a vida é uma mistura de
males e de bens:
A estes jamais
236
Já nos versos 475-476, onde Hesíodo espera que o irmão se alegre juntando a colheita
dentro de casa (καί σε ἔολπα/ γηθήσειν βιότου αἰρεύμενον ἔνδον ἐόντος), a situação é outra.
Examinado o contexto, vê-se que dez versos antes, Hesíodo aconselha ao irmão:
garantia do sucesso dos acontecimentos. Dito de outro modo, Zeus é o princípio fudamental
do pensamento do poeta, ao qual ele quer submeter tanto os reis quanto Perses, que podem ser
entendidos como tipos, personagens que são apresentados à audiência como exemplos
Esperança como noção moral, na medida em que é qualificada como vazia - κενέην - e
acompanha o homem que não trabalha e descansa no galpão. A escolha do termo é perfeita,
pois alerta que esta não-ação - ἀεργός 472 - leva ao vazio, à penúria, que mais tarde poderá
suscitar neste indolente atitudes contrárias à lei de Zeus, seja a força do braço, seja a arenga
na ágora.
bem, do qual West parece participar. Quando acompanha o homem indolente ela torna-se
vazia, numa avaliação que é nitidamente negativa. Mas Esperança também não é um mal
absoluto. Esta possibilidade de avaliação positiva ou negativa justifica a sua leitura como
noção moral.
Vernant e Clay, ainda que por caminhos diferentes, terminam encarando Esperança
como uma ilusão e recorrem aos mesmos versos de Ésquilo para dar voz ao seu
entendimento 473. Vernant diz que a mistura de bens e de males no mundo induz os homens a
imortais e estarem isentos dos males, não têm nenhuma necessidade de esperar, enquanto as
feras, por ignorarem a inexorabilidade da morte, também não esperam 474. Clay diz que
Esperança seduz e promete, mas raramente entrega, levando os homens à ilusão. Com isso,
previsão da própria morte, preocupação absolutamente ausente em Hesíodo. Ele não está
472
Observar que ἀεργός só tem valor positivo na raça de ouro.
473
Prometeu acorrentado, 248-250. θνητούς γ' ἔπαυσα μὴ προδέρκεσθαι μόρον./ τὸ ποῖον εὑρὼν
τῆσδε φάρμακον νόσου;/ τυφλὰς ἐν αὐτοῖς ἐλπίδας κατῴκισα.
Aos mortais impedi prever a morte/ Curaste esta moléstia com que droga?/ Dei-lhes cega esperança
como dote. (Tradução nossa).
474
Cf. Vernant (1974) pág.193.
475
Cf. Clay (2004) pág. 103.
238
preocupado nem com a morte individual nem com a vida pós-morte da raça de ferro. Vimos
acima que nem mesmo a possibilidade do fim da raça de ferro pode ser levada ao pé da letra,
devendo antes ser entendida como recurso retórico. É certo que há uma esperança vazia que
pode ser entendida como ilusória, mas esta ilusão é de outra ordem, ligada ao trabalho, ligada
Para este, Esperança está mais enraizada do que aprisionada entre os homens. Escolhe-se não
trabalhar, mas não se pode escolher não esperar 476. Como presença persistente no recôndito
mais íntimo da alma humana, Esperança é o sinal de que Zeus não abandonou por completo o
homem. Por isso, prossegue, Esperança é sempre a espera de um bem. É claro que o homem é
capaz de prever o mal, mas prever é algo distinto de esperar. Prever é resultado de aplicação
natural para um bem. Logo, o verdadeiro problema de Esperança é moral e metafísico. Sua
realização depende de dois tipos de fatores: a ação humana e elementos imponderáveis, onde
Creio que ainda é possível ensaiar outra abordagem ao problema, ainda que esta leve à
mesma conclusão de Carrière. Até aqui, estivemos todos abordando a questão por um prisma
demasiado conceitual e talvez seja interessante examinarmos o aspecto concreto que a poesia
de Hesíodo comporta, o que, espero, permitirá uma intuição mais ampla de sua arquitetura.
Para tanto, é importante ter sempre em mente que Hesíodo fala por hipóstases para podermos
Esperança não aparece na Teogonia. Não é uma descendente da Noite nem nenhum
outro tipo de deusa. Trata-se de uma personificação rarefeita, tal como Díke, Aidôs, Nêmesis
476
Neste sentido, Esperança está mais para o que Aristóteles consideraria como uma faculdade.
477
Cf. Carrière (1987) pág. 630-637.
239
e os daímones da raça de ouro, que Hesíodo nos apresenta no preciso momento em que ele
nos humaniza ao máximo, ao dizer que precisamos trabalhar para sobreviver como indivíduos
e nos reproduzir para sobreviver como espécie. No cerne de toda esta apresentação está
cada detalhe, perante nossos olhos e ouvidos para que possamos tocá-la, cheirá-la, sentir-lhe o
Este máximo de humanização – nem deus nem besta – é um desígnio de Zeus, figura
central e, por que não dizer, princípio e conceito orientador de Hesíodo. Além de Pandora,
Zeus também deu aos homens a Boa Luta – “fincou-a o Cronida altirregente que mora no
éter/ nas raízes da terra; é muito melhor para os homens 478.” e Justiça – “aos homens, sim,
deu a Justiça, muito mais nobre. 479”. Zeus está por trás de tudo em Hesíodo.
Esperança relaciona-se também com Deméter: “Pede a Zeus, rei da terra, e à sagrada
Deméter/ que, ao fim, o dourado grão de Deméter seja farto 480”. Em primeiro lugar, é preciso
observar que pedir é a expressão verbal de Esperança: quem pede, espera algo. Deméter é a
deusa das forças vivas – e por extensão, doadoras de vida – da terra. A precedência de Zeus
está sempre assegurada: foi na terra que Zeus fincou a Boa Luta para os homens e é na terra
que Deméter em pessoa está encarregada de retribuir aos homens o fruto do trabalho. Clay 481
observa que, das sete aparições do nome da deusa no poema, quatro figuram dentro da
fórmula “sagrado grão de Deméter”. O alimento assegurado é a imagem que o poeta usa
como expressão do sucesso, não só quando ele diz a Perses, nos versos 475-476 que espera
que ele se alegre juntando a colheita dentro de casa, como também, no início do poema,
478
Trab. 18-19. θῆκε δέ μιν Κρονίδης ὑψίζυγος, αἰθέρι ναίων,/ γαίης [τ'] ἐν ῥίζῃσι καὶ ἀνδράσι
πολλὸν ἀμείνω·
479
Trab. 279. ἀνθρώποισι δ' ἔδωκε δίκην, ἣ πολλὸν ἀρίστη
480
Trab. 465-466. Εὔχεσθαι δὲ Διὶ χθονίῳ Δημήτερί θ' ἁγνῇ/ ἐκτελέα βρίθειν Δημήτερος ἱερὸν ἀκτήν,
481
Cf. Clay (2004) pág. 143.
240
adverte que “o tempo é curto para as arengas da ágora para quem ainda não proveu o
Mas Esperança não se relaciona com Prometeu. Não no mito de Hesíodo. Afinal de
contas, se a vontade de Prometeu tivesse prevalecido, Epimeteu não teria recebido Pandora
para dá-la aos homens e, por conseguinte, não haveria mulher para destampar o pote e
Epimeteu 85
οὐδ' Ἐπιμηθεὺς 85
Com isso, fica demonstrado, por outra via, que a aproximação entre Esperança e Prometeu
Hesíodo não é nem um bem nem um mal, nem tampouco é a ilusão que nos protege da
angústia em face à morte, mas sim, e sempre, esperança de um bem. Neste sentido, ela é ao
mesmo tempo o princípio motor e a finalidade da ação. Ela parece estar ligada à capacidade
humana de se propor um fim e articular as ações necessárias para a sua consecução, conforme
482
Trab. 30-31. ὤρη γάρ τ' ὀλίγη πέλεται νεικέων τ' ἀγορέων τε/ ὡραῖος, τὸν γαῖα φέρει, Δημήτερος
ἀκτήν.
241
Οὗτος μὲν πανάριστος, ὃς αὐτῷ πάντα νοήσει
φρασσάμενος τά κ' ἔπειτα καὶ ἐς τέλος ᾖσιν ἀμείνω.
Dito de outro modo, Esperança é uma atividade dianoética que, por ser intrinsecamente
ligada à ação, é passível de uma receber uma avaliação moral, como é o caso do homem da
esperança vazia do verso 498, o qual pode muito bem ser associado ao homem inútil dos
versos 296-297:
4.5 Aidôs
claramente o indivíduo em contato com o outro, quer dizer, são noções que preparam para a
vida na pólis.
Aidôs/Pudor é uma noção que apresenta inúmeros problemas quando se a tenta definir,
mas, por outro lado, é também uma excelente oportunidade para acompanhar mais de perto a
Devido às enormes dificuldades encontradas para traduzir o termo, optei por repeti-lo ao
lado de cada tradução adotada, fazendo o mesmo com os termos com os quais Aidôs se
relaciona, com o intuito de assinalar a multivocidade da palavra grega e tentar, com isto,
sem respeitar a ordem dos versos, em respeito à deusa. De fato, sempre que se fala de Aidôs
242
em Hesíodo, o que nos vem à mente é a imagem da deusa prestes a abandonar o convívio dos
mortais:
radicalização extrema da hýbris. Aqui estamos num contexto puramente retórico, cujo
O tema do afastamento de Aidôs retorna mais de 120 versos adiante, nos versos 321-
325:
Mas quem foge aqui já não é a deusa Aidôs. Trata-se de algo distinto, que será
Por fim, mas não em ordem de ocorrência, e sim por serem os mais problemáticos, os
versos 317-319:
Timidez vai com a pobreza, a audácia (θάρσος) vai junto com a riqueza.
Nestas duas últimas ocorrências, é Aidôs que está no centro das atenções. É aqui que
Desta forma, vemos aqui propostas quatro traduções diferentes para Aidôs: a deusa
Pudor, no verso 200 e os sentimentos 483 de pudor, no verso 192; escrúpulo, em 325 e timidez
nos versos 317-319. É claro que o que importa não é encontrar uma tradução definitiva para o
termo grego, mas antes mostrar, o mais possível, seu amplo espectro para melhor
compreendê-lo. Por outro lado, é importante assinalar que em cada uma destas ocorrências,
Αἰδὼς mantém uma relação íntima com algum outro termo. A deusa Pudor (Αἰδὼς) vem
483
Na Ética a Nicômaco 1128 b10-26, Aristóteles afirma que Αἰδὼς não é uma virtude, e sim um
sentimento e a toma mais no sentido de “vergonha”, considerando-a como ambivalente. Se por um
lado este sentimento convém ao jovem, porque este age frequentemente premido por suas paixões e a
vergonha atua nele como um freio, por outro, este sentimento não é característico do homem bom,
pois se a vergonha anda junto com as más ações, o homem bom jamais cometerá ações más
voluntariamente. Como veremos, Hesíodo faz usos mais nuançados deste sentimento.
244
acompanhada da deusa Partilha 484 (Νέμεσις) no verso 200; pudor, como sentimento, relaciona-
se por oposição ao homem desmedido (ὕβριν) do verso 191; escrúpulo opõe-se a perfídia
(ἀναιδείη) no verso 325; e, por fim, a timidez, dos versos 317-319, além de ser qualificada
como “não boa” no verso 317, opõe-se a audácia (θάρσος), no verso 319. O exame das
relações que são estabelecidas com Aidôs pode nos ajudar a avançar na sua compreensão.
verdade, é uma das quatro novas deusas introduzidas pelo poeta em Os trabalhos e os dias,
sendo as demais a Boa Éris 486, Díke e a má Fama 487. Ainda que seja justo perguntar por que
Hesíodo elevou Aidôs ao status de deusa, na prática, só podemos especular a respeito, já que,
ao contrário das outras duas, o poeta não apresenta nenhuma justificativa para esta nova
deusa.
Talvez ele entenda que, tal qual uma deusa, ela é uma força incontornável entre os
mortais. Vejamos: os homens louvam a [má] Éris por imposição dos mortais 488; Já a Boa Éris
484
Nêmesis, embora seja visivelmente uma noção moral, não será estudada aqui porque só existem
duas menções de Hesíodo a ela: esta e o verso 223 da Teogonia. Com isso, não dispomos de material
minimamente suficiente para tentar aprofundar a compreensão desta noção no sistema de pensamento
do poeta.
485
Nêmesis é apresentada no catálogo dos descendentes da Noite no verso 223 da Teogonia. Embora a
linhagem da Noite seja, na maioria das vezes, vista sob uma avaliação negativa, em Os Trabalhos e os
Dias esta deusa é nítidamente positiva.
486
Cf. Trab. 17-26. τὴν δ' ἑτέρην προτέρην μὲν ἐγείνατο Νὺξ ἐρεβεννή,/ θῆκε δέ μιν Κρονίδης
ὑψίζυγος, αἰθέρι ναίων,/ γαίης [τ'] ἐν ῥίζῃσι καὶ ἀνδράσι πολλὸν ἀμείνω·/ ἥ τε καὶ ἀπάλαμόν περ
ὁμῶς ἐπὶ ἔργον ἐγείρει·/ εἰς ἕτερον γάρ τίς τε ἴδεν ἔργοιο χατίζων/ πλούσιον, ὃς σπεύδει μὲν ἀρόμεναι
ἠδὲ φυτεύειν/ οἶκόν τ' εὖ θέσθαι· ζηλοῖ δέ τε γείτονα γείτων/ εἰς ἄφενος σπεύδοντ'· ἀγαθὴ δ' Ἔρις ἥδε
βροτοῖσιν. / καὶ κεραμεὺς κεραμεῖ κοτέει καὶ τέκτονι τέκτων,/ καὶ πτωχὸς πτωχῷ φθονέει καὶ ἀοιδὸς
ἀοιδῷ.
Uma traz a guerra e a discórdia funesta,/ cruel. Nenhum mortal a ama, mas forçados/ pela vontade dos
imortais, honram a Luta opressora./ A outra, gerou-a primeiro Noite tenebrosa./ Fincou-a o Cronida
altirregente que mora no éter/ nas raízes da terra; é muito melhor para os homens./ Esta desperta ao
trabalho até o indolente.
487
Cf. Trab. 760-764. δεινὴν δὲ βροτῶν ὑπαλεύεο φήμην·/ φήμη γάρ τε κακὴ πέλεται κούφη μὲν
ἀεῖραι/ ῥεῖα μάλ', ἀργαλέη δὲ φέρειν, χαλεπὴ δ' ἀποθέσθαι./ φήμη δ' οὔ τις πάμπαν ἀπόλλυται, ἥντινα
πολλοὶ/ λαοὶ φημίξουσι· θεός νύ τίς ἐστι καὶ αὐτή.
evita a má fama dos mortais./ Má fama é coisa ligeira, muito fácil de erguer,/ mas é dura de suportar e
difícil de se livrar./ Ninguém fica livre de todo da fama que um dia/ o povo espalhou. Por certo,
também ela é um deus.
488
Cf. Trab. 15-16. σχετλίη· οὔ τις τήν γε φιλεῖ βροτός, ἀλλ' ὑπ' ἀνάγκης/ ἀθανάτων βουλῇσιν Ἔριν
τιμῶσι βαρεῖαν.
245
foi fincada nas raízes da terra por Zeus e é muito melhor para os homens 489; Díke foi dada aos
homens para que eles não se devorem uns aos outros como as bestas; Da má Fama, ninguém
fica livre, uma vez ela tenha sido espalhada pelo povo 490; A partida de Aidôs e Nêmesis para
o Olimpo implica o fim da possibilidade de vida humana. Só restarão pesares aos homens
mortais e contra o mal, não há defesa 491. Resultado: Zeus findará com esta raça de homens
falantes 492. Em outras palavras, Aidôs e Nêmesis são forças morais essenciais para a
Para investigar as relações entre Aidôs e o homem desmedido (ὕβριν) nos versos 191 a
193, assim como entre Aidôs e perfídia (ἀναιδείη) nos versos 321-324, seguimos a observação
de Carrière, segundo a qual os dois termos relacionados a aidôs têm significado amplo e
muito póximos entre si, podendo, portanto, os dois termos serem tomados como
equivalentes 493, com a ressalva de que o primeiro é um adjetivo e que, portanto, refere a um
homem concreto, enquanto o segundo, por ser um substantivo abstrato, já representa uma
noção moral, no caso a Hýbris. Neste ponto, Carrière assinala uma importante diferença entre
Homero e Hesíodo. Enquanto o primeiro fala sempre de casos concretos 494, o segundo
circunscreve um campo de ação. O que está em jogo em Hesíodo é um gênero que comporta
diferentes espécies de atos: mentira, roubo, assalto, enfim, uma lista que corresponde a um
código moral válido para todos, onde nenhum caso concreto é citado.
Examinando os contextos onde estes versos estão inseridos, encontramos, nos versos
489
Cf. Trab. 18-19. θῆκε δέ μιν Κρονίδης ὑψίζυγος, αἰθέρι ναίων,/ γαίης [τ'] ἐν ῥίζῃσι καὶ ἀνδράσι
πολλὸν ἀμείνω·
490
Cf. Trab. 763-764. φήμη δ' οὔ τις πάμπαν ἀπόλλυται, ἥντινα πολλοὶ/ λαοὶ φημίξουσι· θεός νύ τίς
ἐστι καὶ αὐτή.
491
Cf. Trab. 201. θνητοῖς ἀνθρώποισι· κακοῦ δ' οὐκ ἔσσεται ἀλκή.
492
Cf. Trab. 180. Ζεὺς δ' ὀλέσει καὶ τοῦτο γένος μερόπων ἀνθρώπων.
493
Cf. Carrière (1987) pag. 796.
494
Cf. Il. 1.149,158; 9.372. e Od. 22.424; 17.449.
246
nem hóspede ao hospedeiro, nem camarada ao companheiro,
nem o irmão for mais amigo, como sempre tem sido.
Virá, tão logo envelheçam, o desrespeito dos filhos, 185
lançando censuras com duras palavras.
Bens não são roubados; doados por deus são mais nobres,320
pois se alguém, pela força do braço, alcança a riqueza,
495
Ainda que este verso seja considerado duvidoso por alguns, prefiro recebê-lo como o faz
Jacqueline de Romilly a respeito dos grandes textos fundadores da cultura grega, cuja forma definitiva
foi sendo conquistada aos poucos e mesmo hoje ainda é objeto de disputas: “encontramos nestes
textos muitos traços de possíveis alterações, ou mesmo de adições, mais ou menos em conformidade
com o restante da obra. (...). Estas ocorrências são indícios do interesse que estas obras suscitaram,
mas é preciso dizer: jamais estas supostas manipulações abalaram a soberba arquitetura destes textos.
Elas conseguiram, talvez, reforçá-las.” Romilly (1997) pág. 211.
247
Sobretudo, há, de Homero para Hesíodo, um deslocamento do campo da guerra para o
campo da defesa da propriedade. O respeito ao outro é manifestado pelo respeito aos bens do
outro, na medida em que os bens devem ser conquistados de uma maneira determinada: “Bens
não devem ser roubados, são doados por um deus como fruto do trabalho 496.”
Os versos 317-319, todos começando por Aidôs são, talvez, os mais problemáticos. Foi
Timidez vai com a pobreza, a audácia (θάρσος) vai junto com a riqueza.
existem duas Aidôs, uma boa e uma má, tal como no caso das Lutas, ou apenas uma; em
segundo, é preciso explicar por que ela é má para o homem necessitado e qual a sua relação
com a pobreza;
Em terceiro lugar, o primeiro verso desta passagem, - αἰδὼς δ' οὐκ ἀγαθὴ κεχρημένον
ἄνδρα κομίζει - é idêntico ao verso 500 de Os Trabalhos e os Dias - ἐλπὶς δ' οὐκ ἀγαθὴ
κεχρημένον ἄνδρα κομίζει, salvo que neste é a Esperança quem não é boa para o homem
necessitado; e também idêntico ao verso 17.347 da Odisséia, αἰδὼς δ' οὐκ ἀγαθὴ κεχρημένῳ
ἀνδρὶ παρεῖναι
497
, havendo, neste caso, uma substituição de verbo, figurando, em Hesíodo,
κομίζει no lugar de παρεῖναι. A partir disto, é lícito perguntar também se há algum tipo de
ligação entre Aidôs e Esperança. Por outro lado, a partir desta semelhança com o verso
homérico, também parece interessante investigar o significado de Aidôs desde o seu emprego
496
Cf. Carrière (1987) pág. 803-805.
497
Od. 17.347. Por pudor, não deve conter-se um homem desprovido.
248
naquele poema, na esperança de que esta investigação nos ajude a esclarecer a noção
hesiódica.
Por fim, uma vez que ousadia (θάρσος) figura em oposição a Aidôs no verso 319, uma
investigação sobre θάρσος pode nos ajudar a compreender o que está em jogo. Também aqui,
gregos, uma manifestação pública que envolve a todos, sejam detentores de autoridade, como
reis ou guerreiros; sejam protegidos pelos deuses, como sacerdotes e aêdos, membros da
mesmo os mortos.
Entretanto, a sua manifestação varia segundo o status de cada um. Aos superiores, deve-
afeição. E aos necessitados, doçura, proteção e piedade, piedade esta que faltou a Aquiles, a
respeito do cadáver de Heitor 499, causando comoção até mesmo entre os deuses.
exigem respeito, não só ao outro, como também à propriedade do outro; a guerra exige a
500
coragem e o sentimento de honra, que impede a fuga, o abandono do companheiro . Desta
forma, Aidôs parece resumir em uma palavra um conjunto não codificado 501 de normas de
comportamento, mas antes introjetado no indivíduo sob a forma de um sentimento – por isto o
498
Cf. Carrière (1987). pag 833.
499
Il.24.44-45. ὣς Ἀχιλεὺς ἔλεον μὲν ἀπώλεσεν, οὐδέ οἱ αἰδὼς/ γίγνεται, ἥ τ' ἄνδρας μέγα σίνεται ἠδ'
ὀνίνησι. (A piedade, Aquiles aboliu-a/ e a reverência (Aidôs), fausta ou funesta aos mortais.). O verso
45 da Ilíada é igual ao 318 de Os Trabalhos e os dias: αἰδώς, ἥ τ' ἄνδρας μέγα σίνεται ἠδ' ὀνίνησιν·
500
Cf. Carrière (1987) pág. 794-795.
501
No domínio da guerra, hoje em dia, a Convenção de Genebra nada mais é do que a codificação de
Aidôs no âmbito da guerra.
249
termo comporta tantas traduções - cuja transgressão se dá por ações que são percebidas pela
a aplicação de sanções.
pertinentes.
O verso é praticamente igual ao verso 317 de Os trabalhos e os dias: αἰδὼς δ' οὐκ ἀγαθὴ
κεχρημένον ἄνδρα κομίζει, mas Hesíodo substitui aqui o verbo παρεῖναι por κομίζει, sem que se
produza alteração significativa no sentido: em ambos os casos, Aidôs determina que inferiores
respeitem superiores, a ponto de quase impedi-los de exercer seu ofício, mendigar 502.
Na conversa entre Nestor e Telêmaco, por ocasião da visita deste àquele, em Pilos, para
502
Ainda que nos pareça de certa forma estranho encarar a mendicância como um ofício, parece que
Hesíodo a considerava como tal. A emulação provocada pela boa Luta nos versos 24 a 26 faz com que
oleiro provoque oleiro, carpinteiro a carpinteiro, que mendigo se meça a mendigo e aêdo a aêdo. A
aproximação entre mendigo e aêdo no mesmo verso não deve ser vista como obra do acaso. Afinal,
eles trabalham no mesmo campo, isto é, no domínio da palavra.
250
τοὔνεκα γὰρ καὶ πόντον ἐπέπλως, ὄφρα πύθηαι 15
πατρός, ὅπου κύθε γαῖα καὶ ὅν τινα πότμον ἐπέσπεν.
Nestor exorta Telêmaco a não ter Aidôs. Telêmaco é aqui um jovem em plena transição
para a fase adulta, que se sente impossibilitado, por causa de sua Aidôs, de dar este salto e de
assumir a posição que lhe é de direito, como filho de quem é. Para resolver o impasse que já
se prolonga, em 3.75-76, Atena instila a ousadia – θάρσος - que faltava ao jovem: “... ao que
Os casos aqui descritos falam da Aidôs de pessoas que se encontram numa situação de
Falam também da necessidade de superar este sentimento que, neste momento, impede tanto o
jovem quanto o mendigo de agirem da forma que lhes é requerida. Na medida em que este
sentimento impede a ação, ele é prejudicial, podendo receber a qualificação de não-bom (οὐκ
ἀγαθή), ou seja, mau. A mola propulsora da superação deste sentimento é a ousadia (θάρσος).
Desta forma, respondendo a uma das questões propostas a respeito de Aidôs, se ela era
uma ou duas, entendemos que se trata do mesmo sentimento cujo efeito se desloca segundo a
oportunidade podendo ora ser bom, ora mau. Por isso Hesíodo cantou o aparentemente
lacônico verso 318, “Aidôs que muito atrapalha ou ajuda.” (αἰδώς, ἥ τ' ἄνδρας μέγα σίνεται ἠδ'
ὀνίνησιν·)
O jovem e o mendigo encontram-se numa posição de inferioridade social que pode ser
dias. A Aidôs do homem necessitado é igualmente má pelo mesmo motivo: impede a ação.
A relação com a Esperança, no verso 500 de Os trabalhos e os dias, parece ficar clara na
medida em que esta má Esperança - οὐκ ἀγαθή - é má na medida em está ligada ao homem
Od.75-76. τὸν δ' αὖ Τηλέμαχος πεπνυμένος ἀντίον ηὔδα,/ θαρσήσας· αὐτὴ γὰρ ἐνὶ φρεσὶ θάρσος
503
Ἀθήνη
251
que não age. Tudo aquilo que inibe a ação deve ser eliminado. O primeiro mandamento de
Hesíodo é agir.
Não parece restar dúvida sobre qual é a ação que se impõe ao homem necessitado:
Resta ainda investigar o verso 319, αἰδώς τοι πρὸς ἀνολβίῃ, θάρσος δὲ πρὸς ὄλβῳ, o mais
problemático de todos: Timidez vai com a pobreza, audácia vai junto à riqueza.
Carrière retém, de sua investigação sobre a ocorrência dos termos na Odisséia, a idéia
geral de que os valores sociais destas noções variam de acordo com o status do observador,
Desta forma, do ponto de vista dos ricos, a aidôs dos inferiores é percebida como respeito, o
que é positivo, enquanto thársos é percebido como ousadia ou insolência, o que é negativo
(fazer nota aqui com Od.17.449.). Por outro lado, do ponto de vista dos hierarquicamente
inferiores – Telêmaco aí incluído, enquanto jovem perante o ancião Nestor – aidôs assume o
autoconfiança que impede o inferior de se paralisar perante o superior, tendo então um valor
positivo 504.
transfere para o segundo a rigidez social presente no primeiro: “A boa aidôs pressupõe um
504
Cf. Carrière (1987) pág. 818.
505
Carrière (1987) pág. 827.
252
“a cada um o seu trabalho” significa dizer “a cada um as capacidades de produção
Esta restrição não está em Hesíodo, já que este visava antes à possibilidade de
mobilidade social. Para dar apenas um exemplo, nos versos 311-313, isto é, muito perto dos
Numa sutil manobra retórica, o poeta colocou Perses na posição do vizinho, que foi
apresentado como modelo de ação por ocasião de apresentação da Boa Luta, para que ele
506
Carrière (1987) pág. 834. Na conclusão de sua tese de doutorado, o autor chega mesmo a dizer que
“A diké hesiódica, antes de ser revolucionária parece ser bem mais modesta. Para ela a cidade só
pode existir na medida em que funciona em benefício dos mais ricos e mais poderosos.” Idem,
ibidem, pág. 849. Em trabalho mais recente o autor adota uma posição mais imparcial e mais
interessante: “Entretanto, há duas alegorias de Éris, a Luta. Ambas são ancestrais distantes de dois
grandes mitos modernos. A Éris negra, que concerne às usurpações sociais sem trabalho
(aniquilação dos pobres e roubo dos ricos) é, mesmo que individual, diretamente ligada ao processo
de produção. Desta forma, ela é uma ancestral da luta de classes marxista (....). A Éris boa, que é
transversal e corporativa (entre pessoas do mesmo ofício) tende mais ao mito da concorrência
liberal. A importância dos contextos levou o pensador a desdobrar a nação de Luta no plano
alegórico. É de se admirar a acuidade de sua reflexão social.” Carrière in Blaise, Judet de la Combe
& Rousseau (1996) pág. 408, nota 31.
253
πλούσιον, ὃς σπεύδει μὲν ἀρόμεναι ἠδὲ φυτεύειν
οἶκόν τ' εὖ θέσθαι· ζηλοῖ δέ τε γείτονα γείτων
εἰς ἄφενος σπεύδοντ'· ἀγαθὴ δ' Ἔρις ἥδε βροτοῖσιν.
Na raiz disso tudo está o entendimento de Carrière de que aidôs é um atributo do pobre,
enquanto thársos é um atributo do rico 507. Ora, se aidôs e thársos são sentimentos, não são
atributos e sim atitudes psicológicas que se deslocam como peso e contrapeso sobre um único
eixo, sendo este pobreza e riqueza. Hesíodo está aqui tratando de noções muito mais gerais
do que atributos fixos de classes sociais. O que está em jogo aqui são as manifestações
externas destas atitudes, quando ligadas ao trabalho: uma aidôs exacerbada, que inibe a ação
do homem, leva-o ou o mantém na pobreza. Não é difícil, ao menos no Brasil, visualizar isto.
Todos nós conhecemos alguém que, de tão humilde – eis aí mais uma possível tradução de
aidôs, é incapaz de orientar sua vida no sentido de lutar – a Boa Luta – para conquistar uma
situação melhor para si. Por outro lado, todos nós também conhecemos alguém que, oriundo
de extrema pobreza, jamais aceitou esta situação como fato consumado e reuniu forças –
thársos – para lutar contra esta condição, observando todos os interditos de Hesíodo, a saber,
Este debate com Carrière levanta a necessidade de mostrar que deve existir então uma
Aidôs para o rico e poderoso. E isto já está posto desde o verso da Ilíada, que fala da falta de
aidôs de Aquiles no trato com o cadáver de Heitor, falta tão grave que ofendeu até mesmo os
deuses. Em Hesíodo, a Aidôs universal, isto é, válida para todos os homens consiste nos dois
últimos versos do seu poema moral, que preconiza o trabalho isento de culpa perante os
imortais, consultando as aves e evitando todo exagero. Mas é certo que aqui também existe a
Aidôs própria ao poderoso, que é a de pronunciar retas sentenças e não comer presentes.
507
Carrière (1987) pág. 823.
254
Para finalizar, mais uma palavra sobre thársos. Se este se desloca no mesmo eixo que
aidôs, e existe uma aidôs excessiva, que é má e leva à pobreza, thársos também conhece o
excesso, que é a anaideíe, isto é, anaidôs, ou a ausência total de aidôs. Esta não leva à
riqueza, mas suscita Nêmesis e Diké. A Nêmesis veio para Aquiles sob a forma de Moira.
Embora Hesíodo jamais empregue o termo φιλία no seu poema moral, o que apontaria
mais diretamente para uma reflexão sobre uma noção moral abstrata, isto é, um conceito, ele
de tudo está a utilidade: “se alguma desgraça se dá em tua casa,/ os vizinhos de presto te
acodem, parentes demoram. 509”. Mas, se esta utilidade é regida por uma noção de
reciprocidade, onde prevalece, à primeira vista, o interesse próprio: “Mede bem o que vem do
vizinho e bem o retorna/ na mesma medida ou mais, se puderes,/ para que, precisando mais
tarde, o encontres disposto. 510”, ou ainda, numa fala mais crua: “Dá a quem te dá e a quem
não te dá nada dês:/ dá-se a quem dá, ao que não dá, ninguém dá. 511”, por outro lado, é
508
As considerações que se seguem reproduzem, com ligeiras modificações, dois estudos anteriores
que empreendemos sobre a questão da amizade em Hesíodo, constando o primeiro na nossa
dissertação de mestrado, defendida em 2009 e mais tarde publicada junto com a nossa tradução de Os
trabalhos e os dias, em 2011, e a segunda, o fruto das observações que David Konstan, autor com
quem estabelecemos diálogo por ocasião da dissertação, acrescentou à nossa investigação tão logo
dela tomou conhecimento. Cf. Mantovaneli (2010).
509
Trab. 344-345. εἰ γάρ τοι καὶ χρῆμ' ἐγκώμιον ἄλλο γένηται,/ γείτονες ἄζωστοι ἔκιον, ζώσαντο δὲ
πηοί.
510
Trab. 349-351. εὖ μὲν μετρεῖσθαι παρὰ γείτονος, εὖ δ' ἀποδοῦναι,/ αὐτῷ τῷ μέτρῳ, καὶ λώιον αἴ κε
δύνηαι, / ὡς ἂν χρηίζων καὶ ἐς ὕστερον ἄρκιον εὕρῃς.
511511
Trab.354-355. καὶ δόμεν ὅς κεν δῷ καὶ μὴ δόμεν ὅς κεν μὴ δῷ·/ δώτῃ μέν τις ἔδωκεν, ἀδώτῃ δ'
οὔ τις ἔδωκεν·
255
também delimitada por um preceitos morais, o primeiro expresso por uma negação: “Nada
de ganhos escusos, estes são como ilusões. 512”, o segundo por uma afirmação: “Doação é
Em outras palavras, a doação pressupõe também uma recepção, isto é, troca, algo que
está em questão desde o início do poema: a distinção entre a troca justa e a troca escusa
(vv.35-41).
interpessoal ausente em Homero: uma associação que visa à preservação da vida boa. A
instaurava uma tensão permanente: os heróis eram aliados na medida em que buscavam a
Hesíodo agiu aqui, na sua dissertação sobre a amizade, de modo semelhante ao que
tratou da virtude. Em nenhum dos casos, apresentou uma definição, mas enquanto com
relação à virtude, conforme já visto, apresentou sua via de aquisição, ao tratar da amizade,
dentre outros, pelo preceito de dar a quem dá e de negar a quem não der, seguida pela
No bojo da exigência da conquista dos bens pela via do trabalho - nada de ganhos
escusos, ou ainda, o roubo é mau – subjaz a própria exigência do trabalho, aqui expressa de
forma discreta, mas que sugere também a repetição do ato, que não é outra coisa que o
512
Trab.352. μὴ κακὰ κερδαίνειν· κακὰ κέρδεα ἶσ' ἄτῃσι.
513
Trab.356. δὼς ἀγαθή, ἅρπαξ δὲ κακή, θανάτοιο δότειρα·
256
caminho da virtude: “E se acrescentares pouco ao pouco/ e com freqüência o fizeres, logo
É bem verdade que a exigência do trabalho como condição para tornar-se também
merecedor de auxílio fica mais esclarecida mais adiante, já fora desta passagem dedicada à
exibir um caráter trabalhador. A busca condicionada de auxílio junto aos vizinhos dá ensejo a
um novo sentimento: “Ganha um tesouro quem tem um vizinho de escol. 515”. As relações que
se estabelecem entre estes fundam uma nova experiência social, e a prática reiterada da
doação transforma-se em prazer: “O homem que dá por vontade, ainda que muito,/ alegra-se
514
Trab. 361-362. εἰ γάρ κεν καὶ σμικρὸν ἐπὶ σμικρῷ καταθεῖο/ καὶ θαμὰ τοῦτ' ἔρδοις, τάχα κεν μέγα
καὶ τὸ γένοιτο·
Hesíodo: “É bom colher o que é seu, castigo para a alma/ é precisar do que falta. Pense bem
517
nisto. ”, e que Aristóteles apresentará duplamente, primeiro por meio de uma negativa:
“Por auto-suficiente não entendemos aquilo que é suficiente para o homem isolado, para
alguém que leva uma vida solitária, mas também para os pais, os filhos, a esposa, e em
geral, para os seus amigos e concidadãos, já que o homem é um animal político 518”, em
Além do mais, a própria cidade, segundo Platão, tem sua origem no fato de cada um de
nós não ser auto-suficiente 520 e assim, auto-suficiência que o oîkos não conseguir prover, será
Deste modo, a nova experiência social que está sendo gestada a partir da associação
pacífica entre os vizinhos com vistas à manutenção da vida boa é a pólis e o sentimento que
de sua discussão sobre a amizade na Ética a Nicômaco, que a amizade é o que há de mais
necessário para a vida, e que sem amigos ninguém quereria viver. Todos: ricos ou pobres,
jovens ou velhos, beneficiam-se dela. No campo das ações humanas, dá-se de modo natural
entre pais e filhos e até mesmo entre aves e animais. Mesmo nas viagens, isto é, fora de sua
possível sentir a sua força e o homem, agora ξένος, que quer dizer simultaneamente
517
Trab. 366-367. ἐσθλὸν μὲν παρεόντος ἑλέσθαι, πῆμα δὲ θυμῷ/ χρηίζειν ἀπεόντος· ἅ σε φράζεσθαι
ἄνωγα.
518
EN. I.7.1097b 9-11.
519
Idem, 1097b 15.
520
Rep. 369b.
258
estrangeiro e hóspede, ainda hoje, no grego moderno, permanece amigo e familiar ao
homem 521.
Mas há ainda algo desta apresentação da amizade que foi intencionalmente omitido e é
agora trazido à cena: a primeira definição que Aristóteles apresenta é que a amizade é uma
Ora, na abertura do Livro II da Ética a Nicômaco, o filósofo sustenta que há dois tipos
de virtude, a intelectual e a moral 525. Uma vez que a amizade exige a existência de outro com
quem se relacionar, é válido inferir, já que Aristóteles não esclarece que tipo de virtude é
aquele que é ou acompanha a amizade, que trata-se aqui de uma virtude moral. A virtude
moral é adquirida pelo hábito 526 e resulta do exercício, ou seja, “adquirimos as virtudes
depois de termos trabalhado 527”. Isto implica em que há aqui um “trabalho trabalhando
sobre o trabalho” ou, como já foi dito, uma força de realização que se atualiza na própria
521
EN. VIII, 1, 1155 a 1-22.
522
Idem, VIII, 1, 1155 a 22-26.
523
Idem, VIII, 1, 1155 b 1-11.
524
Idem, VIII, 1, 1155 a 2.
525
Idem, II, 1, 1103 a 14.
526
Idem, 1, 1103 a 17.
527
Idem, II, 1, 1103 a 31.
259
obra, no próprio agir. Se a amizade é, de certa forma uma capacidade natural, ela demanda
Se alguém que age sobre si vê o vizinho agindo, também ele, sobre ele mesmo, o
Esta é, para Aristóteles, “a amizade perfeita, aquela que se dá entre homens bons e
iguais em virtude, pois tais pessoas desejam o bem um ao outro de modo idêntico, e são bons
em si mesmos. 528”. Esta forma de amizade, que o filósofo assumirá como o padrão segundo o
qual as demais formas de amizade, seja com vistas ao que é útil, seja com vistas ao que é
prazeroso, guardam certa semelhança 529, atende, em última análise, às mesmas condições
estabelecidas pelos versos de Hesíodo, pois lá a relação começa a partir da utilidade, mas a
exigência de reciprocidade marcada pelo verso 344 - “Dá a quem dá e a quem não te dá
nada dês. 530”- introduz a exigência do trabalho, fonte da virtude e, retornando a Aristóteles, a
amizade segundo a virtude é justamente a única que conjuga nela mesma a utilidade e o
prazer, enquanto que as amizades pautadas unicamente no prazer ou na utilidade são ditas
Se o poeta não aborda estes outros tipos de amizade, e menos ainda discute se estes
tipos assemelham-se a ela ou dela derivam, como faz Aristóteles, nem por isso seu mérito é
menor. O modelo de amizade apresentado por Hesíodo é algo a ser seguido e imitado pelos
filhos e servos dos οἰκονόμοι virtuosos. Pouco importa que a imitação seja ou não bem
528
Idem, VIII, 3, 1156 b, 7.
529
Idem, VIII, 4, 1157 a, 1-2.
530
Trab. 344. καὶ δόμεν ὅς κεν δῷ καὶ μὴ δόμεν ὅς κεν μὴ δῷ·
260
Talvez seja oportuno aproximar as considerações aqui apresentadas com as que
homérico. Segundo Konstan, não há, em Homero, uma referência específica a amigos. A
afeição entre heróis está inserida em uma estrutura hierárquica que envolve um elemento de
deferência e até de medo 532. Mesmo a relação entre Aquiles e Pátroclo, tida por muitos como
uma das amizades paradigmáticas do mundo antigo 533, revela traços de assimetria
incompatíveis com a simetria requerida pela amizade, seja devido a um possível elo erótico,
onde, no mundo grego a assimetria era requerida 534, seja pela relação hierárquica, uma vez
Outro ponto de concordância é o fato do autor reconhecer, não só nos versos já aqui
versos 707 -718, que ficam fora da presente discussão, os elementos que oferecerão o
contexto da amizade pessoal na cidade-estado clássica. A Konstan não causa muita surpresa
que o mundo camponês descrito por Hesíodo pareça antecipar a sociedade da pólis 535.
em vista a conveniência, ou, no jargão aristotélico, Hesíodo visa uma amizade regida pela
utilidade. A convicção do autor é tão forte que ele a expressa por duas vezes nas três páginas
que ele dedica a Hesíodo nesta obra. Na primeira oportunidade ressalta que a “cooperação é
um valor importante, mas deve ser tratada com cautela e considerando a vantagem
própria”, quando aborda os versos 353e 354, aqui transcritos segundo a tradução brasileira
531
Konstan (2005)
532
Idem, p. 58.
533
Idem, p.32
534
Idem, p.57.
535
Idem,p. 63.
261
do livro: “recebe bem quem o recebe [tòn philéonta phileîn], entra em contato com quem
entra em contato contigo, dá se ele der, não dês se ele não der.” A segunda, é a ocasião onde
analisa os versos 344-6, que tratam da preferência pelos vizinhos aos parentes, especificando
que é melhor convidar os que moram mais próximos: “pois se qualquer problema local
surgir, vizinhos[geítones] vêm como estão, ao passo que os parentes se vestem: um mau
vizinho é um desastre tanto quanto um bom vizinho é uma benção.” Konstan considera este
conselho prático, não como cultivo de amizade, mas como uma disposição para ser amistoso
e útil aos vizinhos, algo reconhecido como valor em qualquer sociedade de aldeia 536.
(...) o fluxo material subscreve ou inicia relações sociais. 537” Os presentes que os candidatos
a amigos trocam entre si podem ser bens materiais (skeúa, khrémata) ou favores, que são
ações (práxeis). Por outro lado, a expressão “inicia relações sociais” sugere um continuum
que leva a um aprofundamento, enquanto que a abordagem de Konstan parece descrever uma
Mas dentro mesmo da passagem em questão, Konstan não deu atenção a dois versos
importantes, o verso 352, “Nada de ganhos escusos: estes são como ilusões. 538” E o verso
356, “Doação é boa; roubo é mau: traz a morte. 539” Em primeiro lugar, a interdição ao
roubo é patente. Nunca é demais lembrar que este é um dos pontos nevrálgicos do poema.
Hesíodo quer revogar a ética heróica que legitima o ganho pelo saque. Em segundo lugar, é a
doação quem é boa, e não o favor recebido. Como então pode haver uma vantagem própria
fundando o ato de dar? Por outro lado, parece lícito inferir que aquilo que se está dando foi
536
Idem, p. 61-2
537
Idem, p. 5.
538
Trab. 352. μὴ κακὰ κερδαίνειν· κακὰ κέρδεα ἶσ' ἄτῃσι.
539
Trab. 356. δὼς ἀγαθή, ἅρπαξ δὲ κακή, θανάτοιο δότειρα·
262
conquistado com o próprio trabalho, e não com o saque. Conquistar as coisas com o próprio
Os versos que se seguem, “O que o homem dá por vontade/ alegra-o como presente e
agrada seu espírito. (357-8) 540”, introduzem o prazer que marca as trocas que se estabelecem
Entretanto, prossegue, não nos demos conta de algo que ele escreveu a respeito de
Hesíodo, que poderia talvez aproximar ainda mais nossas visões, referindo a uma passagem
onde Hesíodo parece estar claramente falando sobre amizade:
“Não tornes um hetaîros igual a um irmão [kasígnetos], mas se o fizeres, não sejas
o primeiro a enganá-lo ou mentir para ele com a própria língua. Se ele começar a dizer ou
fazer algo ofensivo, lembra-te de lhe pagar em dobro. Se ele te aceitar novamente em sua
afeição [philótes] e estiver disposto a pagar a sanção, recebe-o: desprezível é o homem
que faz um phílos aqui, um phílos ali.” 541
Konstan assinala que o termo phílos, que aqui ocorre na sua fórmula usual,
acompanhado de poieisthai, parece ser antes substantivo do que adjetivo; além do mais, o
contexto sugere o deliberado reconhecimento de um laço especial que tanto pode ser quebrado
quanto cultivado. O amigo aqui é uma categoria distinta do parente, do vizinho e do
camarada. Estabelecer uma amizade com alguém envolve não só sentimentos calorosos, como
também um comprometimento com a relação.
Como se pode ver, Konstan admite que Hesíodo pensa na existência de amigos
verdadeiros e não apenas vizinhos.
540
Trab. 357-358. ὃς μὲν γάρ κεν ἀνὴρ ἐθέλων, ὅ γε καὶ μέγα, δώῃ,/ χαίρει τῷ δώρῳ καὶ τέρπεται ὃν
κατὰ θυμόν·
541
Hesíodo, Os Trabalhos e os Dias - versos 707-13, segundo a tradução brasileira do livro de David
Konstan.
263
E prossegue:
Ainda assim faz a ressalva de que talvez tenha falhado em indicar que o poeta tinha em
mente as virtudes e o caráter como base desta amizade, e isto merece ser reconhecido para
apreciar a amizade dentro dos termos aristotélicos 542.
De qualquer forma, Konstan lança luz sobre o conselho de Hesíodo para mantermo-nos
sempre numa disposição de possibilidade de retomar o curso da construção da amizade. No
seu comentário aos versos acima, ele chama atenção para a fragilidade da amizade,
principalmente quando se tem como elemento comparativo a profundidade e a intensidade dos
laços de sangue, sobretudo o irmão, que não deve nunca ser equiparado ao camarada, e que
abre a passagem em tela no papel de referência profunda. A amizade, sobretudo a nascente,
demanda cuidados constantes.
No final de sua réplica, Konstan aponta para a articulação da esfera individual com a
sociedade civil como um todo. Com esta manobra, a amizade é guindada à sua função de
cimento social e mostra que a sociedade é mais regulada e regulável por sentimentos do que
por leis. Não há como discordar disto.
542
Konstan in Mantovaneli (2010) pag. 71-72.
264
4.7 Díke, a integração das noções morais.
que é Díke, que é Justiça. Por outro lado, esta só pode ser minimamente compreendida
Por isso, é importante retornarmos ao poema e percorrermos mais uma vez as noções
morais que acabamos de estudar, mas agora enfocando o modo como o poeta articula-as com
vistas a uma integração. Mas para bem realizarmos movimento de retorno, já devemos estar
familiarizados com o método didático do poeta: ele parte de sínteses da experiência que
desembocam em máximas, expressas por meio de um imperativo ou, na maioria das vezes,
por um indicativo categórico, que já têm o valor de lei moral. Em outras palavras, Hesíodo
Vale lembrar que estas sínteses da experiência já são abstrações. O único caso concreto
deixado inconcluso, pois Hesíodo já parte daí para uma investigação sobre a natureza da
Justiça.
Indicar parece ser o verbo mais adequado para o caminho da Justiça, já que é
amplamente aceito que Díke e o verbo deíknymi, que significa mostrar, apontar, indicar 543,
têm radical comum. Dentre estas possibilidades, indicar é a que mais convém aqui, porque,
além de sua ligação com o caminho, também preserva a herança – dic – do radical comum.
Como já sustentamos que Justiça foi o último presente de Zeus aos homens para que
Justiça só se dá a conhecer a partir de uma injustiça e que é preciso percorrer todo o caminho
543
Cf. Santoro (2011) pág.66, onde o autor também liga Díke a caminho.
265
daquela injustiça em direção à Justiça. Deste modo, Justiça é algo que nunca se revela por
completo, já que ela se mostrará sempre a partir de e dentro dos limites da questão inicial que
desencadeou a sua busca. Isto confere à deusa um aspecto predominantemente punitivo, mas
ao longo do caminho, teremos a oportunidade de constatar que é possível chegar até ela a
partir de uma ação boa, que é quando Díke se manifesta como recompensa. Mas, de todo
modo, isto não invalida a percepção, ainda hoje vigente, de que a justiça só atua quando
provocada. Por isso ela é incognoscível na sua totalidade. Por isso, Hesíodo a vestiu de ar.
Éris, a Luta, é o fundamento de toda moral, não só por ser apresentada como uma deusa
– e como tal, pode ser entendida como um modo de regulação de forças no cosmos – mas,
sobretudo, por ser a primeira coisa a receber as qualificações possíveis de boa ou má, o que só
foi possível depois que ela foi fincada por Zeus nas raízes da terra. Isto equivale dizer que está
Exatamente por apresentar os efeitos de cada uma das duas Érides sobre os homens em
geral, isto é como sínteses de experiência, que o poeta pode ser categórico: uma é boa e outra
é má, o que lhe permite lançar uma máxima exortativa a Perses: “que a Luta que se alegra
com o mal não te desvie o ânimo do trabalho” (v.28, μηδέ σ' Ἔρις κακόχαρτος ἀπ' ἔργου θυμὸν
ἐρύκοι).
O Trabalho surge como consequência disso. Se a Luta má traz a guerra e a Luta boa é
lutada por meio do trabalho; e se o que importa é escolher o que é bom como um caminho
O Trabalho, Pónos ou Érgon, é tão ambíguo quanto a Luta, mas enquanto esta se cindia
em duas distintas, uma boa e outra má, no Trabalho a ambiguidade se internaliza. É a mesma
realidade que pode ser vista ora como boa, ora como má, sendo sempre ambas. Nisto, já vai
266
uma indicação importante: se o Trabalho só diz respeito ao homem e é ambíguo, o homem
também o é.
Por isso, as considerações sobre o Trabalho serão, num primeiro momento, incorporadas
ao bojo mítico do poema, que constitui também seu núcleo teórico, e o Trabalho se faz
carregando o acento sobre o aspecto de Pónos, bem como recupera o Hino a Hécate, onde o
acento recai sobre o aspecto de Érgon. O mito das raças, por sua vez, coloca em evidência a
Em outras palavras, apesar do tema do Trabalho já ter sido introduzido junto com a
Luta, o poeta sente a necessidade de esclarecer porque ele é necessário ao homem, para depois
retomá-lo.
A “profecia” do fim da raça de ferro funciona como um recurso para levar Hýbris às
últimas consequências, o que propicia ao poeta a oportunidade de resumir tudo em mais uma
máxima categórica: a desmedida é má para o pobre mortal (v.214. ὕβρις γάρ τε κακὴ δειλῷ
βροτῷ), o que desencadeia a necessidade de Díke para o homem, e esta é apresentada logo a
revelando-se ao fim
267
Estes versos (216-218), além de oporem Díke a Hýbris, apresentam a primeira como um
caminho, que é um envio, ou melhor, uma articulação de ações e de discursos e também uma
articulação entre as ações e o discurso, que se revela ao fim. O que se revela ao fim é a
verdade. Sendo preciso percorrer um caminho para encontrá-la, esta verdade radica numa
experiência que não pode ser errática. Ela deve ser norteada por um pensamento que é sempre
testado pelo ato de caminhar, confirmando-se ou não como verdade e corrigindo-se o rumo,
sempre que necessário. Cremos que o discurso que Hesíodo marca como étymos ou etétymos
Deste ponto até o verso 273 Hesíodo entoa um hino à Justiça, para em seguida, no verso
279, deixar patente que a Justiça é algo privativo do homem: “Aos homens, sim, [Zeus] deu a
Justiça, muito mais nobre” (ἀνθρώποισι δ' ἔδωκε δίκην, ἣ πολλὸν ἀρίστη). Um pouco antes, no
verso 276, o poeta deixa patente que recebe este presente de Zeus como lei: “Pois o Cronida
dispôs aos homens a lei”. (τόνδε γὰρ ἀνθρώποισι νόμον διέταξε Κρονίων).
Ainda que até aqui tudo indique que esta lei tenha um estatuto moral, o destino do seu
caminho é também jurídico e político, para regrar não só a conduta individual, como também
visitada passagem dos caminhos, para que Perses e nós saibamos nos orientarmos na trilha:
544
Também assim Platão recebeu esta lição. Cf. Leis 713 e.6-a.2 e nota 406.
268
Σοὶ δ' ἐγὼ ἐσθλὰ νοέων ἐρέω, μέγα νήπιε Πέρση·
Agora sim, está preparado o terreno para abordar o Trabalho, daí em diante, sempre
No decorrer de quase oitenta versos, entre os versos 303 e 381, Hesíodo alterna várias
sínteses da experiência com máximas que abordam o Trabalho sob os seus múltiplos aspectos.
passagens já visitadas, contidas neste trecho, com o único intuito de assinalar como as noções
Entre os versos 303 e 310, o poeta chama atenção para a imagem que deuses e homens
fazem daquele que não trabalha: odeiam o lerdo (v.303, ἀεργὸς), numa síntese que desemboca
na máxima “Trabalho não é vergonha. Vergonha é não trabalhar” (v. 311, ἔργον δ' οὐδὲν
Esta máxima, por sua vez, permite o poeta abordar outra possível causa da inatividade,
Como o que importa aqui é examinar a integração das noções morais na Justiça, vamos
retornar a duas ocorrências de Aidôs que, embora compondo o mesmo trem de pensamento,
269
timidez que aos homens muito atrapalha ou ajuda.
Bens não devem ser roubados: doados por deus são muito melhores.
Em primeiro lugar, cumpre assinalar que a ausência do Trabalho é um mal absoluto. Pouco
importa se por preguiça ou por vergonha, a ausência do Trabalho é injustificável. Em seguida, vemos
que Aidôs, ou timidez, ou vergonha, foi introduzida no debate por causa de sua ligação com o
Trabalho. Esta ligação se mantém presente neste texto, já que os melhores bens, isto é, os
doados por deus, só são doados como recompensa pelo Trabalho, o que faz com que o verso
320 – “Bens não devem ser roubados: doados por deus são muito melhores” – funcione
como máxima moral que torna evidente que Justiça não é apenas punitiva, sabendo
270
Aidôs, ou Pudor, é a expressão do sentimento moral e, além de muito ajudar ou
atrapalhar (v.318, ἥ τ' ἄνδρας μέγα σίνεται ἠδ' ὀνίνησιν) os homens 545, isto é, de poder ser
qualificada como boa ou má, exige a medida certa para configurar-se como boa. E Justiça é
sempre uma questão de medida, na medida em que o poeta avança outra máxima: “Mede bem
o que vem do vizinho e bem o retorna” (v. 349, εὖ μὲν μετρεῖσθαι παρὰ γείτονος, εὖ δ'
ἀποδοῦναι,).
Este verso expande entre os homens o que já havia se estabelecido na relação do homem
com o deus: ele receberá na medida em que deu. Se ele deu Trabalho, recebe os bens, se nada
deu, nada recebe. O mesmo se dá na cidade, como forma de regular as transações humanas.
O vizinho, por ser humano, é ambíguo, coisa que o poeta registra logo de saída: “o mau
vizinho é um castigo, o bom, grande socorro” (v.346, πῆμα κακὸς γείτων, ὅσσον τ' ἀγαθὸς μέγ'
ὄνειαρ·). O mau vizinho é logo descartado, de forma seca, mas sem rancor: “Dá a quem te dá,
a quem não te dá nada dês.” (v.354, καὶ δόμεν ὅς κεν δῷ καὶ μὴ δόμεν ὅς κεν μὴ δῷ·) O bom
transações forem regidas pelos bons preceitos, se vai contar nos momentos difíceis, se vai
crescer junto e com quem a convivência, observados estes termos, tende a ser prazerosa,
podendo mesmo, toda esta experiência expandir-se por toda a cidade e produzir a cidade justa
dos versos 225 a 237. Neste movimento, a proposta moral é também proposta ética.
Dentro deste quadro, Elpís, a Esperança, na medida em que deve estar sempre ligada à
ação, ao Trabalho, desponta como a força prospectiva do homem sábio, sendo, talvez, uma
545
Aidôs é mais uma marca do homem, já que nem deuses nem bestas fazem uso dela.
271
É bom também quem ouve do bem e obedece, 295
mas quem não pensa por si, nem ouvindo o conselho
não o guarda na mente, este é um homem inútil.
O que está em jogo é saber escolher o bem final e os meios para atingi-lo, tendo sempre
em mente que o próximo passo deve ser dado sempre com vistas ao fim que se propôs, numa
atividade marcadamente intelectual, conforme assegura o verso 293, “aquele que pensar tudo
por si” (ὃς αὐτῷ πάντα νοήσει 546). Esta é sem dúvida a boa esperança. Não foi por acaso que
Aristóteles citou estes versos de Hesíodo logo no início da Ética a Nicômaco 547, no momento em que
introduz a felicidade como tema de discussão, acrescentando que o homem bem educado, ou já
conhece esses princípios ou poderá vir a conhecê-los com facilidade, mas quem não os conhece deve
ouvir os ensinamentos do poeta. Desta forma, o homem que é o melhor (πανάριστος) de Hesíodo não é
Retornando ao poema, bem mais adiante o poeta faz a ressalva de que a capacidade
prospectiva do homem sábio opera dentro dos limites das possibilidades do homem, pois em
sacrifício, pois já nos encontramos no insondável âmbito dos deuses e também isto é preciso
considerar:
546
Não é por acaso que este verbo está no futuro.
547
E.N. I.4.1095b.7-14.
272
Se ao fim o Olímpico permite um ciclo perfeito,
O Trabalho é então o fio que une todas as demais noções, a Luta, a Esperança, o Pudor e
a Amizade à Justiça, sendo para Hesíodo o único caminho que leva à deusa que não se revela
nunca por inteiro, mas se manifesta a cada instante da vida. Por isso o poeta encerra sua
explanação sobre o Trabalho, iniciada no verso 303, com a poderosa exortação a Perses,
constante no verso 382, “Assim obra: Tabalho sobre trabalho trabalha” (ὧδ' ἔρδειν, καὶ ἔργον
ἐπ' ἔργῳ ἐργάζεσθαι). Daí em diante inicia-se a seção dos Trabalhos, onde ele vai ensinar a
Perses quais os Trabalhos ele deve cumprir para trabalhar sobre si mesmo e fazer-se um
homem bom. Daí para frente é mãos à obra para que, através da repetição dos ciclos anuais de
Trabalho deixem de ser apenas discurso e se incorporem, isto é, se tornem corpo, força
4.8 Conclusão
As noções morais que acabamos de estudar – é importante assinalar que Nêmesis não
foi considerada porque o poema não nos fornece subsídios para uma investigação mais
aprofundada; que o estudo da piedade, aqui apenas indicado, é, talvez, tema para outra tese; e
que não excluímos a possibilidade da presença de outras noções que nos tenham escapado –
273
Digno de nota é o modo como o poeta realiza sua obra no plano do discurso: partindo de
sínteses gerais da experiência, o poeta converte estas sínteses em máximas de enorme poder
persuasiva do discurso didático e o rigor da integração das noções morais, que não só
organizam a vida do indivíduo, mas também o colocam em disposição para relacionar-se com
o outro, constatamos que Hesíodo repetiu em Os trabalhos e os dias o que já tinha realizado
na Teogonia, isto é, enquanto no primeiro poema logrou organizar uma sistematização dos
de modo natualizado (φύσει): “para estes a cidade germina e nela o povo floresce” (v.227,
548
Devemos a noção de κόσμον ἑπέων a Jenny Strauss Clay, por seu livro Hesiod’s Cosmos, onde
esta noção perpassa toda a obra.
274
5. Conclusão
discurso, por demandar alto grau de autonomia, é a condição fundamental para a emergência
temos um sujeito divino (Μοῦσα) que fala de um modo próprio (γερύσασθαι) anunciando
verdades (ἀληθέα) que pertencem ao seu modo próprio e divino de ser. No segundo texto, há
também um sujeito (ἐγώ) que fala de um modo próprio (μυθησαίμην) discorrendo sobre as
verdades (ἐτήτυμα) que o homem deve levar em conta para lograr uma vida feliz, propósito
que os três versos que fecham o poema confirmam: “Feliz e abastado é aquele que, tendo
todo este/ saber, trabalha isento de culpa perante os imortais,/ consultando as aves e
evitando todo exagero. (Trab. 826-828.).” Estes versos mostram claramente que o trânsito do
discurso divino para o humano não implica num ruptura entre as duas instâncias, mas antes
coloca a verdade como norte da ação (ἐργάζεται) que levará à vida feliz (εὐδάιμων) e abastada
(ὄλβιος).
Para levar a cabo tal tarefa, sentimos a necessidade de tornar patente a relevância da
obra do poeta – e, por conseguinte, a relevância do próprio autor – na façanha que foi levada a
Neste sentido, uma desconstrução da visão contemporânea das escolas filosóficas pré-
socráticas, e mesmo da própria filosofia como disciplina escolar, foi necessária para podermos
ter bem evidente o caráter histórico do surgimento da filosofia. Para tanto, a noção de
reflexividade revelou-se instrumento de grande valia. Esta mostrou a existência, àquela época,
275
de um vasto campo de batalha discursivo onde pensadores que se reconheciam e eram
conhecidos como sábios (σοφοί) exerciam no e recebiam influência, ou força, deste mesmo
campo discursivo que, se por um lado era multifacetado, por outro era público, o que justifica
tanto a desconstrução da filosofia como disciplina, quanto a da noção da escola filosófica pré-
socrática, que apontaria para uma atividade mais sistematizada na forma e mais restrita quanto
ao modo de atuação.
Com este propósito, a metáfora da “nebulosa dos primeiros filósofos”, cunhada por
André Laks, foi incorporada e amplificada, pois nos permite visualisar, poeticamente, como
cada um daqueles astros recebeu e deu sua contribuição para um movimento cuja resultante
Esta metáfora nos permite ainda apresentar Hesíodo como astro de primeira grandeza,
bem como assinalar que naquele vasto aglomerado de corpos celestes o poeta era a única
categoria reconhecida que se destacava naquela constelação de sábios. Quanto aos demais, era
Mas a poesia não é um campo de saber constituído e determinado. Ela é antes um meio
de difusão, o mais eficaz de então. E como tal, ela se difundiu, impregnando campos que
estavam em via de se determinar. A filosofia não escapou a isso, recebendo da poesia tópoi,
temas e problemas.
Postas estas considerações, o passo seguinte foi o de tentar tornar o autor e sua obra, ao
menos seus dois principais poemas, mais visíveis. Isto demandou nova desconstrução, desta
vez da imagem de Hesíodo como poeta camponês, o que para muitos intérpretes
contemporâneos implica num poeta menor. Neste sentido, o trabalho de Haubold mostra que o
276
cada obra, sendo o pastor da Teogonia alguém que, por viver nos limites da terra cultivada, o
que equivale dizer nos limites do humano, está mais propenso a um encontro com o divino,
podendo mesmo ser visto como índice de excelência e, portanto, habilitado a ensinar como ser
poeta grego, de onde o poeta de Ascra surge como o segundo poeta. Mas este segundo aqui é
visto não na ordem de grandeza, mas antes como o momento dialético da diferença, o que
permite por em evidência que a fala de Hesíodo é bem menos dependente da inspiração das
Musas do que a fala de Homero, chegando mesmo a falar na primeira pessoa do singular, um
“eu” humano, que fala sobre assuntos humanos. Sem dúvida, um passo considerável na
versos da Teogonia e o verso de Os trabalhos e os dias têm sido recebidos pelos intérpretes
que entende que Hesíodo está assegurando a verdade de sua fala e denuncia da mentira da
poesia de outros poetas, entendemos que Hesíodo aponta para a distância entre o divino e o
humano, tomada pelo viés epistemológico, isto é, pela questão do saber e de sua expressão.
Segundo este olhar, a diferença radical entre o saber divino e o saber humano, ainda que
intransponível, admite gradações, que são expressas por ψεύδεα πολλὰ, e dentro deste
gradiente o humano pode se aproximar do divino. Entre estas e o saber divino (ἀληθέα) cabe
277
Hesíodo mergulha no mundo divino para daí extrair o seu discurso humano. A primeira
questão com que se defronta é a da temporalidade narrativa. Se os deuses são eternos, seu
tempo é o sempre presente. Mas para os mortais, que nascem, crescem e morrem, é necessário
que as coisas sejam apresentadas obedecendo alguma orientação temporal que reproduza esta
experiência para que a narrativa lhes resulte compreensível. Isto é ilustrado pela necessidade
de ordenação do canto das Musas. O seu primeiro canto é truncado (Teog. 2-22.) tanto pela
nomeação não exaustiva dos deuses quanto pela falta de organização temporal, chegando
mesmo a seguir uma cronologia invertida. Já o segundo (Teog. 43-50.) aponta para o
surgimento dos deuses ἐξ ἀρχῆς (Teog. 45.). Este canto temporalmente ordenado só surge
como consequência do encontro entre humano e divino que se deu entre os versos 22 e 34, de
Daí surge um modelo de narrativa: em Os trabalhos e os dias, o ciclo das Plêiades (v.
384-616) orienta a apresentação do ciclo anual dos trabalhos do campo e assinala a hora mais
perigosa para a navegação (v.619). O mito das raças é a culminação da tarefa de estabelecer
um discurso temporalmente estruturado, com cada uma de suas etapas introduzida por um
O Hino a Hécate introduz um modelo divino de cidade onde as ações (ἔργα) são
apresentadas ligadas ao sacrifício, isto é, ao culto aos deuses, o que deixa patente a submissão
do homem ao divino. Estes dois temas, ἔργα e sacrifício, são retomados no mito de Prometeu
que se revela o lugar crucial para entender o lugar do humano e o lugar do divino (Teog. 535-
536: καὶ γὰρ ὅτ' ἐκρίνοντο θεοὶ θνητοί τ' ἄνθρωποι/ Μηκώνῃ,), justificando a necessidade da
construção do discurso humano. Isto permite que Hesíodo mergulhe mais fundo na
investigação da condição humana: o homem é um ser que tem de trabalhar para garantir a sua
existência individual, unir-se à mulher pela via do matrimônio para garantir a sua existência
como espécie e prestar culto aos deuses. Neste mito, vemos ainda surgirem os males dispersos
278
no mundo, a partir do pote de Pandora (Trab. 93-104). Estes males são inevitáveis, mas dão,
por outro lado, a oportunidade do homem organizar suas ações e esperar, por meio delas, não
A íntima relação evidenciada entre o mito de Prometeu e o mito das raças levou-nos a
entender que este mito é um complemento daquele (Trab. 106 Εἰ δ' ἐθέλεις, ἕτερόν τοι ἐγὼ λόγον
ἐκκορυφώσω), o que nos levou a procurar algo que estivesse presente no mito das raças – este,
também um mito sobre a condição humana – mas ausente em Prometeu. Isto nos levou ao
problema da hýbris, que surge como um mal interno ao homem, em contraste aos males
externos e dispersos pelo mundo, a partir da abertura do pote de Pandora. A hýbris é então um
mal essencial do homem e o mito das raças nos conta como suas diferentes manifestações,
homem.
Por ser um mal essencial, e contra este, antes de tudo, que o homem tem de se
organizar, para depois poder fazer face aos males exteriores. Mas diferente destes últimos, a
hýbris é um mal evitável e é isto, acima de tudo, que Hesíodo quer ensinar a Perses e a nós.
O recurso às ocorrências do mito das raças na obra de Platão confirma nossa leitura de
que este mito tem na hýbris o seu tema principal e mostra também que, por ser essencial, a
hýbris é eterna no homem. Ao recontar este mito, Platão mostra que as diferentes hýbrides
coexistem tanto na cidade quanto dentro da alma do indivíduo. Isto não invalida de modo
279
Todas as noções morais hesiódicas aqui estudadas, Luta, Trabalho, Esperança, Aidôs e
Amizade, são integradas em uma única, que é Díke, a Justiça. Esta, por sua vez, só pode ser
O ponto de partida é a hýbris. Esta não é nem deusa, nem noção moral, nem sentimento.
Ela é um traço constitutivo, esencial, do homem e foi para combatê-la que Zeus deu Díke aos
homens – e só a estes.
Por ter a hýbris múltiplos modos de manifestação, Díke precisa igualmente assumir
múltiplos aspectos.
Como Luta, é um princípio geral. O modo de ser do homem determina que ele esteja em
eterno embate no mundo. Este embate pode produzir efeitos destrutivos, onde a guerra é
Este visa, é certo, seu produto, mas visa, sobretudo, a construção do caráter daquele que
trabalha. É pela via do esforço penoso, repetitivo e doloroso que se produz a mais bela obra: o
Neste quadro, a Esperança surge como um motor – imóvel, porque enraizado dentro de
todo e cada homem – para a ação. Por estarem contidos no mesmo pote, o homem tornou-se
ciente da existência dos males no mundo, mas passou a saber, por meio da Esperança, que ele
pode agir no sentido de evitar alguns, a Fome, a Fadiga, as Intrigas, e ao menos tentar atenuar
os inevitáveis. Mas antes, é claro, deve evitar a própria hýbris. Em outras palavras, a
Esperança hesiódica é o que dá sentido à ação humana. Quando não vinculada à ação,
Esperança é vazia.
Tendo formado o caráter do indivíduo. Hesíodo o põe em contato com o outro, por meio
de Aidôs e da Amizade.
280
Uma relação tão complexa demanda uma noção moral igualmente complexa. A bem
dizer, Aidôs, termo que comporta diversas traduções, das quais tomamos aqui Pudor, por ser o
nome atribuído à deusa Aidôs, é uma noção que se desdobra em duas – Aidôs e Thársos,
Pudor e Ousadia – que atuam como peso e contrapeso; a ausência de uma, deixando a outra
livre ao extremo, produz efeitos negativos em ambos os casos. A charada humana consiste em
encontrar o quanto de cada uma empregar no caso concreto. Hesíodo convida Aristóteles a
concretiza. O termo amizade está ausente na obra, mas o amigo é descrito em cores vivas. Por
outro lado, amigo não é referido a nenhum particular, mas antes descrito como um tipo.
Este tipo é descrito em suas relações. Ele é aquele que é útil. Ele é aquele que dá e
Mas esta convivência é regrada. Só se dá aquilo que se tem. E aquilo que se tem deve
ser obtido pelo esforço penosos do trabalho, estando interditada qualquer outra forma de
mostrar igualmente trabalhador e deve ter o mesmo prazer de dar a quem merece num
Todo este regramento nas relações de amizade está presente, sem que nada falte, na
noção de amizade segundo a virtude que Aristóteles apresenta no livro VIII da Ética a
Digno de nota é o modo como o poeta realiza sua obra no plano do discurso: partindo de
sínteses gerais da experiência, o poeta converte estas sínteses em máximas de enorme poder
persuasivo que alcançam mesmo o valor de uma lei que convida o ouvinte a realizá-la como
281
experiência própria, e não mais geral, para comprovar sua eficácia, isto é sua verdade, o tipo
persuasiva do discurso didático e o rigor da integração das noções morais, que não só
organizam a vida do indivíduo, mas também o colocam em disposição para relacionar-se com
o outro, constatamos que Hesíodo repetiu em Os trabalhos e os dias o que já tinha realizado
na Teogonia, isto é, enquanto no primeiro poema logrou organizar uma sistematização dos
de modo natualizado (φύσει): “para estes a cidade germina e nela o povo floresce” (v.227,
τοῖσι τέθηλε πόλις, λαοὶ δ' ἀνθεῦσιν ἐν αὐτῇ·). Temos um sistema, ou melhor, dois, que se
está subordinado aos deuses, o que é outro modo de dizer que o homem é parte da natureza,
Citamos Levet, na introdução desta tese, para quem a verdade é “o orgulho do homem
contemplou a realidade.” Hesíodo, um dos mestres da verdade, conjuga em si estes três tipos.
Findas estas considerações, remetemos o leitor ao Anexo A, onde uma tabela apresenta
as palavras que Hesíodo guardou para os deuses, em contraste com as que ele destinou aos
homens.
282
Anexo A Palavras dos deuses, palavras dos homens
A tabela abaixo apresenta as palavras que Hesíodo guardou para os deuses, em contraste
com as que ele destinou aos homens. O contraste entre uns e outros, que o poeta explicitou
por meio destas palavras, nos permite assegurar que não há, segundo esta visão de mundo,
uma ruptura entre deuses e homens, mas antes uma continuidade garantida pela sumissão
destes àqueles.
de entendimento da obra de Hesíodo que ele pode, porventura, suscitar ou viabilisar, sendo
283
Deuses ocorrência Homens ocorrência contraste
284
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