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INTRODUÇÃO ..............................................................................................................................

14

1. A relação entre filosofia e poesia ............................................................................................ 24

1.1 O ambiente intelectual grego............................................................................................ 24

1.2 A relação entre filosofia e poesia. ..................................................................................... 31

1.2.1 A filosofia lê poesia. ................................................................................................... 32

1.2.2 A poesia como estrutura da filosofia ......................................................................... 39

1.2.3 A fala poética da filosofia ........................................................................................... 48

1.3. Conclusão. ........................................................................................................................ 59

2. Em busca de Hesíodo .............................................................................................................. 61

2.1 Sua imagem ....................................................................................................................... 62

2.2 A recepção contemporânea dos versos ............................................................................ 73

2.3 Semântica e pragmática dos versos. ................................................................................. 79

2.3.1 Abordagem inicial....................................................................................................... 81

2.3.2 Sujeitos ....................................................................................................................... 85

2.3.3 Verbos declarativos .................................................................................................... 90

2.3.4 Objetos ....................................................................................................................... 99

2.3 Conclusão ........................................................................................................................ 118

3. A construção do discurso humano ........................................................................................ 120

3.1 Teogonia .......................................................................................................................... 122

3.1.1 Da atemporalidade divina para a temporalidade humana. ..................................... 123

3.1.2. Hesíodo e as Musas: a autoridade para falar .......................................................... 133

3.1.3 O Hino a Hécate........................................................................................................ 141

3.2 Prometeu ......................................................................................................................... 147

3.3 Os trabalhos e os dias...................................................................................................... 163

3.3.1 Apresentação ........................................................................................................... 165

3.3.2. A recepção contemporânea do mito das raças....................................................... 169

12
3.3.3 O recurso a Platão .................................................................................................... 191

3.4 Conclusão .................................................................................................................... 202

4. As noções morais em Hesíodo. ............................................................................................. 207

4.1 Díke, uma abordagem preliminar. .................................................................................. 208

4.2 Éris. .................................................................................................................................. 214

4.3 Pónos – Érgon .................................................................................................................. 219

4.4 Elpís/Esperança ............................................................................................................... 228

4.5 Aidôs ................................................................................................................................ 242

4.6 Amizade. .......................................................................................................................... 255

4.7 Díke, a integração das noções morais. ............................................................................ 265

4.8 Conclusão ........................................................................................................................ 273

5. Conclusão .............................................................................................................................. 275

Anexo A Palavras dos deuses, palavras dos homens ................................................................ 283

6. BIBLIOGRAFIA ........................................................................................................................ 285

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INTRODUÇÃO

O conceito de verdade é um conceito de extrema importância em todos os níveis da

comunicação humana, desde a conversa mais corriqueira até as mais profundas investigações

filosóficas. Como Levet observa, “a verdade é o orgulho do homem justo e honesto, a

ambição inteligente do sábio e do pensador e o privilégio do iniciado que contemplou o

real. 1”

Nesta perspectiva, o nome de Hesíodo surge como objeto de estudo pertinente, uma vez

que o poeta de Ascra foi considerado pelos antigos como um dos grandes educadores de toda

a Grécia e é considerado por grande parte dos contemporâneos como um pensador que se

situa no limiar entre o mito e a filosofia, propiciando assim uma boa oportunidade para se

investigar a emergência do discurso filosófico. Alguns contemporâneos, ainda que poucos, já

o têm na conta de filósofo.

Além do mais, se retornarmos às categorias empregadas por Levet, citado acima, vemos

que Hesíodo encarna as três. O iniciado foi, em última análise, a primeira garantia de verdade,

na grande maioria das culturas, que o homem conseguiu para si, já que a voz do iniciado é o

veículo da palavra divina. Foi exatamente assim que o poeta de Ascra apresentou-se no verso

22 da Teogonia: “Elas um dia a Hesíodo ensinaram belo canto. 2”. Como pensador sábio, ele

foi recebido por seus posteriores e a discussão que se estabeleceu em torno de seus versos

contribuiu enormemente para dar direção e sentido à démarche da cultura grega. Enfim, foi

como o homem justo e honesto, sem deixar de ser igualmente sábio, que ele apresentou-se em

Os trabalhos e os dias, o segundo de seus dois poemas preservados na íntegra, onde temos a

1
Levet (1976) p.1.
2
Teog. 22. αἵ νύ ποθ' Ἡσίοδον καλὴν ἐδίδαξαν ἀοιδήν. Todas as traduções dos versos da Teogonia
aqui visitadas respeitarão a tradução de JAA Torrano, exceto quando houver necessidade de alguma
adaptação, o que será anotado.
14
mais antiga representação da literatura grega de uma voz humana comum tratando de assuntos

humanos comuns e tendo por finalidade a vida boa, o que implica um caráter honesto e uma

ação justa.

Nosso ponto de partida é a constatação de que em cada um dos seus poemas

preservados na íntegra, Hesíodo empregou uma palavra diferente para nomear aquilo que a

maioria dos tradutores contemporâneos traduz como verdade. Nos versos 27 e 28 da sua

Teogonia as Musas dizem:

Sabemos muitas mentiras dizer, símeis aos fatos

E sabemos, se queremos, dar a ouvir verdades. 3

ἴδμεν ψεύδεα πολλὰ λέγειν ἐτύμοισιν ὁμοῖα,

ἴδμεν δ’ εὖτ’ ἐθέλωμεν ἀληθέα γηρύσασθαι.

Já no décimo verso de Os Trabalhos e os Dias, que anuncia a finalidade do poema, uma

voz humana diz:

tu! Eu, por mim, a Perses quero dizer verdades 4.

τύνη· ἐγὼ δέ κε Πέρσῃ ἐτήτυμα μυθησαίμην.

Temos aqui ἀληθέα para o primeiro poema e ἐτήτυμα para o segundo, cada uma

apontando para uma verdade que supomos ser de ordem diferente da outra.

Com efeito, o primeiro poema parece ser um poema fortemente inspirado pelas Musas,

não só pela sua fala, em discurso direto nos versos citados, como também pelo próprio

conteúdo, que trata da origem dos deuses desde o princípio. Já o segundo destina-se a tratar de

assuntos humanos a partir de uma voz humana que se apresenta na primeira pessoa do

3 Curiosamente, já temos aqui a primeira adaptação, uma vez que Torrano traduz ἀληθέα por
“revelações” e não por “verdades”, como o fazem diversos outros.
4 Todas as traduções dos versos de Os Trabalhos e os Dias aqui visitados respeitarão nossa tradução
publicada em 2011.
15
singular e se confunde com o próprio poeta. Este deslocamento de vozes, da divina para a

humana, e de tema, da origem dos deuses para os assuntos humanos, nos parece ser marcado

pelo poeta pelo deslocamento de ἀληθέα para ἐτήτυμα, ambas significando verdade, mas

distintas entre si. Entendemos que isto parece apontar para uma tentativa, a partir do discurso

divino, de construção de um discurso propriamente humano que é, em última análise, uma

condição fundamental para a emergência do discurso filosófico e é isto que esta pesquisa vai

tentar demonstrar.

Até onde se saiba, a pergunta sobre a diferença entre ἀληθέα e ἐτήτυμα jamais foi

colocada na antiguidade. É bem provável que os leitores de Hesíodo ao tempo de Aristóteles,

ou mesmo posteriores a ele ainda tivessem esta diferença viva o suficiente em suas mentes,

mesmo que a esta altura a palavra ἐτήτυμα já tivesse praticamente desaparecido do uso

cotidiano da língua grega tendo sido incorporada por ἀληθέα.

Mas para nós, a natureza desta diferença esta perdida e importa recuperá-la em alguma

medida. Não pretendemos propor uma tradução para cada uma destas palavras, já que isto, se

é que é possível, não contribuiria muito para avançarmos na compreensão da obra do poeta.

Damo-nos por satisfeitos, para iniciar esta investigação, assumindo que ἀληθέα refere a tudo o

que se segue na Teogonia e que ἐτήτυμα refere a tudo o que se segue em Os trabalhos e os

dias, para, a partir do exame de semelhanças e de diferenças contidas nos poemas,

alcançarmos uma compreensão mínima do que está sendo dito por meio de cada uma destas

palavras.

Em função do exposto, este é um trabalho sobre a recepção contemporânea de Hesíodo.

Isto, é claro, não exclui eventuais incursões na recepção antiga do poeta, mas isto será feito

muito mais com o intuito de auxiliar a nossa compreensão do poeta - já que, anterior ou

16
mesmo contemporâneo de Hesíodo, só dispomos do registro escrito das obras de Homero - do

que de ter na sua recepção antiga o foco principal.

O primeiro capítulo será dedicado a colocar em evidência as relações da filosofia com a

poesia e a demonstrar como esta, por ser a matriz de produção, acumulação e transmissão de

conhecimento na cultura grega, imprimiu sua marca naquela, que herdou não só estratégias

comunicativas, como também uma pauta de temas a serem tratados.

O segundo capítulo busca por em evidência quem é este poeta que nos solicita este

esforço, bem como a pertinência da discussão sobre os versos que são o motor do trabalho.

Para isso, é dividido em três seções. A primeira é dedicada a investigar como a imagem que o

poeta construiu de si mesmo tem influência na sua recepção. Com efeito, Hesíodo apresenta-

se na Teogonia como um pastor que foi ensinado pelas Musas a cantar e recebeu delas a

ordem de gloriar os seres divinos, enquanto em Os trabalhos e os dias, o narrador é alguém

que diz conhecer tudo sobre os trabalhos do campo.

A segunda seção faz um levantamento, não exaustivo, abordando as questões mais

pertinentes sobre como os versos em questão têm sido recebidos pelos estudiosos

contemporâneos e entabula uma discussão com estas posições para que daí possa surgir uma

interpretação própria. Disto resulta que a enigmática fala das Musas é aqui entendida como

uma reafirmação da distância que separa deuses e homens e não, como entende a maioria,

como uma reivindicação de verdade que Hesíodo teria feito para a sua poesia, em

contraposição à possível falsidade das demais obras, notadamente a de Homero. Esta

reafirmação da distância entre deuses e homens aponta para uma limitação epistemológica do

homem, tarefa a ser resolvida pelo sábio para ser traduzida em termos compatíveis com o

limitado entendimento humano, coisa que Hesíodo já começa a tratar ainda na Teogonia,

como, esperamos, ficará demonstrado.


17
A terceira seção é dedicada a um esforço semântico e pragmático para entender, em

seus respectivos contextos, os termos que compõem os versos que movem a investigação.

Para tanto, serão levados em conta os verbos declarativos que introduzem ἀληθέα e ἐτήτυμα,

bem como os respectivos sujeitos desses verbos.

Daí resulta que, ao par inicial de termos opostos ἀληθέα x ἐτήτυμα, somam-se os

seguintes pares: Musas x pastores agrestes, que aponta para a distância entre deuses e homens;

γερύσασθαι x μυθησαίμεν, na medida em que o primeiro verbo só é empregado para designar a

fala dos deuses, restando o segundo a designar o modo humano de falar; e Zeus x “Eu”, nos

versos 9 e 10 de Os trabalhos e os dias, que anunciam que um homem sábio vai falar de

coisas humanas e em termos humanos.

O terceiro capítulo é consagrado a investigar as estratégias poéticas e retóricas

empregadas por Hesíodo na construção de seu discurso propriamente humano. Para tanto, o

capítulo é dividido em três seções, a primeira enfocando a Teogonia, a segunda, um esforço

para integrar as duas versões do mito de Prometeu, presentes uma em cada poema e a terceira,

dedicada a Os trabalhos e os dias, com especial ênfase ao mito das raças.

A primeira seção põe em evidência o esforço empreendido pelo poeta para estruturar o

discurso numa ordenação temporal linear, coisa que parece fundamental para o entendimento

humano. A diferença de percepção do tempo entre homens, seres efêmeros, e os deuses

eternos será abordada pela comparação do primeiro canto das Musas (v.2-21), um canto

temporalmente desordenado, e o segundo (v.43-50), após a cena da conversão de Hesíodo de

pastor em poeta, que será igualmente investigada. Este segundo canto já aparece

temporalmente ordenado desde o princípio. Esta diferença é reiterada pela análise da

descrição do Tártaro (v.720-819), onde comparamos a descrição da queda da bigorna, que

18
mede a distância entre o Céu e a Terra, que é de nove dias e nove noites (v.720-723), com o

episódio da Ilíada 1.591-592, onde Hefesto, lançado por Zeus do Olimpo à terra, leva um dia

e uma noite para atingir o solo.

Em seguida, passamos a investigar como Hesíodo assegura para si autoridade para falar,

o que é feito integrando o episódio de sua conversão em poeta (v.30-33) com a passagem de

Calíope, a Musa da Belavoz (v.80-103), onde o poeta traça um paralelo entre reis e poetas,

bem como um texto de Os trabalhos e os dias (v. 35-36), onde Hesíodo chama para si a

função judicial de resolver conflitos, prerrogativa clara dos reis.

A última parte desta seção procura trazer à tona a presença dos homens na Teogonia e o

enfoque vai recair sobre o Hino a Hécate (v.411-453), onde a deusa é apresentada como nutriz

dos jovens (kourotróphos), intermediadora dos sacrifícios e acompanhante dos homens nas

suas mais diversas atividades, desde a administração da justiça até a pesca.

Além disso, será observado que este episódio, juntamente com o do Prometeu da

Teogonia, ocupam lugar de destaque no poema, já que um antecede e o outro sucede o ao

evento maior do poema, o nascimento de Zeus. Uma vez que o mito de Prometeu é um mito

onde o homem está diretamente envolvido, fica evidente que o homem é figura importante na

arquitetura do poema que é consagrado à origem dos deuses.

No que diz respeito ao homem, o mito de Prometeu é o grande ponto de articulação dos

dois poemas. Por isso a segunda seção deste capítulo é inteiramente dedicada a ele e tem o

ousado objetivo de não só articular entre si as versões de cada poema, como também de

investigar as ligações de cada versão com o corpo de seu respectivo poema, caminho que

ficamos longe de perfazer em sua totalidade.

19
Mesmo assim, veremos que na Teogonia, o mito guarda importantes ressonâncias com o

Hino a Hécate. Como mito por excelência sobre a condição humana, lança mão do logro de

Prometeu a Zeus para instaurar a diferença hierárquica entre deuses e homens, subordinando

estes àqueles pela via do sacrifício. O tema do roubo do fogo, também presente em Os

trabalhos e os dias, introduz a necessidade do trabalho, o que será retomado e aprofundado

neste poema. A mulher, também presente em ambas as versões, coloca em questão a finitude

humana, que só pode ser contornada, ainda assim como espécie, pela via do matrimônio. A

tomada de consciência desta finitude implica na tomada de consciência dos males como

integrantes da condição humana. O trabalho, inicialmente, ele mesmo um mal, começa a

surgir como a única possibilidade de atenuar os demais males, discussão que é insinuada na

Teogonia e aprofundada em Os trabalhos e os dias, não só no episódio de Prometeu, mas em

todo o poema. Esperança, ainda que inseparável de Pandora, será estudada em seção exclusiva

no último capítulo, dedicado às principais noções morais de Hesíodo.

O estudo em conjunto das duas versões que Hesíodo apresenta do mito de Prometeu

também traz à tona a ligação muito mais profunda do que se supõe entre este mito e o mito

das raças. Apenas para ser ter uma ideia disso, a menção da aceitação da mulher por

Epimeteu, que ocorre na introdução do Prometeu da Teogonia (v.511-513), já liga este texto

não só ao Prometeu de Os trabalhos e os dias, como também ao final da apresentação da raça

de ferro. As consequências da chegada da mulher atravessam todas estas narrativas.

Por isso a transição da Teogonia para Os trabalhos e os dias, tema da terceira e última

seção deste capítulo, nos leva diretamente ao mito das raças. Para contornar esta dificuldade,

uma pequena introdução é dedicada a recuperar alguns aspectos do proêmio deste último

poema, e tece algumas considerações sobre as duas Lutas para que se possa acompanhar mais

20
de perto a marcha do pensamento do poeta. O problema das duas Lutas será visto com maior

detalhe no quarto e último capítulo.

Assim, a seção dedicada a Os trabalhos e os dias é composta de três sub-seções. A

primeira é destinada a apresentar o mito e extrair desta apresentação as primeiras impressões

que sua leitura suscita. A descrição do modo de vida de cada raça dá a impressão de

apresentar uma história da humanidade, onde nenhuma raça é uma forma modificada da

precedente. O presente não parece ser resultado do passado: uma vez que cada nova raça só é

introduzida após o desaparecimento da anterior e a sucessão de raças parece ser discreta.

A segunda seção é dedicada a uma revisão não exaustiva da recepção contemporânea do

mito a partir da herança de Jean-Pierre Vernant 5. Disto resultam alguns problemas com os

quais temos de lidar para alcançar a mensagem do mito. O primeiro diz respeito à

temporalidade na sucessão das raças. Seria esta de ordem linear ou cíclica? Em segundo lugar,

temos de resolver o problema da interrupção da queda das raças metálicas provocada pelo

surgimento da raça dos heróis, visivelmente melhor e mais justa do que a raça anterior, de

bronze. Em terceiro lugar, será posta em questão a validade do recurso de Vernant de dividir a

raça de ferro em ferro-presente e ferro-futuro. Em quarto e último lugar procuraremos

determinar se a sucessão das raças é discreta ou contínua.

Nesta discussão, as lições de Couloubaritsis 6 ganham corpo. Antes de tudo, a narrativa é

um mito genealógico. Além do mais, preciso ter em mente que a linguagem dos poetas é

estruturada de modo distinto do nosso, operando por meio de “distorções”- διαστροφάς – que

os possibilitam dizer a verdade por meio de “mentiras”. É preciso levar isso em consideração.

Nesta perspectiva, é preciso determinar qual genealogia é, de fato, veiculada no mito.

5
Cf. Vernant (1990).
6
Cf. Couloubaritsis (1996).
21
Entendemos que este mito não conta a história da origem do homem, mas antes a genealogia

da hýbris. As diferentes hýbrides vão sendo apresentadas ao longo das raças de prata e bronze

e num dado momento elas são integradas no homem. Isto se dá na raça dos heróis que, apesar

disso, é, por ser a raça semidivina que antecedeu a nossa, a que serve de modelo para o

homem da raça de ferro, isto é, a nossa. Isso explica o duplo destino pós-morte desta raça nos

convida a refletir e a “fazer com que a melhor raça dentro de nós prevaleça sobre as

demais”, com disse Platão em Leis 7.

O recurso a Platão, ou melhor, aos usos que Platão faz do mito das raças em República e

em Leis 8, é o assunto da última subseção dedicada ao estudo do mito das raças. Platão, ao

contrário de nós, não interpretou o mito, mas antes “distorceu-o” de um modo que nos

resultou muito mais compreensível.

O conjunto formado pelo mito de Prometeu e o mito das raças, onde o primeiro mostra

não só a distância, mas sobretudo o afastamento entre deuses e homens e o segundo mostra o

estabelecimento da hýbris no homem não deixa dúvida: o discurso propriamente humano de

Hesíodo só pode ser uma tentativa de fornecer ao homem um norte para a ação. Em outras

palavras, um discurso moral.

O quarto e último capítulo, investiga as noções morais de Hesíodo. São elas Díke, a

Justiça, Éris, a Luta, Pónos e Érgon - a Fadiga e o Trabalho, que no fundo são aspectos

distintos da mesma coisa - Elpís, a Esperança, que, como ficará demonstrado, é uma

capacidade humana sujeita à avaliação moral segundo seu uso. Em seguida abordaremos

Aidôs, uma noção moral que cobre um campo tão vasto que torna o termo intraduzível, e por

fim, a Amizade. Ainda que o substantivo abstrato Philía não figure no poema, o phílos é

7
Leis. 645. b1. ὅπως ἂν ἐν ἡμῖν τὸ χρυσοῦν γένος νικᾷ τὰ ἄλλα γένη.

22
descrito em cores vivas, sem, no entanto, remeter a nenhum caso concreto. O phílos é antes

tipificado, o que já é uma abstração que se encaminha para o conceito. Todas estas noções se

integram em Díke. Por outro lado, Díke só se torna minimamente compreensível a partir desta

integração.

É preciso lembrar que esta deusa é filha de Zeus e o último presente de Zeus aos

homens, para que este não se equipare às bestas. O espaço humano fica delimitado pelo que

ele não é: nem deus nem besta. Por ser filha, Díke é uma explicitação do pai. Por ser o último

presente aos homens, é através dela que Zeus quer que o homem se relacione com ele, o

ordenador do cosmos. Desta forma, é possível entender que as noções morais de Hesíodo são

tributárias das verdades que ele nos apresenta ao longo destes dois poemas e é possível

também entrever como a verdade humana de Os trabalhos e os dias guarda uma relação de

subordinação à verdade divina da Teogonia.

23
1. A relação entre filosofia e poesia

É preciso, antes de tudo, ter uma compreensão, a mais ampla possível, do ambiente

intelectual que recebeu e desenvolveu esse mesmo pensamento, isto é, o ambiente intelectual

da Grécia dos séculos VI, V e IV a.C.

A primeira seção deste capítulo será dedicada a construir, ainda que em linhas gerais,

uma visão dinâmica do efervescente ambiente de pensamento que atravessou o mundo grego

neste período. Para tanto, será necessário colocar em cheque a concepção de escolas

filosóficas pré-socráticas, que teve sua origem no século XIX. Com isso, até mesmo a visão

da filosofia como disciplina escolar será questionada.

A segunda seção apresentará um panorama do legado que a poesia grega deixou para o

pensamento filosófico emergente. Veremos que este pensamento teve de trabalhar com, contra

ou a partir destes poetas, mas jamais sem eles, uma vez que estes davam voz corrente ao

conhecimento produzido e acumulado na Grécia, além de desempenhar o papel de pano de

fundo contra o qual qualquer forma de expressão seria contrastada por seus contemporâneos.

1.1 O ambiente intelectual grego

As duas últimas décadas, a última do século XX e a primeira do XXI, testemunharam o

fortalecimento de um novo olhar dirigido ao ambiente intelectual grego do período anterior a

Sócrates, período este conhecido exatamente como présocrático, suscitando inúmeros

trabalhos de peso. No que diz respeito a Hesíodo, autor central da presente investigação,

destacam-se, entre outros, Le métier du mythe. Lectures d’Hésiode, de 1996, organizado por

Fabienne Blaise, Pierre Judet de La Combe e Philippe Rousseau e Plato and Hesiod, de 2010,

organizado por Johannes Haubold e George Boys-Stones, ambos os trabalhos reunindo


24
diversos estudiosos, não só de diferentes nacionalidades, como também de diferentes

formações teóricas, congregando classicistas, filólogos e filósofos.

Estas obras coletivas estão em perfeita sintonia com o novo olhar que está sendo

cultivado sobre a antiguidade grega e com o qual nossa pesquisa pretende se alinhar. Para dar

conta de explicar o que vem a ser esta nova mirada, lanço mão de dois artigos importantes que

questionam radicalmente o modo com o qual a questão vinha sendo encarada desde o final do

século XIX e ao longo de quase todo o século XX.

Um estudo de Laks 9 sobre o ambiente intelectual grego nos séculos imediatamente

anteriores ao século IV a.C, põe em cheque a existência de escolas filosóficas pré-socráticas

ressaltando que a crença na existência destas instituições é uma visão construída a partir de

Diels, pautada numa concepção demasiado abstrata, e duplamente anacrônica, das instituições

escolares, onde os rigores da “Wissenschaft 10” universitária se cruzam com as formas

institucionais posteriores a Sócrates.

Laks sustenta que ao enfocar aquele período específico o olhar contemporâneo projeta

categorias que não estavam presentes lá e vê uma estrutura organizada de ensino que na

verdade não existia. Além do mais, a existência desta estrutura no período platônico e

posterior contribui ainda mais para essa visão equivocada.

Em outras palavras, o olhar contemporâneo, acostumado que está a considerar a

universidade como local privilegiado de ensino e produção de saber, ao se voltar para a

antiguidade depara-se com organizações já fortemente estabelecidas, tais como a Academia

platônica, o Liceu aristotélico, o Jardim epicurista e o Pórtico estoico e identifica-se em

alguma medida com elas. Fortalecido por esse reconhecimento, o olhar contemporâneo

9
Laks (2006).
10
Em alemão no original.
25
avança para o chamado período pré-socrático e lá encontra escolas tais como a jônica, a

milésia, a pitagórica, sem levar em conta que as pessoas que participaram daquele fluxo de

debates talvez não se vissem desta forma, isto é, como membros de uma escola e talvez até

nem mesmo reconhecessem a existência das mesmas. Ainda que se leve em conta a existência

de uma escola pitagórica, que parece ser o movimento mais organizado dentre os citados, não

se pode ter como certo que seu principal objetivo fosse o ensino da filosofia, já que os

pitagóricos tinham também profundas preocupações religiosas e políticas.

Lloyd 11é ainda mais radical e, indo além da “desescolarização” de filosofia pré-

socrática, propõe também uma “desdisciplinarização”, ou seja, vai procurar pôr em cheque o

estatuto da própria filosofia que, segundo seu entendimento, só se constitui como tal a partir

de Sócrates. Assim sendo, além de não se poder falar de escolas pré-socráticas, também lhe

parece inadequado falar de filosofia, em sentido estrito, naquele período.

A tarefa que Lloyd se propõe é a de descrever e analisar as correntes de pensamento que

se entrecruzavam na vida intelectual da Grécia naquela época. A principal ferramenta de que

se vale é o exame das categorias que os próprios gregos utilizavam, partindo da premissa de

que estes não as empregavam da mesma maneira que é feita hoje em dia. O termo

“philósophos” era empregado, antes de Platão, em um sentido muito amplo, ora com valor

positivo, ora pejorativo e os campos de investigação destes indivíduos eram determinados por

interesses tão particulares que resulta impossível agrupá-los sob outra categoria que não seja a

de sábios, “sophói”, a mais genérica possível, mas que, por outro lado, revela-se a mais

adequada, não só porque era assim que os gregos designavam seus grandes pensadores àquela

época, mas, sobretudo, por ser a mais apropriada para dar conta do verdadeiro caleidoscópio

de temas, de formas de expressão e de métodos de investigação de então.

11
Lloyd (2002).
26
Ainda que esta visão torne problemática a designação desses pensadores como filósofos

pré-socráticos, continuarei, por força da tradição, a referir-me a eles como tal, mas alerto que

sempre que isso acontecer, todas as considerações acima se farão presentes, ainda que de

forma implícita.

Não se deve com isso renunciar à tarefa de dar sentido aos diferentes paradigmas de

empreitada intelectual que estavam em competição neste período, mas, na busca deste sentido,

alguma prudência é necessária. Em primeiro lugar, porque há uma marcada autonomia em

grande parte destes autores. Em segundo, as relações que estabeleciam entre si são muito mais

complexas do que nossas categorias podem alcançar. Além do mais, nenhuma das atividades

intelectuais identificáveis ao olhar atual demandava qualificações oficialmente reconhecidas.

Mesmo sob a perspectiva de uma crescente especialização, as fronteiras entre as disciplinas

permaneceram fluidas e contestáveis, e isto é particularmente verdadeiro para o quinto e

quarto século a.C. Entre a sofística, as matemáticas, a medicina, a história e a sabedoria dos

sábios, existia uma margem de manobra excepcional quanto à sua determinação 12.

Uma coisa é certa: em meio a toda esta indefinição terminológica no que diz respeito

tanto aos distintos campos de saber quanto à categorização dos seus investigadores, apenas

uma classe era amplamente reconhecida e se destacava, como espécie, dentro do gênero dos

sophoí, e esta é a dos aedos, isto é, os poetas.

As sucessivas desconstruções abordadas acima solicitam de imediato uma explicação

sobre o que é, num sentido restrito, a filosofia, e quando ela nasceu.

A resposta, como era de se esperar, não é tão simples assim. Uma resposta amplamente

aceita é a fornecida por Nightingale, a qual parece ser um ponto de partida apropriado para

12
Cf. Lloyd (2002) p. 53
27
uma reflexão sobre o problema: “A filosofia nasceu em Atenas, no quarto século A.C.,

quando Platão apropriou-se do termo “philosophia” para designar uma nova e especializada

disciplina. 13” Esta disciplina, aos olhos de Platão, consiste na busca da verdade através da

dialética. Entretanto, não se pode descuidar da investigação que Aristóteles faz, no livro I da

Metafísica, acerca dos primórdios da filosofia onde denomina aqueles que, antes dele,

investigaram os primeiros princípios como “os primeiros filósofos. 14”

Nightingale fala de uma disciplina já constituída, enquanto Aristóteles fala do seu

processo de constituição, apontando para o caráter histórico e teleológico da filosofia, bem

como para o critério por ele adotado para a inclusão de quem quer que seja na categoria de

“filósofo”, isto é, a investigação acerca das causas e princípios 15, cabendo ainda observar que

Aristóteles nomeia a ciência que investiga estes assuntos como “sophia” e não como

filosofia.

Convém lembrar que, numa passagem deste mesmo Livro I da Metafísica, o Estagirita

também declara que aqueles que se dedicaram aos mitos, “philómythoi”, eram, de certa

forma, filósofos 16. Aristóteles confirma a sua disposição em conceder alguma participação

dos “philómythoi” na filosofia convocando Hesíodo como, talvez, o primeiro a ter

enveredado por esta seara 17, porque ele apontou o Caos como origem de todas as coisas, ainda

que reconheça em Tales o iniciador deste tipo de filosofia 18.

Ao que parece, Aristóteles foi o primeiro autor a distinguir terminologicamente o que

ele chamou de “mythólogoi” e “theólogoi” por um lado, e “phýsikoi” e “physiólogoi” de

outro. No seu entender, o primeiro grupo era composto de contadores de histórias, poetas que

13
Cf. Laks ( 2006) p. 162
14
Aristóteles. Metafísica I.3, 983b 6-8.
15
Idem I.1, 982a 2-3.
16
Idem I.2, 982b 18-19.
17
Idem, I.4, 984b 23-24.
18
Idem, I.3, 983b 20.
28
narravam mitos sobre heróis e deuses e qualquer visão que se pudesse extrair de suas obras

sobre a natureza era incidental, obscura e filosoficamente desinteressante. Já o segundo grupo,

do qual ele aponta Tales como iniciador, estava engajado basicamente no mesmo tipo de

investigação acerca do mundo físico ao qual o próprio Aristóteles se dedicava. Ainda que as

teorias deles fossem deficientes em comparação às suas próprias, ele as considerava

filosoficamente significativas e dignas de serem estudadas, comparadas e refutadas 19.

Em meio a este processo de verdadeira ebulição intelectual que dominou o pensamento

grego arcaico, ainda cabe trazer à baila uma interessante metáfora cunhada por Laks para

descrever a vasta multiplicidade de personagens intelectuais na Grécia antiga, bem como seus

múltiplos campos de investigação e seus diversos modos de expressão. Trata-se da “nebulosa

dos primeiros filósofos. 20”

Uma nebulosa é um aglomerado de corpos celestes dotados de diferentes grandezas, que

podem ser referidas à grandeza individual de cada um destes pensadores, de Homero a

Sócrates; corpos estes constituídos de diferentes matérias, que podem ser referidas aos

campos de investigação abrangidos por cada um destes sábios, no dizer de suas épocas, ou

gênios, no da contemporaneidade; e diferentes aspectos, identificados à distância pelo seu

brilho, e que podem ser referidos tanto ao modo como se expressaram, seja por meio de

poemas, seja por aforismos, diálogos, relatos ou tratados argumentativos, quanto à beleza de

suas obras. Nesta nebulosa, Homero e Hesíodo despontam como corpos de grandeza, matéria

e brilho significativos.

A despeito de seu aspecto aparentemente desorganizado, mais parecendo uma

multiplicidade dispersa, a nebulosa caminha em torno, não de um ponto, mas de um eixo, o

19
Cf. Most (1999) p. 332.
20
Laks ( 2006) p. 166.
29
que finda por lhe conferir um aspecto espiralado, ou piramidal, se preferirem, que leva a um

ápice. O eixo que ordena o movimento da nebulosa dos primeiros filósofos também foi muito

bem apontado por Laks, trata-se da “reflexividade”. Em suas palavras: “Não se trata de uma

diversidade selvagem, mas reflexiva, que supõe tanto linhas de continuidade quanto

exploração sistemática de modelos incompatíveis. 21”

A reflexividade é, em última análise, o processo pelo qual a memória coletiva vai se

constituindo. Por reflexividade, entendemos um processo que conjuga um pensamento

reflexivo, isto é, um pensamento que se reconhece como tal e sempre retorna sobre si, com

um pensamento crítico que se dirige para o exterior e que vai lidar com diferenças, ora

assimilando-as, ora separando-as, sem jamais diexar de tê-las como diferentes, mas sempre

subordinadas a um critério estabelecido no presente.

Aristóteles nos fornece um bom exemplo de assimilação e de separação, já que para

explicar o surgimento da filosofia ele separou os que se dedicaram ao estudo da natureza dos

demais sábios e fez destes os primeiros filósofos, assimilando-os ao tema sua própria

investigação. Neste movimento, ele excluiu a ética – campo ao qual ele mesmo também se

dedicou – do âmbito da filosofia.

A Wissenschaft do século XIX tendeu a seguir a separação de Aristóteles, reconhecendo

apenas estes como os primeiros filósofos, esquecendo que Sócrates tomou exatamente o

caminho inverso, abandonando as investigações sobre a natureza e dedicando-se aos

problemas da ação humana.

Em outras palavras, a reflexividade é um processo intrínseco à memória que, por sua

vez, é constituída de lembrança e esquecimento do passado, onde todo este processo visa

21
Laks ( 2006) p. 167
30
responder a alguma necessidade presente. Dito ainda de outro modo, o olhar para o passado é

sempre condicionado por uma necessidade do presente. Num mundo que caminha cada vez

mais para a multidisciplinaridade, onde o entrelaçamento de diferentes formas de pensar sobre

um mesmo assunto é cada vez mais bem recebido, é natural que se tente entender o

surgimento da filosofia como uma conversa com a poesia, e não como uma ruptura.

1.2 A relação entre filosofia e poesia.

O conceito de reflexividade nos permitirá compreender melhor o processo pelo qual a

filosofia foi se constituindo, no chamado período pré-socrático, a partir de, com e contra a

poesia. Para fins didáticos, procuremos desmembrar este conceito em três momentos. No

primeiro, abordaremos a leitura ostensiva que a filosofia fez da poesia, quase sempre para

atacá-la. No segundo, procuraremos demonstrar que a pauta dos temas a serem tratados por

este discurso emergente estava largamente condicionada pelo discurso poético. No terceiro

momento, enfocaremos, ainda que superficialmente, como alguns dos que são

tradicionalmente considerados filósofos fizeram uso da força expressiva do discurso poético,

revelando-se, mais uma vez, herdeira da poesia.

Antes de prosseguir, é necessário salientar que esta divisão é artificial e proposta pura e

exclusivamente para lançar um foco de luz sobre a questão. Análises mais aprofundadas sobre

a relação entre a poesia e a filosofia revelarão superposições entre os três momentos

propostos.

31
1.2.1 A filosofia lê poesia.

É visível que os primeiros pensadores gregos ocuparam-se muito da poesia e, dado o

prestígio que a poesia desfrutava em sua sociedade, teria sido até mesmo irresponsabilidade

por parte deles se não o tivessem feito. Suas considerações a este respeito podem ser

encaradas como contribuições, ainda que rudimentares, para o desenvolvimento posterior de

uma disciplina filosófica, a poética. Se a filosofia emergente discutia sobre a poesia, sobre o

divino e sobre o conhecimento, ela já possuía, de forma rudimentar, bom que se frise, uma

poética, uma teologia e uma epistemologia. As visões produzidas acerca da poesia assumiam

um espectro bem amplo que ia desde a admiração e reconhecimento ao mais profundo

desprezo e hostilidade ostensiva. Acima de tudo, a poética dos primeiros filósofos parecia

querer expressar a sua distância com relação à autoridade que estes poetas exerciam na

sociedade grega e, ao explicitar esta distância, visava delimitar o que a poesia podia e o que

ela não podia comunicar. Equivale dizer, de forma implícita, que a filosofia mesma estaria

isenta destes limites. Deste modo, esta leitura ostensiva parece ter funcionado como uma

manobra de autolegitimação para o discurso filosófico.

Esta ofensiva visou, sobretudo, Homero e Hesíodo, que eram vistos na antiguidade

como fontes de onde se poderia aprender não só lendas heróicas e mitos sobre os deuses,

como também padrões de conduta, modelos de discurso e conhecimento prático. Esta visão

resistiu até mesmo ao ataque que foi desferido contra Homero por Platão no seu Íon, onde o

rapsodo do mesmo nome sustentava que Homero era um grande poeta exatamente porque era

um grande médico, profeta e general, ao que Sócrates rebatia dizendo que Homero falava

sobre estes temas por inspiração, sem tem qualquer conhecimento dos assuntos que abordava.

Se a imagem de Homero, e mesmo da poesia, conseguiu sobreviver a estas pesadas críticas,

isso se deu porque já estavam profundamente enraizadas na cultura grega. De fato, qualquer
32
criança grega que aprendesse a ler, invariavelmente lia Homero. E muitas liam apenas ele

durante toda a vida.

Mas antes do Íon de Platão, Xenófanes e Heráclito já os tinham reconhecidos como os

grandes educadores do mundo grego, o primeiro ao dizer que “no início todos aprenderam

com Homero 22”e o segundo que “Hesíodo é o mestre da maioria dos homens 23”. Mas foram

justamente estes os que proferiram as cargas mais pesadas ainda hoje preservadas contra os

grandes poetas gregos.

Xenófanes atacou a Homero e Hesíodo conforme o fragmento DK 21 B-11: “Homero

como Hesíodo atribuiram aos deuses tudo/ quanto entre os homens é infâmia e vergonha/

roubar, raptar e enganar mutuamente. 24” Esta crítica perdurou no pensamento grego, uma

vez que ela ressurgiu, quase que nos mesmos termos, na célebre passagem da República

(377c-378d), onde os dois poetas são censurados pelo mesmo motivo e a censura é a base do

argumento que finda por expulsar os poetas da cidade ideal.

O quadro muda sutilmente quando nos voltamos para Heráclito. Tomemos o fragmento

DK 22 B 40: “Muita instrução não ensina, pois a Hesíodo teria ensinado e também a

Pitágoras, ainda a Xenófanes e a Hecateu.” E agora o fragmento DK 22 B 42: “Este Homero

é digno de ser expulso dos festivais a bastonadas, e Arquíloco, do mesmo modo. 25”

Homero e Hesíodo, citados juntos por Xenófanes e por Platão, são mencionados em

separado por Heráclito. Homero figura junto a outro poeta, Arquíloco, e as bastonadas

22
DK 21 B 10.1. ἐξ ἀρχῆς καθ' Ὅμηρον, ἐπεὶ μεμαθήκασι πάντες ...
23
DK 22 B 57.1. διδάσκαλος δὲ πλείστων Ἡσίοδος·
24
DK 21 B 11. πάντα θεοῖσ᾿ ἀνέθηκαν ῞Ομηρός θ᾿ ῾Ησίοδός τε, / ὅσσα παρ᾿ ἀνθρώποισιν ὀνείδεα καὶ
ψόγος ἐστίν,/ kλέπτειν μοιχεύειν τε καὶ ἀλλήλους ἀπατεύειν. Todas as citações de Xenófanes
obedecerão à tradução de Santoro (2011).
25
DK 22 B 40. πολυμαθίη νόον ἔχειν οὐ διδάσκει·Ἡσίοδον γὰρ ἂν ἐδίδαξε καὶ Πυθαγόρην αὖτίς τε
Ξενοφάνεά τε καὶ Ἑκαταῖον. DK 22 B 42 τόν τε Ὅμηρον> ἔφασκεν <ἄξιον ἐκ τῶν ἀγώνων
ἐκβάλλεσθαι καὶ ῥαπίζεσθαι> καὶ <Ἀρχίλοχον> ὁμοίως. Tradução do autor.
33
reservadas a ambos podem ser entendidas como uma alusão ao bastão distintivo dos poetas 26.

De fato, uma vez que o bastão simbolizava a autoridade para falar 27, era também com o

discurso, um novo dicurso, que Heráclito pretendia suplantar os dois poetas.

Koning acrescenta 28, que embora Heráclito mencione Homero e Hesíodo mais vezes do

que todos os demais pré-socráticos somados, em nenhum dos seus fragmentos restantes

Heráclito apresenta Homero e Hesíodo juntos, o que o leva a concluir que para o efésio os

dois não pertenciam à mesma categoria, e que Hesíodo 29 foi agrupado junto com Pitágoras,

Xenofonte e Hecateu por abordar assuntos mais próximos às suas próprias investigações,

ainda que discorde de todos.

Most 30 assinala que o ataque direcionado para Hesíodo fez deste um rival mais sério aos

olhos de Heráclito, devido à natureza de sua poesia. Assim, em DK 22 B 57 31, Heráclito

denuncia que Hesíodo acreditava que dia e a noite eram coisas distintas, sem saber que ambos

eram o mesmo e, em outra passagem 32, reprova Hesíodo por dizer que uns dias eram bons e

outros nefastos, ignorando que todos os dias têm exatamente a mesma natureza. De fato,

Hesíodo os via como coisas distintas, já que tinha listado o Dia como filho da Noite e esta

como filha do Caos nos versos 123 e 124 da Teogonia, e tinha também apresentado um

catálogo de dias benfazejos e nefastos na última seção de Os Trabalhos e os Dias, versos 765

a 826.

26
Cf. Koning (2010) p.179 e nota 79.
27
Cf. Teog. 30-34.
28
Cf. Koning (2010) p.179 nota 80.
29
Koning ainda observa que Hesíodo foi nomeado primeiro e a alguma distância dos demais -
formulação que procurei preservar na minha tradução - como uma espécie de deferência a Hesíodo.
Cf. Koning (2010) p. 180, nota 87.
30
Cf. Most (1999) p.338.
31
DK 22 B 57. διδάσκαλος δὲ πλείστων Ἡσίοδος· τοῦτον/ ἐπίστανται πλεῖστα εἰδέναι, ὅστις ἡμέρην
καὶ/ εὐφρόνην οὐκ ἐγίνωσκεν· ἔστι γὰρ ἕν.
32
DK 22 B 106. <Ἡσιόδωι> τὰς μὲν ἀγαθὰς ποιουμένωι, τὰς δὲ φαύλας, ὡς ἀγνοοῦντι φύσιν ἡμέρας
ἁπάσης μίαν οὖσαν.
34
A sutileza do quadro já nos dá um direcionamento para a abordagem do problema: na

antiguidade, o poeta era tido com frequência na conta de filósofo, ainda que de forma mais

implícita do que explícita. Este enquadramento talvez fique mais visível quando se leva em

conta o modo como tanto Platão quanto Aristóteles comparam Hesíodo àqueles que hoje

consideramos como filósofos pré-socráticos. Platão, por exemplo, na passagem 178b do

Banquete, o compara a Parmênides, e Aristóteles o cita como um dos primeiros a filosofar em

Metafísica 984b. Plutarco e Diógenes Laércio mencionam Hesíodo junto a Parmênides,

Xenófanes e Empédocles, enquanto Homero está frequentemente ausente das listas dos

primeiros filósofos 33.

Conforme já vimos, Xenófanes atacou Homero e Hesíodo e foi atacado por Heráclito

num pronunciamento que pode ser considerado emblemático deste ambiente agônico: o que se

vê no fragmento 40 de Heráclito, descrito sob a ótica das categorias atuais, é um filósofo

atacando um poeta, um religioso com incursões pela matemática e pela filosofia, um filósofo

poeta e um historiador. Mas àquela época, a única categoria que era incontestavelmente

reconhecida era a do poeta. Além do mais, os campos de interesse das hoje distintas áreas de

saber – o termo disciplina é intencionalmente evitado – não estavam nitidamente delimitados.

O duplo ataque recebido por Hesíodo não é casual: sendo a poesia o único campo de

saber constituído e reconhecido pela cultura grega, tanto Xenófanes quanto Heráclito parecem

estar procurando cavar para eles mesmos, e não já para a filosofia ou para uma escola

filosófica, um espaço discursivo autônomo e privilegiado que se separa da forma de

comunicação social então estabelecida, ou seja, a poesia.

Xenófanes e Heráclito pareciam estar mais preocupados em conquistar um espaço no

cenário cultural grego do que com uma crítica à poesia propriamente dita. Foi só no quinto

33
Cf. Koning (2010) p.165.
35
século que um filósofo – Demócrito – desenvolveu uma teoria poética, infelizmente perdida.

Diógenes Laércio nos fala de obras atribuídas a ele, tais como A arte das Musas, Acerca da

poesia e Sobre o ritmo e a harmonia. Tudo indica que a ênfase destas obras recaia sobre o que

ele chamava enthousiasmos, um estado temporário de possessão divina que regia a

composição poética 34. Esta teoria pode ter sido desenvolvida para equilibrar as expectativas

intelectuais de seu tempo com aquilo que os poetas mais antigos declaravam ser a fonte de seu

conhecimento e habilidades. Platão parece ter se apropriado desta teoria para concluir que os

poetas não podiam prestar contas daquilo que afirmavam conhecer 35.

Assim, alguns dos filósofos arcaicos gregos lançaram os fundamentos de uma das mais

persistentes tradições polêmicas da poesia e da poética ocidental, recusando, implícita ou

explicitamente que os poetas estivessem de posse do conhecimento verdadeiro e relegando-os

a uma inspiração irracional inexplicável. Mas, por outro lado, outros também prepararam as

bases para uma medida recuperativa que protegeu os poetas deste mesmo ataque: a

interpretação alegórica.

A origem desta linha interpretativa é imprecisa. Sabe-se que certamente surgiu como

resposta aos ataques desfechados contra Homero e Hesíodo por alguns pensadores do VI

século AC. O enorme prestígio que os poetas desfrutavam motivou alguns admiradores a

buscar no corpo de suas obras o fundamento mesmo do pensamento daqueles que os

atacavam, procurando um sentido profundo que estaria escondido por trás do sentido literal de

seus poemas.

Entretanto, o termo “alegoria” é mais recente do que a técnica interpretativa que ele

veio a nomear. Tendo surgido já no século I aC, ἀλληγορία, que significa “dizer de outro

modo”, veio a substituir o que desde antes de Platão e Aristóteles era chamado de ὑπονοία. A

34
Cf. DK 68 B 17.
35
Cf. Íon. 534 a-d.
36
decomposição deste termo, por sua vez, resulta em algo como “sob” (ὑπο) “o pensamento”

(νοία), dando a entender que já era antiga a sensação de que existe um significado velado no

discurso poético, e que este significado já estava presente desde a sua composição,

demandando ser desvelado por um intérprete competente.

Dito de outro modo, o que ficou convencionado chamar-se interpretação alegórica

“supõe” – esta é uma boa tradução para hypónoia – de um lado, uma expressão alegórica

prévia e intencional, isto é, uma narração mitopoética, onde a ideia é conscientemente

convertida em imagem pelo poeta e, de outro lado, a existência de alguém que se encarrega de

reconstituir a ideia a partir da imagem, num processo interpretativo que pode ser chamado

alegorese. Supõe também o intuito, por parte do emissor deste discurso, de deixar à margem a

grande massa, impermeável ao movimento da alegoria para a alegorese.

Neste movimento, o grande público, ao qual a poesia originariamente se destina,

representa um enorme perigo, na medida em que esta massa de gente está fadada, já que

incompetente, a tomar o discurso poético pelo seu sentido literal, e não pelo figurado. Daí, um

corolário paradoxal: o mito só entrega sua verdade à filosofia e neste movimento, a filosofia

se apodera do mito, na medida em que interpretar é tornar-se senhor de algo 36.

Vista por este prisma, a questão primordial consiste, antes de tudo, em determinar se o

discurso foi composto com esta intenção de ocultar seu significado de uma determinada

audiência. Isto não parece ter sido o caso de Hesíodo.

Em primeiro lugar, porque, como é amplamente reconhecido, nosso poeta parece ter

visado um público extremamente amplo. Sua Teogonia articulou diversas divindades, muitas

delas locais, num conjunto que abrangeu todo o mundo grego e num movimento que, se não

deu aos gregos o sentimento de unidade política, certamente contribuiu sobremaneira para a

36
Cf. Sorel (2000) pag. 10-15.
37
construção de uma identidade cultural. Além disso, como já vimos, Heródoto, Xenófanes e

Heráclito são testemunhas do alcance de seus poemas.

Em segundo lugar, seu pensamento foi expresso de um modo próprio, que certamente

era bastante acessível para os de seu tempo, e não de outro modo. Se ele veio a parecer

estranho aos posteriores, a nós, o que nos cabe é tentar empreender a maior aproximação

possível - ainda que já sabendo, de antemão, ser isto impossível - deste modo próprio de

pensar.

Examinemos a questão mais de perto. Na Teogonia, Hesíodo apresenta Zeus como o

articulador do cosmos. O Cronida é então o princípio que dá unidade e inteligibilidade ao

mundo, coisa que, por si só, já merece uma investigação inteiramente direcionada para este

tema. Embora esta questão não seja diretamente abordada neste trabalho, uma vez que este

tem seu foco na construção de um discurso propriamente humano na obra do poeta, a partir

das suas duas verdades, esta afirmação funcionará sempre como premissa subjacente.

Já em Os Trabalhos e os Dias, se tomarmos Díke e as demais noções morais que lhe são

associadas, sejam elas divinizadas, como as duas Érides e também Aidôs e Nêmesis, seja

vagamente personificada, como Elpís, ou ainda, noções que não receberam nenhum

personificação, como hýbris e thársos, esta última traduzida por audácia do verso 319 37 e que

será estudada junto com Aidôs no último capítulo, veremos que não há nenhum sentido oculto

a ser resgatado, mas antes, uma expressão que precisa ser traduzida em termos atuais, tarefa

esta que pode e deve ser realizada a partir da leitura do próprio texto do poema.

37
Trab. 312. αἰδώς τοι πρὸς ἀνολβίῃ, θάρσος δὲ πρὸς ὄλβῳ.
Timidez vai com a pobreza, a audácia vai junto à riqueza.
38
Neste sentido, e apenas para dar uma indicação de como a questão será tratada, Díke, na

medida em que foi dada por Zeus aos homens 38, é o modo determinante da relação dos

homens com Zeus 39. E isto está dito de modo reto, não de outro modo.

Cabe lembrar que esta deusa é uma criação hesiódica, ausente no panteão homérico, que

não se presta para nenhuma interpretação física, já que não só não recebe nenhuma descrição

física, como também não dirige sua voz aos mortais, e sim a Zeus. Isto também é válido para

Aidôs e Nêmesis 40, igualmente divinizações do poeta, que tal como os três vezes inumeráveis

guardiões imortais 41 , vestem-se de ar, o que vale dizer, têm o corpo escondido, são invisíveis.

Tampouco Díke é uma alegoria moral, na medida em que não há outro sentido a ser captado

por intérpretes especializados. Tudo está dito, ainda que numa dicção mais antiga, de forma

ostensiva.

Assim sendo, a interpretação alegórica, a despeito de sua contribuição para a filosofia,

não será empregada como ferramenta hermenêutica neste trabalho.

1.2.2 A poesia como estrutura da filosofia

38
Trab. 276-279. τόνδε γὰρ ἀνθρώποισι νόμον διέταξε Κρονίων,/ ἰχθύσι μὲν καὶ θηρσὶ καὶ οἰωνοῖς
πετεηνοῖς/ ἔσθειν ἀλλήλους, ἐπεὶ οὐ δίκη ἐστὶ μετ' αὐτοῖς·/ ἀνθρώποισι δ' ἔδωκε δίκην,
Pois o Cronida dispôs aos homens a lei/ Aos peixes, às feras e às aves aladas,/ que se devorem. Justiça
não há entre eles./Aos homens, sim, deu a Justiça.
39
Trab.258-263. καί ῥ' ὁπότ' ἄν τίς μιν βλάπτῃ σκολιῶς ὀνοτάζων,/ αὐτίκα πὰρ Διὶ πατρὶ καθεζομένη
Κρονίωνι /γηρύετ' ἀνθρώπων ἀδίκων νόον, ὄφρ' ἀποτείσῃ/δῆμος ἀτασθαλίας βασιλέων οἳ λυγρὰ
νοεῦντες/ἄλλῃ παρκλίνωσι δίκας σκολιῶς ἐνέποντες./ταῦτα φυλασσόμενοι, βασιλῆς, ἰθύνετε μύθους.
E há ainda justiça, virgem engendrada por Zeus,/ honrada e cantada pelos deuses de Olímpia
morada./Quando alguém a ultraja, ou desdenha ou debocha,/ corre para junto do pai Zeus Cronida,
toma assento/ e denuncia a mente dos homens injustos para que pague/ o povo a loucura dos reis que
tramam vilezas/ e deturpam as transações com palavras esquivas.
40
Trab. 197-200. καὶ τότε δὴ πρὸς Ὄλυμπον ἀπὸ χθονὸς εὐρυοδείης/ λευκοῖσιν φάρεσσι καλυψαμένω
χρόα καλὸν/ ἀθανάτων μετὰ φῦλον ἴτον προλιπόντ' ἀνθρώπους/ Αἰδὼς καὶ Νέμεσις· τὰ δὲ λείψεται
ἄλγεα λυγρὰ.
Então. Para o Olimpo, desde a terra vasta,/belo corpo escondido em brancas vestes,/ à tribo dos
imortais irão, abandonando os homens,/ Pudor e Partilha. Só restarão tristes pesares.
41
Trab. 252-255. τρὶς γὰρ μύριοί εἰσιν ἐπὶ χθονὶ πουλυβοτείρῃ/ἀθάνατοι Ζηνὸς φύλακες θνητῶν
ἀνθρώπων,/ οἵ ῥα φυλάσσουσίν τε δίκας καὶ σχέτλια ἔργα/ἠέρα ἑσσάμενοι, πάντη φοιτῶντες ἐπ'
αἶαν.(Três vezes inumeráveis são sobre a terra fecunda/os imortais de Zeus, guardiães dos homens
mortais/ que vigiam as trocas e obras malsãs/ vestidos de ar, varrendo toda a amplidão.

39
Como acontece com os grandes artistas, Homero e Hesíodo formaram um gosto e este

gosto contribuiu para determinar a pauta de temas a serem discutidos por seus sucessores. Por

causa disto, seus herdeiros intelectuais tiveram de satisfazer alguns critérios, sobretudo em

suas reflexões sobre o cosmos, que mantinham uma afinidade espantosa com as principais

características das obras de Homero e Hesíodo. Por mais inovadoras que fossem suas

questões, eles permaneceram em muitos casos bastante fiéis a padrões da poesia arcaica no

que diz respeito aos assuntos abordados, observando os requisitos básicos daquilo que podia

aparecer como resposta satisfatória. Esta semelhança não parece ter sido casual. Deve antes

ser entendida como resultado do extraordinário sucesso literário, educacional e cultural

alcançado pelas principais obras dos principais poetas gregos.

Um estudo de Most investigou quais pontos daqueles poemas estavam também

presentes em textos posteriores, já que estes traços compartilhados nos permitem acessar as

necessidades intelectuais que os poetas souberam incutir na audiência e que suscitaram a

reação posterior do movimento da filosofia contra a poesia. Segundo o autor, estes fatores são

cinco: veracidade, essencialidade de conteúdo, abrangência de conteúdo, narrativa temporal e

ênfase na precisão microscópica em detrimento da macroscópica 42.

1.2.2.1 Veracidade

Por mais que nos quedemos admirados com a imaginativa originalidade e beleza

daqueles poemas, para Homero e Hesíodo, eles mesmos, o ponto que realmente importava era

assegurar que o conteúdo de suas obras fosse recebido de forma inconteste. Em outras

palavras, que seu discurso fosse recebido como verdadeiro.

42
Cf Most (1999) 342-350.
40
O conceito de verdade é coisa de extrema importância em todos os níveis da

comunicação humana, desde a conversa mais corriqueira até as mais profundas investigações

filosóficas. Como Levet observa, “a verdade é o orgulho do homem justo e honesto, a

ambição inteligente do sábio e do pensador e o privilégio do iniciado que contemplou o

real. 43”

O iniciado foi, em última análise, a primeira garantia de verdade, na grande maioria das

culturas, que o homem conseguiu para si, já que a voz do iniciado é o veículo da palavra

divina. A cultura grega não fugiu disso.

Koning os apresenta como legisladores e acrescenta que este status foi incutido pelos

próprios poetas na mente dos gregos 44. O recurso à autoridade das Musas permitia que o

relato de um evento ocorrido num passado remoto ou num presente afastado no espaço fosse

entendido como em perfeita conformidade aos fatos.

Xenófanes foi o primeiro a problematizar a relação entre o discurso humano e a

verdade. Neste sentido, tomemos os textos dos fragmentos DK 21 B 34:

E nenhum homem sabe ao certo coisa alguma

nem há de saber algo sobre os deuses nem sobre o que falo

pois, se no máximo ocorresse dizer algo perfeito,

ele mesmo, no entanto, não saberia; opinião é o que se cria sobre tudo.

καὶ τὸ μὲν οὖν σαφὲς οὔτις ἀνὴρ ἴδεν οὐδέ τις ἔσται

εἰδὼς ἀμφὶ θεῶν τε καὶ ἅσσα λέγω περὶ πάντων·

εἰ γὰρ καὶ τὰ μάλιστα τύχοι τετελεσμένον εἰπών,

αὐτὸς ὅμως οὐκ οἶδε· δόκος δ᾿ ἐπὶ πᾶσι τέτυκται.

43
Levet (1976) p.1.
44
Cf. Koning (2010.1) p.62-70.
41
E agora o texto DK 21 B 35:

Que tais coisas sejam opinadas como semelhantes às reais 45.

ταῦτα δεδοξάσθω μὲν ἐοικότα τοῖς ἐτύμοισι

Ambos os textos carregam uma crítica onde os nomes de Homero e de Hesíodo estão,

embora ausentes, diretamente implicados. No primeiro porque, ao apontar para a

impossibilidade de se conhecer os deuses, os poetas surgem como autoridade máxima para os

gregos neste assunto. No segundo devido à menção de uma fala que se assemelha à realidade

das coisas, onde o verso parece ter sido decalcado sobre versos de Homero e de Hesíodo. De

fato, em Odisséia 19. 203, o narrador homérico comenta a fala de Odisseu, disfarçado em

mendigo, a Penélope:

Seguiu dizendo muitas mentiras semelhantes aos fatos.

ἴσκε ψεύδεα πολλὰ λέγων ἐτύμοισιν ὁμοῖα·

O fragmento DK 21 B 35 também evoca a fala das Musas no verso 27 da Teogonia:

Sabemos muitas mentiras dizer, semelhantes aos fatos

ἴδμεν ψεύδεα πολλὰ λέγειν ἐτύμοισιν ὁμοῖα

Mas enquanto os versos de Homero e de Hesíodo referem a alguém que sabe dizer

mentiras – que é apenas uma das possíveis traduções para ψεύδεα - e, em seus respectivos

contextos, é sabido que as personagens envolvidas, Odisseu e as Musas, também podem dizer

verdades, o tom dos fragmentos aqui em visitados deixa como problemática a possibilidade

mesmo de se dizer e de se conhecer a verdade 46. Esta reticência é reforçada pela presença de

45
A tradução dos versos de Xenófanes respeita a de Santoro (2011), com pequena modificação
assinalada em itálico para o fragmento 35.
46
Não levaremos em conta aqui a discussão sobre se Xenófanes era também cético com relação à sua
própria fala, o que é motivo para outros estudos.
42
opinião - δόκος; δεδοξάσθω – em ambos os textos, o que parece apontar para um limite para o

conhecimento humano.

Depois de Xenófanes, Heráclito, Parmênides, Empédocles e Platão, que serão visitados

aqui, bem como todos os demais filósofos, seguirão investigando os limites do conhecimento

e requisitando a verdade como domínio privilegiado da filosofia. É interessante ressaltar que

todos estes o fizeram por meio de formulações poéticas. Esta questão da formulação poética

do discurso será abordada na próxima seção. Por hora, basta reter que a veracidade do

discurso sempre foi uma preocupação constante de todos os componentes da nebulosa pré-

socrática.

Mais tarde, Sócrates vai subsumir beleza e persuasão, as principais forças expressivas

do discurso poético, à verdade. Segundo ele, o discurso filosófico é belo e persuasivo

exatamente por ser verdadeiro.

1.2.2.2 Essencialidade de conteúdo.

Os assuntos que Homero e Hesíodo tratavam não eram temas menores para os gregos.

Ali estavam concentradas as matérias mais importantes para suas comunidades. Para a épica

heróica, a guerra era a forma suprema de interação humana. Os dois poemas de Homero

tratavam da guerra, focando em dois heróis que formam duas histórias complementares. Estas,

juntas, contêm as mais altas possibilidades de realização da vida humana. Aquiles morreu

jovem, distante de casa, em nome da glória, o valor máximo da ética heróica. Odisseu ficou

famoso exatamente pela sua habilidade em sobreviver e retornar a casa para restaurar sua

família e seu reino. Um era forte e veloz. O outro era astuto e mestre da palavra.

Hesíodo tece, na Teogonia, uma complexa teia de divindades aí vistas não só nas suas

relações familiares, mas como o desenvolvimento da estrutura religiosa e moral do universo,

43
desde os seus primórdios de luta e violência até a conquista do reino ordenado e justo do

kósmos de Zeus, a quem todos os poderes estão sujeitos, já que o Cronida estabeleceu a

partilha de competências e honras. Em Os Trabalhos e os Dias, narra as condições

fundamentais da existência humana, envolvendo trabalho, ansiedade, sofrimento, num mundo

que, cedo ou tarde, pune a violência, mesmo que por vezes a cidade inteira pague por conta de

um só.

A verdade que os filósofos proclamam saber não é qualquer verdade, mas a verdade

essencial, sobre as coisas que fazem este mundo ser como é. Neste sentido, stoichéa não são

quaisquer elementos, mas os elementos essenciais, sem os quais o mundo não seria o que é.

Estes filósofos tendem a interpretar a essencialidade do mundo num sentido numericamente

reduzido: princípios essenciais devem ser um ou poucos, para justificar seu privilégio. Tales

ao propor a água, não deixou de pagar um tributo a Homero, que já tinha apresentado Oceano

como princípio de todas as coisas, e a Hesíodo, que tinha feito de Styx o juramento dos

deuses. Mais tarde seus sucessores perceberam que a diversidade e a processualidade da

natureza requerem mais de um princípio explanatório, mas mesmo assim, procuram

estabelecer um número mínimo de causas como foi o caso de Aristóteles, com suas quatro

causas 47.

1.2.2.3 Abrangência de conteúdo.

Já vimos que a poesia oral podia funcionar como uma vasta enciclopédia que continha

um vasto repertório de conhecimento. Entretanto, dado às limitações inerentes à apresentação

oral, este material só podia ser apresentado em episódios relativamente breves. Homero e

Hesíodo, talvez assimilando a nova técnica da escrita, conseguiram criar um tipo de obra que

agrupava um material muito mais vasto do que até então se tinha conseguido.

47
Cf. Met.A.3.
44
Homero toma episódios breves como ponto de partida para a composição de seus

poemas, a ira de Aquiles para a Ilíada e o retorno da Odisseu para a Odisséia, mas consegue, a

partir daí, inserir em suas narrativas outros episódios, provavelmente herdados da tradição

oral, e construir um conjunto de obras que articula todas as instâncias da vida humana.

Hesíodo, com seu complexo sistema genealógico da Teogonia, colocou em relação várias

divindades locais admitidas nas diferentes regiões do mundo grego e as fez convergir para

uma origem comum, conforme atestam os versos 116 a 122 deste poema. Em Os Trabalhos e

os Dias, tomou a ordem (kósmos) estabelecida por Zeus como norte para a ação humana e, a

partir desta ordem, discorreu sobre todas as atividades humanas, mostrando que estas podem e

devem estar em concordância com a lei divina. A maestria dos dois poetas em articular

conteúdos à primeira vista desconexos garantiu ao conjunto da obra uma visão de todo que se

mostrou tão fundamental que fez com que os dois fossem reconhecidos como os pilares da

construção do espírito pan-helênico.

Seus herdeiros imediatos parecem ter adotado uma estratégia semelhante, reduzindo o

número de princípios ou causas e procurando explicar com eles o maior número possível de

eventos. Com isso eles se permitem apresentar uma ou poucas coisas como controladoras e

produtoras de tudo o que há. Assim sendo, e apenas para citar alguns, Anaximandro postulou

o ápeiron como princípio de todas as coisas, Anaxímenes, o ar e Anaxágoras, noûs.

Empédocles disse que tudo o que existe provém do fogo, do ar, da terra e da água, que

interagem sob a ação de philía e de neîkos.

É possível perceber uma forte interdependência entre essencialidade e a abrangência.

Enfatiza-se a primeira quando se enfoca o número de princípios ou causas. Enfatiza-se a

segunda ao se enfocar a multiplicidade dos efeitos.

45
1.2.2.4 Narrativa temporal

No que concerne à narrativa temporal, Homero faz uso de diversos recursos estilísticos,

como suspense, surpresa, avanços e recuos no tempo, interrupção e repetição com

extraordinária habilidade. Já Hesíodo, na Teogonia, submete sua narrativa da organização do

mundo a uma estrutura temporal, contando-a como uma sucessão de gerações de deuses que

são apresentados de forma dinâmica, descrevendo as relações estabelecidas entre eles, seja de

aliança ou de hostilidade, até o estabelecimento da ordem de Zeus. Em Os Trabalhos e os

Dias, é nos mitos de Prometeu e das raças que Hesíodo vai lançar mão da temporalidade

linear para explicar que a presente condição humana tem uma história, coisa que nos permite

dar uma resposta a uma pergunta essencial do homem: quem somos, de onde viemos e para

onde vamos. Por outro lado, a seção dos trabalhos é regida pela circularidade das estações do

ano, já que este trecho do poema começa e acaba com a estrela Sírius ocupando a mesma

posição no céu.

A preocupação de Hesíodo em procurar ordenar temporalmente a sua narrativa será

abordada em maior detalhe no terceiro capítulo.

A tendência dos primeiros fisiólogos para uma narrativa temporal era orientada pela

busca pelo princípio, pelo arché. Este é um dos aspectos onde eles seguiram mais de perto a

lição herdada da poesia: para dizer o que uma coisa é, é necessário dizer como ela ocorreu

pela primeira vez.

1.2.2.5 Ênfase na precisão microscópica

A despeito de toda esta sensibilidade no que toca a estrutura narrativa, a épica grega

tende a privilegiar eventos definidos em detrimento de considerações mais amplas. Conforme

já foi descrito, ambos os poemas de Homero tocam um único tema, apresentados já nos

46
primeiros versos de cada um, a ira de Aquiles e o retorno de Odisseu. Os indícios de uma

organização formal em maior escala e de subordinação rigorosa das demais partes ao tema

central são tão escassos e sutis que muitos eruditos nem sequer se deram conta deles. A Ilíada

não termina com o fim da ira da Aquiles contra Agamêmnon, mas se prolonga, dirigindo-se

contra Heitor e se estende até a reconciliação parcial do herói com Príamo, incluindo, no

desenrolar do poema, vários episódios militares não totalmente indispensáveis ao tema.

Na poesia de Hesíodo, a organização formal é, aparentemente, ainda mais ausente. A

progressão do pensamento de uma seção para outra, e, em muitos casos, de um verso para

outro é por vezes tão difícil de determinar, que muitos estudiosos foram levados a crer que

seus poemas, sobretudo Os Trabalhos e os Dias, eram desprovidos de qualquer sequência

lógica.

Por outro lado, os poetas demonstraram extraordinário domínio de todas as técnicas e

recursos da linguagem poética e do complexo metro da tradição oral grega. A espantosa

habilidade de Homero e Hesíodo de, verso a verso, fazer uso inventivo e original do acervo de

versos formulares, bem como de adequar velhas e novas palavras ao rígido limite do verso

heróico levava ao ouvido treinado a justa mistura de familiaridade com o toque de surpresa

sem o que essa poesia seria tediosamente previsível ou incompreensivelmente nova.

Do mesmo modo, nos textos remanescentes dos primeiros cosmólogos, a despeito da

natureza fragmentária destes textos, encontramos suas doutrinas formuladas acima de tudo

por meio de proposições individuais. O maior exemplo disso é, sem sombra de dúvida,

Heráclito, cujos textos que nos chegaram são dotados de enorme força expressiva, mas não se

pode desprezar, de modo algum, o irresistível chamado de Parmênides, quando este nos

convida a investigar os caminhos do ser. Estes textos parecem funcionar com a mesma força

47
autônoma de alguns versos de Hesíodo, como “a metade é maior do que o todo 48” ou

“Guarda a medida: a oportunidade é o que há de melhor 49”.

1.2.3 A fala poética da filosofia

Alguns destes filósofos parecem ter deliberadamente escolhido estratégias textuais

intimamente associadas à poesia arcaica. Xenófanes, Parmênides e Empédocles escreveram

seus textos em versos hexâmetros dactílicos, os mesmos de Homero e Hesíodo. O motivo

desta escolha, num momento onde a escrita em prosa já estava bem estabelecida e já tinha se

mostrado mais adequada para o discurso filosófico, ainda é uma dificuldade interpretativa

bastante significativa.

Uma explicação possível é a pretensão de caráter lato daquele discurso. Como já vimos,

foi só no quarto século a.C., com o estabelecimento das escolas filosóficas de Atenas, que a

filosofia consolidou-se como uma disciplina ou forma de pensamento autônoma e

independente e começou a travar um diálogo mais fechado entre aqueles que a ela se

dedicavam. Os pensadores anteriores a este período falavam e escreviam não só uns para - ou

contra - os outros, como também para toda a sociedade. Em outras palavras, o sentimento de

pertença e de dependência destes pensadores com relação à sociedade e à cultura de seu

tempo era muito forte e isso deve ter influído bastante na formulação e na expressão de seus

pensamentos.

A incorporação de elementos poéticos no discurso destes pensadores e de outros,

como Anaximandro, parece ter servido para a construção de suas próprias imagens e o

resultado é que, ainda que eles quisessem afirmar-se, cada um deles, como os porta-vozes

de um novo tipo de saber, a poesia e os poetas nunca deixaram de ser o pano de fundo a

48
Trab. 40. νήπιοι, οὐδὲ ἴσασιν ὅσῳ πλέον ἥμισυ παντὸς
49
Trab. 694. μέτρα φυλάσσεσθαι· καιρὸς δ' ἐπὶ πᾶσιν ἄριστος.
48
partir do qual eles construíram seus discursos. Não é o momento, aqui, de apresentar uma

análise detalhada do pensamento de cada um, mas antes de mostrar que a formulação e a

expressão de suas questões permaneceu largamente atrelada à forma poética. Aquilo que

chegou a ser considerado como uma ruptura com o mito e a poesia, parece antes ter sido

um continuum.

Ainda que Anaximandro tenha escrito em prosa, sua dicção foi descrita por Simplício

(In phys. 24.13) como altamente poética. De fato, ele fazia uso frequente dos símiles

homéricos. Apenas para citar um exemplo, descreve o sol como “um círculo de fogo

semelhante à roda de uma carruagem, com um furo semelhante ao bocal de um fole.” (Aécio

2. 25.1) Essa comparação de fenômenos distantes e majestosos a coisas familiares e

corriqueiras facilita a compreensão e desencanta o mundo, coisa que , mais tarde a filosofia

efetivamente buscará fazer.

Heráclito teve o cuidado de formular seus pensamentos numa linguagem que trouxe

da poesia tradicional os meios efetivos de expressão para torná-la mais plausível. Seus

aforismas parecem funcionar com a mesma força autônoma de alguns versos de Hesíodo e

de Homero.

Platão, mais do que todos, fez uso de diversas estratégias oriundas da poesia para

comunicar seu pensamento, seja criando mitos, como o da caverna na República, ou ainda o

da parelha alada, no Fedro, seja adaptando algum já existente, como o mito das raças em

República, Leis, Timeu e Político 50.

Aristóteles parece ter sido o primeiro filósofo a construir um discurso inteiramente

isento de influência do discurso poético, mas isso não quer dizer que o estagirita estivesse

50
Ver adiante, terceiro capítulo.
49
alheio às questões levantadas pela poesia. Além da sua Poética, as diversas citações poéticas

que ele faz em sua obra, notadamente em Ética a Nicômaco, são testemunhos disso.

O exame de como alguns filósofos lidaram com dois tópoi poéticos fortemente

interligados, o da fala inspirada e o do distanciamento dos homens como recurso de

autolegitimação, pode colocar ainda mais em evidência a intensidade do debate cultural

daquela época. A nebulosa dos pré-socráticos de André Laks deslocava-se, efetivamente, em

torno de um eixo comum.

O recurso à inspiração divina para auferir veracidade ao discurso é por demais

conhecido e dispensa apresentação. Uma vez que retornarei à questão adiante, basta, para o

momento, lembrar que Homero e Hesíodo o empregaram desde o primeiro verso de cada um

de seus principais poemas, sendo que em Hesíodo, “Musas” é mesmo a primeira palavra de

ambos.

A questão do distanciamento dos homens é figura igualmente comum. Quando Hesíodo

recebeu a inspiração para o canto, estava apartado dos homens, pastoreando suas ovelhas nas

encostas do monte Hélicon 51. Quanto a Homero, ele mesmo nunca se afasta dos homens, mas

Ulisses o faz, tanto na descida ao Hades, quanto no episódio do canto das Sereias, onde ele

ordena a seus companheiros para taparem-se os ouvidos para que só ele ouvisse o relato. Este

tópos parece querer reforçar que o conhecimento não é algo acessível a todos, mas apenas a

alguns.

Xenófanes rejeita ambos os tópoi radicalmente. Rejeita a separação dos homens, não

como figura de linguagem, mas como ação: ele jamais se afastou dos homens. Ao contrário,

51
Teog. 22-23. αἵ νύ ποθ' Ἡσίοδον καλὴν ἐδίδαξαν ἀοιδήν,/ ἄρνας ποιμαίνονθ' Ἑλικῶνος ὕπο
ζαθέοιο.
50
passou mais de setenta anos cantando entre eles 52. Uma vez que ele se apresentava como um

peregrino, deve ter sido oportuno para ele lançar mão da poesia, mas o fez separando-a de

suas raízes divinas por meio de seu ceticismo e de sua crítica moral, para apresentar seu

pensamento no seio das competições poéticas nas cidades que visitava. A inspiração como

fonte do conhecimento é posta em cheque: “Os deuses de início não mostram tudo aos

mortais,/ mas os que investigam, com o tempo, descobrem o melhor. 53”

A crítica moral de Xenófanes já é famosa. Seus ataques aos deuses de Homero e de

Hesíodo resultaram na visão de uma representação de deuses imorais. Por conta disso, ele

propôs a existência de um deus em nada parecido com os homens.

Daí deriva o seu ceticismo: ao rejeitar o antropomorfismo dos deuses antigos – e o

antropocentrismo que a este se segue, o que vem à tona é, conforme vimos há pouco, a

falibilidade do conhecimento humano.

O tema do afastamento dos homens também está presente em Heráclito, sob forma de

ação: o efésio procurou afastar-se do convívio dos homens, o que certamente contribuiu para

construir a sua imagem de homem sábio.

Entretanto, sua obra não está isenta de influência mitopoética, não só na forma,

conforme atesta o seu estilo oracular, como também no conteúdo. Neste quadro, ele reconhece

que a comunicação verbal entre deuses e homens é possível, ainda que problemática; o senhor

do oráculo não diz nem oculta: assinala 54.

52
DK 21 B 8. ἤδη δ' ἑπτά τ' ἔασι καὶ ἑξήκοντ' ἐνιαυτοὶ/ βληστρίζοντες ἐμὴν φροντίδ' ἀν' Ἑλλάδα
γῆν·
53
DK 21 B 18. οὔ τοι ἀπ' ἀρχῆς πάντα θεοὶ θνητοῖσ' ὑπέδειξαν,/ ἀλλὰ χρόνωι ζητοῦντες
ἐφευρίσκουσιν ἄμεινον.
54
DK 22 B 93. ὁ ἄναξ, οὗ τὸ μαντεῖόν ἐστι τὸ ἐν Δελφοῖς, οὔτε λέγει οὔτε κρύπτει ἀλλὰ σημαίνει.
51
Vimos então que tanto em Xenófanes quanto em Heráclito o mito e a poesia

desempenharam importante papel na construção e na expressão de seus pensamentos. Mas em

ambos os casos, estes não foram estruturantes de suas obras. Ainda que incorporando temas e

formas expressivas poéticas, estes pensadores puseram em marcha uma verdadeira máquina

de guerra contra os poetas, se bem que, no caso particular de Heráclito, ele atacou igualmente

outras formas de expressão, como atesta o fragmento 40.

Já em Parmênides, os elementos mitológicos estão integrados ao argumento. Interpretar

o status destes elementos é um dos problemas filosóficos cruciais apresentados pelo poema,

coisa que tem sido ignorada pela tendência, ainda hoje persistente, de separar mito e lógos,

tendência esta que ignora que tanto um quanto outro são expressões da mesma dificuldade: a

relação entre pensamento e fala 55.

Recapitulando brevemente o poema de Parmênides, há o proêmio, onde o narrador

conta o encontro com a deusa que diz que é preciso que “te instruas: tanto do intrépido

coração da Verdade persuasiva/ quanto das opiniões de mortais em que não há fé

verdadeira. 56” Na segunda parte, a deusa discorre sobre a natureza da única via de

investigação verdadeira, o caminho do que é. Na terceira, estão apresentadas as opiniões dos

mortais a respeito do mundo fenomênico. A questão central do poema está na necessidade da

escolha (κρíσις) entre as duas vias possíveis de investigação, o caminho do ser e o caminho do

não-ser.

Há dois aspectos, para o que interessa este trabalho, a serem salientados. Primeiro, que

este núcleo está formulado sob os conceitos retóricos da persuasão (πειθώ) e de sua

consequência, convicção (πίστις). Desta forma, a investigação da realidade está intimamente

55
Cf. Morgan (2000) p.67.
DK 28 B 1.28-30. χρεὼ δέ σε πάντα πυθέσθαι/ ἠμὲν Ἀληθείης εὐκυκλέος ἀτρεμὲς ἦτορ/ ἠδὲ βροτῶν
56

δόξας, ταῖς οὐκ ἔνι πίστις ἀληθής.


52
ligada a uma habilidade de formulá-la de um modo aceitável. O caminho “do que é” é o

caminho da persuasão, e esta acompanha a verdade 57, enquanto o caminho do que não é não

pode ser objeto de investigação porque o que não é não pode ser nem conhecido nem dito 58.

Além do mais, se o que não é não admite pensamento ou expressão, ele é incapaz de

persuadir. Desta forma, ele é desprovido da consequência primária da verdade, qual seja, a

persuasão.

Assim sendo, na raiz da crise, vemos indissolúveis, processos lógicos e retóricos.

O segundo aspecto é decorrente do primeiro. Há que se considerar a vividez da

linguagem empregada por Parmênides. Persuasão e Convicção são personificações rarefeitas,

assim como Díke, Elpís e Aidôs em Hesíodo 59. Uma acompanha a verdade e a outra afasta a

geração e a corrupção. Em DK 28 B 8. 13-15, a Justiça não permite .... , enquanto

Necessidade mantém [o ser] nas amarras do limite (B8. 30-31). Estas personificaões estão

inteiramente intergadas à estrutura epistemológica do poema. Elas foram introduzidas no

proêmio e permaneceram presentes ao longo de todos os fragmentos que nos chegaram,

resultando num meio extremamente eficaz de comunicar os rigores das articulações lógicas

por meio de uma linguagem extremamente acessível aos de seu tempo.

57
DK 28 B 2.4. Πειθοῦς ἐστι κέλευθος (Ἀληθείηι γὰρ ὀπηδεῖ).
58
DK 28 B 2.5-8. ἡ δ' ὡς οὐκ ἔστιν τε καὶ ὡς χρεών ἐστι μὴ εἶναι,/ τὴν δή τοι φράζω παναπευθέα
ἔμμεν ἀταρπόν·/ οὔτε γὰρ ἂν γνοίης τό γε μὴ ἐὸν (οὐ γὰρ ἀνυστόν)/ οὔτε φράσαις.
59
Por personificações, entendemos forças que agem no homem e que são hipostatizadas, no quadro da
expressão mítica, o que, de certa maneira, dá a entender que o homem foi arrebatado por uma força
exterior que o levou a agir de determinada forma. Algumas destas personificações ganham
representações antropomórficas, como é o caso de Afrodite, Diónisos e muitos outros. Outras são
rarefeitas, diáfanas, como Díke (Trab.223), Aidôs e Nêmesis (Trab.198), que são descritas por
Hesíodo como vestidas de ar, ou ainda Elpís e os males contidos no pote de Pandora, dos quais
Hesíodo não nos dá nenhuma descrição positiva, limitando-se a dizer que agem em silêncio, pois Zeus
privou-lhes da voz (Trab.104). Não tentaremos estabelecer por que algumas destas personificações são
mais concretas do que as outras, tarefa que nos parece ser mais impossível do que desnecessária. Por
outro lado, quando nos damos conta de que a hýbris não recebeu, por parte de Hesíodo, nenhum tipoo
de personificação, percebemos que há aí um contraste importante: por não ser personificada, hýbris
não pode ser externa ao homem, o que nos convida a pensar que o poeta a tinha na conta de uma força
interna, essencial, contra a qual o homem tem que se bater para alcançar a vida boa. Retornaremos a
isto quando tratarmos do mito das raças.
53
O tema do afastamento dos homens aparece duas vezes. No proêmio ele é mais evidente

e já aparece mesmo no primeiro verso (DK B 1.1), com uma diferença significativa com

relação a Hesíodo: agora é o homem quem se desloca até a deusa, e não a deusa quem vem até

ele. O texto do proêmio mostra que houve esforço e mérito da parte do narrador. Desta forma,

a acolhida da deusa é justificada, num claro contraste à escolha voluntariosa das Musas de

Hesíodo, quando estas resolveram ensinar-lhe o canto nas encostas do Hélicon. A segunda

aparição deste tema ocorre na apresentação das duas vias de investigação 60. Aqui, pela

primeira vez em toda a literatura grega preservada, o motivo do afastamento é claramente

explicitado: o narrador se afasta da maioria dos mortais porque estes pensam de forma

confusa, igualando ser e não-ser. Este motivo será repetido por Platão no mito da caverna,

mas em Parmênides este afastamento só se deu porque foi mediado por divindades que são ao

mesmo tempo articuladoras do pensamento.

O tema da inspiração foi modificado para revelação. Em vez do poeta falar com a voz

das Musas, ou destas falarem por seu intermédio, o narrador do poema ouve a fala da deusa.

Por isso, Koning entende que Parmênides estava ciente das críticas que seus

antecessores já tinham lançado contra Hesíodo. Assim, ele transformou o tópos da iniciação

em revelação e fez dele um programa para a apresentação do seu pensamento. De qualquer

forma, Hesíodo permanece um modelo 61.

60
DK 28 B 6.3-9. πρώτης γάρ σ' ἀφ' ὁδοῦ ταύτης διζήσιος <εἴργω>,/ αὐτὰρ ἔπειτ' ἀπὸ τῆς, ἣν δὴ
βροτοὶ εἰδότες οὐδὲν/πλάττονται, δίκρανοι· ἀμηχανίη γὰρ ἐν αὐτῶν/ στήθεσιν ἰθύνει πλακτὸν νόον·
οἱ δὲ φοροῦνται/ κωφοὶ ὁμῶς τυφλοί τε, τεθηπότες, ἄκριτα φῦλα,/ οἷς τὸ πέλειν τε καὶ οὐκ εἶναι
ταὐτὸν νενόμισται/ κοὐ ταὐτόν, πάντων δὲ παλίντροπός ἐστι κέλευθος.
Pois afasta-te desta primeira via de investigação/ em seguida daquela em que os mortais que nada
sabem/forjam, bicéfalos; pois despreparo guia em frente/ em seus peitos um espírito errante; eles são
levados,/ tão surdos como cegos, estupefatos, hordas indecisas,/ para os quais o existir e o não ser
valem o mesmo/ e não o mesmo, de todos o caminho é de ida e de volta.
61
Cf. Koning (2010) p.181-183.
54
As opiniões dos mortais são apresentadas como distintas da verdade 62, numa nítida

reação à crítica de Xenófanes. Mas Parmênides não é um cético. Sua deusa lhe ordena que se

instrua sobre todas as coisas, isto é, tanto a verdade, coisa impossível para Xenófanes, quanto

as opiniões dos mortais.

Há aí uma reação também a Heráclito. Como mestre de muitos, Hesíodo podia

determinar às pessoas sobre quais assuntos elas deviam se instruir, o que vai contra a visão do

efésio de que elas devem investigar por si próprias. Parmênides parece responder a esta crítica

atenuando – mas não abolindo - a autoridade da deusa: em DK 28 B 7, o ouvinte é instado a

verificar o relato da deusa 63.

Outro pensador a ser visitado com relação às figuras que estamos tratando é

Empédocles.

Resumindo ao máximo o teor da sua doutrina, seu mundo é constituído por quatro

elementos – ou raízes: ar, terra, fogo e água, que se combinam e se separam incessantemente

para formar os compostos que vemos cotidianamente.

As forças de união e de separação são chamadas por ele Amor (Φιλία) e Discórdia

(Νεῖκος), respectivamente. Amor une elementos distintos num arranjo harmonioso que

culmina numa mistura perfeitamente homogênea que é a Esfera Cósmica. Eventualmente,

Discórdia penetra na Esfera, abalando esta unidade e precipitando a separação. Das partes

separadas da Esfera surgem as coisas, como os animais e as plantas. Isto se dá continuamente,

mas é provável, embora não fique claro a partir dos fragmentos remanescentes de sua obra,
62
DK B 1.30. ἠδὲ βροτῶν δόξας, ταῖς οὐκ ἔνι πίστις ἀληθής.
63
DK 28 B 7. οὐ γὰρ μήποτε τοῦτο δαμῆι εἶναι μὴ ἐόντα·/ ἀλλὰ σὺ τῆσδ' ἀφ' ὁδοῦ διζήσιος εἶργε
νόημα/ μηδέ σ' ἔθος πολύπειρον ὁδὸν κατὰ τήνδε βιάσθω,/ νωμᾶν ἄσκοπον ὄμμα καὶ ἠχήεσσαν
ἀκουήν/ καὶ γλῶσσαν, κρῖναι δὲ λόγωι πολύδηριν ἔλεγχον/ ἐξ ἐμέθεν ῥηθέντα. μόνος δ' ἔτι μῦθος
ὁδοῖο/ λείπεται ὡς ἔστιν· ταύτηι δ' ἐπὶ σήματ' ἔασι
Pois isto não, nunca hás de domar não entes a serem;/ mas o que pensas, separa desta via de
investigação;/ nem o hábito multitudinário desta via ao longo te force/ a vagar o olhar sem escopo e
ressoar ouvido/ e língua, mas discerne pela palavra a litigiosa contenda por mim proferida.
55
que haja também grandes ciclos de união e de separação, fazendo com que o universo seja

repetidamente criado e destruído.

O problema é que a vida dos homens é curta demais para acompanhar todo este eterno

movimento de união e separação dos elementos. Daí resulta que os pensamentos dos homens

são confusos, na medida em que tomam a pequena parte que experimentam pelo todo. Isto se

reflete, naturalmente na linguagem que os homens empregam. Empédocles propôs-se a tarefa

de comunicar-lhes a verdade.

Para tanto, lançou mão, além de outros recursos como o símile 64 e dos motivos do

afastamento dos homens e da inspiração. Mais uma vez, estes motivos foram rearranjados

para servir a propósitos próprios. O problema da relação entre linguagem e mundo está,

talvez, mais explicitamente presente aqui do que em qualquer outro pensador grego que tenha

lançado mão destas ferramentas.

Empédocles emprega o tema do afastamento da forma mais radical possível. Em vez de

ser um mortal com quem os deuses vêm ao encontro ou de ir ao encontro com o divino, ele

mesmo apresenta-se como um deus 65, decaído entre os homens causa de um falso

juramento 66.

Morgan observa que a quebra do juramento já põe em questão o poder unificador do

discurso. Neste contexto, quando um deus jura em falso, ele instaura uma cisão entre as

palavras e o mundo, cisão esta que deve ser instanciada com sua própria separação do mundo

divino. Tudo isto se dá sob o âmbito da Discórdia, força que além de presidir a separação dos

64
Em DK 31 B 23.1-8, ele compara a união dos elementos à tarefa de um pintor que, misturando
cores, dá origem a árvores, homens, mulheres, animais e pássaros.
65
DK 31 B 112.3. χαίρετ'· ἐγὼ δ' ὑμῖν θεὸς ἄμβροτος, οὐκέτι θνητός.
alegrai-vos; eu para vós um deus imortal, não mais mortal.
66
DK 31 B 115.13-14. τῶν καὶ ἐγὼ νῦν εἰμι, φυγὰς θεόθεν καὶ ἀλήτης,/ νείκεϊ μαινομένωι πίσυνος.
Destes, também eu agora sou, dos deuses banido, errante, em furioso ódio tendo confinado. Para a
tradução dos textos de Empédocles, segui José Cavalcanti de Souza (1991).
56
elementos, preside também a separação entre as palavras e as coisas. Deste modo, a ação

unificadora do Amor deve ser entendida não só como (re)unificadora dos elementos, mas

também como garantidora da coesão do discurso 67.

A distância entre o divino Empédocles e os mortais é tão grande que ele é obrigado a

recorrer à Musa para que esta lhe diga “do que é lícito a efêmeros ouvir 68.” Ora, esta é a

única referência de Empédocles à deusa e uma vez que ela é essencialmente ligada à palavra,

sua invocação serve para potencializar ao máximo o problema da linguagem. Empédocles

pede à Musa para que ela lhe ensine a falar em termos humanos.

A figura da inspiração sofreu aqui uma inversão total com relação ao seu uso habitual.

Ela vinha sendo usada como instrumento de justificação de um conhecimento adquirido por

um mortal. Mas isto agora está fora de questão: Empédocles é divino, o que equivale dizer

que ele sabe tudo e seu conhecimento é dispensado de justificações. O recurso à inspiração

recai então sobre o problema da linguagem, seus limites e seu aspecto convencional,

conforme atestam os fragmentos DK 31 B 8 “Outra te direi: não há geração de nenhuma

dentre todas/ (as coisas) mortais, nem algum fim em destruidora morte/ mas somente mistura

e dissociação das (coisas) misturadas / é o que é, e geração isto se denomina entre os

homens 69” e B9.5, onde o tema da convenção da linguagem dos homens, que insistem em

chamar mistura de geração e separação de morte, retorna e ao qual o deus se conforma: “por

costume falo também eu. 70”

A figura da inspiração também estava presente na obra de Platão, assumindo valores ora

negativo, ora positivo. No Íon ela foi francamente rejeitada, na medida em que esta permitia

67
Cf. Morgan (2009) p.60.
68
DK 31 B 3.4. ἄντομαι, ὧν θέμις ἐστὶν ἐφημερίοισιν ἀκούειν.
69
DK 31 B 8. ἄλλο δέ τοι ἐρέω· φύσις οὐδενὸς ἔστιν ἁπάντων/ θνητῶν, οὐδέ τις οὐλομένου θανάτοιο
τελευτή,/ ἀλλὰ μόνον μίξις τε διάλλαξίς τε μιγέντων/ ἔστι, φύσις δ' ἐπὶ τοῖς ὀνομάζεται ἀνθρώποισιν.
70
DK 31 B 9.5. νόμωι δ' ἐπίφημι καὶ αὐτός.
57
que os poetas falassem algo verdadeiro sem nenhum conhecimento de causa. No Fedro ela é a

causa do primeiro discurso de Sócrates, mas exatamente por ser uma fala inspirada, o discurso

precisou ser refeito. Mas esta figura é admitida, em alguma medida: a Musa foi substituída

pelo daimon que acompanhava Sócrates, sem, no entanto lhe revelar nada, apenas

aconselhando-o a não tomar uma determinada atitude. Esta atuação do daimon restrita à

negativa mostra, por via indireta, que no que diz respeito à sabedoria, estamos sempre por

nossa conta e risco. Ainda assim, o Sócrates platônico lançou mão deste recurso como forma

de distinguir-se da massa dos mortais.

Quanto ao tópos do distanciamento dos homens, a atitude de Platão é mais complexa.

Por vezes ele segue estritamente o padrão herdado da tradição poética. Os mitos da caverna e

de Er, da República e o mito da parelha alada do Fedro, acatam a lição de que o homem

precisa se distanciar dos demais para aceder ao conhecimento. Nestes mitos, o distanciamento

ainda é mais radical: a alma precisa separar-se do corpo, já que este é um entrave para o

conhecimento. Por vezes ele adapta e atenua esta figura, como é o caso da chegada de

Sócrates à casa de Agatão, no início do Banquete, quando ele atrasa a entrada na casa,

isolando-se dos demais, por determinação do seu daimon. Por outro lado, de volta ao Fedro,

Sócrates atribui ao distanciamento da cidade (238d) o motivo de ele ter proferido um discurso,

seu primeiro discurso sobre o amor, invoca as Musas de modo inspirado (237a), o que o leva,

mais tarde(242d), a repudiar esta fala e comprometer-se a compor outra, dando ao motivo do

distanciamento um valor negativo.

Não se trata aqui de analisar mais de perto os usos que Platão fez dos elementos

poéticos que ele incorporou na sua obra. Existem outros estudos mais competentes

especialmente dedicados a isso. Mas importa salientar que o mito expressa algo que a

linguagem racional e científica é incapaz de expressar. Isso é especialmente útil para filósofos

58
que acreditam num mundo transcendente, como Parmênides e Platão. A descrição do mundo

das formas e a contemplação destas pela alma liberta do corpo são coisas absolutamente

impossíveis de serem descritas por um discurso dito racional 71. Isso mostra que o elemento

mítico do discurso filosófico não pode ser simplesmente dispensado ou dissecado e extirpado

para deixar transparecer um núcleo analítico.

O mito está então intrinsecamente ligado à veiculação da verdade, o que está

perfeitamente de acordo com a visão de Most: a veracidade foi o primeiro fator que ele

apontou como influência implícita da poesia na filosofia; sua forma de expressão é a poesia e

esta, por sua vez, ainda que conquiste algum grau de autonomia, na lírica e nos encômios, por

exemplo, jamais estará – nem ao menos tentará estar - completamente dissociada do mito e da

Musa. Assim sendo, qualquer referência que doravante fizer à poesia, o mito estará sempre

implicado. Finalmente, o mito, segundo esta concepção, não é o antípoda da razão, não é

irracional. Ao contrário, é uma razão que ultrapassa, sem ao menos se pôr como questão, a

própria razão.

1.3. Conclusão.

A visão contemporânea das escolas filosóficas pré-socráticas é problemática e parece

ser antes uma construção do pensamento atual para tentar entender o ambiente intelectual

grego daquele período. Neste sentido, até mesmo a filosofia, entendida como um saber

específico que se rege mais por sua metodologia própria do que por um objeto específico de

estudo, deve ser posta em questão. Por outro lado, dado o caráter histórico do surgimento da

filosofia, o processo deste surgimento pode ser melhor apreciado quando contrastado com o

substrato cultural de onde ele emergiu. Para tanto, a noção de reflexividade nos é de grande

valia.

71
Cf Morgan (2000) p.4.
59
O fragmento 40 de Heráclito, na medida em que trás à cena pensadores muito distintos,

nos dá uma boa mostra do que pode ser entendido como reflexividade: uma longa e ampla

discussão sobre o conhecimento, sua natureza e seu alcance. Mesmo que dentro deste

movimento, agônico como a própria natureza do pensamento grego, tenha havido momentos

de negação da poesia, esta nunca deixou de estar presente, seja através de pensadores que

reconheciam o seu valor como matriz cultural, como foi o caso de Aristóteles, seja

determinando uma pauta de assuntos a serem investigados, seja devido a sua incontestável

força expressiva.

A expressão da verdade, questão central para este trabalho, é uma herança da

tradição poética que se perpetuou no discurso filosófico. Esta verdade versava sobre como

o homem devia conduzir sua própria vida e sobre os constituintes do mundo. Isto se deu

num modo de pensamento sintético que foi capaz de propor, numa narrativa

temporalmente estruturada e dotada de enorme força expressiva, um número restrito de

elementos fundamentais – os princípios – para dar conta da totalidade das coisas que

existem.

Segundo esta abordagem, o mito não é o antípoda da razão. Ao contrário, é uma razão

que ultrapassa, sem ao menos se por como questão, a própria razão. Não se pode nem ao

menos falar de incorporação do mito no discurso filosófico, pois isso supõe uma separação

entre mito e filosofia que efetivamente não havia naquele momento. É certo que houve uma

insatisfação, ou mesmo um incômodo por parte daqueles pensadores com relação ao discurso

vigente, o que os motivou a propor uma reformulação da percepção comum da aquisição,

acumulação e transmissão do conhecimento, resultando numa problematização do modo de

representação lingüística e numa reconfiguração da autoridade da tradição poética que durante

muito tempo determinou a estrutura do pensamento.

60
2. Em busca de Hesíodo

O capítulo precedente demonstrou que os grandes pensadores do período que se

convencionou chamar “pré-socrático” foram obrigados a lidar com um acervo literário pré-

existente, de onde Hesíodo desponta como uma das figuras centrais. Cabe então partir em

busca de Hesíodo, quer dizer, cabe tentar entendê-lo desde seu papel na poesia épica, suas

semelhanças e diferenças com relação a Homero, para construirmos uma visão mais próxima

dos passos que o poeta beócio deu na marcha reflexiva do pensamento grego, sempre

lembrados de que a interpretação alegórica não será empregada nesta pesquisa devido ao

entendimento de que não houve, por parte de Hesíodo, uma expressão alegórica, já que nos

parece o poeta jamais intentou falar de forma velada, o que faria com que sua mensagem só

fosse alcançável para alguns, mas antes pretendeu que sua mensagem fosse dirigida ao

espectro mais amplo possível. Desta forma, toda tentativa de perseguir o pensamento do poeta

será desenvolvida a partir dos elementos textuais de sua obra.

O presente capítulo terá então o propósito de tornar a imagem do poeta mais nítida para

que possamos lidar com a sua obra e com os problemas que ela suscita a partir de um ponto

que nos assegure um grau mínimo de intimidade com a questão. Desta forma, esta etapa será

dividida em três seções, onde a primeira investigará a imagem do poeta. Para tanto, será

necessário esclarecer o que significa estarmos lidando com o segundo grande poeta grego, isto

é, relacioná-lo a Homero, o primeiro, bem como desconstruir a imagem de poeta camponês,

de caipira, a bem dizer, que muitos estudiosos contemporâneos ainda fazem dele, levando-os

a resolver – talvez fosse melhor dizer minimizarem – dificuldades encontradas a partir de

dados supostamente biográficos que o próprio autor nos fornece. A segunda seção realizará

um levantamento não exaustivo da recepção contemporânea dos versos que motivam nossa

investigação, isto é, os versos 27 e 28 da Teogonia e 10 de Os trabalhos e os dias. A partir

61
deste levantamento, e ainda nesta mesma seção, já começaremos a construir o nosso próprio

entendimento, que será reforçado com o exame semântico e pragmático dos termos - sujeitos,

verbos declarativos e objetos - que compõem cada um dos versos em questão, a ser

empreendido na terceira e última seção do presente capítulo.

2.1 Sua imagem

Apesar de renomado poeta, a imagem de Hesíodo sempre foi ofuscada pela de Homero.

Um testemunho colhido na Coleção do Vaticano de ditos gregos é bastante ilustrativo deste

aspecto: “Simônides disse que Hesíodo era o jardineiro, enquanto Homero era o tecelão de

guirlandas, já que o primeiro plantou as histórias mitológicas sobre os deuses e os heróis,

enquanto o segundo teceu, a partir destas, a Ilíada e a Odisséia. 72”

Esta imagem é tão persistente no tempo que não foi por acaso que Hugo Koning

intitulou sua tese sobre o poeta como “The other poet: the ancient reception of Hesiod.”

Dentre outros aspectos, Koning afirma que a imagem de Hesíodo nunca está completamente

desvinculada da de Homero 73, pois mesmo quando este não está explicitamente mencionado,

ele permanece como a referência principal contra a qual o entendimento de Hesíodo será

construído 74.

72
Gnomologium Vaticanum Graecum, 1144, f.222. in Hesiod (2006) p. 170-171. Tradução do autor.
Este testemunho pode suscitar o entendimento de que Hesíodo seria anterior a Homero. A questão é
objeto de debates. Most, em sua tradução de Teogonia, Os Trabalhos e os Dias e Testemunhos, lista
cinco testemunhos que consideram Homero anterior a Hesíodo, cinco que os consideram
contemporâneos e dois que levam Hesíodo na conta de anterior a Homero (Most in Hesiod, 2006, pág.
165-171.). Atualmente predomina o entendimento de que Hesíodo é de fato posterior a Homero
porque embora a Teogonia e o Catálogo das Mulheres tenham realmente falado de deuses e de heróis,
podendo ser percebidos como matéria para os poemas homéricos, há, na Teogonia, um esforço
sistematizador jamais exibido em nenhuma obra de Homero. Além do mais, as noções morais
abordadas em Os Trabalhos e os Dias alcançam um nível de abstração inexistente naqueles poemas. O
Catálogo das Mulheres não foi estudado nesta pesquisa.
73
Não levaremos em conta aqui as questões sobre a existência factual dos dois poetas. A simples
preservação de suas obras e a enorme influência que elas exerceram no desenvolvimento da cultura
grega são justificativas mais do que suficientes para os incontáveis estudos que suscitaram. Nosso
estudo é apenas mais um que se incorpora a esta lista.
74
Cf. Koning (2010) pág.111.
62
Rousseau dá testemunho desta percepção ao entender que a moral apresentada por

Hesíodo em Os trabalhos e os dias é a negação da moral aristocrática presente na obra de

Homero, a qual legitimava a conquista dos bens pela violência e chega mesmo a designar o

modelo de conduta proposto pelo poeta, o vizinho “rico que se apressa a arar e a plantar/ e

bem dispor a casa 75” de “novo Aquiles. 76”

Carrière vai mais além e diz que Hesíodo frequentemente compõe seus versos a partir

de e contra Homero para anunciar sua visão de mundo e, principalmente, sua visão moral 77.

Jaeger refere-se a Hesíodo como o “segundo educador da Grécia 78”, o que suscitou, de

nossa parte, um esclarecimento sobre o que significa este “segundo”, que não deve ser

entendido nem na ordem temporal, uma vez que as questões relativas à datação são, não só

imprecisas, como também de pouca relevância para o propósito desta pesquisa, nem na ordem

de grandeza, uma vez que os gregos jamais demonstraram qualquer sinal de estima e

admiração pelo segundo colocado em qualquer competição. Podemos então propor outra

interpretação para “segundo”, lendo-o como “o outro”, a posição de diferença, conforme a

dialética hegeliana, que o poeta ocupa com relação a Homero. Isto implica em procurar

descobrir o cantor destes versos pelo enfoque das atenções nas semelhanças e nas diferenças

que ele carrega e abre em relação a Homero, o primeiro educador grego 79.

Quanto às diferenças, observamosque há, sobretudo em Os trabalhos e os dias, um

quádruplo deslocamento de Hesíodo com relação a Homero: do herói para o homem comum,

pois enquanto este cantava as proezas dos homens semidivinos e de suas relações com os

deuses, Hesíodo situa-se em outro momento da história humana, dizendo que pertencemos à

75
Trab. 22-23. πλούσιον, ὃς σπεύδει μὲν ἀρόμεναι ἠδὲ φυτεύειν/ οἶκόν τ' εὖ θέσθαι·
76
Cf. Rousseau in Blaise, Judet de la Combe & Rousseau (1996) pág.125.
77
Cf. Idem (1996) pág.411.
78
Jaeger (1995) pág. 59.
79
Cf. Mantovaneli in Hesíodo (2011) pág. 153.
63
raça de ferro, raça inferior à dos heróis; da guerra para a “ágora”, isto é, da vida guerreira

para o cotidiano, o que vai desembocar na proposta de uma nova moral; da glória para a

“hýbris 80”, o que vem a ser uma consequência desta nova moral: enquanto a realização

máxima da vida do herói era a morte gloriosa para ter seu nome lembrado, o problema central

da vida do homem da raça de ferro é o de evitar a desmedida, a única maneira de evitar que

Díke se abata sobre ele, como uma reparação aos seus atos insanos; e, por fim, a separação

entre deuses e homens. Embora todos estejam interligados, o terceiro deslocamento é o que

desencadeará a sua questão pela justiça e pelo trabalho - via de consecução da justiça - temas

centrais do poema 81.

O problema da imagem que se faz de Hesíodo, ainda que isso possa parecer uma

discussão supérflua, parece influir na compreensão que se pode alcançar de suas obras. Clay

observa que embora recentemente alguns estudiosos tenham se esforçado para mudar o

quadro, “a imagem do fazendeiro rústico dos confins da Beócia a quem as Musas inspiraram

o canto, mas que, entretanto, permaneceu atrelado a uma sabedoria rural ainda povoa a

mente de muitos críticos. 82”

Esta visão de Hesíodo como um poeta caipira assume contornos dramáticos quando

lembramos que foi de Hesíodo a primeira voz que se ergueu, no mundo grego, na primeira

pessoa, para falar dos problemas da vida humana cotidiana, da lida diária, de etétyma, e que

também ousou repreender os reis, avaliando-os não pela origem aristocrática de ascendência

80
Embora Hesíodo seja conhecido como o poeta da Justiça e do Trabalho e o desenrolar desta
pesquisa chegará a destacar a Justiça como o valor supremo para a raça de ferro, predomina aqui o
entendimento de que a Justiça em si é inapreensível na sua totalidade e o homem só a conhece
episodicamente e a partir de um evento que desencadeia a sua busca. Este evento é a “hýbris”.
81
Cf. Mantovaneli in Hesíodo (2011) pág. 159.
82
Clay (2003) pág.2.
64
divina, mas pelo seu fraco desempenho na função, chamando-os de “comedores de

presentes” e de “néscios, não sabem que a metade é maior do que o todo. 83”

É certo que as possíveis notas biográficas que o poeta dá ao longo de seus poemas

suscitam alguma especulação sobre sua vida e que os críticos se lançam nesta empreitada com

o intuito de alcançar uma melhor compreensão sobre sua obra, mas o fato é que aqueles que

se atêm mais às questões biográficas tendem, de um modo geral, a ver em Hesíodo um poeta

de recursos limitados ou a levar a especulação biográfica para pontos que simplesmente não

se sustentam. Vejamos alguns exemplos.

Embora seja difícil de explicitar uma relação de causa e efeito, talvez seja por isso que

West vê em Hesíodo um poeta cujo discurso não obedece a um plano preestabelecido 84 e, por

isso, vê também pouca conexão entre o proêmio e o restante da obra 85; um poeta a quem a

palavra “argumento” nem mesmo se aplica, já que seus “argumentos” para justiça e para o

trabalho são essencialmente simples, sendo a justiça boa porque os deuses a recompensam e a

hýbris má porque os deuses a castigam 86. A partir desta leitura, West resolve a dificuldade

imposta pelo destaque que Hesíodo dá a Hécate na Teogonia, propondo que o pai de Hesíodo

era um adorador de Hécate, a ponto de ter dado a um de seus filhos – Perses – o mesmo nome

do pai da deusa 87. Conforme veremos no próximo capítulo, o papel desta deusa na obra de

Hesíodo pode receber outra leitura e nos mostrar um grau de articulação entre os diferentes

episódios narrados por Hesíodo que aqui não são sequer vislumbrados.

83
Cf. Trab. 39 e 40.
84
Cf. West in Hesiod (1978) pág 46.
85
Idem pág 136-137.
86
Idem pág 49.
87
Idem pág 278.
65
As especulações biográficas parecem ter contaminado até mesmo os historiadores.

Peixoto 88 relata que para Edwards, o autor de Hesiod’s Ascra, não há evidências de que o

litígio entre os irmãos tenha sido julgado em Téspias, a pólis a qual a Ascra de Hesíodo era

possivelmente integrada, interpretando o authí, o aqui e agora do verso 35, “Julguemos aqui

nossa crise/ com retribuições retas de Zeus, as mais justas. 89”, como uma referência a Ascra.

Stoddard conta que Willamowitz é capaz de apontar dois momentos distintos no modo

com que Hesíodo dialoga com Perses 90, sendo o primeiro entre os versos 11- 382, antes do

desfecho do processo judicial, onde o poeta apresenta-se pautado na fé na justiça de Zeus, e o

segundo, onde Hesíodo, após um veredito favorável, encontra-se mais confiante enquanto

Perses está mais disposto a receber os ensinamentos que lhe são dirigidos.

Stoddard fala também de um grupo de estudiosos, com o qual ela parece se identificar,

os unitários 91, que tentam explicar as mudanças na representação de Perses ao longo do

poema como um elemento deliberado no plano artístico de Hesíodo para Os trabalhos e os

dias. Seguindo as observações de Schmidt, ela afirma que a imagem de Perses não oscila, mas

evolui ao longo da trama. Perses teria então acatado os conselhos do irmão e no momento em

que este inicia sua lição sobre a agricultura, aquele já estaria convencido da necessidade de

trabalhar.

Quanto ao problema específico do julgamento, ela segue Clay, no que esta sustenta que

Hesíodo teria deliberadamente obscurecido os fatos relacionados à questão judicial entre os

88
Peixoto (2012) pág. 58-59.
89
Trab. 35-36. ἀλλ’ αὖθι διακρινώμεθα νεῖκος /ἰθείῃσι δίκῃς, αἵ τ’ ἐκ Διός εἰσιν ἄρισται.
90
Apud Stoddard (2004) pág.21.
91
Por “unitários” podemos entender um grupo de intérpretes que entende que cada narrador de cada
poema - o autonomeado “Hesíodo” da Teogonia e o “Eu” que quer dizer verdades a Perses em Os
Trabalhos e os Dias - foi especialmente criado pelo autor dos poemas, com vistas aos propósitos
específicos de cada obra. Entre os unitários, há alguns radicais, como Nagy e Griffith, que rejeitam
qualquer validade a qualquer informação biográfica fornecida por Hesíodo, considerando-as como
puras criações poéticas.
66
irmãos de forma que a mensagem didática do poema pudesse alcançar uma audiência muito

maior 92.

O trabalho de Stoddard foi alvo de críticas por parte de Moura. Segundo este autor, a

separação entre biografistas e unitários foi feita de modo excessivamente simplista. Os

biografistas veem Hesíodo como um pastor rude que produz uma poesia sem sofisticação em

função de sua origem humilde. Já os unitários, acreditam na ideia da ficção poética e tentam

interpretá-la em função do “texto em si”.

Moura aponta o “texto em si” como categoria problemática, já que este é “desvinculado

da realidade, como se nossa capacidade de tornar significativo um texto fosse independente

do conhecimento sobre coisas exteriores ao texto”, acrescentando que mesmo as

interpretações mais radicalmente antibiografistas se fundamentam num entendimento da

cultura grega que é obtido fora – e acrescentamos anterior à abordagem – do texto. Outro

problema apontado é o pressuposto que “vincula a poesia de alguém ligado a um ambiente

rural e semiletrado a uma imagem de falta de refinamento e técnica literária.” Observação

também digna de nota é a de que “a pergunta sobre o estatuto verídico ou não deste “eu”

hesiódico não é propriamente a questão mais importante. 93”

Moura tem razão. De fato, a separação entre biografistas e unitários parece algo forçada

e, além do mais, há uma lista considerável de trabalhos, muitos deles inclusive já

mencionados aqui, como os de Carrière, Koning e Rousseau, apenas para citar alguns, que

contribuíram enormemente para aprofundar a compreensão das relações internas dos poemas

e mesmo das relações de duplo remetimento existentes entre a Teogonia e Os trabalhos e os

dias sem colocar como questão o grau de historicidade envolvido. Estes autores não podem

92
Cf. Stoddard (2004) pág. 23.
93
Cf. Moura in Hesíodo (2012) pág.20-22.
67
ser considerados nem unitários nem biografistas. Não sabemos nem mesmo se eles podem ser

reunidos sob uma terceira rubrica, se é que isso tem alguma relevância. Entretanto, as

observações de Moura se apresentam igualmente como uma boa oportunidade para

aprofundar um pouco mais o debate sobre a recepção contemporânea de Hesíodo.

Quanto ao problema do “texto em si”, há que se concordar que é impossível abordar um

texto grego de quase três mil anos sem um conhecimento prévio da cultura grega. Mas

também há que se concordar que alegar, como faz West, que o pai de Hesíodo era um

adorador de Hécate e que por isso nomeou seu irmão com o nome do pai de deusa para

explicar a aparente incongruência do destaque dado a uma deusa obscura extrapola o âmbito

do conhecimento da cultura grega e resvala para a pura especulação. Neste sentido, a

explicação proposta por Stoddard parece ser muito mais plausível e muito mais fundamentada

no próprio texto da Teogonia e servirá mesmo de alicerce para a leitura intertextual entre esta

e Os Trabalhos e os Dias que será proposta no próximo capítulo.

Do mesmo modo, dizer, como Willamowitz, que Hesíodo dialoga com Perses de um

determinado modo antes do desfecho do julgamento e de outro, mais confiante, após ter

recebido um veredito favorável, parece quase delirante quando se leva em conta que em

momento nenhum do poema somos comunicados do resultado do processo. A querela contra

Perses parece ter servido de motivo para introduzir a discussão sobre a justiça e, uma vez a

discussão estabelecida, o motivo deixou de ter qualquer importância, em face da profundidade

do problema. Hesíodo não é um cronista, é um filósofo.

Quanto à ligação entre a falta de refinamento poético e a sua possível origem humilde,

três observações podem ser avançadas.

68
A primeira é que mesmo na antiguidade, a poesia de Hesíodo não era vista exatamente

como bela, mas antes como sábia. Exemplo disso é o Certame entre Homero e Hesíodo. Esta

foi uma lenda tão difundida na antiguidade que Koning listou dela treze versões distintas,

distribuídas num intervalo de tempo que vai desde o século VII AC ao XII AD, onde em todas

elas Hesíodo sai vencedor. Como em todas as lendas, existem variações entre as versões, mas

em nenhuma delas Hesíodo vence pela beleza de seus versos. Na maioria das vezes o motivo

da vitória, quando explicitado, estava mais ligado à superioridade moral ou à utilidade

política. Como é o caso da versão mais completa dentre todas, datada de IV AC, onde o rei

concedeu-lhe a vitória a despeito do entusiasmo da audiência com os versos de Homero,

alegando que um poema que fala sobre agricultura e sobre a paz é muito mais útil para a

cidade do que um que fala sobre guerras e chacinas 94.

A segunda é que a maioria dos biografistas – mantemos a distinção entre biografistas e

unitários apenas por comodidade – parece se contentar com muito pouco de Hesíodo. Se uma

passagem ou uma articulação entre passagens parece obscura, eles lançam mão de

extrapolações biográficas ou dizem que a poesia de Hesíodo é assim mesmo, progride sem

plano definido, ou coisas semelhantes.

É preciso, portanto, escolher com quem estamos lidando: com um poeta caipira ou com

o “mestre de muitos”, como o chamou Heráclito 95? Os unitários ficaram com a segunda

opção e têm o mérito de ao menos tentar forçar os limites da nossa compreensão do poeta.

Em terceiro, e talvez mais importante, rebaixá-lo por ser camponês parece mais ser um

preconceito de nossa época do que uma categoria do pensamento grego. Lembrando da lição

94
Cf Koning (2010) pág. 212-233 e em particular a tabela da pág. 230.
95
Ainda que Heráclito tenha exaltado Hesíodo para depois rebaixá-lo, dizendo que ele não sabia que a
noite e o dia são um, Heráclito escolheu Hesíodo por estratégia retórica: para apresentar-se como
sábio, ele tinha de superar um sábio amplamente reconhecido. Não faria sentido nenhum, sobretudo
para um grego, bater-se contra um “zé ninguém”.
69
de Moura mencionada acima de que é preciso ter um conhecimento adequado do mundo

grego arcaico para se poder interpretar um texto daquela época, é preciso situar melhor o

status do camponês e, como uma coisa implica na outra, o status do pastor também deve ser

investigado.

Neste sentido, o trabalho de Haubold 96 é um auxílio valioso. Ele nota que, de acordo

com a épica grega, é apenas com o advento da agricultura que os homens tornaram-se

propriamente humanos. Os homens da raça de ouro, que “viviam como deuses 97”, não

precisavam trabalhar a terra: “farta dava fruto/ espontânea, muito e sempre 98.” A vida sem

agricultura é então muito distinta da nossa. É coisa para deuses, como os homens divinos da

raça de ouro, ou para seres quase bestiais, na medida em que os homens da raça de bronze,

que “nada de trigo/ comiam 99” foram extintos “devastando uns aos outros pelas próprias

mãos 100”, tal como os peixes, as feras e as aves aladas que se devoram uns aos outros por não

terem recebido Justiça de Zeus 101.

Também em Homero, o homem é essencialmente apresentado como comedor de pão:

“É vão equiparar-me ao homem mais robusto/ de hoje, que sobre a terra come pão 102”, diz

Odisseu nos jogos com os feácios. Em outra oportunidade, o mesmo Odisseu, disfarçado

como mendigo e em disputa verbal com Eurímaco, mostra-se orgulhoso em ser capaz de bater

96
Cf Haubold (2010) pág.16-18.
97
Trab.112. ὥστε θεοὶ δ' ἔζωον.
98
Trab.117-118. καρπὸν δ' ἔφερε ζείδωρος ἄρουρα/ αὐτομάτη πολλόν τε καὶ ἄφθονον.
99
Trab. 146-147. οὐδέ τι σῖτον/ ἤσθιον.
100
Trab. 152. καὶ τοὶ μὲν χείρεσσιν ὑπὸ σφετέρῃσι δαμέντες.
101
Trab. 277-279. ἰχθύσι μὲν καὶ θηρσὶ καὶ οἰωνοῖς πετεηνοῖς/ ἔσθειν ἀλλήλους, ἐπεὶ οὐ δίκη ἐστὶ μετ'
αὐτοῖς·/ ἀνθρώποισι δ' ἔδωκε δίκην.
Aos peixes, às feras e às aves aladas,/ que se devorem. Justiça nnão há entre eles./ Aos homens, sim,
deu a Justiça, muito mais nobre.
102
Od. 8.221-222. τῶν δ' ἄλλων ἐμέ φημι πολὺ προφερέστερον εἶναι,/ ὅσσοι νῦν βροτοί εἰσιν ἐπὶ
χθονὶ σῖτον ἔδοντες. A este respeito, Haubold ainda faz referência aos versos 9.89 e 10.101 da
Odisséia, 6.142 e 21.465 da Ilíada, assim como aos versos 364-366 do Hino Homérico a Apolo.
70
seu oponente não só nas artes da guerra, mas também na agricultura 103, de onde se vê que a

faina da lavoura não era exclusividade dos homens das camadas sociais inferiores.

O Econômico de Xenofonte parece confirmar que quatro séculos mais tarde a

agricultura continuava sendo vista como um saber nobre: Segundo este, “o melhor trabalho e

o melhor saber é a agricultura”, pois “incita os lavradores a serem corajosos, já que aquilo

de que precisam, ela faz crescer e nutre fora dos muros. Por isso é também a vida mais

nobre, pois, ao que nos parece, torna os cidadãos melhores e mais bem dispostos para com a

comunidade. 104”

Ainda segundo Haubold 105, a imagem dos pastores é percebida de modo diferente. O

pastoreio é associado a formas de existência que são pré ou sub-humanas, como os Cíclopes,

que podem ser considerados, em muitos aspectos, como a mais extrema expressão de

selvageria pré-agrícola. De fato, eles são “dissímiles do homem comedor de pão 106”, e

alimentam-se de “agrestes cabras, nunca afugentadas/ pela passagem do homem 107”. “Não

plantam nem aram 108”: “Carecem de rebanho/ e campos semeados, sem cuidado e sem/

messe durante todo o tempo delongado;/ balando, as cabras pastam no vazio humano 109.”

Isto parece refletir-se no seu comportamento social: “Desconhecem concílios na ágora e as

103
Cf. Od.18.366-386.
104
Xenofonte. Econômico 6.10. συμπαροξύνειν δέ τι ἐδόκει ἡμῖν καὶ εἰς τὸ ἀλκίμους εἶναι ἡ γεωργία
ἔξω τῶν ἐρυμάτων τὰ ἐπιτήδεια φύουσά τε καὶ τρέφουσα τοὺς ἐργαζομένους. διὰ ταῦτα δὲ καὶ
εὐδοξοτάτη εἶναι πρὸς τῶν πόλεων αὕτη ἡ βιοτεία, ὅτι καὶ πολίτας ἀρίστους καὶ εὐνουστάτους
παρέχεσθαι δοκεῖ τῷ κοινῷ.
105
Cf Haubold (2010) pág.18.
106
Od.9.190-191. καὶ γὰρ θαῦμ' ἐτέτυκτο πελώριον, οὐδὲ ἐῴκει/ ἀνδρί γε σιτοφάγῳ,
107
Od.9.118-119. ἐν δ' αἶγες ἀπειρέσιαι γεγάασιν/ ἄγριαι·
108
Od.9.108. οὔτε φυτεύουσιν χερσὶν φυτὸν οὔτ' ἀρόωσιν,
109
Od.9.121-124. ἄλγεα πάσχουσιν κορυφὰς ὀρέων ἐφέποντες./ οὔτ' ἄρα ποίμνῃσιν καταΐσχεται οὔτ'
ἀρότοισιν, /ἀλλ' ἥ γ' ἄσπαρτος καὶ ἀνήροτος ἤματα πάντα/ ἀνδρῶν χηρεύει, βόσκει δέ τε μηκάδας
αἶγας.
71
normas 110”, assim como em suas relações com os deuses: “pois Zeus porta-broquel não

chega a preocupar/ Cíclopes, nem um outro Olímpio: somos bem/ mais fortes 111.”

Em trabalho da mesma época, observamos que a apresentação que Hesíodo faz de si

mesmo na Teogonia o situa num duplo limiar. Como pastor, a quem as Musas se dirigem no

vocativo plural (Teog. v.26) e, portanto, não a ele em específico, habita o espaço

semiselvagem dos campos de pasto – não cultivados, mas já submetidos a algum tipo de

controle humano. Como poeta escolhido pelas Musas dentre os pastores, situa-se entre o canto

divino que canta a raça dos eternos e sagrados entes imortais (Teog. v.21) e as vergonhas da

terra que se resumem aos ventres (Teog. v.26). O ventre é, de fato, aquilo que aproxima o

homem das bestas. Hesíodo estabelece, então, não uma definição, mas o lugar do homem: este

é um ser ambíguo situado entre o divino e o bestial 112.

Se considerarmos os dois poemas hesiódicos aqui estudados, veremos que os narradores

de cada poema, sejam eles criações poéticas ou o próprio Hesíodo falando em diferentes

etapas de sua vida, estão perfeitamente adequados para o conteúdo de cada poema. A

Teogonia demanda efetivamente um auxílio divino para falar com verdade de temas que não

podem ser testemunhados por nenhum homem. Já Os trabalhos e os dias falam de uma

verdade que está não só ao alcance, mas também é fundamental para o homem da raça de

ferro. Além do mais, a conquista desta verdade independe, em grande parte, do auxílio da

Memória, prevalecendo o entendimento e o conhecimento humanos.

Os narradores distintos têm também uma função programática, estabelecendo a ordem

em que os poemas devem ser lidos: “a poesia, no sentido estrito de canto divinamente

Od.9.112. τοῖσιν δ' οὔτ' ἀγοραὶ βουληφόροι οὔτε θέμιστες,


110
111
Od.9.275-277. οὐ γὰρ Κύκλωπες Διὸς αἰγιόχου ἀλέγουσιν/ οὐδὲ θεῶν μακάρων, ἐπεὶ ἦ πολὺ
φέρτεροί εἰμεν·
112
Cf. Mantovaneli in Hesíodo (2011) pág. 158.
72
inspirado sobre o passado, torna-se propedêutica para o aceso às verdades propriamente

humanas. Ao lermos Os Trabalhos e os Dias depois de ter lido a Teogonia, sabemos que

fizemos progresso. 113”

O trânsito do pastor para o camponês é então algo significativo para o ouvido grego.

2.2 A recepção contemporânea dos versos

Koning 114, num amplo levantamento sobre a recepção moderna dos enigmáticos versos

27 e 28 da Teogonia, identifica duas principais correntes interpretativas, chamando a uma

intrapoética e a outra interpoética. De acordo com esta última, a oposição entre ψεύδεα πολλά e

ἀληθέα visa garantir a verdade da poesia de Hesíodo e qualificar as demais, ou apenas

algumas, como falsas. Nesta perspectiva - diga-se de passagem, bem de acordo com o espírito

agonístico grego - alguns apontam outros teogonistas, Ferécides talvez, como alvo de um

ataque por parte de Hesíodo. Outros acreditam que poetas ainda mais antigos seriam o alvo,

mas a maioria reconhece Homero como principal endereçado, sobretudo quando se leva em

consideração a íntima semelhança destes versos com o verso 203 do canto XIX da Odisséia,

“sabia dizer muitas mentiras semelhantes aos fatos 115”, com o qual o narrador da Odisséia

descreveu a conversa que Odisseu, disfarçado de mendigo, teve com Penélope.

Numa perspectiva intrapoética, estes versos podem ser lidos como uma admissão, por

parte de Hesíodo, de que a poesia combina verdade e falsidade e Hesíodo estaria, de certa

forma, antecipando Sólon: “poetas, com frequência, mentem 116”. Alguns entendem que

Hesíodo assume dependência total das Musas, podendo estas fazê-lo mentir ou dizer a

113
Haubold (2010) pág. 19.
114
Koning (2010) p. 259-61.
115
ἴσκε ψεύδεα πολλὰ λέγων ἐτύμοισιν ὁμοῖα. Tradução do autor.
116
Sólon. Fr. 202 Martina. πολλὰ ψεύδονται ἀοιδοί.
73
verdade. Há quem considere que Hesíodo já avisa que a linguagem é incapaz de representar a

verdade, salvo com alguma distorção ou imprecisão.

Koning 117 alia-se aos intérpretes da corrente interpoética e entende que Hesíodo

apresenta-se como um poeta que fala a verdade e tem Homero na conta de um ficcionista, mas

o foco principal da sua pesquisa é o de entender como as imagens dos dois poetas foram

construídas na antiguidade através da recepção de suas obras. Neste quadro, a oposição entre

verdade e ficção é uma das linhas de força que separa as imagens de Hesíodo e Homero na

antiguidade. Segundo o autor, os gregos do período clássico e helenista viam, de um modo

geral, Hesíodo como um poeta preocupado com a verdade, que compunha mais por técnica do

que por inspiração, com um conteúdo didático, voltado para conselhos e de estilo e linguagem

simples. Homero, por sua vez, era recebido como um ficcionista, que compunha mais por

inspiração do que por técnica, cuja poesia provocava profundas alterações no espírito do

ouvinte/leitor e de estilo altamente ornamentado. O autor adverte que estes esquemas de

oposição binária são obviamente reducionistas e devem ser manuseados com cautela, já que

com freqüência as fronteiras podem ser transpostas e Hesíodo pode parecer divinamente

inspirado e seus versos causarem impacto profundo, enquanto Homero pode ser percebido

como porta voz de verdades incontestes.

Arrighetti reconhece nestes versos uma adaptação do verso 203 do canto 19 da Odisséia,

onde o narrador homérico intervém, ao término da fala que Odisseu, disfarçado de mendigo e

sem ser reconhecido pela esposa, dirige a Penélope, e pontua: “sabia dizer muitas mentiras

símeis aos fatos.” Segundo o autor, Hesíodo dirige uma censura não a Homero, mas a

Odisseu, na medida em que um herói mentiroso é moralmente inadmissível 118.

117
Koning (2010) p. 258.
118
Arrighetti (1996) p. 58.
74
Para Nagy a Teogonia de Hesíodo é uma resposta mais abrangente e sistemática às

diversas teogonias locais que devem ter circulado por toda a Grécia. Mas seu foco maior não

está em analisar o caráter pan-helênico do poema, e sim em investigar a amplitude da

autoridade que o poeta outorga a si mesmo nesta obra 119.

Todos estes, então, leem os versos 27 e 28 da Teogonia sob a perspectiva interpoética,

isto é, como um ataque a outros poetas, ou até mesmo como um ataque a uma personagem da

literatura homérica. Vejamos em seguida alguns estudiosos que encaram a questão como um

problema interno, inerente à poesia de Hesíodo.

Rudhardt 120 não se restringe aos versos 27 e 28, mas estende o espectro de sua análise

para o que chama de “vocação do poeta”, ou seja, a transformação que as Musas operam em

Hesíodo, fazendo-o, de pastor, um poeta. Sua investigação abarca, portanto, os versos 22 a 34.

Um detalhe chama atenção dentro da economia da “vocação do poeta”: a mudança da

terceira para a primeira pessoa. De fato, quando Hesíodo se nomeia no poema, no verso 22, o

faz na terceira pessoa: “Elas um dia a Hesíodo ensinaram belo canto. 121” Logo após a fala

das Musas, o narrador retorna, agora na primeira pessoa: “Assim falaram as filhas do grande

Zeus verídicas,/ e por cetro deram-me um ramo, a um loureiro viçoso/ colhendo-o (...) 122”.

Rudhardt conclui, apoiado também na censura que as Musas endereçam no verso 26,

“Pastores agrestes, vis infâmias e ventres só, 123” não só ao pastor, mas a toda raça humana,

que as deusas têm o propósito de marcar a distância entre deuses e homens.

Rudhardt também reconhece a semelhança entre a fala das Musas e o verso 203 do

canto 19 da Odisséia, mas entende que as ψεύδεα de Odisseu são fatos corriqueiros, sem nada

119
Nagy (1996) p. 41.
120
Rudhardt (1996) p. 25-39.
121
Teog. 22. αἵ νύ ποθ’ Ἡσίοδον καλὴν ἐδίδαξαν ἀοιδήν.
122
Teog 29-31. ὣς ἔφασαν κοῦραι μεγάλου Διὸς ἀρτιέπειαι,/καί μοι σκῆπτρον ἔδον δάφνης ἐριθηλέος
ὄζον/ δρέψασαι, θηητόν· ἐνέπνευσαν δέ μοι αὐδὴν. Grifo nosso.
123
Teog.26. ποιμένες ἄγραυλοι, κάκ' ἐλέγχεα, γαστέρες οἶον,
75
de extraordinário, mas que trazem como marca a verossimilhança. A Teogonia, por outro

lado, não tem nada de comum. Os fatos narrados são inalcançáveis à mente humana, mas

verdadeiros. Fica então estabelecida uma hierarquia: A Teogonia é superior à Odisséia, mas

as Musas, como regentes do discurso, encantam, seja por uma narrativa fictícia, seja pela

verdade.

Mas há ainda outra hierarquia a ser assinalada. O saber das Musas é superior ao saber

que elas propiciaram ao poeta, na medida em que o canto que elas inspiram abrange o futuro e

o passado, no verso 32 - τά τ’ ἐσσόμενα πρό τ’ ἐόντα 124, enquanto os versos 37 e 38 mostram

que o canto que elas mesmas apresentam no Olimpo, abrange o presente, o futuro e o passado

- τά τ’ ἐόντα τά τ’ ἐσσόμενα πρό τ’ ἐόντα 125.

A respeito deste problema, a contribuição de Clay é esclarecedora. A autora entende que

a expressão contida no verso 32 não refere a duas coisas distintas, “o que é” e “o que será”, o

que exigiria a repetição do artigo. Deste modo, “o que foi e será” é outro modo de dizer

“sempre”, o que corresponde exatamente ao conteúdo que o poeta deve glorificar - ἵνα

κλείοιμι – isto é, a raça dos venturosos deuses eternos.

Por outro lado, o canto que elas cantam para Zeus, no Olimpo, inclui τ’ ἐόντα, que refere

à raça dos homens - ἀνθρώπων γένος, o que só ficará esclarecido no verso 50. Lá, elas cantam

para dar prazer a Zeus, para que ele contemple a totalidade do cosmos. Aqui, o canto de

Hesíodo é também didático, isto é, endereçado aos homens, com o foco nos deuses 126.

124
Teog. 32. ἵνα κλείοιμι τά τ’ ἐσσόμενα πρό τ’ ἐόντα,
125
Teog 38. εἴρουσαι τά τ’ ἐόντα τά τ’ ἐσσόμενα πρό τ’ ἐόντα..
126
Cf. Clay (2000) pág. 65-67. Clay ainda sublinha o espantoso da questão: para o pensamento
filosófico subsequente, o que é eterno passará a ser expresso por τὸ ἔον, enquanto que para Hesíodo,
isto designa as coisas em devir. Este contraste deve ter se mostrado instigante para os pensadores de
então, que se puseram a seguinte questão: “como aquilo que é eterno (os deuses) pode ter tido uma
origem?”
76
Leclerc 127 vê na passagem um duplo propósito. Além de marcar a diferença entre deuses

e homens, as Musas colocam o poeta num lugar privilegiado, alguém que se situa entre o

humano e o divino, o que será reforçado pelo presente do cetro, no verso 30 e a inspiração do

canto, no verso 31. Nesta leitura, o duplo saber das deusas opõe-se à ignorância dos pastores,

que representam aí toda a humanidade. Não existe, deste modo, oposição real entre verdade e

mentira, já que ambas, em conjunto, constituem a totalidade do saber, na medida em que elas

sabem discernir uma da outra, enquanto os homens, não.

Valendo-se de outras passagens da Teogonia, Leclerc rejeita a leitura interpoética.

Lembra então que nos versos 93 a 97, Hesíodo vai afirmar que é por causa das Musas e de

Apolo que existem os poetas, que aquele a quem as Musas amam é abençoado e de sua boca

flui doce voz 128. Ao descrever a raça dos heróis em Os Trabalhos e os Dias, Hesíodo faz
129
alusão aos dois principais ciclos da poesia épica, o tebano e o troiano . Quando se leva em

conta que o mito das raças é uma das ἐτήτυμα que Hesíodo conta a Perses, é necessário admitir

que Hesíodo assumiu como verdade a palavra de outros poetas, o que pode comprometer a

percepção de que Hesíodo, nessa passagem dos versos 27 e 28 da Teogonia, visava um ataque

a outros poetas.

A posição de Clay caminha no mesmo sentido da de Leclerc. Em primeiro lugar,

segundo a autora, esta pretensa polêmica não está presente nem na fala das Musas e nem nos

versos 94-103, que dizem que é por graça das Musas e de Apolo que existem os poetas – que

se frise o plural – e que aquele a quem as Musas amam é feliz e este homem afortunado

propicia, a quem o ouvir, o esquecimento dos pesares e das aflições. Além do mais, assinala

127
Cf. Leclerc (1993) p.204.
128
Teog. 93-97. τοίη Μουσάων ἱερὴ δόσις ἀνθρώποισιν./ἐκ γάρ τοι Μουσέων καὶ ἑκηβόλου
Ἀπόλλωνος/ ἄνδρες ἀοιδοὶ ἔασιν ἐπὶ χθόνα καὶ κιθαρισταί,/ἐκ δὲ Διὸς βασιλῆες· ὁ δ’ ὄλβιος, ὅντινα
Μοῦσαι/ φίλωνται· γλυκερή οἱ ἀπὸ στόματος ῥέει αὐδή.
129
Trab. 161-65. καὶ τοὺς μὲν πόλεμός τε κακὸς καὶ φύλοπις αἰνὴ/τοὺς μὲν ὑφ’ ἑπταπύλῳ Θήβῃ,
Καδμηίδι γαίῃ, /ὤλεσε μαρναμένους μήλων ἕνεκ’ Οἰδιπόδαο, /τοὺς δὲ καὶ ἐν νήεσσιν ὑπὲρ μέγα
λαῖτμα θαλάσσης/ἐς Τροίην ἀγαγὼν Ἑλένης ἕνεκ’ ἠυκόμοιο.
77
que embora ἀληθέα e ψεύδεα formem, de fato, uma oposição para os mortais, essa oposição

inexiste para os deuses, donde se pode concluir que a autora lê a partícula δὲ, do verso 28,

como aditiva – já que as Musas dominam todas as modalidades possíveis de discurso –, e não

como adversativa, o que solicitaria a presença da partícula μέν no verso anterior 130.

Clay reconhece a distinção entre ἀληθέα e ἔτυμα como crucial, não só para a

compreensão desta passagem, como também para a compreensão de toda a obra de Hesíodo,

já que

“Alethéa existe no discurso, enquanto étuma é inerente às coisas. Um


relato completo daquilo que alguém presenciou é alethés, enquanto étumos,
que talvez derive de eînai (ser, existir) define algo que é real, genuíno, ou
corresponde a um estado efetivo de coisas. (...) étuma são as coisas do jeito
que elas são, e conseqüentemente não podem ser distorcidas. Alethéa, por
outro lado e na medida em que é um relato completo e verdadeiro, pode ser
deliberada ou acidentalmente deformado por omissões, adições, ou qualquer
outra distorção. Todas estas deformações são pseudéa. 131”

A observação de Clay encontra apoio em Levet, para quem os verdadeiros sinônimos

são raros e até mesmo excepcionais e mesmo cada sinônimo exprime uma nuance própria que

não pode ser negligenciada, à pena de empobrecer o conteúdo da mensagem que eles são

destinados a nos transmitir 132.

A divisão das leituras possíveis em intrapoéticas ou interpoéticas deve ser encarada com

cautela. Divisões deste tipo são sempre artificiais e são criadas para atender a propósitos

específicos. Para o entendimento do conjunto da obra nenhuma leitura deve ser descartada: é

bem possível que ambas coexistam e se complementem, o que significa que não constituem

uma oposição verdadeira. Por isso mesmo, nenhuma deve prevalecer totalmente sobre a outra.

130
ἴδμεν ψεύδεα πολλὰ λέγειν ἐτύμοισιν ὁμοῖα, /ἴδμεν δ’ εὖτ’ ἐθέλωμεν ἀληθέα γηρύσασθαι. Grifo
nosso.
131
Clay (2003) p. 60-1.
132
Levet (1976) p. 3-4 e p. 4, nota 1.
78
Entretanto, os argumentos de Leclerc acerca das menções positivas que Hesíodo faz a outros

poetas, tanto na passagem da Teogonia quanto no mito das raças, e a observação de Clay,

lançando mão do mesmo texto das Musas contido em Teog. 80-103, levam ao entendimento

de que a tensão em questão concentra-se na distância entre deuses e homens e não entre

poetas. Além do mais, com relação a presente questão, nossa abordagem destes versos será

marcadamente intrapoética, já que a fala das Musas será confrontada com a fala do narrador

de Os trabalhos e os dias.

Isto não significa que estejamos convencidos de que não há, na obra de Hesíodo, um

ataque a Homero ou talvez a outros poetas, o que seria quase descabido dado à forte

agonística presente no espírito grego, mas apenas que este espírito não se encontra nestes

versos especificamente.

Na verdade, em outro estudo 133, valemo-nos amplamente da leitura interpoética para

construir a nossa compreensão de que Hesíodo apresentou uma proposta ética civil em

contraposição à ética guerreira, fazendo-se valer da reconfiguração de versos também

presentes, sobretudo na Ilíada, mas também na Odisséia.

2.3 Semântica e pragmática dos versos.

Assumindo como premissa fundamental a posição de Minkowski, endossada por Levet,

segundo a qual os verdadeiros sinônimos são raros e até mesmo excepcionais, e que cada

sinônimo exprime uma nuance própria que não pode ser negligenciada, à pena de empobrecer

o conteúdo da mensagem que eles são destinados a nos transmitir 134; e assumindo que a

escolha dessas palavras não foi mera casualidade em Hesíodo, pretendemos investigar as

diferentes concepções de verdade que estão aí implicadas.

133
Cf. Hesíodo (2011).
134
Cf. Levet (1976) p. 3-4 e p. 4, nota 1.
79
Para levarmos a cabo tal tarefa, será necessário investigar, por inteiro, os três versos que

motivam nosso estudo. Neste movimento, os verbos declarativos aí presentes, λέγειν,

γηρύσασθαι e μυθησαίμην, determinam que nossa abordagem extrapole os limites da semântica

pura para por em evidência a relação existente entre quem fala através de cada verbo e o

endereçado específico daquela fala determinada pelo verbo e isto solicita que outros versos de

cada poema sejam incorporados à investigação. Uma vez que λέγειν e γηρύσασθαι são

empregados para designar falas distintas das Musas, começamos a divisar a possibilidade de

elas falarem para públicos distintos, comunicando coisas distintas. Já o verbo μυθησαίμην,

empregado pelo narrador de Os trabalhos e os dias, aqui identificado com o próprio Hesíodo,

parece falar para duas audiências distintas por meio do mesmo verbo, isto é, para Perses e

para os reis comedores de presentes, mas, no fundo, a audiência é uma só, englobando tanto o

seu irmão, quanto os reis e nós mesmos. Sua audiência é a raça de ferro, a raça humana.

Desta forma, os versos serão abordados por um viés único, que se mostra indissolúvel,

mas que engloba, a um só tempo, uma leitura semântica e uma pragmática. Começaremos

examinando os sujeitos que falam: Musas e Hesíodo, para, em seguida examinarmos como

cada sujeito fala, o que será delimitado por cada um dos verbos declarativos constantes nos

versos em tela, sem esquecer da cláusula restritiva apresentada pelas deusas no verso 28 da

Teogonia, “εὖτ' ἐθέλωμεν” (se queremos), na esperança de chegar a compreender que sentido

Hesíodo quis atribuir a cada um dos complementos daqueles verbos declarativos, isto é, que

sentido ele atribuiu para ψεύδεα, ἀληθέα e ἐτήτυμα, respectivamente.

É importante ter em mente que a abordagem isolada de cada um dos termos

componentes dos versos é puramente formal e que frequentemente procuraremos esclarecer o

sentido do termo estudado relacionando-o com outros. Para tanto, estaremos frequentemente

alterando as traduções sobre as quais estamos nos apoiando, de forma que, salvo quando

80
explicitado, todas as traduções dos textos gregos estudados até o final deste capítulo devem

ser entendidas como nossas.

Antes de prosseguirmos, é necessário traçar um breve panorama sobre a démarche da

apreensão e expressão da verdade na experiência grega arcaica.

2.3.1 Abordagem inicial.

Levet chama atenção para a singularidade de a língua grega arcaica apresentar não duas

palavras, mas dois grupos de palavras para significar verdade, sendo um composto de palavras

negativas e o outro, de palavras positivas, enquanto só havia uma única família de palavras

designando a noção de falso – ψεύδεα - e seus correlatos, mentira, erro e engano 135. As palavras

que compõem os dois grupos ligados à expressão da verdade, ainda que frequentes em Homero,

mas escassas em Hesíodo, foram progressivamente caindo em desuso, a ponto de Platão e

Aristóteles praticamente só empregarem ἀλήθεια.

O grupo de palavras negativas é composto de três famílias lexicais. Em primeiro lugar

vem a família de ἀλήθεια 136


, construída sobre o radical do verbo λανθάνω 137. Em seguida, vem

a família de ἀτρεκής 138, construída sobre o adjetivo τρέκος, que significa torto, deformado,

presente em documentos escritos em linear B, mas já ausente em Homero. Por último vem a

família de νημερτής 139, que é aparentada a ἁμαρτάνω. Das palavras positivas temos a família

135
Daí se pode reforçar o entendimento de que os dois grupos que designam a noção de verdade são
complementares, e não opostos. Eles tratam de modos distintos de apreensão, compreensão e
comunicação do real.
136
Cf. Levet (1976) p.14.
137
Levet confirma a derivação de ἀληθής do verbo λανθάνω a partir da constatação da ocorrência do
substantivo λήθη em Ilíada II.33. Cf. Levet (1976) p.14.
138
Cf. Idem, ibidem p.8.
139
Cf. Idem, ibidem p.12.
81
composta por ἐτεός, ἔτυμος, e ἐτήτυμος 140, cuja etimologia não é conhecida, mas que originou,

mais tarde o verbo ἐτάζω, que significa controlar, examinar, verificar.

Na origem de todas essas palavras está o modo como os gregos arcaicos conceberam o

processo de apreensão e comunicação do real, processo esse ao qual eles permaneceram, em

grande medida, fiéis até o período helenista: a realidade imprime sua marca no sujeito,

invade-o e lá permanece. Assim sendo, a percepção desempenha um papel preponderante na

constituição do conhecimento e, no âmbito desta, a visão desponta como o sentido

privilegiado, como se pode constatar a partir do exame de algumas expressões frequentes no

discurso que aporta sobre a verdade. A primeira delas é σάφα εἰδέναι, que conjuga o advérbio

σάφα, “claramente”, modificando o verbo εἰδέναι, que significa simultaneamente “ver” e

“saber”. Daí resulta perfeitamente compreensível que a imensa maioria das metáforas gregas

ligadas ao saber façam referência ao sentido da visão, como é o caso das alegorias do Bem e

da Caverna que Platão construiu na República.

Outro verbo frequentemente modificado pelo advérbio σάφα é εἰπεῖν donde se percebe

que a clareza exigida ao ver e ao saber é transferida à comunicação deste saber. A única forma

possível de conhecimento, na impossibilidade de presenciar o fenômeno, é solicitar a alguém

que viu e sabe claramente que lhe transmita um relato seguro e claro.

Mas as palavras não conseguem reproduzir o real tal como ele é, uma vez que elas

constituem o veículo subjetivo de uma realidade objetiva. Dito de outro modo, o espírito

grego deu-se conta desde cedo que, de um lado, as palavras não são as coisas, e de outro, que

o indivíduo sensibilizado pelo real raciocina sobre o real que se instalou nele mesmo, através

da sensibilidade e da memória, e não sobre o real exterior, bruto e objetivo. Os gregos da

época arcaica dedicavam uma importância particular à descrição objetiva da concepção,

140
Cf. Idem, ibidem p.8.
82
necessariamente subjetiva, das diferentes modalidades concretas dos modos de dizer a

verdade. Tal descrição é comparável à que o aspecto verbal dá à ação. Por isso, essas palavras

têm frequentemente um valor adverbial 141.

Desta forma, ἀτρεκής intervém após uma captura espontânea do real exterior, do qual é

feita em seguida abstração pela consciência que o apreendeu. Mas a transmissão desse real

subjetivo não é nenhuma garantia de verdade. O caráter de verdade do enunciado é

assegurado então por uma “não-deformação” expressamente significada do real subjetivo,

isto é, a realidade que se instalou naquela consciência e que deve conservar a pureza objetiva

original. Há, por assim dizer, uma vontade ativa de passividade da parte do emissor do

enunciado, onde a não deformação do real é a garantia da objetividade 142.

Nημερτής sugere, ao contrário, que a consciência exerce uma ação no estabelecimento

do real subjetivo e, em seguida, sobre este mesmo real subjetivo, quando é necessária ou

desejável a sua interpretação. As faculdades intelectuais e, no limite, morais, do indivíduo são

suficientes para assegurar uma captura isenta de erro do real. Nestas condições, em

comparação ao real que é exterior, toda reflexão da consciência sobre ela mesma e sobre o

real subjetivo que ela contém só pode ser expressa por uma negação. O aspecto de verdade

refletido por esta palavra é tal que o que é qualificado pelo adjetivo concerne essencialmente a

uma reconstrução subjetiva da realidade cujo grau de verdade depende da intervenção do

indivíduo. O critério de verdade continua sendo a realidade objetiva, mas a verdade da

operação intelectual chamada νημερτής é concebida como estreitamente ligada à atividade da

consciência 143. Em outras palavras, já não há a passividade almejada em ἀτρεκής.

141
Cf. Idem, ibidem p. 163 e 236-7.
142
Cf. Idem, ibidem p. 139-40 e 238.
143
Cf. Idem, ibidem p. 159 e 238.
83
As palavras positivas ἐτεός, ἔτυμος, e ἐτήτυμος, descrevem uma apropriação diferente.

Elas designam aquilo que é autêntico dentro de um sistema de conhecimento que faz da

verdade um elemento subjetivo, separado do real objetivo - ainda que este seja sua origem e

critério - mas que se revela conforme ao que é após uma verificação de identidade entre o dito

e o real. A primeira dessas palavras, ἐτεός, reflete uma realidade pensada e suposta que se

mostra em conformidade ao que é. O enunciado destinado a ser qualificado como ἐτεός

constitui uma hipótese. A segunda, ἔτυμος, descreve a realização do processo de verificação e,

por conseguinte, ocorre na maioria das vezes como advérbio. Por fim, ἐτήτυμος parece ser a

criação mais recente da família e sua natureza permite atribuir àquilo que ela qualifica um

conteúdo mais objetivo, ou menos subjetivo. Por conta disso, ἐτήτυμος é suscetível de

corresponder ao mesmo tempo à realidade real verificável e verificada. Desse modo, a palavra

pode ser entendida como uma fusão das duas primeiras, implicando a existência de uma

conjectura verificada, situando-se no limite das reflexões sobre o real e a verdade possíveis à

mentalidade arcaica, na medida em que corresponde ao real objetivo apresentado por um

indivíduo que realizou a experiência da verificação 144.

Uma vez que ἀληθές é palavra por demais conhecida, dispensamo-nos de tecer maiores

considerações sobre ela nesta introdução, mas é certo que voltaremos a abordá-la ao longo do

estudo.

Por ora, basta salientar que as concepções subjetivas arcaicas do real e do verdadeiro

solicitaram, na formação de seu léxico, as noções de distorcer, errar, faltar, no sentido de

escapar à percepção, e verificar.

144
Cf. Idem, ibidem p. 191 e 239.
84
2.3.2 Sujeitos

Os sujeitos que falam são, evidentemente, as Musas, para os versos da Teogonia, e Ἐγώ,

o verso 10 de Os trabalhos e os dias.

2.3.2.1 Musas

Leitores atuais tendem a adotar preponderantemente duas atitudes distintas ao se

depararem com um discurso que se apresenta como tendo sido inspirado pelas deusas gregas

do canto: uma leitura radicalmente cética pode enxergar aí um artifício retórico empregado

por um poeta, artifício este que aufere credibilidade ao próprio discurso, apresentando como

divinas palavras que foram proferidas por um mortal. Outros vão procurar reconhecer neste

tipo de obra categorias com as quais já estão familiarizados, tais como ontologia,

epistemologia ou ética, dando pouca atenção à forma com que o discurso foi construído.

Nesta redução, muita coisa é perdida: aqueles versos não foram compostos para

descrever um estado de coisas, mas antes, para produzir um efeito na audiência, o prazer, e,

através deste, a fala inspirada se impunha como verdadeira e anunciadora de verdades.

Quando a audiência grega ouvia uma fala ritmada em versos hexâmetros dactílicos, já sabia,

de imediato, que o discurso ordinário havia cessado e que estava aberta uma porta para outro

tipo de discurso 145 e sabia pôr-se na sintonia própria – termo adequadamente musical – para

entrar em harmonia com o discurso que estava se anunciando. Este era a fala das Musas, dos

oráculos e, talvez, dos videntes. É exatamente assim que Hesíodo descreve o encontro da

palavra de reis ou de poetas com a audiência, no verso 89 da Teogonia:“perfazem ações

transformadoras” 146.

145
Cf. Robbiano (2006) p.37-40.
146
μετάτροπα ἔργα τελεῦσι
85
A Grécia antiga e clássica conheceu muitos modos das Musas. Elas podem ter sido três,

cinco, sete ou nove. Elas podem ter sido filhas de Apolo ou de Zeus e, mesmo como filhas de

Zeus, elas podem ter sido filhas de mães distintas tais como Ploúsia, Píeros ou Mnemósine 147,

variando segundo as versões. Seu papel como inspiradoras do canto é atestado em diversos

poemas que nos chegaram. Apenas para citar os principais, as Musas figuram no primeiro

verso da Ilíada, da Odisséia, da Teogonia e em Os Trabalhos e os Dias, o que vale dizer que

figuram no primeiro verso dos quatro poemas fundamentais da cultura grega.

Em Homero elas eram referidas no singular, sem que o poeta lhes atribuísse nome, local

de origem ou filiação 148, ainda que por vezes elas fossem invocadas no plural, como na

abertura do Catálogo das Naus 149, mas jamais nomeadas. Ou ainda quando o narrador

homérico invoca a ajuda das deusas para poder dizer quais heróis mataram e quais foram

mortos depois que Poseídon incitou os aqueus a retomarem a batalha que estava sendo

perdida para os troianos 150. O traço comum a todas essas variações é o papel que elas

desempenham como condição de possibilidade da arte poética.

Em Hesíodo, “Musas” é mesmo a primeira palavra de cada um de seus principais

poemas e a apresentação das deusas que o poeta nos legou parece ter sido amplamente

assimilada em toda a Grécia, não só devido ao caráter pan-helênico de sua poesia, mas

também, e talvez, sobretudo, pelo fato de que sua apresentação das Musas indica uma reflexão

mais aprofundada sobre a natureza e o poder da palavra das deusas.

Dois traços fundamentais distinguem Hesíodo de Homero, no que se refere ao modo

com que eles se relacionam com as deusas. O primeiro, e mais evidente, é o fato de Hesíodo

ter se nomeado na Teogonia, no verso 22. Ainda que seu nome não esteja presente no segundo
147
Cf. Skarsouli (2006) p.210.
148
Cf. Il.1.1 e Od. 1.1.
149
Cf. Il.2.484.
150
Cf. Il.14.508 ss.
86
poema, não resta dúvida quanto à sua autoria. Assim sendo, o ἐγώ que quer dizer as verdades

no verso 10 representa, sem sombra de dúvida, o poeta.

O segundo é bem mais sutil. Homero, após invocar o auxílio da Musa, coloca-se do lado

da audiência. No verso 10 do canto I da Odisséia, o poeta conclui sua invocação dizendo:

“destas coisas, deusa filha de Zeus, conte-nos. 151” Nos versos 485-6 do canto II, no início do

Catálogo das Naus, além de colocar-se do lado da audiência, Homero assinala uma distancia

entre ele e a deusa que radica sobre a questão do conhecimento: “[sois] divinas, todo-

presentes, todo sapientes,/ nós, nada mais sabendo, só a fama ouvimos. 152” Hesíodo jamais

se identifica com a audiência. Desde o princípio, o poeta parece falar como co-autor.

Enquanto nos Hinos Homéricos a frase formular ἄρχομαι ἀείδειν precede o nome da divindade

a ser cantada, que tem seu nome no acusativo, isto é, como objeto do canto, Hesíodo faz uso

do genitivo ablativo e emprega a primeira pessoa do plural (Μουσάων Ἑλικωνιάδων ἀρχώμεθ'

ἀείδειν ). Ele não canta as Musas nem elas cantam para ele e para a audiência. Ele canta com

elas ou a partir delas.

Entendemos que esta atitude de Hesíodo, recusando a posição de ouvinte e colocando-se

ao lado das deusas como co-autor, é apenas o primeiro passo de uma caminhada que o

permitirá falar por si próprio sem que com isso sua fala tenha uma autoridade menor.

Entendemos também que esta atitude foi, se não a primeira, certamente a mais antiga que se

tem notícia, tentativa de construção de um discurso humano autônomo, a primeira condição

para a emergência do discurso filosófico. Neste sentido, é importante lembrar que a

constituição deste discurso humano autônomo foi lenta. Muito tempo depois de Hesíodo,

pensadores hoje reconhecidos como filósofos, tais como Parmênides, que foi levado pelas

filhas do Sol até a presença da deusa, Empédocles, que era ele mesmo um deus, e mesmo

151
Tradução e grifo nosso.
152
Tradução de Haroldo de Campos, grifo nosso.
87
Sócrates, que sempre acatou as interdições de seu dáimon, ainda lançavam mão do divino

como fonte inspiradora de suas palavras e obras.

2.2.3.2 Ἐγώ

Hesíodo jamais se nomeia em Os Trabalhos e os Dias. Assim sendo, a análise deste

ἐγώ, que é o narrador do poema, é uma tarefa bastante complexa. Em primeiro lugar, porque é

impossível dissociá-lo por completo das Musas e a investigação sobre as deusas no item

anterior já manifestou isso de forma explícita: é por obra das Musas que existem poetas e é

por obra das Musas que Hesíodo se fez poeta.

Em segundo lugar, porque ao investigar este ἐγώ, pretendemos dar conta, ainda que

minimamente, dos narradores dos dois poemas hesiódicos aqui estudados, sem entrar na

polêmica da autoria dos poemas, nem tampouco na questão da existência factual de

Hesíodo 153. Para além de sua possível existência factual ou não, Hesíodo foi uma construção

do espírito grego e, como construção, foi de importância central para a formação e

preservação deste mesmo espírito, precisamente através do conjunto de poemas que o povo

grego preservou e lhe atribuiu autoria.

Portanto, ἐγώ, identificado com Hesíodo, é uma dupla construção: das Musas que o

fizeram nascer para o mundo da poesia e do povo grego que não o deixou morrer como poeta.

Estes dois acontecimentos parecem-nos suficientes para deixar as questões históricas de lado

e acolher a existência de Hesíodo, bem como a autoria dos poemas que lhes foram atribuídos.

153
Alguns eruditos contemporâneos, tais como Nagy e Lamberton, tendem a interpretar Hesíodo como
a cristalização de uma tradição de poesia didática, bem como sua voz pessoal como uma construção
genérica no seio de uma tradição. Cf. Clay (2003) p. 3; Koning (2010) p. 7, n. 24, sustenta que a
questão é irrelevante, uma vez que os gregos tomaram a existência de Homero, Hesíodo e de
Anacreonte como tão reais quanto a existência de seus deuses, e sobre esses erigiram sua cultura.; Já
Naddaf (2005) p. 66, vê Hesíodo como uma personagem histórica, que viveu numa sociedade em vias
de secularização. que testemunhou e participou de importantes câmbios históricos. Nossa posição
emparelha com a de Naddaf.
88
O narrador do primeiro poema é um pastor. Não se pode afirmar com segurança que o

do segundo seja um camponês: ele jamais diz que o é ou foi. Mas talvez ele nos dê uma pista:

ao falar da navegação, ele diz categoricamente não ser versado no assunto e solicita o auxílio

das Musas para discorrer sobre a questão 154. Já para falar sobre os trabalhos do campo, bem

como qualquer outro assunto no decorrer do poema, esse auxílio não é solicitado, o que

permite supor que ele conheça de fato a agricultura.

O narrador do primeiro poema fala da origem de todas as coisas desde o princípio 155 (ἐξ

αρχῆς), ainda que o faça a partir das Musas


156
, enquanto o narrador do segundo fala das coisas

mundanas e cotidianas e, mesmo sem recorrer às Musas, seu tom é de autoridade, ainda que

poucas vezes seja autoritário. Seu maior desejo é endireitar um caráter mal formado através de

um discurso que seja persuasivo por força da verdade.

Como, então, fundir duas vozes tão distintas em uma única pessoa? O primeiro passo é

manter os dois poemas na ordem exata em que vêm sendo referidos. Em outras palavras, é

preciso aceitar a anterioridade da Teogonia em relação a Os Trabalhos e os Dias. O segundo

passo é mergulhar naquilo que os dois narradores têm em comum, isto é, o recurso às Musas.

Já ficou claro que a presença delas é muito maior no primeiro poema do que no segundo. Isso

se dá porque as deusas vão se retirando à medida que Hesíodo vai se tornando músico. Dito

de outra forma, a inspiração que as Musas causaram a Hesíodo não era da ordem da mania, do

delírio poético que Platão descreve no Fedro 157 e no Íon 158, que faz com que os poetas digam

coisas sábias sem serem, eles mesmos, sábios nas coisas que dizem. Depois de cantar a

Teogonia, Hesíodo aprendeu a ordem de Zeus e é pautado nela, como já fica evidente no

proêmio de Os Trabalhos e os Dias, que ele olha para o mundo e não só a reconhece como
154
Cf. Trab. 646-663.
155
Teog. 115.
156
Teog. 114.
157
Fedro 265b
158
Íon 533e
89
intervém para corrigir os desvios desta ordem, o que quer dizer que ele se vê – e foi visto

pelos gregos – como alguém investido de autoridade para tal.

2.3.3 Verbos declarativos

Conforme veremos, os verbos empregados por Hesíodo servem para demarcar os limites

de autoridade de quem fala.

2.3.3.1 Λέγειν

Hesíodo não nos dá muitos detalhes quando narra seu encontro com as Musas, assim

sendo é preciso operar uma reconstrução da cena. É de se supor que ele estivesse só. Wissman

assinala que mesmo os poucos detalhes fornecidos por Hesíodo já são característicos de um

encontro com o divino. Em primeiro lugar, ele estava nas encostas do Monte Hélicon. As

montanhas são locais propícios para o encontro entre um deus e um homem. Suas encostas são

uma região intermediária entre o mundo dos deuses, o cume, e o mundo dos homens, o vale.

Os carneiros que pastoreava são as vítimas sacrificiais mais comuns. Por fim, o pastor mesmo é

alguém cuja atividade exige grandes períodos de isolamento neste ambiente limítrofe entre

humano e divino, tendo como única companhia precisamente as vítimas sacrificiais 159. Se isto

procede, as deusas dirigem suas palavras a um homem que representa todos os pastores, cuja

rudeza agreste e vergonha de sua condição que se reduz à animalidade do ventre são, por sua

vez, traço característico da humanidade, quando contrastada à divindade. Este entendimento é

reforçado pelo fato das Musas abrindo sua fala na segunda pessoa do plural: “Patores agrestes,

vis infâmias (...)”. Só mais adiante, ao receber o cetro, a voz e a instrução do canto 160, é que

estará consumada a transformação do pastor em poeta. Enquanto as Musas falam, Hesíodo está

em plena metamorfose.

159
Wissman (1996) p. 26-7.
160
Cf. Teogonia v.30-4.
90
Se a transformação de pastor em poeta é o cerne da questão desta passagem, deve haver

alguma correspondência nos verbos empregados pelas Musas e a qualidade do discurso

carreado por cada verbo. O discurso ligado a λέγειν - ψεύδεα πολλὰ - corresponderia então ao

primeiro momento desta transformação. Corresponderia, pois, ao pastor e a sua condição

humana. O discurso ligado a γηρύσασθαι - ἀληθέα - corresponderia ao segundo momento e é

endereçado ao poeta. As ψεύδεα são muitas.

Como há muito mais pastores do que poetas, a transformação implica também numa

redução. As ἀληθέα não recebem o quantificador πολλὰ e, como princípios estruturantes do

cosmos, não podem mesmo ser em grande número. De fato, ao término do proêmio, o poeta

pede às Musas que cantem, desde o princípio, as coisas que por primeiro vieram a ser, e estas

são quatro: Caos, Gaia, Tártaro e Eros 161.

Por outro lado, πολλὰ ainda requer algum esclarecimento. Deve ser percebido sob a

categoria da quantidade, da qualidade ou ambas? Sendo os homens/pastores muitos e sendo

eles diferentes, ψεύδεα πολλὰ podem ser muitas e distintas e assim, à capacidade humana de

conhecer e de se enganar por meio de aproximações à realidade – ἐτύμοισιν ὁμοῖα –

correspondem distintas formas de discurso que cobrem um amplo espectro que parte da

semelhança com a realidade até a mentira completa, ou ao engano perfeito, ou ao erro mais

absoluto, admitindo entre estes infinitas gradações.

Neste ponto, acompanho o entendimento de Detienne, que aproxima as mentiras ditas

pelas Musas de Apáte - engano. “As Musas sabem dizer a Alétheia e a Apáte, que se

161
Teog. 114-120. ταῦτά μοι ἔσπετε, Μοῦσαι Ὀλύμπια δώματ’ ἔχουσαι/ ἐξ ἀρχῆς, καὶ εἴπαθ’, ὅτι
πρῶτον γένετ’ αὐτῶν. /ἤτοι μὲν πρώτιστα Χάος γένετ’· αὐτὰρ ἔπειτα /Γαῖ’ εὐρύστερνος, πάντων ἕδος
ἀσφαλὲς αἰεὶ /ἀθανάτων οἳ ἔχουσι κάρη νιφόεντος Ὀλύμπου/, Τάρταρά τ’ ἠερόεντα μυχῷ χθονὸς
εὐρυοδείης,/ ἠδ’ Ἔρος, ὃς κάλλιστος ἐν ἀθανάτοισι θεοῖσι.
Dizei-me isto, Musas que tendes o palácio olímpico/dês o começo e quem dentre eles primeiro
nasceu./ Sim bem primeiro nascei Caos, depois também/ Terra de amplo seio, de todos sede
irresvalável sempre,/ dos imortais que têm a cabeça do olimpo nevado,/ e Tártaro nevoento no fundo
do chão de amplas vias,/ e Eros, o mais belo entre Deuses imortais.
91
assemelha (...) à Alétheia. A fórmula é notável: em primeiro lugar, porque representa um

estágio intermediário entre o plano mítico, o da dupla Apáte, e o plano racional, o das

alethés e pseudés; em segundo lugar, porque traduz a ambiguidade do engano, tantoquanto o

engano da ambiguidade. 162” Desta forma, o problema da ambiguidade da fala das deusas

radica mais sobre o aspecto epistemológico do que sobre o moral.

Essa multiplicidade dispersa é reunida sob o verbo λέγειν cuja raiz, λεγ, remete a contar,

enumerar, arranjar, ou ainda, reunir e catalogar. Em uma palavra, a função das Musas.

Como afirma Leclerc, a originalidade de Hesíodo consiste em atribuir ao divino um saber

que no extremo pertence ao homem e aos seus limites 163. Nesta leitura, as deusas manifestam

sua capacidade de emitir um discurso adaptado às capacidades cognitivas de cada audiência.

Nesse sentido, convém lembrar que Empédocles, que se apresentava como um deus,

denunciava a diferença de linguagem entre deuses e os mortais efêmeros que, incapazes de ver

os elementos misturando-se ou separando-se, chamavam esses processos de “vir a ser”,

“nascer” ou “morrer 164”. Perante esta limitação humana, o deus concordava em seguir aquele

costume 165.

É interessante recordar que, segundo Empédocles, a distância entre deuses e homens é

tão grande que ele é obrigado a recorrer à Musa 166, deusa especialista da palavra para que esta

lhe ensine como falar com os homens 167. A figura da inspiração sofreu aqui uma inversão de

162
Detienne (1988) pág. 42-43.
163
Leclerc (1993) p. 211.
164
Cf. DK 31 B 8, 9 e 15.
165
DK 31 B9.5. ἣ θέμις <οὐ> καλέουσι, νόμωι δ' ἐπίφημι καὶ αὐτός.
166
Morgan observa que Musa é uma divindade ausente na cosmologia de Empédocles. Cf. Morgan
(2000) pág. 61. Isto pode ser entendido como mais um indício da influência de Hesíodo no
pensamento de Empédocles.
167
DK 31 B 3.3-4. καὶ σέ, πολυμνήστη λευκώλενε παρθένε Μοῦσα,/ ἄντομαι, ὧν θέμις ἐστὶν
ἐφημερίοισιν ἀκούειν,
E a ti, de muita memória, de alvos braços, ó virgem Musa/ eu te peço, do que é lícito a efêmeros ouvir.
Tradução de José Cavalcante de Souza.
92
uso: enquanto as Musas de Hesíodo lhe transmitem um saber que nenhum mortal alcança, as

Musas de Empédocles ensinam-lhe a falar, através de língua dos homens, o saber que ele, por

ser deus, já possui.

O filósofo de Agrigento parece então ser um herdeiro do poeta da Ascra, no que se

refere ao problema da imprecisão da linguagem para a transmissão do conhecimento, como de

resto o foram também Xenófanes, ao contentar-se com um conhecimento aproximativo –

“Que tais coisas sejam consideradas semelhantes às reais.”- Heráclito – “O senhor, de quem

é o oráculo em Delfos, nem diz nem oculta, mas dá sinais” - e Parmênides que salientou a

importância de conhecer as duas vias, “o coração da verdade persuasiva e as opiniões dos

mortais, desprovidas de convicção verdadeira 168”.

Desta forma, Hesíodo abriu a questão clássica acerca da verdade para a poesia e para a

filosofia.

2.3.3.2 Γηρύσασθαι

Para Nagy, ἀληθέα γηρύσασθαι é um ato de palavra, um enunciado carregado de

autoridade. Neste sentido, ao empregar este verbo solene, as Musas a reivindicam para si e

estendem para Hesíodo uma distinção 169.

Leclerc observa que o verbo γηρύσασθαι só é empregado por duas vezes em Hesíodo e

jamais em Homero. Na poesia épica, sua única ocorrência fora de Hesíodo se dá no Hino

Homérico a Hermes, verso 426. A segunda ocorrência de γηρύσασθαι na obra de Hesíodo é o

verso 260 de Os Trabalhos e os Dias, que mostra que Díke, quando ultrajada, corre para junto

de Zeus “e denuncia (γηρύετ) a mente dos homens injustos. 170”. No Hino Ηomérico a Hermes

168
Ver os textos em grego no capítulo anterior.
169
Nagy (1996) p. 41.
170
Trab. 260. γηρύετ’ ἀνθρώπων ἀδίκων νόον.
93
o verbo ocorre no momento em que este deus, para dissolver de vez a tensão instaurada entre

ele e Apolo por conta de ter roubado as vacas do irmão, toma a lira e, como na tradução de

Ordep Serra, “soltou (γηρύετ) a voz num rompante, som amável a seguia. 171”

Talvez o conteúdo do canto de Hermes contribua para algum esclarecimento do que está

em questão. Tomando a lira e lançado a voz, Hermes proclamou os deuses e a terra escura e

contou como eles se originaram, bem como o lote que coube a cada um. A primeira deusa a

ser gloriada foi Mnemósine, a mãe das Musas. Em seguida, em ordem de antiguidade, Hermes

celebrou a geração de cada deus imortal 172. Em outras palavras, o deus cantou uma teogonia.

A passagem guarda tão nítida semelhança, que chega ao ponto de parecer ser uma síntese dos

versos 36 a 75 da Teogonia, que descrevem o canto que as Musas apresentaram a Zeus no

Olimpo, logo após a cena da conversão de Hesíodo em poeta. Lá elas gloriam no canto o ser

venerando dos deuses desde o começo: a Terra, o Céu e os que deles nasceram.

Na Teogonia, o canto das Musas tem sua finalidade explicitada no verso 55: elas cantam

para oblívio de males e pausa de aflições, exatamente o efeito buscado, e atingido, por

Hermes ao lançar mão de semelhante canto. Parece que não há atribulação que resista à

contemplação da origem e do estabelecimento do cosmos. Por isso, qualquer perturbação

dessa ordem afeta os deuses, o que faz com que Díke permaneça entre os homens atenta a

qualquer possível transgressão, a qual ela corre a anunciar a Zeus.

Deste modo, γηρύσασθαι parece dizer respeito a um modo especial de enunciação que

assinala mais a autoridade de quem fala do que o conteúdo da mensagem veiculada. Ainda

que a deusa Díke anuncie algo que não seja da ordem das coisas eternas, por tratar-se das

171
H.H. Hermes, 426. γηρύετ' ἀμβολάδην, ἐρατὴ δέ οἱ ἕσπετο φωνή.
172
Cf. Hino Homérico a Hermes, v. 428-32.
94
múltiplas possibilidades do homem de transgredir a ordem fixada por Zeus, apenas um deus

pode dar conta de toda esta multiplicidade.

Diante da impossibilidade humana de alcançar e, consequentemente, dizer algo sobre a

estabilidade das coisas eternas, assim como sobre a multiplicidade do presente na sua

totalidade – e mais uma vez é preciso atentar para o fato de Hesíodo ter sido instruído, no

verso 32 da Teogonia, a cantar as coisas que eram e que serão, mas não das que são – a

possibilidade de comunicação humana fica restrita a reunir – λέγειν – e narrar, como espero

demonstrar adiante, quando abordar o verbo μυθησαίμην.

2.3.3.3 εὖτ’ ἐθέλωμεν

Embora os autores visitados tenham se mostrado evasivos no trato da cláusula

concessiva do verso 28, “se queremos – εὖτ’ ἐθέλωμεν”, entendemos que esta observação das

deusas está de algum modo relacionada com a convocação de Hesíodo para o canto. Em

nenhum momento o poeta apresenta, como Parmênides o fez, alguma justificativa para a sua

eleição. Tudo o que ele diz é que pastoreava. Não nos apresenta nenhum mérito, seja por

origem, seja por conduta, seja por qualquer outro critério. Pensamos então que as deusas o

escolheram por um ato de vontade e através deste ato, que guindou Hesíodo de sua condição

de pastor agreste a amado pelas Musas, proclamaram as verdades.

A famosa e enigmática passagem da fala das Musas está perfeitamente integrada aos

versos que a antecedem, assim como aos subsequentes. No verso 25, a divindade das Musas é

acentuada e contrastada com a humanidade bruta do verso 26. Elas sabem dizer as coisas

como elas se mostram para os homens, verso 27, e também anunciar coisas que só os deuses

podem conhecer, verso 28. O poeta dá seu testemunho desta fala das deusas verdadeiras –

ἀρτιέπειαι - recorrendo à sua própria metamorfose. O narrador do poema deixa a terceira

pessoa, verso 22, e passa a falar na primeira, versos 29 e 30. Está consumada a conversão do
95
pastor em poeta. Só agora ele pode ter acesso “às coisas que serão e que eram”, bem como

hinear a raça dos deuses eternos.

Como consequência desta transformação, as coisas acessíveis à experiência humana se

mostram a ele sob um novo aspecto: deixam de aparecer como aproximações da realidade,

ψεύδεα πολλὰ e ele pode conhecer e transmitir as coisas como elas são, ἐτήτυμα μυθησαίμην.

2.3.3.4 Mυθησαίμην

Para Roussaeu 173, ἀληθέα γηρύσασθαι foi cunhada com o firme propósito de contrapor-se

a ἐτήτυμα μυθησαίμην. Dentre os diversos exemplos que o autor fornece sobre a ocorrência da

fórmula homérica ἀληθέα μυθήσασθαι 174, aquele que ocorre em Ilíada VI. 682- 684 é o que

mais convém ao caso em questão. Ao tomar a decisão de retornar ao campo de batalha e

bater-se com Aquiles, Heitor vai ao palácio para despedir-se de Andrômaca e do filho. Lá

chegando não os encontra e indaga a uma criada sobre o paradeiro da esposa, ao que esta lhe

responde:

Heitor, já que me ordenaste dizer a verdade

ela não está com cunhadas, nem concunhadas 683

nem foi ao templo de Atenas

Ἕκτορ ἐπεὶ μάλ' ἄνωγας ἀληθέα μυθήσασθαι,

οὔτέ πῃ ἐς γαλόων οὔτ' εἰνατέρων ἐϋπέπλων 683

οὔτ' ἐς Ἀθηναίης ἐξοίχεται.

O relato que a criada dá, nos versos que se seguem, sobre o real paradeiro de

Andrômaca assemelha-se ao depoimento de uma testemunha que revela algo que ela mesma

viu ou ouviu, isto é, algo que ela sabe a partir de sua própria experiência.

173
Cf. Roussaeau (1996) p. 113.
174
Cf. Il.6.382; Od.14.125;17.15;18.342.
96
Da mesma ordem de verdade parece ser a informação que Deméter, no Hino Homérico

a Deméter, procurou obter quando, após constatar o desaparecimento de Perséfone, percorreu

terras e águas indagando sobre a filha:

Enlouquecida, mas ninguém quis contar a verdade


Nenhum dos deuses, nenhum dos homens mortais, 45
Nem pássaro algum veio como núncio verdadeiro
μαιομένη· τῇ δ' οὔ τις ἐτήτυμα μυθήσασθαι
ἤθελεν οὔτε θεῶν οὔτε θνητῶν ἀνθρώπων, 45
οὔτ' οἰωνῶν τις τῇ ἐτήτυμος ἄγγελος ἦλθεν 175.

Enquanto a expressão aqui empregada para “contar a verdade” foi ἐτήτυμα μυθήσασθαι,

na passagem da Ilíada encontramos ἀληθέα μυθήσασθαι .

Pouco adiante, no mesmo hino, há uma ocorrência de ἀληθέα μυθήσασθαι que pode

contribuir para melhor compreensão da escolha de Hesíodo; após ser informada por Hélio que

sua filha tinha sido raptada por Hades com a aquiescência de Zeus 176, Deméter deixa o

Olimpo e, assumindo o aspecto de uma velha vai ter à casa de Celeu, rei de Elêusis 177.

Indagada pelas filhas deste quem era e o que a trazia ali, deusa lhes responde:

Salve! Já vou falar-lhes. Mais do que justo não é 120

Às vossas indagações responder a verdade.

χαίρετ', ἐγὼ δ' ὑμῖν μυθήσομαι· οὔ τοι ἀεικὲς 120


ὑμῖν εἰρομένῃσιν ἀληθέα μυθήσασθαι
178
.

Entretanto a deusa mente, apresentando-se como Dós, vinda de Creta e em fuga de

piratas que queriam vendê-la como escrava 179.

Ainda que Rousseau não o assinale, é importante observar que o conteúdo dos três

relatos, o da escrava de Heitor, o do narrador do hino homérico e o da deusa são relatos de

175
H.H. Dem. 44-46.
176
Cf, H.H. Dem.74-87.
177
Cf, H.H. Dem.93-104.
178
H.H. Dem. 120-121.
179
H.H. Dem.122-132.
97
coisas acessíveis à experiência sensível. O primeiro e o terceiro foram introduzidos pela

mesma fórmula: ἀληθέα μυθήσασθαι, enquanto o segundo o foi por ἐτήτυμα μυθήσασθαι, a

fórmula que Hesíodo reserva à transmissão de seus ensinamentos a Perses.

Assim sendo, a observação de Stoddard acerca do uso hesiódico dos termos ἀληθέα e

ἐτήτυμα pode contribuir para esclarecer o sentido que Hesíodo quis dar ao verso 10 de Os

Trabalhos e os Dias. Segundo a autora, enquanto Homero as usava indistintamente, para

Hesíodo o primeiro termo está ligado à ideia de “não esquecimento”, coisas eternas que, por

conseqüência, são da ordem do saber e do dizer das Musas 180.

Como foi visto acima que o dizer de um deus é um ato de autoridade que é designado

pelo verbo γηρύσασθαι, a fórmula ἀληθέα μυθήσασθαι resulta inconsistente. Além do mais, o

termo, ἐτήτυμα, termo que será examinado abaixo, parece apontar para um tipo de verdade que

é mais implicada com as coisas mortais e mutáveis, coisas que o homem só pode conhecer

pela experiência direta e, assim mesmo, em parte, o que vai solicitar um modo próprio de

enunciação.

Ora, também foi visto acima que a possibilidade de comunicação humana ficou restrita

a reunir – λέγειν – e narrar – μυθησαίμην. Dentre estas duas, μυθησαίμην aponta, como

assinala Couloubaritsis 181, para “um modo de falar carregado de autoridade e que produz um

efeito.” Deste modo, a opção por ἐτήτυμα μυθησαίμην parece surgir de modo quase natural

dentro das possibilidades da dicção épica 182.

Mas a questão permanece em aberto enquanto não nos debruçarmos sobre os objetos

introduzidos por cada um dos verbos declarativos.

180
Cf. Stoddard (2004) p. 84.
181
Couloubaritsis (2008) p.17.
182
Notar a equivalência métrica entre ἀληθέα γηρύσασθαι, ἀληθέα μυθήσασθαι e ἐτήτυμα
μυθησαίμην.
98
2.3.4 Objetos

Está em jogo aqui a aquisição, conservação e transmissão do conhecimento. Cada uma

das palavras gregas a serem estudadas é uma tentativa de descrever o modo como um sujeito

que percebe e pensa entra em contato com o real que se instalou nele - que é diferente da

realidade – reflete e tira daí qualquer coisa antes de transmiti-lo a outro. Ciente da

possibilidade de uma distorção – os termos que expressam a verdade por meio de negação,

ἀληθής, ἀτρεκής νεμερτής, são evidência disso - o pensamento grego arcaico procurou

contornar esta diferença para assegurar ao máximo a comunicação do real.

O problema da verdade está ligado então, por um lado, a uma consciência e por outro à

conformidade dessa consciência à realidade: a verdade é tanto o objetivo a ser alcançado por

uma consciência quanto matéria de intercâmbio verbal por meio do diálogo. Este supõe a

existência de um sujeito que fala, de um ouvinte e de uma realidade transmitida. O

conhecimento transmitido recebe inevitavelmente alguma carga subjetiva, que é a marca da

ação humana. O diálogo é enfim a função primitiva da palavra, ferramenta privilegiada de

comunicação, entre duas ou mais consciências, de um saber que é - nunca é demais insistir -

primitivamente sensorial e, sobretudo, visual 183.

Uma vez que a ocorrência das palavras ligadas ao verdadeiro e ao falso em Hesíodo é

pequena, é lícito recorrer também a ocorrências em Homero para ampliar a possibilidade de

compreendê-las, bem como para detectar alguma modificação de emprego que o poeta de

Ascra possa lhes ter introduzido.

183
Cf Levet (1976) p. 4, 22, 57 e 73.
99
2.3.4.1 Ἀληθέα

Ἀληθέα, ou melhor, seu singular, ἀληθής, é a palavra mais antiga do sistema grego de

expressão da verdade. Trata-se de um adjetivo que está carregado de uma concepção sensorial

do conhecimento, onde o objeto invade e impregna a consciência do sujeito 184.

A descrição de ἀληθής como um composto do radical ληθ do verbo λανθάνω é

amplamente aceita, mas como esse verbo possui o duplo significado de “escapar à

percepção” e “esquecer”, algum esclarecimento é necessário.

Levet ensina que o primeiro sentido, o de “escapar à percepção”, deriva do substantivo

*ληθος 185, presente na escrita micênica, mas já desaparecido ao tempo de Homero, que é

associado ao velamento ou ocultação. Em suma, algo próximo ao que entendemos como

ignorância, ausência de contato com alguma coisa. O sentido de “esquecer” é mais recente e

está registrado no verso 227 da Teogonia de Hesíodo como Λήθη, a divindade filha de Éris,

que Torrano traduziu como “Olvido”.

A marcha do conhecimento obedece a essa mesma ordem cronológica: há um estado

inicial *ληθος de ignorância e velamento que é dissipado pela passagem da luz sobre a

consciência. O objeto ou fato desvelado permanecerá visível na mente enquanto estiver retido

pela memória. Se a memória o perde, o velamento retorna, agora como esquecimento, Λήθη.

Dessa forma, é perfeitamente possível que λήθη 186 signifique simultaneamente escapar à

percepção e esquecer. Por outro lado, é somente no relato que ἀληθής pode cumprir seu duplo

184
Cf. Levet (1976) p. 90 e 104.
185
Cf. Idem, ibidem p. 16, 96 e 240.
186
A ocorrência de λήθη como substantivo é atestada em Il.II. 33.
100
papel de “não-velado-desvelante”: não-velado para quem sabe e fala claramente e desvelante

para quem ouve 187.

Do exposto, fica evidente também que essa concepção de verdade só pode ser expressa

numa forma negativa.

A passividade dessa forma de aquisição de conhecimento também se reflete na

pragmática de ἀληθής: a palavra está destinada ao diálogo, sobretudo o diálogo direto, onde a

veracidade de ἀληθής está sempre implícita. Uma vez que a percepção implica em

espontaneidade, não há, nesse estágio da relação do pensamento grego com a aquisição e

transmissão do conhecimento, nenhuma avaliação moral. Há sempre a presunção de que o

indivíduo transmitirá o que sabe, respeitando a forma como ele aprendeu.

As condições exatas do desenrolar do diálogo são de grande importância. A intervenção

de uma terceira pessoa ou narrativa em discurso indireto parece modificar a natureza da noção

descrita pela palavra, mas não nos ocuparemos dela aqui, já que os versos de Hesíodo que nos

trouxeram até aqui reproduzem o diálogo direto.

Comecemos por analisar duas ocorrências da palavra no diálogo entre Telêmaco e

Nestor, no canto III a Odisséia, quando o jovem pergunta ao ancião sobre as condições

relativas à morte de Agamêmnon, no verso 247:

Oh Nestor Neleide, sê veraz em tua narrativa,

ὦ Νέστορ Νηληϊάδη, σὺ δ’ ἀληθής ἐνίσπες·

Ao que Nestor lhe responde, no verso 254:

A ti, rapaz, direi todas [as coisas] verdadeiras.

τοιγὰρ ἐγώ τοι, τέκνον, ἀληθέα πάντ’ ἀγορεύσω.

187
Cf. Levet (1976) p.84
101
Segundo Levet, esta é a situação básica de um diálogo onde a solicitação da verdade

está implicada. Se Telêmaco emprega a palavra no acusativo neutro singular, é porque o real

lhe é algo fundamentalmente ignorado. Trata-se de uma unidade abstrata e velada. Já para

Nestor, que conhece, o real é visado como algo concreto e múltiplo, daí o uso do plural. Há

um acordo entre psicologia e sintaxe 188.

Uma passagem da Ilíada nos permite contrastar a idéia de ἀληθής com a de νημερτής. No

canto VI, Heitor está à procura de Andrômaca para despedir-se e interroga algumas servas

acerca de seu paradeiro ao verso 376:

Avante, servas, dizei-me sem rodeios.

εἰ δ’ ἄγε μοι δμῳαὶ νημερτέα μυθήσασθε.

Impaciente, ele lhes apresenta diversas hipóteses, dando-lhes, por conseguinte, margem

de escolha. Ora, a escolha é sempre objeto de livre apreciação. Mesmo se a informação obtida

for objetiva, isto é, verdadeira, ela não deixará de ser subjetiva dada a possibilidade de

escolha introduzida pelo solicitante. Por isso ele introduz sua demanda com o adjetivo

νημερτής 189.

O emprego do verbo ἁμαρτάνω associado à negação, que resulta no adjetivo νημερτής,

supõe uma ausência de erro no enunciado da reprodução de uma porção da realidade e,

sobretudo, a inexistência de uma não adaptação entre a realidade representada e o discurso

representante. A intervenção do espírito humano, que estabelece uma reprodução de uma

realidade que não é patente, estabelece um limite entre o que é e o que é dito. Neste caso, tem-

188
Cf. Idem, ibidem p.71.
189
Cf. Idem, ibidem p. 148.
102
se uma interpretação, coisa que o espírito arcaico percebia como uma nova realidade que,

caso se mostre de acordo com o real, é qualificada como ausência de erro 190.

O critério de verdade reside tanto no espetáculo objetivo da vida – sua fonte e referência

final – quanto na atitude interior daquele que o descreve. Esta modalidade de expressão põe

mais em evidência o papel desempenhado pelas faculdades cognitivas do homem 191.

De sua parte, as servas compreendem que Heitor deseja um esclarecimento. Assim,

aquela que toma a palavra relata ao senhor, da forma mais pura e simples possível, o que elas

testemunharam, conforme o verso 382:

Heitor, já que ordenastes relatar [as coisas] verdadeiras.

Ἕκτορ ἐπεὶ μάλ’ ἄνωγας ἀληθέα μυθήσασθαι

Do ponto de vista das servas, as condições necessárias para a comunicação de uma

verdade desvelante estavam satisfeitas 192.

Os adjetivos ἀληθής e νημερτής não são sinônimos. As diferenças que os separam estão

fundadas por situações psicologicamente diferentes em face à verdade: Nestor a solicita,

enquanto a serva a possui. A passagem examinada confirma que, para o espírito grego

arcaico, a natureza de um elemento de verdade depende do modo como ele é subjetivamente

construído 193.

Uma passagem no canto XIV da Odisséia permite observar como ἀληθής se relaciona

com ψεῦδος. Conversando com Ulisses ainda disfarçado como mendigo, Eumeu queixa-se

dos viajantes que chegam ao palácio de Penélope contando histórias mirabolantes sobre o

destino de Odisseu. No verso 125, é o porqueiro quem fala:

190
Cf. Idem, ibidem p.141.
191
Cf. Idem, ibidem p.142.
192
Cf. Idem, ibidem p.80.
193
Cf. Idem, ibidem p.149.
103
enganam, não querem contar [as coisas] verdadeiras.

ψεύδοντ’, οὐδ’ ἐθέλουσιν ἀληθέα μυθήσασθαι.

A realidade é o critério para que Eumeu possa afirmar que eles enganam (ψεύδοντ’):

Odisseu não retorna. O que se contrapõe ao engano dos visitantes é uma verdade negada -

οὐδ’ ἐθέλουσιν. Nenhum desses contadores de histórias jamais viu ou ouviu falar de Odisseu.

A verdade, nesse caso é a humilde confissão de ignorância. O engano não é uma deformação

do real, mas uma invenção desprovida de qualquer referência a este.

Se a realidade é exterior ao sujeito que fala, o interlocutor é privado de seu

conhecimento – no caso, da falta dele – e o falante se constitui numa barreira entre o ouvinte e

a realidade. Se, ao contrário, a realidade é interior ao sujeito que fala, o ouvinte é privado, não

de um relato, mas de um contato direto, de um desvelamento do real. No fim das contas,

ἀληθής é sempre, em Homero, o “não velado desvelante”.

Trata-se de uma nuance bastante significativa para a mentalidade arcaica, que

estabelecia uma diferença marcante entre a realidade e o real conhecido e procurava um modo

de expressão pela palavra que reduzisse ao máximo essa diferença: ao tempo de Homero, o

contrário de ἀληθής é o silêncio. Quando o conhecimento não é completo, o indivíduo que

sabe tem ao seu dispor, se assim o desejar, outras formas de expressão da verdade, onde cada

uma delas corresponde a um modo específico de raciocínio que lhe complete o conhecimento,

mas essas formas não dizem respeito à família de ἀληθής 194.

Os ensinamentos de Levet nos permitem acompanhar mais de perto as posições de

estudiosos de Hesíodo que abordam o problema.

194
Cf. Idem, ibidem p. 82-86.
104
Leclerc elenca duas posições 195, sem, entretanto, discuti-las. Para a primeira posição, o

adjetivo designa a qualidade das coisas: dizer ἀληθής significa “reproduzir num discurso

qualquer coisa que existe e não se esconde do mundo.” Para a segunda posição, trata-se de

uma qualidade do enunciado, isto é, “dizer a verdade de forma que o objeto em questão seja

trazido à luz, não fique mais escondido.” Ela destaca ainda a possibilidade de se associar a

palavra em oposição ao esquecimento. Bom exemplo disso é a apresentação que Hesíodo faz

de Nereu, nos versos 233-36 da Teogonia. Lá o velho do mar é descrito como verdadeiro, ou

sincero (ἀληθής), porque não esquece as leis (οὐδε θέμιστων λήθηται) e lembra que em Homero

este termo é empregado em situações que supõem uma exposição completa do objeto ou fato.

Wissman é categórico: o adjetivo só pode qualificar o relato ou o seu emissor, mas

jamais a coisa veiculada pelo relato 196.

Stoddard 197 investiga mais fundo essa questão. Para ela, o que importa aqui não é tentar

estabelecer a etimologia precisa de ἀληθής, mas antes entender qual o sentido que Hesíodo

atribuiu à palavra. Para tanto, recorre a três passagens da Teogonia. A primeira compreende

os versos 53 a 55, onde o poeta narra a origem das Musas:

Na Piéria gerou-as, da união do Pai Cronida,

Memória rainha nas colinas de Eleutera, para

esquecimento dos males e pausa de aflições. 55

τὰς ἐν Πιερίῃ Κρονίδῃ τέκε πατρὶ μιγεῖσα

Μνημοσύνη, γουνοῖσιν Ἐλευθῆρος μεδέουσα,

λησμοσύνην τε κακῶν ἄμπαυμά τε μερμηράων 55

195
Cf. Leclerc (1993) p.69-70 e nota 214.
196
Cf. Wissman (1996) p.18.
197
Cf. Stoddard (2004) p. 81-2.
105
Surge daí um aspecto paradoxal: as filhas de Zeus e Memória (Mnemósine) têm por

função o esquecimento, aqui expresso com uma palavra, λησμοσύνην que pertence à mesma

raiz (ληθ) do verbo λανθάνω.

A segunda passagem abrange os versos 102 e 103, descreve o estado a que é levado

aquele que ouve o cantor, servo das Musas, hineando a glória dos deuses:

logo esquece os pesares e de nenhuma aflição

se lembra, já os desviaram os dons das deusas.

αἶψ’ ὅ γε δυσφροσυνέων ἐπιλήθεται οὐδέ τι κηδέων


μέμνηται· ταχέως δὲ παρέτραπε δῶρα θεάων.

Novamente memória e esquecimento estão associados. O ouvinte esquece (επιλήθεται) e

já não se lembra (οὐδε ... μέμνηται).

Por fim, Stoddard recorre à apresentação de Nereu, entre os versos 233 e 236:

O Mar gerou Nereu, sem mentira, verdadeiro,

filho o mais velho, também o chamam Ancião

porque infalível e bom, nem os preceitos 235

esquece, mas justos e bons desígnios conhece.

Νηρέα δ’ ἀψευδέα καὶ ἀληθέα γείνατο Πόντος


πρεσβύτατον παίδων· αὐτὰρ καλέουσι γέροντα,
οὕνεκα νημερτής τε καὶ ἤπιος, οὐδὲ θεμίστων 235
λήθεται, ἀλλὰ δίκαια καὶ ἤπια δήνεα οἶδεν

Nereu é ἀληθής, que Leclerc traduziu como “sincero, verdadeiro”, e que Torrano

traduziu como “sem esquecimento”. Ele é aquele que não esquece, o que equivale dizer

lembra, os preceitos divinos (θεμίστων) e, por conseguinte, conhece as coisas justas.

A primeira passagem apresenta o paradoxo das filhas da Memória propiciarem o

esquecimento, a segunda mostra que esquecer é o mesmo que não lembrar, e a terceira, num

106
movimento especular, mostra que lembrar é não esquecer. Mas ainda há algo a acrescentar e

para isso é preciso retornar à diferença entre o saber das Musas e o saber que elas inspiram a

Hesíodo.

No verso 38 que o canto das Musas abrange as coisas que são, as coisas que serão e as

que eram (τά τ' ἐόντα τά τ' ἐσσόμενα πρό τ' ἐόντα). Já foi visto que as deusas podem dizer tudo o

que pode ser dito a respeito destas coisas, isto é, elas podem dizer verdades e falsidades. Por

outro lado, no verso 32, elas ordenam Hesíodo a cantar as coisas que serão e as que eram (ἵνα

κλείοιμι τά τ' ἐσσόμενα πρό τ' ἐόντα)


198
, isto é, as coisas eternas, omitindo as coisas que são (τ'

ἐόντα). No contexto das duas primeiras passagens estudadas, as coisas que são (τ' ἐόντα)

designam exatamente as coisas que devem ser esquecidas: os males, as aflições e os pesares,

coisas passageiras, coisas que o homem já conhece através de e dentro dos limites de sua

própria experiência humana.

Dentro da economia da poesia de Hesíodo, o contraste entre ἀληθέα e ἐτήτυμα já pode

começar a ser compreendido a partir do contraste entre as coisas eternas (τά τ' ἐσσόμενα πρό τ'

ἐόντα) e as coisas que são (τ' ἐόντα). Acreditamos que o exame de ἐτήτυμα e de ψεῦδος ajudará

a tornar isto mais claro ou, ao menos, menos obscuro.

2.3.4.2. Ἐτήτυμα

Esta palavra ocorre sob duas formas na obra de Hesíodo e sempre no plural. Na sua

forma simples, ἔτυμα, no verso 27 da Teogonia e na sua forma redobrada, ἐτήτυμα, no verso 10

de Os Trabalhos e os Dias. Uma vez que a forma redobrada é a forma que Hesíodo vai

empregar para caracterizar o seu próprio discurso no segundo poema, será esta que vamos

198
Stoddard acompanha Clay (2000: 65-67) no entendimento de que não há distinção entre as coisas
que serão e as que foram. Cf Stoddard (2004) p. 80, n.49. Seguimos as duas autoras no que toca este
entendimento.
107
guardar a partir do próximo capítulo. Na presente etapa do estudo as formas simples e

redobradas serão respeitadas de acordo com a ocorrência em cada caso particular visitado.

Clay sustenta a possibilidade, rejeitada por Levet 199, das palavras dessa família serem

derivadas de εἶναι (ser, existir) e designa - talvez a ponto de se confundir com elas - as coisas

do jeito que elas são 200.

Segundo a leitura de Wissman 201, ἔτυμα designa realidades suscetíveis de serem

verificadas por um critério objetivo, quase experimental e parece estar ligada ao verbo ἐτάζω,

que significa “verificar”. Estas realidades experimentais estão ao alcance de todos os homens,

mesmo os mais rudes e contrastam, neste sentido, com as ἀληθέα que referem a algo além do

alcance humano, a ponto de demandar a intermediação divina.

Arrighetti 202entende que Hesíodo polemiza diretamente contra Odisseu, sustenta que as

ἔτυμα do verso 27 da Teogonia são as coisas verdadeiras de onde as ψεύδεα πολλά tomam o

aspecto, como é o caso das mentiras de Odisseu, que são semelhantes às verdades 203. Já com

relação ao verso 10 de Os Trabalhos e os Dias, o autor afirma que Hesíodo introduz no

cenário poético grego uma inovação no modo de expressão característico da tradição épica:

ele renuncia ao que era um privilégio para Homero, isto é, o conhecimento de uma linguagem

dos deuses e constrói seu poema numa linguagem humana. Disto discordamos em parte, já

que entendemos que Hesíodo coloca-se como uma ponte entre estas duas instâncias, o divino

e o humano e, para fazê-lo, ele deve forçosamente conhecer a linguagem dos deuses, mas

deverá orientá-la para uma linguagem humana.

199
Cf. Levet (1976) p.3.
200
Cf. Clay (2003) p. 60-61.
201
Cf. Wissman (1996) p. 18.
202
Cf. Arrighetti (1996) p. 60.
203
Od. 19.203. ἴσκε ψεύδεα πολλὰ λέγων ἐτύμοισιν ὁμοῖα·
108
Stoddard 204 faz uma leitura semelhante deste verso. Segundo a autora, o recurso a

ἐτήτυμα μυθησαίμην é a marca de que Os Trabalhos e os Dias não é um poema inspirado, mas

antes a fala de um homem que se funda na lei de Zeus.

Acatando a observação de Levet 205 de que ἐτήτυμα engloba as outras duas palavras da

família, ἐτεός e ἔτυμος, é prudente investigar algumas ocorrências de ambas em Homero.

Comecemos com ἐτεός.

Os versos 290-330 do canto II da Ilíada contam que pouco antes de deixar Áulis, um

presságio se apresentou aos gregos e foi interpretado por Calcas como o sinal da vitória sobre

os troianos no decurso de dez anos. Nove anos são passados e os aqueus, desgastados,

manifestam desejo de regressar ao lar, ao que Odisseu os incita a permanecer e prosseguir no

combate para saber se Calcas disse ou não a verdade:

se Calcas prediz ou não com precisão

ἢ ἐτεὸν Κάλχας μαντεύεται ἦε καὶ οὐκί. 300

As palavras de Calcas não estavam fundadas sobre a observação ou testemunho direto

da realidade. Logo, ἐτεὸν supõe um enunciado subjetivo que se mostrará, na sequência,

idêntico ao real objetivo. O que está em jogo aqui é a noção essencial de verificação e ἐτεὸν

tem aqui um valor adverbial.

No canto XX da Ilíada, Enéias critica os guerreiros que cobrem seus adversários com

injúrias e os compara às mulheres encolerizadas que nas suas discussões lançam, umas às

outras, insultos grosseiros, alguns correspondentes à realidade, outros não:

discutem, lançando-se muitos insultos,

204
Cf. Stoddard (2004) p.84.
205
Cf. Levet (1976) p.239.
109
uns verdadeiros, outros não. 255

νεικεῦσ’ ἀλλήλῃσι μέσην ἐς ἄγυιαν ἰοῦσαι

πόλλ’ ἐτεά τε καὶ οὐκί· 255

O aêdo limitou-se a descrever as asserções e ἐτεά funciona aqui como adjetivo. Levet

acrescenta que para um observador neutro, estes insultos constituem hipóteses que podem e

devem ser verificadas. É a noção subjetiva de hipótese que determina o emprego de ἐτεός 206.

Duas ocorrências de ἔτυμος na Odisséia podem contribuir para a compreensão do que

está em jogo.

No canto XXIII, Euricléia anuncia a Penélope o regresso de Odisseu a Ítaca e,

rechaçada por Penélope, insiste no caráter verdadeiro de seu relato:

não zombo de ti, criança querida, mas, com precisão 25

te digo que Odisseu retornou à casa ,

οὔ τί σε λωβεύω, τέκνον φίλον, ἀλλ’ ἔτυμόν τοι 25

ἦλθ’ Ὀδυσεὺς καὶ οἶκον ἱκάνεται, ὡς ἀγορεύω.

Aqui, com precisão (ἔτυμος) designa um elemento subjetivo que se revela positivamente

objetivo. É a palavra que convém para qualificar o conteúdo de uma afirmação quando se

constata que esta é bem conforme ao que realmente é o caso.

Na famosa passagem do canto XIX. 23 da Odisséia, Odisseu disfarçado de mendigo

apresenta-se a Penélope e relata um encontro que teria tido com o próprio Odisseu. O narrador

comenta a fala do mendigo:

Seguiu dizendo muitas coisas falsas semelhantes à verdade.

ἴσκε ψεύδεα πολλὰ λέγων ἐτύμοισιν ὁμοῖα.

206
Levet (1976) p.168.
110
O comentário é paralelo ao diálogo e é o narrador quem julga a personagem. Este sabe

que Odisseu mente e pode constatar que as ficções narradas assumem a aparência de relações

verossímeis. Os elementos ἔτυμα corresponderiam ao real tal como ele seria se as palavras se

revelassem em conformidade com a realidade.

Sobre ἔτυμος, Levet conclui que representa o conteúdo de toda conjectura, afirmação ou

evocação que reflete fielmente o real. A palavra é empregada quando é preciso salientar que,

estando a realidade ausente, mascarada ou escondida por trás de uma visão ou de um relato

subjetivo, o enunciado coincide com o que é objetivamente, sem que esteja aí implicado um

esforço da consciência para atingir esse resultado 207.

De posse dessas considerações a respeito de ἐτεός e de ἔτυμος, podemos examinar

ἐτήτυμα mais de perto.

Levet alerta que não é difícil nem descrever nem interpretar os empregos homéricos da

palavra, mas é difícil explicar sua evolução semântica e precisar a natureza exata da categoria

do verdadeiro que ela exprime 208.

Só há uma ocorrência da palavra como adjetivo na Ilíada. No canto XXII. 438-9, o aêdo

conta que Andrômaca ainda não sabia da morte de Heitor porque nenhum mensageiro

verdadeiro lhe tinha contado o ocorrido:

De Heitor, pois nenhum mensageiro verdadeiro lhe veio


contar que o marido ficou fora das portas
Ἕκτορος· οὐ γάρ οἵ τις ἐτήτυμος ἄγγελος ἐλθὼν 209
ἤγγειλ' ὅττί ῥά οἱ πόσις ἔκτοθι μίμνε πυλάων,

207
Cf. Levet (1976) p.165.
208
Cf. Idem, ibidem p.183.
209
Notar a semelhança entre este verso e H.H. Dem. 46: οὔτ' οἰωνῶν τις τῇ ἐτήτυμος ἄγγελος ἦλθεν.
111
O caráter de verdadeiro do mensageiro é garantido pelo fato de que suas palavras

representariam a realidade tal como ela é. Todas as demais ocorrências da palavra na Ilíada

são adverbiais.

No canto I. 558-9, Hera, após ter visto Tétis abraçada aos joelhos de Zeus, entende que

este deu à deusa sinal de que honraria Aquiles em Tróia:

suponho que a ela acenastes que realmente honrarás

Aquiles e destruirás cidades com as naus dos aqueus.

τῇ σ' ὀΐω κατανεῦσαι ἐτήτυμον ὡς Ἀχιλῆα

τιμήσῃς, ὀλέσῃς δὲ πολέας ἐπὶ νηυσὶν Ἀχαιῶν.

É importante assinalar aqui o caráter de suposição (ὀΐω), por parte de Hera. A esposa de

Zeus não dispõe, ao menos no momento, de uma realidade factual contra qual ela possa

realizar a verificação.

No canto XIII. 111-2, uma nova hipótese é considerada como idêntica ao que é.

Agamêmnon é apontado como o responsável pelas sucessivas perdas dos gregos e pela

retomada de ânimo dos troianos:

mas se, realmente, tem toda a culpa

o herói Agamêmnon, senhor dos aqueus.

ἀλλ' εἰ δὴ καὶ πάμπαν ἐτήτυμον αἴτιός ἐστιν

ἥρως Ἀτρεΐδης εὐρὺ κρείων Ἀγαμέμνων

No canto XVIII. 128, após Aquiles ter anunciado à mãe sua decisão de voltar ao

combate para vingar Pátroclo, mesmo sabendo que destino lhe reservava a Moira, sua mãe

Tétis diz ao filho, reconhecendo o caráter de conformidade à realidade de suas palavras:

112
Sim, filho, se tais são realmente os fatos, não é mal

que salves teus camaradas da ruína iminente.

ναὶ δὴ ταῦτά γε τέκνον ἐτήτυμον οὐ κακόν ἐστι


τειρομένοις ἑτάροισιν ἀμυνέμεν αἰπὺν ὄλεθρον.

Nas três ocorrências aqui estudadas, ἐτήτυμον foi empregado como advérbio e pode ser

traduzido como “realmente”, acentuando a conformidade de cada relato à realidade.

Na Odisséia ἐτήτυμον ocorre apenas uma vez como advérbio, no canto IV. 157, quando

Pisístrato, filho de Nestor, confirma a suspeita de Menelau que supunha ter diante dele

Telêmaco, o filho de Odisseu:

este é realmente o filho daquele, tal como dizes.

κείνου μέν τοι ὅδ' υἱὸς ἐτήτυμον, ὡς ἀγορεύεις·

O emprego é idêntico aos empregos adverbiais da Ilíada. Como advérbio, ἐτήτυμος

reforça a solicitação de um relato em conformidade com a realidade precisamente por ser este,

dentre todos os advérbios possíveis, o que possui o aspecto mais objetivo e o menos subjetivo,

destacando-se assim das demais palavras da família: uma vez que ἐτεός e ἔτυμος remetem a

hipóteses, a ação do sujeito sobre o conteúdo do real que está gravado nele é evidentemente

mais forte. Com ἐτήτυμος a intervenção do sujeito sobre o real se pretende bem mais atenuada,

o que permite uma reprodução em discurso mais em conformidade com a realidade.

Já quando a palavra é empregada como adjetivo, uma ligeira diferença com relação à

Ilíada pode ser notada: nas duas ocorrências, há uma negação envolvida. No primeiro caso, no

verso 241 do canto III, Telêmaco afirma a Mentor que não há possibilidade de Odisseu

retornar:

para ele não há mais o retorno verdadeiro.

κείνῳ δ' οὐκέτι νόστος ἐτήτυμος.


113
No segundo, no verso 62 do canto XXIII, Penélope não crê em Euricléia que lhe

anuncia a chegada de Odisseu:

mas este relato, tal como dizes, não se mostra verdadeiro.

ἀλλ' οὐκ ἔσθ' ὅδε μῦθος ἐτήτυμος, ὡς ἀγορεύεις

A negação pode ajudar a esclarecer a contrario o sentido de ἐτήτυμος. Penélope jamais

põe em dúvida a intenção da ama de lhe relatar a realidade subjetiva que se instaurou na sua

consciência. O que esposa de Odisseu não vê é a possibilidade de que aquele relato

corresponda a uma realidade objetiva. O mesmo se dá com Telêmaco. Em ambos os casos, o

retorno de Odisseu não é encarado como uma hipótese, mas como uma afirmação que não

corresponde à realidade. Assim sendo, não se trata de ἔτυμος nem de ἐτεός, ambos mais

próximos de hipóteses a serem confirmadas. Tampouco houve uma revelação de algo oculto,

o que solicitaria o uso de ἀληθής, nem relato não deformado do real, que demandaria ἀτρεκής,

nem mesmo apreensão isenta de erro, onde, nesse caso, νημερτής seria mais apropriado. Desta

forma, ἐτήτυμος surge aqui como a própria realidade factual, ainda que, no caso em tela esta

realidade seja negada.

A partir do que acabamos de estudar, é possível ler a fórmula ἐτήτυμα μυθησαίμην como

um discurso que fala sobre as coisas humanas, sobre o modo humano de apreender a realidade

e de agir nela, proferido por alguém investido de autoridade para falar sobre estas coisas, mas

isto não é tudo. É preciso ter sempre em mente que ἐτήτυμα carrega sempre consigo o caráter

de hipótese, o que convida à verificação e faz dela a palavra mais adequada para um discurso

declaradamente didático: ensina e convida para a ação.

114
2.3.4.3 Ψεύδεα

Ψεῦδος e ψεύδεσθαι ainda não tinham, à época homérica, a significação que vieram a

alcançar no período clássico. Aqui eles se opõem a ἀληθής e sua família. Lá eles formam o

quase contrário de ἔτυμος, na medida em que sua presença implica a existência de uma

afirmação subjetiva ou de uma suposição que se revela em desacordo com a realidade

objetiva.

Ψεῦδος designa, em primeiro lugar, um erro por falta de informação clara. O

conhecimento seguro da matéria evocada impede, salvo ação contrária da consciência, a sua

instalação, o que reforça o caráter essencialmente passivo do conhecimento, segundo aquele

modo de estruturação do conhecimento.

Quando há ψεῦδος, o objeto em questão se subtrai e o homem é forçado a lançar mão de

uma conjectura e submetê-la à verificação, ou ainda, a tentar reconstruir a realidade a partir

dos elementos que dispõe, correndo o risco de errar 210. Vale notar que, se o objeto se subtrai,

ele permanece encoberto, logo não há desocultamento ou desvelamento. Por isso, ψεῦδος não

se opõe a ἀληθής.

Na Ilíada, canto IV, versos 365-400, Agamêmnon acusa Diomedes de ser inferior ao pai.

Estênolo vem em defesa de Diomedes com as palavras dos versos 404-5:

Atreide não mintas, já que sabes, fale claramente:

nós afirmamos que somos ainda melhores do que nossos pais.

Ἀτρεΐδη μὴ ψεύδε' ἐπιστάμενος σάφα εἰπεῖν·

ἡμεῖς τοι πατέρων μέγ' ἀμείνονες εὐχόμεθ' εἶναι·

210
Cf Levet (1976) p. 201.
115
Agamêmnon é detentor de um saber (ἐπιστάμενος), mas não o declara de forma clara

(σάφα εἰπεῖν), que é, sem dúvida, uma expressão equivalente a ἀληθής. Mas esta só seria

aplicável se interlocutor de Agamêmnon se encontrasse em estado de completa ignorância e

também sem possibilidadade de, após ter ouvido o relato, ir, ele mesmo fazer a verificação

daquilo que ouviu. Mas Estênolo sabe que a fala do Atreide não corresponde à realidade e é

por isso que está em condição de dizer que Agamêmnon mente. O nível de conhecimento

alcançado por Estênolo coloca-o em posição de igualdade com relação a Agamêmnon: ambos

têm acesso suficiente à mesma realidade.

Mas ο ψεῦδος do rei dos aqueus repousava sobre um conhecimento seguro. É preciso

também examinar como a palavra se comporta numa situação de falta de informação clara. No

canto IV da Odisséia, Helena encontra-se intrigada com a semelhança do jovem que se

apresenta a Menelau em Esparta com Odisseu. No verso 140, a rainha pergunta a si mesma:

engano-me ou falo a verdade?

ψεύσομαι ἦ ἔτυμον ἐρέω;

Na falta de um conhecimento seguro, a rainha se vê forçada a lançar mão de uma

hipótese para completar a realidade. A conjectura ἔτυμον revela-se, quando submetida à

experiência, em conformidade àquilo que é de fato, enquanto a conjectura ψεῦδος evidencia

um desacordo entre o que é suposto e o que é real.

Um observador externo ao diálogo pode ser levado a qualificar uma narrativa como

ψεῦδος isto é, como um enunciado composto de elementos subjetivos, puramente imaginários,

desconectados da realidade, mas semelhantes, não às coisas, mas aos enunciados que podem

ser qualificados como ἔτυμα, como no verso 203 do canto XIX da Odisséia, onde o aêdo

comenta as mentiras que Odisseu, disfarçado de mendigo, contou a Penélope:

Seguiu dizendo muitas coisas falsas semelhantes à verdade.


116
ἴσκε ψεύδεα πολλὰ λέγων ἐτύμοισιν ὁμοῖα·

É interessante observar que, do ponto de vista de Penélope, não houve nenhuma

confrontação com o real. Ela permanece em situação de ignorância - λήθη, que é o verdadeiro

contrário de ἀληθής.

Nos versos 19 e 20 do canto III da Odisséia, Atenas instrui Telêmaco a procurar Nestor e

descreve o caráter do ancião. Este é bem diferente do de Odisseu:

Inquire-o tu mesmo para que fale sem engano.

Não te enganará: a correção o distingue.

λίσσεσθαι δέ μιν αὐτόν, ὅπως νημερτέα εἴπῃ·


ψεῦδος δ' οὐκ ἐρέει· μάλα γὰρ πεπνυμένος ἐστί.

Como Levet observa, se o conhecimento de Nestor for insuficiente, ele não recorrerá à

fantasia de inventar fábulas. É mais provável que confesse sua ignorância 211. O autor ainda

acrescenta que ψεῦδος não é antônimo direto de νημερτές na medida em que “este é o

produto de um esforço sustentado e alcançado pelo espírito para apreender e transmitir a

realidade tal como ficou gravada nele”. Em outras palavras, o espírito deve permanecer

passivo perante a realidade, sem nada lhe acrescentar ou subtrair. Já ψεῦδος é

“a conseqüência de uma reflexão voluntária e ativa, onde a consciência

rejeita as possibilidades que lhes são oferecidas por causa da imprecisão do

conhecimento subjetivo disponível e escolhe construir livremente e

subjetivamente uma realidade apartada do real objetivo. 212”

Podemos observar que ψεῦδος pode ser empregado tanto em situações de deformação

voluntária da verdade, algo que entendemos como mentira, como é o caso de Agamêmnon e o

211
Cf. Levet (1976) p.208.
212
Levet (1976) p. 208.
117
de Odisseu, quanto numa situação de formulação de uma hipótese que visa completar a

realidade, como é o caso de Helena. Neste último, ψεῦδος assemelha-se mais a um engano.

Para que ψεῦδος assuma o significado de mentira, é necessário que outra pessoa que não o

emissor do enunciado tenha pleno conhecimento da verdade e saiba, portanto, que a fala em

questão não corresponde à realidade. Em nenhum dos casos há uma avaliação moral: quando

comparado a νημερτές, o aspecto que sobressai é o da distorção do real subjetivo.

O falso entendido como deformação da realidade objetiva efetuada por um sujeito é

alheio à psicologia do conhecimento ao tempo de Homero. Decerto ele existe, mas se situa

fora dos limites dos mecanismos interiores de aquisição, conservação e transmissão do

conhecimento e releva de um vocabulário particularmente concreto - σκολιός, ἀπάτη, ἐπίκλοπος,

κερδαλέος, δόλος - que não enfoca a descrição do processo pelo qual o espírito consegue

enunciar o verdadeiro e o falso.

2.3 Conclusão

Ao contrário da maioria, que entende que Hesíodo está assegurando a verdade de sua

fala e denuncia da mentira da poesia de outros poetas, entendemos que Hesíodo aponta para a

distância entre o divino e o humano, tomada pelo viés epistemológico, isto é, pela questão do

saber e de sua expressão. Segundo este olhar, a diferença radical entre o saber divino e o saber

humano, ainda que intransponível, admite gradações, que são expressas por ψεύδεα πολλὰ, e

dentro deste gradiente o humano pode se aproximar do divino. Entre os muitos enganos

humanos (ψεύδεα πολλὰ) e o saber divino (ἀληθέα) cabe um saber propriamente humano

(ἐτήτυμα) que permite ao homem agir segundo as determinações daquilo que lhe é

inalcançável – o divino.

118
Analisados em conjunto, estes poemas apontam para a enorme distância entre deuses e

homens, distância esta que radica, insistimos, na questão do saber e de sua transmissão. Se

Hesíodo acentua esta distância, o faz para se apresentar como elemento de ligação entre estas

duas instâncias aparentemente inconciliáveis, subsumindo o pastor da Teogonia e o camponês

de Os trabalhos e os dias ao poeta.

É possível ler a fórmula ἐτήτυμα μυθησαίμην como um discurso que fala sobre as coisas

humanas, proferido por alguém investido de autoridade para falar e que fala sobre as coisas

humanas, sobre o modo humano de apreender a realidade e de agir. É preciso ter sempre em

mente que ἐτήτυμα carrega sempre consigo o caráter de hipótese, herdado de ἐτεός e de ἔτυμος,

o que convida à verificação, o que faz dela a palavra mais adequada para um discurso

declaradamente didático: ensina e convida para a ação.

Nesta perspectiva, ἀληθέα γερύσασθαι é o fundamento que ultrapassa toda possibilidade

de verificação, é o princípio divino e referência última de Hesíodo para construir, subordinado

a este princípio, seu discurso endereçado aos homens cuja mente oscilante (ψεύδεα πολλά)

condena-os a estarem sempre rondando, sem jamais alcançarem a realidade onde estão

imersos (ἐτύμοισιν ὁμοῖα).

119
3. A construção do discurso humano

O propósito deste capítulo é a investigação de como Hesíodo constrói seu discurso

humano. Para tanto, não só é preciso perseguir os pares de oposição divino x humano que o

poeta constrói a partir de alethéa x etétyma, como também é preciso segui-los obedecendo ao

trânsito do pastor para o camponês. Em outras palavras, é preciso partir da Teogonia e chegar

a Os trabalhos e os dias. Isto será feito em três momentos, a cada um correspondendo uma

seção. Começaremos investigando passagens da Teogonia, do proêmio e do Hino a Hécate,

mais especificamente, que põem em relevo a tensão entre deuses e homens. A segunda seção

será dedicada ao mito de Prometeu em suas duas versões apresentadas por Hesíodo, uma em

cada poema, já que este mito é o grande ponto de articulação entre as duas obras. A terceira

seção é dedicada a Os trabalhos e os dias, mais precisamente, ao mito das raças.

Entretanto, examinar o modo como Hesíodo constrói seu discurso implica também, e

sempre, em mais um retorno a Homero.

Enquanto Homero dava livre voz às suas personagens, a ponto de Stoddard 213 observar

que quase a metade da Ilíada é composta de diálogos, diretos ou indiretos, ou de passagens

onde o narrador descreve o ponto de vista ou o estado emocional de uma personagem, na obra

de Hesíodo, a presença do narrador é muito mais marcante e não apenas pelo fato de ele se

apresentar nos seus poemas, seja nomeando-se, como faz na Teogonia, seja por meio do “Eu”

que conduz toda a narrativa de Os trabalhos e os dias. O poeta beócio vai mais longe: os

diálogos, diretos ou indiretos, são muito mais escassos do que em Homero, limitando-se a 34

versos dos 1022 da Teogonia e 12 versos em 828 de Os trabalhos e os dias, de onde se pode

concluir que são passagens que o poeta considera de suma importância e quer emprestar a elas

213
Cf. Stoddard (2004) p.38.
120
um colorido especial. Mesmo na descrição das tarefas ligadas à navegação 214, onde confessa

sua inexperiência com relação às fainas do mar e declara que só é capaz de transmitir aqueles

ensinamentos porque as Musas o ensinaram (Μοῦσαι γάρ μ' ἐδίδαξαν) 215, não são as deusas

quem falam, mas é o poeta quem detém o controle da narração.

Precisamente neste ponto radica a mais significativa diferença entre os dois poetas. Na

abertura do Catálogo das Naus 216, Homero apresenta-se como uma boca para Musa falar e

um ouvido para ouvir o que ela canta, o que é, em outras palavras, a própria encarnação da

tradição oral. Passada a inspiração, já não sabe falar. Já Hesíodo foi ensinado, isto é,

incorporou o canto que as deusas lhe inspiraram. Dito de outra forma, a inspiração que as

Musas causaram a Hesíodo não é da ordem da mania, do delírio poético que Platão descreve

no Fedro 217 e no Íon 218, que faz com que os poetas digam coisas sábias sem serem, eles

mesmos, sábios nas coisas que dizem.

Além do mais, Homero concentrou seu foco nos deuses olímpicos. É bem verdade que

em algumas passagens aborda deuses mais antigos, mas seu modelo cosmogônico era outro,

onde Oceano e Tétis eram apresentados como a origem dos deuses 219 e não há ali nenhuma

pretensão de ser sistemático ou exaustivo. Já para Hesíodo a sistematização era uma

preocupação evidente. Ele quis nos apresentar um relato que abarcasse toda a história do

universo, este, para os gregos, plenamente identificado com o divino. Isto resultou numa

narrativa onde se pode distinguir claramente duas fases, a primeira, de mudança e conflito

contínuo, desembocando na segunda, que é o cosmos de Zeus, esta, doravante eterna.

214
Cf. Trab. 618-93.
215
Trab. 662.
216
Il. 2.484-86. Ἔσπετε νῦν μοι Μοῦσαι Ὀλύμπια δώματ' ἔχουσαι·/ ὑμεῖς γὰρ θεαί ἐστε πάρεστέ τε
ἴστέ τε πάντα,/ ἡμεῖς δὲ κλέος οἶον ἀκούομεν οὐδέ τι ἴδμεν·
217
Fedro 265b
218
Íon 534 a-d.
219
Il. XIV. 201. Ὠκεανόν τε θεῶν γένεσιν καὶ μητέρα Τηθύν,
121
Assim, o pastor da Teogonia fala da origem de todas as coisas desde o princípio (v.115,

ἐξ ἀρχῆς), mas para tanto recebe o auxílio das Musas (v.114), enquanto o camponês de Os

trabalhos e os dias fala das coisas humanas e de como o homem deve se conformar à ordem

divina, mas, mesmo sem recorrer às Musas e seu maior desejo é endireitar um caráter mal

formado através de um discurso que seja persuasivo por força da verdade.

Daí resulta que Hesíodo é um poeta preocupado em marcar sua presença no texto e

também quer dar conta do todo de um modo sistemático. Em outras palavras, seu pensamento

caminha em direção à conquista de um discurso autônomo.

3.1 Teogonia

Já o primeiríssimo verso da Teogonia, Μουσάων Ἑλικωνιάδων ἀρχώμεθ' ἀείδειν, mostra-

se problemático, pois difere dos padrões normais dos hinos homéricos 220 que empregam o

verbo ἀρχώμεθ' na primeira pessoa do singular, enquanto Hesíodo o emprega na primeira

pessoa do plural 221. O emprego do genitivo ablativo associado ao verbo dá a entender que o

poeta encara seu canto como uma produção conjunta entre ele e as Musas. Enquanto Homero

e os aêdos dos Hinos colocavam-se do lado da audiência, Hesíodo manifesta de saída seu

status de coautor. Ele começa com as Musas, a partir das Musas, para, ao longo de sua

trajetória poética, mas já na Teogonia, assumir o controle do seu discurso e orientá-lo para

termos humanos 222.

220
Cf. Hinos homéricos 2, 11, 13, 16, 26 e 28.
221
Homero lança mão da primeira pessoa do plural para referir-se a si mesmo em apenas duas
ocasiões, coincidentemente, ambas envolvendo as Musas e onde o poeta coloca-se ao lado da
audiência. Uma, no décimo verso da Odisséia, onde lemos a conclusão da invocação à deusa: τῶν
ἁμόθεν γε, θεά, θύγατερ Διός, εἰπὲ καὶ ἡμῖν. Outra, no canto II da Ilíada, nos versos 485-6: ὑμεῖς γὰρ
θεαί ἐστε πάρεστέ τε ἴστέ τε πάντα,/ ἡμεῖς δὲ κλέος οἶον ἀκούομεν οὐδέ τι ἴδμεν·, onde, antes de
lançar-se à tarefa de enumerar as forças gregas em Tróia, o poeta pede o auxílio das Musas.
222
Esta interpretação encontra respaldo no escólio ao verso 1 da Teogonia: ἀπο τῶν Μουσῶν
ποιούμεθα τοῦ λέγειν. Cf. Clay (2000) p. 53.
122
Orientar o discurso para termos humanos significa que há uma tensão entre divino e

humano e esta tensão radica, sobretudo na temporalidade. De fato, deuses são eternos, isto é,

fora do tempo, enquanto humanos são efêmeros.

3.1.1 Da atemporalidade divina para a temporalidade humana.

Este conflito de temporalidades já se manifesta logo no início do poema, segundo Clay,


numa passagem que engloba os versos 2 a 21:

Elas têm grande e divino o monte Hélicon


Em volta da fonte violácea com pés suaves
Dançam e do altar do bem forte filho de Crono,
Com a tenra pele limpas no Permesso 5
Ou na fonte do Cavalo ou no Olmio divino
No cume do Hélicon fizeram coros
Belos e ardentes, irromperam com os pés 223.
Daí precipitando-se ocultas por muita névoa
Iam em renques noturnos lançando belíssima voz 10
Hineando Zeus porta-égide, a soberana Hera
De Argos calçada de áureas sandálias,
Atena de glaucos olhos, virgem de Zeus porta-égide,
O luminoso Apolo, Ártemis verte-flechas,
Pósidon que sustém e treme a terra, 15
Têmis veneranda, Afrodite de olhos ágeis,
Hebe de áurea coroa, a bela Dione,
Aurora, o grande Sol, a Lua brilhante,
Leto, Jápeto, Crono de curvo pensar,
Terra, o grande Oceano, a Noite negra 20
E o sagrado ser dos outros imortais sempre vivos
Elas um dia a Hesíodo ensinaram belo canto

αἵ θ' Ἑλικῶνος ἔχουσιν ὄρος μέγα τε ζάθεόν τε,


καί τε περὶ κρήνην ἰοειδέα πόσσ' ἁπαλοῖσιν
ὀρχεῦνται καὶ βωμὸν ἐρισθενέος Κρονίωνος·
καί τε λοεσσάμεναι τέρενα χρόα Περμησσοῖο 5
ἠ' Ἵππου κρήνης ἠ' Ὀλμειοῦ ζαθέοιο
ἀκροτάτῳ Ἑλικῶνι χοροὺς ἐνεποιήσαντο,
καλοὺς ἱμερόεντας, ἐπερρώσαντο δὲ ποσσίν.
ἔνθεν ἀπορνύμεναι κεκαλυμμέναι ἠέρι πολλῷ
ἐννύχιαι στεῖχον περικαλλέα ὄσσαν ἱεῖσαι, 10
ὑμνεῦσαι Δία τ' αἰγίοχον καὶ πότνιαν Ἥρην
Ἀργείην, χρυσέοισι πεδίλοις ἐμβεβαυῖαν,

223
Pequenas, porém necessárias, modificações à tradução de Torrano estão assinaladas em itálico.
123
κούρην τ' αἰγιόχοιο Διὸς γλαυκῶπιν Ἀθήνην
Φοῖβόν τ' Ἀπόλλωνα καὶ Ἄρτεμιν ἰοχέαιραν
ἠδὲ Ποσειδάωνα γαιήοχον ἐννοσίγαιον 15
καὶ Θέμιν αἰδοίην ἑλικοβλέφαρόν τ' Ἀφροδίτην
Ἥβην τε χρυσοστέφανον καλήν τε Διώνην
Λητώ τ' Ἰαπετόν τε ἰδὲ Κρόνον ἀγκυλομήτην
Ἠῶ τ' Ἠέλιόν τε μέγαν λαμπράν τε Σελήνην
Γαῖάν τ' Ὠκεανόν τε μέγαν καὶ Νύκτα μέλαιναν 20
ἄλλων τ' ἀθανάτων ἱερὸν γένος αἰὲν ἐόντων.
αἵ νύ ποθ' Ἡσίοδον καλὴν ἐδίδαξαν ἀοιδήν,

Clay entende que o emprego do imperfeito στεῖχον no verso 10 marca o início de um

deslocamento das Musas de seu tempo eterno para a temporalidade humana. Este movimento

se inicia no verso 2, com um verbo no presente do indicativo (ἔχουσιν), a única forma verbal

possível para designar o eterno, e se completa com o emprego do aoristo ἐδίδαξαν, no verso 22,

que marca a finitude característica dos homens 224. O imperfeito do verso 10 parece estar fora

do emprego usual grego, mas expressa temporalmente o que já tinha sido apresentado

espacialmente pelo deslocamento das Musas de sua morada sagrada para os limites da morada

humana. Este verbo é então a perfeita expressão do movimento de transição entre o tempo

eternamente presente dos deuses a temporalidade humana. Deste modo, o deslocamento

temporal das deusas se dá em direção ao passado, pela via do imperfeito que, mesmo

guardando a sua dimensão eterna de continuum, aponta para o que o homem precisa saber: a

origem das coisas. A consumação entrada das Musas na ordem de tempo humana é marcada

pelo aoristo do verso 22 (ἐδίδαξαν). No verso 24, “Elas um dia a Hesíodo ensinaram belo

canto” (τόνδε δέ με πρώτιστα θεαὶ πρὸς μῦθον ἔειπον), o aoristo ἔειπον mostra que elas já

deixaram por completo o âmbito do “eternamente verdadeiro” para entrar no âmbito do

“verdadeiro a cada instante”, onde cada ação só acontece uma vez. Elas entraram no âmbito

da história.

224
Cf. Clay (2000) p. 54-56.
124
Na verdade, ainda que isto não altere a percepção de que há, de fato, um conflito entre

ordens temporais distintas, nem Clay nem Stoddard, que também aborda os aspectos

temporais envolvidos neste texto 225, levaram em conta os aoristos ἐνεποιήσαντο, no verso 7, e

ἐπερρώσαντο, no verso 8, respectivamente, “fizeram” e “irromperam”, que, juntos, apontam

para a forma repentina e voluntariosa com que as Musas decidem ir ter com o poeta e inspirar-

lhe o canto.

Entre os versos 10 e 22, é o poeta, e não as Musas, quem descreve também o conteúdo

do canto das deusas. Trata-se de um catálogo onde dezenove divindades são nomeadas,

começando por Zeus e terminando com Gaia, Oceano e a negra Noite, e não segue um

esquema genealógico claramente articulado.

Em linhas gerais, o catálogo parece seguir a ordem inversa do que mais tarde, no verso

116, Hesíodo solicitará às deusas, isto é, uma apresentação ἐξ ἀρχῆς, do Caos ao cosmos 226.

Que as Musas comecem seu canto por Zeus não é de surpreender: elas cantam a culminação

de todo o processo teogônico e cosmogônico, isto é a ordem de Zeus.

É exatamente isso que Hesíodo quer cantar, ainda que numa cronologia ascendente e

mais compatível com o entendimento humano, a partir de e com as Musas. Outros traços do

canto são marcadamente anti-hesiódicos. O emprego de epítetos locais, como no caso de

“argiva” para Hera (v.12) não condiz com a proposta de uma teogonia universal. A menção a

Dione (v.17) um verso após e na mesma posição de Afrodite (v.16) parece mais homérica do

que hesiódica. Em Homero, a deusa é apresentada como filha de Zeus e Dione. A Afrodite

225
Cf. Stoddard (2004) p.130, onde a autora acata os ensinamentos de Clay.
226
Os versos 44-52, que compreendem o segundo canto das Musas já no Olimpo, endereçado a Zeus e
que serão analisados adiante, parecem ser uma antecipação do conteúdo do poema a partir do verso
115 e asseguram o caráter programático do proêmio da Teogonia.
125
que surgirá nos versos 188-200 da Teogonia é Urânida. O destaque dado a Noite parece seguir

o das chamadas teogonias órficas 227.

Por fim, o verso 21 sugere que a nomeação dos deuses está incompleta, enquanto a

tarefa que Hesíodo se propõe a partir do verso 116, tido pela maioria como o verdadeiro início

do poema, tem a pretensão de ser exaustiva. Muitos estudiosos têm tentado resolver essa

desconcertante apresentação do primeiro canto das Musas. Entendemos que este canto pode

servir para deixar claro, desde a abertura do poema, que os deuses, em sua intimidade, são

inatingíveis. Todo e qualquer contato entre eles e os mortais devem ser precedidos de uma

preparação prévia de ambas as partes.

Se esta interpretação está correta, a diferença entre o canto das Musas no Hélicon e o

canto que o poeta solicitará mais tarde é intencional. Ela mostra o contraste entre os deuses

vistos pelo ponto de vista divino e os deuses vistos pelo ponto de vista humano.

Tendo começado sua descida no verso 10, as Musas chegam à morada humana nos

versos 22- 23:

Elas um dia a Hesíodo ensinaram belo canto


quando pastoreava ovelhas ao pé do Hélicon divino.
αἵ νύ ποθ' Ἡσίοδον καλὴν ἐδίδαξαν ἀοιδήν,
ἄρνας ποιμαίνονθ' Ἑλικῶνος ὕπο ζαθέοι.

Isto é, ao limite entre o mundo humano e o divino, isto é, os pastos isolados propícios

para este encontro. Isso se dá simultaneamente à entrada na temporalidade humana, marcada

pelo aoristo do verso 22. Lá, um indivíduo com um nome, Hesíodo, é o receptor dos

ensinamentos das deusas. A voz que descreve a chegada das deusas é a mesma que apresenta

227
Talvez estas discrepâncias, que serão corrigidas ao longo do poema, possam funcionar como base
de sustentação para os que argumentam em favor da leitura interpoética. Ainda assim, somos de
opinião de que o foco na tensão entre divino e humano pode nos levar a caminhos mais esclarecedores
do que se nos ativermos à querela entre poetas.
126
agora seu nome. No que Clay define como a “mais explícita autoapresentação de um

narrador em toda a história da literatura grega 228”, Hesíodo une o momento presente da sua

fala ao passado recente de sua iniciação e o passado mítico da cosmogonia, o que coloca o seu

papel de ponte sobre o incontornável abismo que separa homens e deuses em forte evidência.

Não por acaso, as Musas mudam de nome e endereço. No verso 25, “Mousas

olimpíades, virgens de Zeus porta-égide” (Μοῦσαι Ὀλυμπιάδες, κοῦραι Διὸς αἰγιόχοιο), as

Musas já não são as do Hélicon, como no verso 1 e, no trânsito do Hélicon para o Olimpo, a

perspectiva de um canto pan-helênico começa a se delinear mais forte. Suas primeiras

palavras no verso 26, “Pastores agreste, vis infâmias e ventres só” (ποιμένες ἄγραυλοι, κάκ’

ἐλέγχεα, γαστέρες οἶον), são um reforço da tese central que lemos em Hesíodo: a distância entre

deuses e homens. Não é o poeta que é acusado de ser “apenas ventre”, mas toda a raça

humana.

Creio ser este um bom momento para ratificar nossa opção por uma leitura intrapoética

dos versos ligados à fala das Musas. Nenhuma tensão é maior do que o encontro entre o

humano e o divino. Procurar nesta passagem uma tensão contra outros poetas é desnecessário.

Com frequência esquece-se de que em alguns versos adiante, na passagem dos reis e poetas,

não há nenhuma tensão entre poetas: todos devem sua origem às Musas e a Apolo. Pautados

neste esquecimento, alguns estudiosos vão buscar no verso 26 de Os trabalhos e os dias, “e

mendigo se mede ao mendigo, aêdo a aêdo” (καὶ πτωχὸς πτωχῷ φθονέει καὶ ἀοιδὸς ἀοιδῷ), a

justificativa de suas posições. Fazendo isso, não só afastam-se do texto em questão, a

Teogonia, como também esquecem que o contexto do verso do qual lançam mão é o da Boa

Éris, onde a ação é exercida si próprio e não dirigida contra o outro. 229

228
Clay (2000) pág. 57.
229
Cf. Hesíodo (2011) pág.187-188.
127
A tensão destes versos é então interna ao texto. O alvo das deusas, insistimos, é toda a

raça humana e as ψεύδεα πολλὰ que elas sabem dizer têm um acento mais epistemológico do

que moral. Como Clay observa, ψεύδεα abarca não somente as distorções voluntárias

concebidas com o intuito de enganar, como também erros, omissões e imprecisões

involuntárias 230.

Ao final de seu encontro com as deusas, nos versos 30-32, Hesíodo recebe o duplo dom

do cetro de ramo loureiro e a voz divina, que lhe confere autoridade e capacidade para cantar:

por cetro deram-me um ramo a um loureiro viçoso 30

colhendo-o admirável e inspiraram-me um canto

divino para que eu glorie o futuro e o passado

καί μοι σκῆπτρον ἔδον δάφνης ἐριθηλέος ὄζον 30

δρέψασαι, θηητόν· ἐνέπνευσαν δέ μοι αὐδὴν

θέσπιν, ἵνα κλείοιμι τά τ' ἐσσόμενα πρό τ' ἐόντα

Trata-se de uma passagem que muito tem intrigado os leitores. Alguns comentadores

igualam poesia e profecia, mas além destas serem distintas, não há, na Teogonia, nenhuma

alusão ao futuro. Recordando o que já tratamos acima, τά τ' ἐσσόμενα πρό τ' ἐόντα, “as coisas

que serão e que eram” não são duas coisas distintas, futuro e passado. Levando-se em conta o

verso 33, “impeliram-me a hinear o ser dos venturosos sempre vivos” (καί μ' ἐκέλονθ' ὑμνεῖν

μακάρων γένος αἰὲν ἐόντων), “as coisas que serão e eram” são as coisas eternas, em outras

palavras, a raça dos bem-aventurados. De fato é esta a tarefa que Hesíodo recebe – e cumpre

- na Teogonia: cantar o ser dos entes eternos. Mas esta não é a totalidade do conhecimento das

deusas. Logo em seguida, elas retornam ao Olimpo para “hineando, alegrar o grande espírito

230
Cf. Clay (2000) p. 61.
128
no Olimpo/dizendo o presente futuro passado 231”. Mas lá, seu canto é diferente do de

Hesíodo, pois engloba τ' ἐόντα.

Quanto a essa diferença de conteúdo entre os dois cantos, alguns eruditos a ignoram,

sustentando que o verso 32 é uma forma abreviada do verso 38. Segundo Clay, τ' ἐόντα refere-

se à raça dos homens e dos poderosos gigantes, conforme o verso 50. Uma vez que as Musas

cantam para Zeus o cosmos em sua totalidade, isto inclui a raça dos homens mortais e os

Gigantes, enquanto Hesíodo deverá cantar os deuses para os homens.

É curioso observar que τ' ἐόντα inclui os homens, isto é a seres que estão imersos no

devir. Somente mais tarde, quando o pensamento filosófico lançar a pergunta sobre como o

que é eterno pode vir a ser, τ' ἐόντα passará a designar o que é eterno e não o que está no

devir 232. Para esta inversão, as contribuições de Xenófanes, Parmênides e Epicarmo foram,

decerto, decisivas. O primeiro disse:

Mas os mortais creem que os deuses são gerados


E que têm roupas como as suas, e têm voz e têm corpo.
ἀλλ' οἱ βροτοὶ δοκέουσι γεννᾶσθαι θεούς,

τὴν σφετέρην δ' ἐσθῆτα ἔχειν φωνήν τε δέμας τε. 233

Parmênides também questionou a origem do que é eterno:

Nem nunca era nem será, pois é todo junto agora,

Uno, contínuo; pois que origem buscarias?

οὐδέ ποτ' ἦν οὐδ' ἔσται, ἐπεὶ νῦν ἔστιν ὁμοῦ πᾶν,

ἕν, συνεχές· τίνα γὰρ γένναν διζήσεαι αὐτοῦ; 234

231
Teog. 36-37. ὑμνεῦσαι τέρπουσι μέγαν νόον ἐντὸς Ὀλύμπου,/ εἴρουσαι τά τ' ἐόντα τά τ' ἐσσόμενα
πρό τ' ἐόντα.
232
Cf. Clay (2000) pág. 66-67 e nota 71.
233
DK 21 B 14. 1-2.
234
DK 28 B 8. 5-6.
129
A indagação de Epicarmo coloca Hesíodo como fonte do problema:

Mas dizem que Caos foi o primeiro dos deuses a surgir.

Como pode? Não tem de onde vir nem para onde ir.

ἀλλὰ λέγεται μὰν Χάος πρᾶτον γενέσθαι τῶν θεῶν.

πῶς δέ κα; μὴ ἔχον γ' ἀπό τινος μηδ' ἐς ὅ τι πρᾶτον μόλοι.

Finda esta digressão necessária, retornemos ao segundo canto das Musas, contido nos

versos 43-50 para observarmos que ele é totalmente marcado por referências temporais.

e o palácio dos imortais. Lançando voz imperecível


o ser venerando dos deuses primeiro gloriam no canto
dês o começo: os que a Terra e o Céu amplo geraram 45
e os deles nascidos Deuses doadores de bens,
depois Zeus pai dos deuses e dos homens,
no começo e no fim do canto hineiam as Deusas
o mais forte dos Deuses e o maior em poder
e ainda o ser de homens e de poderosos Gigantes. 50

δώματά τ' ἀθανάτων· αἱ δ' ἄμβροτον ὄσσαν ἱεῖσαι


θεῶν γένος αἰδοῖον πρῶτον κλείουσιν ἀοιδῇ
ἐξ ἀρχῆς, οὓς Γαῖα καὶ Οὐρανὸς εὐρὺς ἔτικτεν, 45
οἵ τ' ἐκ τῶν ἐγένοντο, θεοὶ δωτῆρες ἐάων·
δεύτερον αὖτε Ζῆνα θεῶν πατέρ' ἠδὲ καὶ ἀνδρῶν,
[ἀρχόμεναί θ' ὑμνεῦσι θεαὶ † λήγουσαί τ' ἀοιδῆς,]
ὅσσον φέρτατός ἐστι θεῶν κάρτει τε μέγιστος·
αὖτις δ' ἀνθρώπων τε γένος κρατερῶν τε Γιγάντων 50

Como Stoddard observa, ao longo de oito hexâmetros, seis deles contêm palavras que

mostram total engajamento ao tempo linear humano, todas elas em posições proeminentes ao

longo dos versos, o que significa que o poeta pretendia dar enorme ênfase a esta questão 235.

235
Marcações deste tipo estão completamente ausentes no primeiro canto. A única palavra que guarda
alguma relação com a temporalidade nos versos 1-21 é ἐννύχιαι, no verso 10, mas o que está em jogo
130
Esta mudança fundamental na perspectiva do tempo parece resultar da transformação de

pastor em poeta, que acabou de acontecer. É importante ter em mente que os dois cantos são

precisamente os episódios que precedem e sucedem o relato do encontro entre as Musas e

Hesíodo. Um dos principais propósitos, senão o único, de apresentar novamente o canto das

deusas é mostrar o quanto ele difere do primeiro.

Ao apresentar o primeiro canto completamente desprovido de marcadores temporais,

enquanto no segundo estes abundam, Hesíodo nos traz presente o enorme abismo que separa

estas duas instancias, que podem ser expressas com o encontro da ἀληθέα atemporal com o

âmbito mortal e temporal de ἐτήτυμα. O poema que se seguirá é o resultado deste encontro,

bem como o cumprimento da ordem que Hesíodo recebeu das deusas (ἐνέπνευσαν δέ μοι αὐδὴν/

θέσπιν, ἵνα κλείοιμι τά τ' ἐσσόμενα πρό τ' ἐόντα v.31-32), o que equivale dizer que é Hesíodo

quem canta, e não as deusas.

E ainda há mais a dizer: Hesíodo canta a raça dos imortais, é certo, mas sempre sob a

perspectiva temporal humana. Um olhar sobre a descrição do Tártaro parece confirmar esta

visão.

Tal como as Musas do Hélicon são apresentadas nos versos 1 a 21 como vivendo fora

do tempo, os deuses do Tártaro são descritos como inseridos na mesma atemporalidade.

Nenhuma indicação temporal aparece num trecho de 99 versos 236. Assim sendo, tanto os

deuses de cima quanto os deuses de baixo, os do Tártaro, vivem em outra ordem temporal.

aqui não é uma ordenação temporal, apontando apenas para uma parte do dia. Como Stoddard
observa: “Se as Musas são apresentadas num movimento eterno de dançar e cantar, dizer
simplesmente que elas o fazem à noite não ordenará, de forma alguma, suas ações num aspecto
cronológico.” Cf. Stoddard (2004) p. 132.
236
Cf. Teog.720-819.
131
Entretanto, o poeta mede a distância entre o céu e a terra e, em seguida entre a terra e o

Tártaro não em termos relativos ao espaço, mas ao tempo. É pelo tempo da queda de uma

bigorna, nove dias e nove noites, que estas distâncias são relatadas 237.

A noção de equidistância entre terra e céu e terra e Hades também está presente em

Homero 238. O episódio hesiódico guarda significativa semelhança com a descrição da queda

de Hefesto à terra 239.

Não resta dúvida de que Hesíodo tinha esta passagem em mente quando compôs seus

versos, mas, mais do que a polêmica entre poetas, entendo que o que está em jogo aqui é,

mais uma vez, a distância entre deuses e homens. O que é um dia para um deus vira nove para

um homem 240. O instrumento que Hesíodo elegeu para medir a passagem do tempo também

remete ao texto homérico. A bigorna é o instrumento por excelência de Hefesto. O fogo pode

ser empregado pelo cozinheiro. O martelo pode ser empregado pelo carpinteiro, ou mesmo na

guerra. Mas a bigorna é exclusiva do ferreiro. A bigorna é precisamente o aquilo que o

homem tem de concreto para relacionar-se com Hefesto. A bigorna é Hefesto visto pelo

prisma humano, o ἐτήτυμος que corresponde, sem ψευδής, à ἀλεθής do deus.

Em suma, podemos ver nesse episódio a perfeita tradução de um discurso divino em

termos humanos.

Mas ainda há mais a ser dito sobre a descrição do Tártaro. Para reafirmar a distância

entre deuses e homens, Hesíodo torna a própria noção de tempo ainda mais confusa.

237
Cf. Teog. 720-723.
238
Cf. Il.8.16.
239
Cf. Il.1.591-2.
240
É interessante lembrar que nove é o número das Musas hesiódicas, o que faz supor que a escolha
do número não é ingênua.
132
Quando a bigorna termina sua queda, estamos no Tártaro, num ambiente onde as “leis

da física 241” não se aplicam. Após termos encontrado a Noite e o Dia como unidades de

medida de espaço, lemos que a Noite é uma substância física, um líquido que pode ser

vazado, num lugar imediatamente abaixo das raízes da Terra 242. Alguns versos adiante, temos

a descrição das casas da Noite, escondidas por negras nuvens, onde Noite e Dia se encontram

e se saúdam 243.

Hesíodo parece querer mostrar que o domínio dos deuses é algo de outra ordem, fora de

espaço e de tempo – tão fora dos limites da compreensão humana que o nosso conhecimento

derivado da nossa experiência pura e simplesmente perde valor. É exatamente por isso que ele

deve traduzir as coisas divinas em termos humanos.

3.1.2. Hesíodo e as Musas: a autoridade para falar

É certo que Hesíodo recebeu das Musas a autoridade e inspiração para o canto,

conforme atestam os já visitados versos 30-34 da Teogonia. Entretanto, a relação do poeta

com as deusas é mais complexa do que pode parecer e, nesta complexidade, ele assegura para

si não só o papel de construtor da trama daquele poema, como também a autoridade para

mediar conflitos, o que fará em Os trabalhos e os dias.

Nos versos 52 a 79 da Teogonia, Hesíodo nos diz que as Musas foram geradas na Piéria

depois de Zeus ter se deitado por nove noites consecutivas com Mnemósine. Seus nomes já

241
Entre aspas e em itálico para assinalar o anacronismo.
242
Teog 726-728. τὸν πέρι χάλκεον ἕρκος ἐλήλαται· ἀμφὶ δέ μιν νὺξ/ τριστοιχὶ κέχυται περὶ δειρήν·
αὐτὰρ ὕπερθε/ γῆς ῥίζαι πεφύασι καὶ ἀτρυγέτοιο θαλάσσης.
Cerca-o um muro de bronze. A noite em torno/ verte-se três vezes ao redor do gargalo. Por cima/ as
raízes da terra plantam-se e do mar infecundo.
243
Teog. 744-749. καὶ Νυκτὸς ἐρεμνῆς οἰκία δεινὰ/ ἕστηκεν νεφέλῃς κεκαλυμμένα κυανέῃσι./ τῶν
πρόσθ' Ἰαπετοῖο πάις ἔχει οὐρανὸν εὐρὺν/ ἑστηὼς κεφαλῇ τε καὶ ἀκαμάτῃσι χέρεσσιν/ ἀστεμφέως,
ὅθι Νύξ τε καὶ Ἡμέρη ἆσσον ἰοῦσαι/ ἀλλήλας.
A casa terrível da Noite trevosa/ eleva-se aí oculta por escuras nuvens./ Defronte o filho de Jápeto
sustém o céu amplo/ de pé, com a cabeça e infatigáveis braços/ inabalável, onde Noite e Dia se
aproximam/ e saúdam-se cruzando o grande umbral.
133
podem ser vistos como uma explicitação de suas potências e enquanto uma delas, Urânia

(Celeste), sendo a Musa da astronomia, é a própria representação de todo saber acerca dos

deuses, as outras oito relacionam-se diretamente com diferentes modos de expressão humana.

São elas, Clío (Glória), Euterpe (Alegria), Thalía (Festa), Melpômene (Dançarina), Terpsícore

(Alegra-coro), Erato (Amorosa), Polúmnia (Hinária) e Calíope (Belavoz).

Ao proferir o nome da última, Hesíodo acrescenta: “a mais eminente de todas. Ela é

que acompanha os reis venerandos 244.” Uma vez que cada Musa corresponde a um aspecto

particular daquilo que os gregos vieram a denominar “mousiké”, ou seja, o próprio

conhecimento e suas formas de expressão, o privilégio reservado a Calíope coloca a palavra

em posição de destaque, fazendo da Musa da Belavoz a sua forma acabada.

O que causa estranheza é o fato do protegido desta Musa ser o rei, e não o poeta. Como

Laks coloca a questão, é o caso de se perguntar por que a superioridade de Calíope está ligada

à função política da palavra, e não à função poética 245. Alguns autores contemporâneos que se

debruçaram sobre esta questão entendem que a superioridade da palavra do rei é apenas

aparente e que serve para reforçar o papel que o próprio Hesíodo desempenha no poema. De

nossa parte, devo adiantar que concordo com esta leitura e pretendo apenas contribuir para

que esta tese fique mais solidamente demonstrada.

Para aprofundar esta questão, é preciso atentar para os versos que se seguem aos da

apresentação das Musas, pois, deste momento até o verso 103, Hesíodo descreverá o modo

como os reis se servem da palavra e traçará um paralelo entre reis e poetas. Mas isso ainda é

insuficiente: será preciso também relacionar esta passagem com outras na obra de Hesíodo,

notadamente o momento da iniciação, que compreendem os famosos versos 22 a 34 da

244
Καλλιόπη θ’· ἡ δὲ προφερεστάτη ἐστὶν ἁπασέων./ἡ γὰρ καὶ βασιλεῦσιν ἅμ’ αἰδοίοισιν ὀπηδεῖ.
(Teog. 79-80). Tradução de Torrano, com modificações.
245
Laks (1996) p. 84.
134
Teogonia, bem como o proêmio e ainda outras passagens de Os Trabalhos e os Dias, coisa

que os comentadores contemporâneos parecem ter negligenciado.

O modo com que os reis se servem da palavra é descrito pelos versos 80 a 93:

e Belavoz, que dentre todas vem à frente.


Ela é que acompanha os reis venerandos. 80
A quem honram as virgens do grande Zeus
e dentre reis sustentados por Zeus vêem nascer,
elas lhe vertem sobre a língua o doce orvalho
e palavras de mel fluem de sua boca. Todas
as gentes o olham decidir as sentenças 85
com reta justiça e ele firme falando na ágora
logo à grande disputa cônscio põe fim,
pois os reis têm prudência quando às gentes
violadas na ágora perfazem ações transformadoras
facilmente, a persuadir com brandas palavras. 90
Indo à assembléia, como a um deus o propiciam
pelo doce honor e nas reuniões se distingue.
Tal das Musas o sagrado dom aos homens.

Καλλιόπη θ’· ἡ δὲ προφερεστάτη ἐστὶν ἁπασέων.


ἡ γὰρ καὶ βασιλεῦσιν ἅμ’ αἰδοίοισιν ὀπηδεῖ. 80
ὅντινα τιμήσουσι Διὸς κοῦραι μεγάλοιο
γεινόμενόν τε ἴδωσι διοτρεφέων βασιλήων,
τῷ μὲν ἐπὶ γλώσσῃ γλυκερὴν χείουσιν ἐέρσην,
τοῦ δ’ ἔπε’ ἐκ στόματος ῥεῖ μείλιχα· οἱ δέ νυ λαοὶ 85
πάντες ἐς αὐτὸν ὁρῶσι διακρίνοντα θέμιστας
ἰθείῃσι δίκῃσιν· ὁ δ’ ἀσφαλέως ἀγορεύων
αἶψά τι καὶ μέγα νεῖκος ἐπισταμένως κατέπαυσε·
τούνεκα γὰρ/βασιλῆες ἐχέφρονες, οὕνεκα λαοῖς
βλαπτομένοις ἀγορῆφι μετάτροπα ἔργα τελεῦσι 90
ῥηιδίως, μαλακοῖσι παραιφάμενοι ἐπέεσσιν·
ἐρχόμενον δ’ ἀν’ ἀγῶνα θεὸν ὣς ἱλάσκονται
αἰδοῖ μειλιχίῃ, μετὰ δὲ πρέπει ἀγρομένοισι.
τοίη Μουσάων ἱερὴ δόσις ἀνθρώποισιν.

O papel dos reis é o de decidir as sentenças com reta justiça (v.86-87, διακρίνοντα

θέμιστας/ ἰθείῃσι δίκῃσιν) e isso é feito em público, isto é, na ágora (v.86, πάντες ἐς αὐτὸν ὁρῶσι

διακρίνοντα θέμιστας). E eles o fazem facilmente, persuadindo com brandas palavras (v.84,

γλυκερὴν χείουσιν ἐέρσην), isto é, suas sentenças não são acatadas por conta de sua autoridade,

135
mas acolhidas devido ao encantamento das palavras de mel, que vertidas pelas Musas, fluem

de sua boca. Graças a isso, as gentes o olham (v. 86, πάντες ἐς αὐτὸν ὁρῶσι) como a um Deus

(v.92, θεὸν ὣς). Laks, oportunamente, evoca a imagem de Nestor, que é essencialmente aquele

que sabe resolver disputas por meio da palavra 246, ainda que este poder de Nestor jamais seja

associado às Musas em nenhum dos poemas de Homero.

Em seguida vem o paralelo entre os reis e os poetas.

Pelas Musas e pelo golpeante Apolo


há poetas e citaristas sobre a terra, 95
e por Zeus, reis. Feliz é quem as Musas
amam, doce de sua boca flui a voz.
Se com angústia no ânimo recém-ferido
alguém aflito mirra o coração e se o cantor
servo das Musas hineia a glória dos antigos 100
e os venturosos Deuses que têm o Olimpo,
logo esquece os pesares e de nenhuma aflição
se lembra, já os transformaram os dons das Deusas.

ἐκ γάρ τοι Μουσέων καὶ ἑκηβόλου Ἀπόλλωνος


ἄνδρες ἀοιδοὶ ἔασιν ἐπὶ χθόνα καὶ κιθαρισταί, 95
ἐκ δὲ Διὸς βασιλῆες· ὁ δ’ ὄλβιος, ὅντινα Μοῦσαι
φίλωνται· γλυκερή οἱ ἀπὸ στόματος ῥέει αὐδή.
εἰ γάρ τις καὶ πένθος ἔχων νεοκηδέι θυμῷ
ἄζηται κραδίην ἀκαχήμενος, αὐτὰρ ἀοιδὸς
Μουσάων θεράπων κλεῖα προτέρων ἀνθρώπων 100
ὑμνήσει μάκαράς τε θεοὺς οἳ Ὄλυμπον ἔχουσιν,
αἶψ’ ὅ γε δυσφροσυνέων ἐπιλήθεται οὐδέ τι κηδέων
μέμνηται· ταχέως δὲ παρέτραπε δῶρα θεάων

É bem verdade que este paralelo é aberto assinalando uma diferença: os poetas e

citaristas existem por obra das Musas e de Apolo, enquanto os reis provêm de Zeus, mas essa

diferença é rapidamente subsumida pelo e no poder das Musas. Em primeiro lugar, a palavra

de ambos se mostra igualmente eficaz, ambas proporcionam alívio.

Os reis põem fim à disputa pronunciando as retas sentenças (v.86-87, διακρίνοντα

θέμιστας/ ἰθείῃσι δίκῃσιν). As retas sentenças são as θέμιστες, isto é, normas sagradas da

246
Laks (1996) p. 84.
136
tradição oral que eram pronunciadas por quem tinha autoridade para resolver disputas.

Quando nos lembramos da passagem que fala sobre Nereu, vemos lá que este é dito ἀληθής

(Teog. 233) exatamente porque não se esquece delas (Teog. 235-236, οὐδὲ θεμίστων/ λήθεται).

Dito de outro modo, a função do rei é lembrar.

A seu turno, o poeta provoca o esquecimento dos pesares (v.102-3 ἐπιλήθεται οὐδέ τι

κηδέων/μέμνηται· ). Estão aqui reunidos os dois elementos que compõem a Memória: a

lembrança dos reis e o esquecimento que o poeta provoca. Ambos estão inequivocamente sob

a égide das Musas.

Da boca de ambos flui doce palavra (v.83-4, τῷ μὲν ἐπὶ γλώσσῃ γλυκερὴν χείουσιν ἐέρσην,/

τοῦ δ’ ἔπε’ ἐκ στόματος ῥεῖ μείλιχα· ), o que é reforçado no passo que trata apenas do poeta

(v.97, γλυκερή οἱ ἀπὸ στόματος ῥέει αὐδή). Ambos realizam ações transformadoras (v.89,

μετάτροπα ἔργα τελεῦσι.; v.93, μετὰ δὲ πρέπει ἀγρομένοισι. e v.103, ταχέως δὲ παρέτραπε) que

são recebidas como presentes das deusas (v.94, τοίη Μουσάων ἱερὴ δόσις ἀνθρώποισιν e v.103,

δῶρα θεάων) porque são benéficas à comunidade: a ação do rei, que é a lembrança da sentença

justa, não concerne apenas às partes envolvidas. A solução pacífica de um conflito particular

fortalece a comunidade na medida em que todos se sentem protegidos pela justiça que nela

existe e podem usufruir da paz que ela proporciona.

Por outro lado, há que se ter em mente que com frequência os poetas também falavam

na ágora. Assim sendo, o esquecimento das atribulações que eles proporcionavam a quem os

ouvia estendia-se a todos os membros da comunidade. Sua ação, em última análise, também é

política.

Neste ponto, podemos constatar que a superioridade inicial da palavra do rei

desapareceu. Os efeitos das ações de ambos são equiparáveis.

137
Para Skarsouli 247, é significativo que Memória e Musas estejam intimamente ligadas à

noção de persuasão, e Calíope é personificação desta noção. Apenas ela pode assegurar aos

reis o dom das Musas e ligar a poesia à função real da persuasão. Skarsouli interpreta a

proteção de Calíope aos reis como uma dependência do rei em relação ao poeta, já que o

discurso legal - θέμιστες – era versificado e formular.

Para Stoddard, os versos 80-103 servem para explicitar o papel de Hesíodo no poema,

retomando e expandindo temas que já estavam propostos. Tal como Skarsouli, Stoddard

retorna aos versos 30-33, e assinala que, ao receber o duplo dom das deusas - o cetro e a voz

divina - Hesíodo já estava predestinado a ultrapassar os reis 248.

Entendendo que o propósito maior da cena da iniciação de Hesíodo é a demarcação da

distância que separa o humano do divino, Stoddard afirma que aquele que é escolhido como

poeta é, desde então, uma ponte entre estas duas instâncias e os dois presentes que o poeta

recebe das deusas são signos claros deste poder. Já que o cetro representa acima de tudo a

autoridade para falar e ser ouvido, Hesíodo decalca a sua imagem por sobre a função

judiciária do rei. O segundo dom das Musas, αὐδὴν θέσπιν 249, é a mais perfeita explicitação do

poder com que as Musas o distinguiram, já que a sua tradução literal implica numa voz

humana, αὐδὴν, que é divina θέσπιν 250.

Laks 251 entende que a palavra do poeta é anterior à do rei, na medida em que esta releva

de uma dimensão política, e por consequência, exclusivamente prática, enquanto a palavra do

poeta, ao menos a que Hesíodo recebe das Musas, é de uma natureza quase teórica 252. De fato,

nos versos 32 e 33, Hesíodo recebe das deusas a missão de gloriar as coisas que serão e que

247
Cf. Skarsouli (2006) p.214.
248
Cf. Stoddard (2003) p.7-9.
249
Cf.Teog. 31-32.
250
Cf. Stoddard (2003) p.6.
251
Cf. Laks (1996) p.88.
252
Nunca é demais recordar que o poeta fala do mundo divino, domínio ao qual o mundo político do
rei deve se conformar. Logo, a primazia do poeta sobre o rei deve-se ao fato de que ele trata de coisas
mais nobres.
138
eram e de hinear a raça bendita dos entes eternos 253. Assinala também que o canto de Hesíodo

será o equivalente terrestre do canto que as próprias Musas apresentarão no Olimpo

imediatamente após deixarem Hesíodo no Hélicon 254. Este canto tem em Zeus seu principal

destinatário e nada ali sugere que o deus esteja envolvido em alguma disputa judiciária ou

ainda que necessite esquecer alguma dor. Em outras palavras, Zeus não necessita de nenhum

dos efeitos atribuídos ao discurso jurídico ou poético. O prazer proporcionado por este canto é

um prazer de pura reflexão 255.

Por conta disso, Laks vê em Hesíodo um ancestral do filósofo-rei de Platão e em

Calíope, a promessa de uma mediação bem sucedida entre a teoria e a prática 256.

Ao analisar o paralelo entre os reis e os poetas, entendemos, no plano formal, que a

imagem e o modo de agir do rei foram construídos com base na imagem e no modo de agir do

poeta, principalmente quando se leva em conta o já visitado episódio da transformação de

Hesíodo, de pastor em poeta. Os versos 94-103 são um espelho do episódio da iniciação, aqui

refletido para que a imagem possa ficar mais viva para o ouvinte.

Por outro lado, entendemos que a superação do rei pelo poeta proposta pelos

comentadores visitados torna-se mais clara se levarmos em conta Os trabalhos e os dias. Com

efeito, logo no proêmio deste poema, ainda que Hesíodo o abra com a tradicional invocação

às Musas, é a Zeus que o poeta se dirige, conforme se lê nos versos 8 a 10: “Zeus trovejante,

que nas altas moradas habita,/vem! Vê e escuta: com justiça corrige as sentenças,/ tu! Eu,

por mim, a Perses quero dizer as verdades. 257”

253
Teog. 32-33. θέσπιν, ἵνα κλείοιμι τά τ’ ἐσσόμενα πρό τ’ ἐόντα, /καί μ’ ἐκέλονθ’ ὑμνεῖν μακάρων
γένος αἰὲν ἐόντων.
Divino para que eu glorie o futuro e o passado/ impeliram-me a hinear o ser dos venturosos sempre
vivos.
254
Cf. Teog. 36-76.
255
Cf. Laks (1996) pág 89.
256
Cf. Laks (1996) pág 91.
257
Trab.8-10. Ζεὺς ὑψιβρεμέτης, ὃς ὑπέρτατα δώματα ναίει./ κλῦθι ἰδὼν ἀίων τε, δίκῃ δ’ ἴθυνε
θέμιστας/ τύνη· ἐγὼ δέ κε Πέρσῃ ἐτήτυμα μυθησαίμην.
139
Por meio destes versos, o poeta solicita uma ação ao deus: corrigir, com justiça, as

sentenças. Estas sentenças, como já vimos, são as θέμιστες, as normas sagradas da tradição

oral, que, como tal, não podem ser tortas ou erradas. A questão é esclarecida mais adiante, nos

versos 38-41, com a censura que Hesíodo dirige aos reis comedores de presentes: os reis são

os néscios, que não sabem que a metade é maior que o todo. Então, Zeus é convocado pelo

poeta para resolver um problema na Terra: os reis estão se afastando de Calíope e esquecendo

as θέμιστες. A justiça não se realiza e a paz não se estabelece.

É justamente para preencher o espaço deixado pela ação ineficaz dos reis que Hesíodo

se apresenta na cena dramática do poema. “Eu, por mim, a Perses quero dizer as verdades”,

diz o verso 10. Para realizar este ato de dizer as verdades num contexto judicial, que é o ponto

de partida do poema, é preciso estar investido de uma autoridade especial e Hesíodo preenche

este requisito, se nos lembrarmos do cetro que ele recebeu das Musas no verso 30 da

Teogonia.

É bem verdade que o cetro ainda pode suscitar alguma ambiguidade, como Stoddard

alerta, uma vez que além dos reis, poetas como o próprio Hesíodo, sacerdotes como Crises e

profetas como Tirésias o empunham 258. Mas os versos 35 e 36 de Os trabalhos e os dias não

dão margem a qualquer dúvida: “Julguemos aqui nossa crise/ com retribuições retas de Zeus,

as mais justas. 259” Julgar uma crise não é, decididamente, uma atribuição nem de um poeta,

nem de um profeta, mas antes de um rei. Se Hesíodo tem autoridade 260 para exercer esta

função, ela foi conquistada nos versos 85-87 da Teogonia 261.

Zeus altitonante, que as mais altas moradas habita,/ vem! Vê e esuta: com justiça, endireita as
sentenças.
258
Cf. Stoddard (2003) p. 7 e n.14.
259
ἀλλ’ αὖθι διακρινώμεθα νεῖκος /ἰθείῃσι δίκῃς, αἵ τ’ ἐκ Διός εἰσιν ἄρισται (Op. 35-36).
260
Hesíodo jamais diz que ele mesmo é capaz de lembrar-se das θέμιστες, mas pautado no
conhecimento da verdade que ele quer dizer ao seu irmão, está autorizado a assumir o papel do rei e,
quando se leva em conta que essa verdade não é a verdade que lhe foi transmitida pelas Musas –
140
Com base nesta autoridade, o poeta assume uma posição muito mais ousada em relação

às Musas. Entre os versos 104 e 115 ele se dirige às deusas para, numa atitude bem diferente

da de Homero para com estas, pedir-lhes exatamente o que ele quer que elas digam 262 - ou

seja, como surgiram primeiro os deuses, a terra, os rios, o mar, o céu estrelado, os deuses que

surgiram destes, como se estabeleceu a partilha de honrarias entre eles, como se

estabeleceram no Olimpo, o que equivale dizer como surgiu o cosmos de Zeus – e como ele

quer que elas o façam, isto é, desde o princípio, para que a narrativa resulte inteligível para

ouvidos humanos.

Entretanto, como Clay observa, a rigidez cronológica da Teogonia é apenas aparente.

Há momentos, que ela chama de pontos nodais, em que o poeta faz escolhas, antecipando ou

retardando a apresentação de alguma linhagem divina. Segundo a autora, estes pontos nodais

não são episódios aleatórios que estão lá devido à falta de ordenação que alguns consideram

característica do processo de composição de Hesíodo e sua investigação contribui para a uma

melhor compreensão de como o poeta marca a sua presença na construção de seu próprio

texto, isto é, na construção do discurso humano. Para o que nos interessa aqui, o Hino a

Hécate e o mito de Prometeu são os pontos nodais mais importantes 263.

3.1.3 O Hino a Hécate.

Uma questão que se impõe aqui é perguntar por que o poeta escolheu aquele momento

em específico para inserir aquele episódio específico. É certo que esta escolha envolveu uma

ἀληθέα – mas antes uma verdade – ἐτήτυμα – aqui entendida como uma sabedoria puramente humana,
que é alcançada pela investigação das coisas proporcionadas pela experiência, pode-se constatar que a
fala de Hesíodo não é inspirada por nenhum deus, e sim que ele funda sua autoridade num tipo
particular de conhecimento por ele conquistado.
261
πάντες ἐς αὐτὸν ὁρῶσι διακρίνοντα θέμιστας /ἰθείῃσι δίκῃσιν· ὁ δ’ ἀσφαλέως ἀγορεύων /αἶψά τι
καὶ μέγα νεῖκος ἐπισταμένως κατέπαυσε· (Teog. 85-87)
262
εἴπατε δ' ὡς τὰ πρῶτα θεοὶ καὶ γαῖα γένοντο (108); ἐξ ἀρχῆς, καὶ εἴπαθ', ὅτι πρῶτον γένετ' αὐτῶν.
(115); ταῦτά μοι ἔσπετε Μοῦσαι Ὀλύμπια δώματ' ἔχουσαι(114)
263
Cf. Clay (2000). Pág.13.
141
alteração da sequência cronológica estrita da narrativa 264. Por outro lado, deve-se investigar

também por que Hesíodo dedicou tanto espaço 265 a uma deusa tão obscura. Os estudiosos que

seguem a leitura biográfica de Hesíodo veem aí uma ligação pessoal ou familiar entre o poeta

e a deusa. Hécate é filha de Perses (v.409), o mesmo nome do irmão de Hesíodo. Segundo

estes, talvez o pai dos irmãos tenha querido homenagear a deusa com a escolha deste nome

para um de seus filhos.

Mas o momento onde Hécate é apresentada permite levantar outra hipótese. O hino a

Hécate é o episódio imediatamente anterior ao nascimento de Zeus, segundo a Teogonia. O

episódio que se segue ao nascimento do pai dos deuses e dos homens é Prometeu. As três

narrativas juntas ocupam o centro do poema. Nossa hipótese é a de que os três episódios

devem ter alguma interligação e devem também ter importância significativa para a

arquitetura do poema.

Ambos os episódios envolvem uma antecipação narrativa com o que diz respeito à

ordem cronológica natural. Na história de Prometeu, Hefesto e Atena, que só vieram a nascer

depois da vitória final de Zeus contra os Titãs e Tifeu, são convocados à cena para adornar a

primeira mulher. E a atribuição das honras que Zeus faz a Hécate 266 aponta para a partilha que

só ocorrerá após a vitória final de Zeus. Desta forma, os dois episódios já preparam o leitor

ouvinte para o evento final da história do mundo: o cosmos de Zeus.

264
A árvore genealógica de Hécate remonta a Gaia, Ponto e Urano. Hécate é filha de Perses e de
Astéria. Peres, por sua vez, é filho de Euríbia, que é filha de Gaia e Ponto, enquanto Astéria é filha de
Phoebe, uma das Titanides, ou seja, é filha de Gaia e Urano. Deste modo, o nascimento de Hécate
poderia ter sido apresentado bem antes no poema, mas Hesíodo interrompe a apresentação dos filhos
de Gaia para introduzir a linhagem da Noite (vv.211-232) e depois retornar à linhagem de Ponto
(vv.233-337). Mas antes de chegar a Hécate, há uma nova pausa para a apresentação da linhagem de
Urano (vv.338-403), onde Stix é apresentada como o juramento dos deuses. Só depois disso é que
vem o Hino a Hécate.
265
Teog. 411-453.
266
VV 411-412. A distinção de Zeus é apresentada logo no início do Hino.
142
Se Hécate é uma deusa obscura, isso não quer dizer que ela não seja poderosa. Sua

ascendência remonta a Gaia, Urano e Pontos, deuses primordiais, o que equivale dizer que ela

já poderia ter sido apresentada antes, mas Hesíodo optou por postergar esta apresentação.

Além do mais, ela é filha única, o que quer dizer que nela está concentrado todo o poder

herdado de seus ancestrais.

Entretanto, apesar de tê-la honrado desde o começo, Zeus não se casa com ela. A deusa

permanece virgem e vai exercer o papel de guardiã das crianças (κουροτρόφος, v. 450)

humanas.

É possível entrever aqui uma manobra política de Zeus 267. Ao derrotar os Titãs e Tifeu

ele vai, decerto impor uma nova ordem ao mundo, mas honrando Hécate - e é ele quem a

honra, e não ela a ele - ele preserva algo da ordem dos deuses primordiais. Zeus não é um

revolucionário, mas um ordenador. Por outro lado, ao preservar a virgindade de Hécate, ele

evita a possibilidade de vir a ser destronado por um filho desta deusa obscura e poderosa 268.

Ao fazer da deusa κουροτρόφος, seu poder fica dirigido aos mortais. Por intermédio de Hécate,

Zeus cria simultaneamente um elo entre ele e a ordem dos deuses mais antigos do universo e

entre ele e os homens.

Os versos 416-418 mostram que Zeus ainda lhe reservou outro papel importantíssimo

entre os homens, que é o de mediadora dos sacrifícios dirigidos aos demais deuses.

267
Na verdade a grande articulação política de Zeus já tinha sido iniciada no episódio anterior ao Hino
a Hécate, Styx. Zeus fez desta o Juramento dos deuses e ganhou o apoio de seus quatro poderosos
filhos. Cf Teog 383-403
268
Como é sabido, esta possibilidade só será contornada em definitivo quando o Cronida engolir
Métis e parir Atena.
143
Desta forma, os homens são obrigados a honrá-la tal como o próprio Cronida o faz.

Nesta função, a deusa decide quais os sacrifícios devem ser aceitos e quais serão recusados 269.

Neste sentido, como observa Santoro 270, Hesíodo faz deste hino, inserido no corpo – e

não na abertura – do poema, um metapoema que pode ser entendido como um sacrifício,

também dito erga pelos gregos, à Hécate, para que esta acolha o seu canto e o torne efetivo

junto às Musas, junto a Zeus e junto aos homens.

O significado de Hécate na visão de mundo do poeta começa a emergir. Como acontece

com relação a diversos deuses, Hesíodo tenta expressá-lo através da etimologia 271, ligando

seu nome ao de Zeus, como é o caso do verso 4 de Os trabalhos e os dias. Como Clay

observa, isso não passaria de mera curiosidade se não fosse a evidente relevância teológica – e

cosmológica – que o poeta quer sublinhar com esse tipo de manobra 272.

Quanto ao aspecto temporal da narrativa de Hécate, há dois pontos a serem destacados.

O primeiro é que, sendo a deusa descendente de Gaia Urano e Pontos, ela poderia ter sido

apresentada muito antes. A linhagem de Ponto, o mais recente dos três deuses, é apresentada a

partir do verso 233. Numa sequência estritamente cronológica ἐξ ἀρχῆς, a deusa deveria ter

sido nomeada naquele momento. Em segundo lugar, a mediação que Hécate exerce nos

sacrifícios que os homens prestam aos deuses necessita um esclarecimento que só será

apresentado mais tarde: a própria necessidade dos homens prestarem sacrifício aos deuses é

uma das principais funções do mito de Prometeu, mas este só será apresentado após o

nascimento de Zeus.

269
O caráter voluntarioso da deusa é muito semelhante ao que as Musas exibem no verso 28. O verbo
εθέλω aparece 5 vezes nos versos 429-447. Talvez essa tenha sido a forma que Hesíodo encontrou
para explicar o desconcertante fato de os deuses concederem seus favores a uns os e recusarem a
outros.
270
Comunicação pessoal.
271
A ligação de incorporação entre Zeus e Métis fica evidente a partir do epíteto metíhta Zeús, assim
como a existente entre Afrodite e Urano pelo epíteto urânida.
272
Cf Clay (2000) p.138.
144
O Hino a Hécate contém ainda um catálogo de atividades humanas:

A quem quer, grandemente dá auxílio e ajuda,

no tribunal senta-se junto aos reis venerandos, 430

na assembléia entre o povo distingue a quem quer,

e quando se armam para o combate homicida

os homens, aí a Deusa assiste a quem quer

e propícia concede vitória e oferece-lhe glória.

Diligente quando os homens lutam nos jogos, 435

aí também a Deusa lhe dá auxílio e ajuda,

e vencendo pela força e vigor, leva belo prêmio

facilmente, com alegria, e aos pais dá a glória.

Diligente entre os cavaleiros assiste a quem quer,

e aos que lavram o mar de ínvios caminhos 440

e suplicam a Hécate e ao troante Treme-terra,

fácil a gloriosa Deusa concede muita pesca

ou surge e arranca-a, se o quer no seu ânimo.

Diligente no estábulo com Hermes aumenta

o rebanho de bois e a larga tropa de cabras 445

e a de ovelhas lanosas, se o quer no seu ânimo,

de poucos avoluma-os e de muitos faz menores.

ᾧ δ' ἐθέλῃ, μεγάλως παραγίνεται ἠδ' ὀνίνησιν·

ἔν τε δίκῃ βασιλεῦσι παρ' αἰδοίοισι καθίζει, 430

ἔν τ' ἀγορῇ λαοῖσι μεταπρέπει, ὅν κ' ἐθέλῃσιν·

ἠδ' ὁπότ' ἐς πόλεμον φθισήνορα θωρήσσωνται

ἀνέρες, ἔνθα θεὰ παραγίνεται, οἷς κ' ἐθέλῃσι

νίκην προφρονέως ὀπάσαι καὶ κῦδος ὀρέξαι.

ἐσθλὴ δ' ἱππήεσσι παρεστάμεν, οἷς κ' ἐθέλῃσιν· 435

ἐσθλὴ δ' αὖθ' ὁπότ' ἄνδρες ἀεθλεύωσ' ἐν ἀγῶνι·

ἔνθα θεὰ καὶ τοῖς παραγίνεται ἠδ' ὀνίνησι·


145
νικήσας δὲ βίῃ καὶ κάρτει, καλὸν ἄεθλον

ῥεῖα φέρει χαίρων τε, τοκεῦσι δὲ κῦδος ὀπάζει.

καὶ τοῖς, οἳ γλαυκὴν δυσπέμφελον ἐργάζονται, 440

εὔχονται δ' Ἑκάτῃ καὶ ἐρικτύπῳ Ἐννοσιγαίῳ,

ῥηιδίως ἄγρην κυδρὴ θεὸς ὤπασε πολλήν,

ῥεῖα δ' ἀφείλετο φαινομένην, ἐθέλουσά γε θυμῷ.

Lá a deusa favorece os homens em suas atividades, caso ela queira. As atividades

descritas são as reuniões na ágora; a guerra; a administração da justiça; as competições

atléticas; a pesca e o pastoreio.

Este catálogo de atividades apresenta algumas dificuldades. As competições atléticas e a

guerra são atividades que parecem ser mais ligadas à aristocracia, algo que parece contradizer

a moral antiaristocrática que o poeta vai desenvolver em Os Trabalhos e os Dias. Além do

mais, a agricultura, essencial no segundo poema, está ausente deste catálogo. A pesca, por sua

vez, nunca é mencionada em Os Trabalhos e os Dias

Clay tenta resolver este problema alegando que o catálogo mostra os homens vistos do

ponto de vista dos deuses e que estes estão menos interessados no cotidiano, na vida humana

ordinária, do que nos seus extremos. Assim, o que desperta sua atenção são reis, guerreiros e

heróis que buscam a eternidade pela glória – κύδος – e os estratos mais baixos da vida

humana. Foi precisamente a um pastor que as Musas, voluntariosas como Hécate, revelaram

suas verdades. De qualquer forma, prossegue Clay, é exatamente esta camada mediana,

ordinária e cotidiana da vida humana ausente na Teogonia que será abordada em Os

Trabalhos e os Dias, o que reforça a necessidade de ler os dois poemas em conjunto para que

se possa compreender a cosmovisão do pensador de Beócia.

146
O que Clay não parece perceber é que as atividades particulares tomadas em si pouco

importam. O que está em questão é a atividade - o trabalho 273, para ser mais preciso - em

perfeito acordo com a vontade da deusa. O trabalho começa a surgir, na obra de Hesíodo,

como um modo do homem se reaproximar dos deuses.

A relação entre o trabalho e o sacrifício, ambos imposições dos deuses aos homens,

permeia todo o catálogo de atividades apresentado, mas é nos versos 440-442 que ela se torna

mais evidente: é preciso suplicar a Hécate, como deusa intermediadora dos sacrifícios, e a

Posêidon Treme-terra, senhor dos mares, para obter sucsesso na pesca. O mesmo se dá, ainda

que a súplica tenha sido omitida, quanto à atuação conjunta de Hécate e Hermes. É de se

supor, a partir destes dois momentos, que a deusa se faz presente em todo e qualquer

sacrifício que deve anteceder qualquer empreitada humana, atuando, por exemplo, junto com

Ares, nos sacrifícios voltados para a guerra, e assim por diante.Voltaremos a isto mais tarde,

quando abordarmos o trabalho como noção moral.

3.2 Prometeu

Nada mais difícil em Hesíodo do que falar sobre Prometeu. Se, com relação ao mito das

raças, temos em Vernant um ponto de referência seguro para nos apoiarmos e a partir do qual,

concordando ou discordando do mestre, mas sem jamais deixar de levá-lo em consideração,

várias e interessantes leituras deste mito foram desenvolvidas, ainda nos falta, com relação ao

mito de Prometeu, um estudo de semelhante envergadura.

As diversas versões de Prometeu existentes na literatura grega fazem com que Carrière

suspeite tratar-se de um mito muito antigo e que talvez a versão de Hesíodo – isto é, as duas

273
Ainda que o verbo ἐργάζονται só apareça uma vez na descrição das atividades humanas constantes
no Hino a Hécate, e mesmo assim ligado à navegação, coisa que Hesíodo repudia em Os rabalhos e os
Dias, entendo que ele se aplica a todas as atividades humanas descritas no Hino. Eis o verso: καὶ τοῖς,
οἳ γλαυκὴν δυσπέμφελον ἐργάζονται, (“e aos que lavram o mar de ínvios caminhos.”, Teog.440)
147
ocorrências próximas, mas distintas, de Prometeu tanto na Teogonia quanto em Os Trabalhos

e os Dias – resulte de uma coletânea de diferentes versões pré-existentes. O fato é que, além

das versões de Ésquilo e Platão, sabe-se, através da fábula 42 de Higino, que ao final da

antiguidade vários episódios ligados a Prometeu eram amplamente conhecidos, mas nenhum

texto concentrou todas as versões existentes, permanecendo o texto de Hesíodo o mais

completo dentre todos 274. O resultado é que o Prometeu hesiódico é, no dizer de Carrière,

“um texto denso e comprimido, que funciona por alusão referencial ou por elipse. 275”

É preciso “descomprimir” o texto. Isso significa investigar como cada versão do mito

se relaciona com os demais elementos do poema que a contém, como as duas versões se

relacionam entre si e, no limite, como os dois poemas se relacionam entre si, já que este mito

se revelará fundamental para a compreensão do pensamento do poeta.

O mito de Prometeu é uma narrativa sobre a condição humana. Mas é também uma

importante etapa na apresentação da vitória final de Zeus e a consequente instauração do

cosmos. Uma vez que, para este livro, a construção do discurso humano é o que mais

interessa, concentraremos a atenção no aspecto humano da narrativa. O que importa aqui é ter

em mente que, tal como no Hino a Hécate, que antecede o nascimento de Zeus, o mito de

Prometeu, que se segue ao nascimento do Cronida, também fala sobre o homem. A leitura da

Teogonia como um poema que fala dos deuses é um hábito tão cristalizado entre nós que

frequentemente nos esquecemos da presença do homem à direita – Hécate – e à esquerda –

Prometeu – de Zeus Pai.

Na Teogonia, o mito ocorre em posição de destaque (507-616), imediatamente após o

nascimento de Zeus, que ocupa o centro do poema, e imediatamente antes da Titanomaquia.

274
Mesmo este não é uma compilação completa.
275
Cf. Carrière (1987) p. 328-9.
148
Aqui ele cumpre a função de apresentar, como parte de um encadeamento de narrativas, a

gênese e a arquitetura do cosmos de Zeus. Talvez seja por isso que as dramáticas

consequências que o episódio acarretará para os homens sejam apresentadas como uma

aparente digressão.

Entre os versos 507 e 534, Hesíodo conta o destino dos filhos de Jápeto, Atlas,

Menécio, Prometeu e Epimeteu. Este último é o primeiro a ser comentado, nos versos 511 –

513, e Hesíodo só diz que ele foi um mal desde o começo, ao aceitar a mulher enviada por

Zeus:

o sem-acerto Epimeteu

que foi um mal dês o começo aos homens come-pão,

pois primeiro aceitou de Zeus moldada a mulher

virgem.

ἁμαρτίνοόν τ' Ἐπιμηθέα·

ὃς κακὸν ἐξ ἀρχῆς γένετ' ἀνδράσιν ἀλφηστῇσι·

πρῶτος γάρ ῥα Διὸς πλαστὴν ὑπέδεκτο γυναῖκα

παρθένον.

É interessante observar que Epimeteu só reaparece em Os Trabalhos e os Dias, não

sendo mais mencionado na Teogonia. Desta forma, as duas versões do mito já se apresentam

intimamente ligadas desde o início da apresentação da primeira versão. Uma vez que Atlas e

Menécio não apresentam interesse para a presente questão, não serão abordados aqui. De

Prometeu, o que é anunciado em primeira mão é o seu castigo e a sua libertação posterior por

Héracles:

Este destino, o sábio Zeus atribuiu-lhe. 520

E prendeu com infrágeis peias Prometeu astuciador,

cadeias dolorosas passadas ao meio numa coluna

e sobre ele incitou uma águia de longas asas.


149
Ela comia o fígado imortal. Ele crescia à noite

Todo igual o comera de dia a ave de longas asas. 525

O filho de Alcmena de belos tronozelos valente

Héracles matou-a, da maligna doença defendeu

o filho de Jápeto e libertou-o dos tormentos.

ταύτην γάρ οἱ μοῖραν ἐδάσσατο μητίετα Ζεύς. 520

δῆσε δ' ἀλυκτοπέδῃσι Προμηθέα ποικιλόβουλον,

δεσμοῖς ἀργαλέοισι, μέσον διὰ κίον' ἐλάσσας·

καί οἱ ἐπ' αἰετὸν ὦρσε τανύπτερον· αὐτὰρ ὅ γ' ἧπαρ

ἤσθιεν ἀθάνατον, τὸ δ' ἀέξετο ἶσον ἁπάντῃ

νυκτός, ὅσον πρόπαν ἦμαρ ἔδοι τανυσίπτερος ὄρνις. 525

τὸν μὲν ἄρ' Ἀλκμήνης καλλισφύρου ἄλκιμος υἱὸς

Ἡρακλέης ἔκτεινε, κακὴν δ' ἀπὸ νοῦσον ἄλαλκεν

Ἰαπετιονίδῃ καὶ ἐλύσατο δυσφροσυνάων,

Vemos então que o confronto entre Zeus e Prometeu, bem como os castigos, tanto para

o filho de Jápeto, quanto para os homens, já estavam presentes no “caput” da narrativa.

Em Os Trabalhos e os Dias, o mito de Prometeu aparece logo no início do poema, mas

se levarmos em conta que este poema é claramente divido entre uma parte mítica e uma parte

que contém ensinamentos que Hesíodo fundamenta nos mitos, vemos que o mito de Prometeu

ocupa o centro da narrativa mítica, precedido pelo mito das duas Lutas – que serve também

para apresentar a disputa jurídica entre o poeta e seu irmão, introduzindo assim a necessidade

de regular os ganhos pela via do trabalho - e seguido pelo mito das raças, com o qual,

adiantamos, guarda uma relação muito mais profunda do que se tem atentado. Prometeu

ocupa então, em Os Trabalhos e os Dias, a mesma posição – o centro da narrativa mítica –

que o nascimento de Zeus ocupa na Teogonia, o que confirma, segundo a lógica paratática

que domina a poesia de Hesíodo, seu status de mito fundador da condição humana.

150
Em conjunto, os dois textos de Prometeu apresentam cinco elementos componentes

principais: o banquete em Mecona, onde há o ardil de Prometeu contra Zeus 276; o roubo do

fogo, que é a segunda afronta do filho de Jápeto ao Cronida 277; o castigo a Prometeu 278; a

feitura da mulher/Pandora, que é o castigo imposto aos homens pela falta de Prometeu 279; e o

episódio do pote de Pandora 280.

Destes episódios, apenas dois figuram em ambas as versões, o roubo do fogo e a feitura

da mulher. O banquete e o castigo a Prometeu figuram apenas na Teogonia e o pote de

Pandora, apenas em Os Trabalhos e os Dias.

Quanto aos dois episódios que figuram apenas na Teogonia, o banquete tem como

consequência para os homens a necessidade do sacrifício 281, enquanto a prisão de Prometeu

faz parte da construção da política de Zeus.

Quanto ao pote de Pandora, que só ocorre em Os trabalhos e os dias, cabe, para o

momento, apenas assinalar que os males ali contidos muito se assemelham a alguns dos filhos

de Éris, aqueles desprovidos de voz – Fadiga, Olvido, Fome, Dores - apresentados nos versos

276
Teog. 535-537. καὶ γὰρ ὅτ' ἐκρίνοντο θεοὶ θνητοί τ' ἄνθρωποι/ Μηκώνῃ, τότ' ἔπειτα μέγαν βοῦν
πρόφρονι θυμῷ/ δασσάμενος προύθηκε, Διὸς νόον ἐξαπαφίσκων
Quando se discerniam deuses e homens mortais/em Mecona, com ânimo atento dividindo ofertou/
grande boi a trapacear o espírito de Zeus
277
Teog. 565-566 ἀλλά μιν ἐξαπάτησεν ἐὺς πάις Ἰαπετοῖο/ κλέψας ἀκαμάτοιο πυρὸς τηλέσκοπον
αὐγὴν
Porém o enganou o bravo filho de Jápeto:/ furtou o brilho longevisível do infatigável fogo
e Trab. 50-52. κρύψε δὲ πῦρ· τὸ μὲν αὖτις ἐὺς πάις Ἰαπετοῖο/ ἔκλεψ' ἀνθρώποισι Διὸς παρὰ
μητιόεντος.
Ocultou o fogo. Mas de novo o bravo filho de Jápeto/ roubou-o para os homens de Zeus astucioso.
278
Cf. Teog. 520-528.
279
Cf.Teog. 570-589 e Trab. 59-89.
280
Cf. Trab. 93-98. ἀλλὰ γυνὴ χείρεσσι πίθου μέγα πῶμ' ἀφελοῦσα/ ἐσκέδασ', ἀνθρώποισι δ' ἐμήσατο
κήδεα λυγρά./ μούνη δ' αὐτόθι Ἐλπὶς ἐν ἀρρήκτοισι δόμοισιν/ ἔνδον ἔμεινε πίθου ὑπὸ χείλεσιν οὐδὲ
θύραζε/ ἐξέπτη· πρόσθεν γὰρ ἐπέμβαλε πῶμα πίθοιο.
Mas a mulher, retirando com as mãos a grande tampa do jarro/ espalhou epreparou duras penas para
os homens/ e ali só Esperança, em morada inabalável,/ ficou dentro do jarro, abaixo das bordas, e não
transpôs/ os umbrais, pois logo repôs a tampa do jarro.
281
Cf. Teog. 556-557. ἐκ τοῦ δ' ἀθανάτοισιν ἐπὶ χθονὶ φῦλ' ἀνθρώπων /καίουσ' ὀστέα λευκὰ θυηέντων
ἐπὶ βωμῶν.
Por isso aos imortais sobre a terra a grei humana /queima os alvos ossos em altares turiais.
151
226-232 282 da Teogonia, como destinados aos homens, ou seja, não afligem os imortais. Elpís,

a Esperança, será discutida mais adiante, quando abordar as noções morais de Hesíodo.

Como se vê, o homem é uma presença e uma preocupação constante para Hesíodo, já no

bojo do seu poema dedicado aos deuses. Neste sentido, os versos 535 e 536 da Teogonia são

de capital importância: “quando se discerniam deuses e homens mortais em Mecona 283”.

Então, o encontro em Mecona tratava da questão crucial de decidir o que é ser deus e o

que é ser homem. A pertinência deste problema fica explicitada no verso 108 de Os Trabalhos

e os Dias: “que têm a mesma origem deuses e homens mortais”, onde o poeta explica que

ambos provêm da mesma origem 284. A questão não é de pouca importância e Hesíodo não só

a apresenta num momento central da Teogonia, como também retorna a ela num momento

capital de Os Trabalhos e os Dias, que é a passagem do mito de Prometeu para o mito das

raças.

A pergunta sobre o homem é uma questão central ao processo cosmogônico de Hesíodo

e mesmo que a resposta definitiva seja impossível, o resultado desta decisão está claramente

manifesto no verso 42 de Os Trabalhos e os Dias: “os deuses mantêm oculto aos homens o

sustento 285”.

Sua resposta não vai nos dar uma definição do homem, mas seu lugar no mundo.

Homens e deuses, a partir de Mecona, estão separados e mesmo em oposição, já que os deuses

282
αὐτὰρ Ἔρις στυγερὴ τέκε μὲν Πόνον ἀλγινόεντα /Λήθην τε Λιμόν τε καὶ Ἄλγεα δακρυόεντα
/Ὑσμίνας τε Μάχας τε Φόνους τ' Ἀνδροκτασίας τε /Νείκεά τε Ψεύδεά τε Λόγους τ' Ἀμφιλλογίας τε
/Δυσνομίην τ' Ἄτην τε, συνήθεας ἀλλήλῃσιν, /Ὅρκόν θ', ὃς δὴ πλεῖστον ἐπιχθονίους ἀνθρώπους
/πημαίνει, ὅτε κέν τις ἑκὼν ἐπίορκον ὀμόσσῃ·
Éris hedionda pariu Fadiga cheia de dor, /Olvido, Fome e Dores cheias de lágrimas, /Batalhas,
Combates, Massacres e Homicídios, /Litígios, Mentiras, Falas e Disputas, /Desordem e Derrota
conviventes uma da outra, /e Juramento, que aos sobreterrâneos homens /muito arruina quando
alguém adrede perjura. Grifo nosso.
283
Teog. 535-536. καὶ γὰρ ὅτ' ἐκρίνοντο θεοὶ θνητοί τ' ἄνθρωποι /Μηκώνῃ,
284
Trab. 108. ὡς ὁμόθεν γεγάασι θεοὶ θνητοί τ' ἄνθρωποι
285
Trab. 42 Κρύψαντες γὰρ ἔχουσι θεοὶ βίον ἀνθρώποισιν.
152
ocultaram o sustento aos homens. Como consequência desta separação, além da necessidade

do sacrifício - “por isso aos imortais sobre a terra a grei humana/ queima os alvos ossos em

altares turiais. 286”, surge também a necessidade do trabalho: “senão facilmente trabalharias

por um dia e o tinhas por um ano 287”.

A ocultação do sustento, por sua vez, foi causada pela ocultação do fogo. É importante

lembrar que o tema do fogo é mencionado nos dois poemas. Isto indica que o fogo cumpre um

papel fundamental na relação entre deuses e homens. Na Teogonia, o fogo que Zeus oculta é

diferente do fogo que retorna aos homens. O irado Zeus “depois sempre deste ardil lembrado

/negou nos freixos a força do fogo infatigável /aos homens mortais que sobre a terra

habitam. 288”, mas o filho de Jápeto “furtou o brilho longevisível do infatigável fogo /em oca

férula 289.”

Entendemos que Hesíodo não empregou palavras distintas por acaso. Assim sendo,

entendo que o fogo de Zeus, ou melhor, a centelha do seu raio, simboliza aquela

espontaneidade criadora e criativa que os homens compartilhavam com os deuses, uma vez

que homens e deuses procedem da mesma origem. O fogo de Prometeu integra a nova ordem

do mundo para os homens. É um fogo técnico, destinado à fabricação de instrumentos e ao

cozimento dos alimentos, atividades desnecessárias na ordem anterior, mas agora

imprescindíveis para a subsistência. O fogo de Zeus é um símbolo do poder. O fogo de

Prometeu é um símbolo exatamente da falta deste poder e também, a marca da entrada do

homem na cultura. A marca da entrada do homem na cultura é, por sua vez, a entrada no

mundo do trabalho.

286
Teog. 556-557. ἐκ τοῦ δ' ἀθανάτοισιν ἐπὶ χθονὶ φῦλ' ἀνθρώπων/ καίουσ' ὀστέα λευκὰ θυηέντων ἐπὶ
βωμῶν.
287
Trab. 43-44. ῥηιδίως γάρ κεν καὶ ἐπ' ἤματι ἐργάσσαιο, /ὥστε σε κεἰς ἐνιαυτὸν ἔχειν καὶ ἀεργὸν
ἐόντα·
288
Teog. 562-564. ἐκ τούτου δἤπειτα χόλου μεμνημένος αἰεὶ /οὐκ ἐδίδου μελίῃσι πυρὸς μένος
ἀκαμάτοιο /θνητοῖς ἀνθρώποις οἳ ἐπὶ χθονὶ ναιετάουσιν· Grifo nosso.
289
Teog. 566-567. κλέψας ἀκαμάτοιο πυρὸς τηλέσκοπον αὐγὴν /ἐν κοίλῳ νάρθηκι· Grifo nosso.
153
O tema do trabalho está ausente no Prometeu da Teogonia 290, só aparecendo em Os

Trabalhos e os Dias. Neste poema, há uma sutil clivagem a ser examinada. Além do mais, os

versos que introduzem o mito neste poema guardam uma profunda ressonância com a idade

do ouro:

Os deuses mantêm oculto aos homens o sustento


senão, facilmente trabalharias por um dia
e o tinhas por um ano, mesmo ficando ocioso,
e logo içavas o leme acima do fumo 45
e os trabalhos de bois e sofridas mulas seriam largados.
Κρύψαντες γὰρ ἔχουσι θεοὶ βίον ἀνθρώποισιν.
ῥηιδίως γάρ κεν καὶ ἐπ' ἤματι ἐργάσσαιο,
ὥστε σε κεἰς ἐνιαυτὸν ἔχειν καὶ ἀεργὸν ἐόντα·
αἶψά κε πηδάλιον μὲν ὑπὲρ καπνοῦ καταθεῖο, 45
ἔργα βοῶν δ' ἀπόλοιτο καὶ ἡμιόνων ταλαεργῶν.

Todas as palavras ligadas ao trabalho aqui presentes são expressas em termos de ἔργον.

A inatividade está expressa como a negação do ἔργον, ἀέργον.

A ressonância com a raça de ouro reaparece quando da introdução do pote de Pandora:

Pois antes vivia na terra uma tribo de homens 90


bem longe dos males, bem longe da dura fadiga
das doenças dolorosas que trazem morte aos homens.
[pois súbito em desgraça os homens envelhecem.]
Mas a mulher, retirando com as mãos a tampa do jarro
espalhou e preparou duras penas aos homens. 95
Πρὶν μὲν γὰρ ζώεσκον ἐπὶ χθονὶ φῦλ' ἀνθρώπων 90
νόσφιν ἄτερ τε κακῶν καὶ ἄτερ χαλεποῖο πόνοιο
νούσων τ' ἀργαλέων, αἵ τ' ἀνδράσι κῆρας ἔδωκαν.
[αἶψα γὰρ ἐν κακότητι βροτοὶ καταγηράσκουσιν.]
ἀλλὰ γυνὴ χείρεσσι πίθου μέγα πῶμ' ἀφελοῦσα
ἐσκέδασ', ἀνθρώποισι δ' ἐμήσατο κήδεα λυγρά. 95

290
Ou só aparece de forma indireta, já que a necessidade do sacrifício implica na necessidade do
trabalho: é preciso cuidar dos rebanhos para poder realizar as hecatombes; é preciso cultivar a terra
para fazer as libações com vinho, farinha e mel.
154
Nesta segunda descrição, o trabalho foi substituído pela dura fadiga. Em grego, ἔργον

foi substituído por χαλεποῖο πόνοιο.

Tudo leva a crer que esta segunda descrição aborda a raça de ouro do ponto de vista da

raça de Hesíodo, a raça de ferro, de vida tão dura que ele preferia ter morrido antes ou nascido

depois 291, enquanto a primeira abordava a raça de ouro a partir do ponto de vista desta própria

raça, que vivia como os deuses, isto é, livre de penas, fadigas e cansaços 292.

Dentro da leitura aqui desenvolvida, que vê, entre outras coisas, a separação entre

deuses e homens expressa por palavras cuidadosamente empregadas pelo poeta, a partir da

distinção entre ἀληθέα e ἐτήτυμα, passando pela distinção entre eterno e efêmero; Hefesto e a

bigorna; bem como a diferença entre o freixo e a férula, a distinção entre ἔργον e πόνος me

parece capital: estando o ἔργον reservado aos deuses e aos homens que lhes são próximos,

enquanto o πόνος é a parte que cabe ao comum dos mortais, a conversão do πόνος em ἔργον é

também uma forma de culto e de aproximação da divindade.

É preciso esclarecer como ἔργον está sendo entendido aqui. Se, por um lado, a tradução

do grego Ἔργα καὶ ἡμεραι por “Os trabalhos e dias” já ficou consagrada, por outro, a

tradução de ἔργα por “trabalho” é bastante problemática. Em primeiro lugar pela visão

contemporânea de trabalho: não se encontra na Grécia antiga uma grande função humana

chamada trabalho e que recobre todos os ofícios. Cada um deles constitui um tipo particular

de ação que produz sua própria obra. É exclusivamente em função de seu valor de uso que

cada produto era fabricado e a meta era torná-lo o mais perfeito possível. Não existia lá a

291
Trab. 174-175. Μηκέτ' ἔπειτ' ὤφελλον ἐγὼ πέμπτοισι μετεῖναι /ἀνδράσιν, ἀλλ' ἢ πρόσθε θανεῖν ἢ
ἔπειτα γενέσθαι.
Quem dera, eu não tivesse nascido na quinta raça,/ mas tivesse antes morrido, ou nascido mais tarde.
292
Trab. 110-114. Χρύσεον μὲν πρώτιστα γένος μερόπων ἀνθρώπων/ ἀθάνατοι ποίησαν Ὀλύμπια
δώματ' ἔχοντες./ οἳ μὲν ἐπὶ Κρόνου ἦσαν, ὅτ' οὐρανῷ ἐμβασίλευεν·/ ὥστε θεοὶ δ' ἔζωον ἀκηδέα θυμὸν
ἔχοντες / νόσφιν ἄτερ τε πόνων καὶ ὀιζύος,
Primeiro a raça de ouro, de homens falantes,/ criaram os imortais que habitam olímpias moradas./ Era
no tempo de Kronos, quando reinava no céu./ Viviam como deuses, tendo o ânimo isento de penas/
sem dor, nem cansaço.

155
idéia de um processo produtivo de conjunto cuja divisão permitisse obter do trabalho em geral

uma massa maior de produtos.

Em segundo lugar, não existe, em grego, um termo que corresponda a “trabalho”. Há

uma palavra, πόνος, que se aplica a todas as atividades que exigem esforço penoso e não

somente às tarefas produtivas com valores socialmente úteis. Ἔργον é, para cada coisa, para

cada ser, o produto de sua própria força de realização, de sua virtude, de sua ἀρετή. A ênfase

do ἔργον recai, portanto, na própria ação produtiva, na πράξις, e não no produto, no ποίημα. É

justamente nesta perspectiva que deve ser lido o verso 382 do poema, ὧδ' ἔρδειν, καὶ ἔργον ἐπ'

ἔργῳ ἐργάζεσθαι, que traduzimos como “assim obra: trabalho sobre trabalho trabalha”, mas

que deve ser lido como “assim obra (ὧδ' ἔρδειν): a força de realização (ἔργον) na própria

obra (ἐπ' ἔργῳ) se atualiza (ἐργάζεσθαι)”. Em outras palavras, ao endereçar este conselho, não

só a seu irmão, como também à audiência, Hesíodo quer dizer que o efeito mais importante do

trabalho se dá em quem trabalha, e não sobre o produto do trabalho. É certo que o trabalho dá

seus frutos, mas o fruto maior é a modificação que ele opera em quem trabalha, conduzindo-o,

pelo hábito do trabalho, à excelência, à virtude, à ἀρετή. A estreita ligação que Hesíodo vê

entre trabalho e virtude, entre ἔργον e ἀρετή fica dramaticamente patente na famosa passagem

dos caminhos:

Pois eu que conheço o bem, te digo, Perses, grande tolo:

mui pronto o vício conquista multidões,

é muito fácil: seu caminho é plano e está logo ali.

Mas perante a virtude, suor ordenaram os deuses

imortais. É longa e inclinada a subida até ela, 290

espinhosa no início, mas quando se chega ao topo

mais fácil se torna, ainda que seja difícil.

Σοὶ δ' ἐγὼ ἐσθλὰ νοέων ἐρέω, μέγα νήπιε Πέρση·

τὴν μέν τοι κακότητα καὶ ἰλαδὸν ἔστιν ἑλέσθαι

156
ῥηιδίως· λείη μὲν ὁδός, μάλα δ' ἐγγύθι ναίει·

τῆς δ' ἀρετῆς ἱδρῶτα θεοὶ προπάροιθεν ἔθηκαν

ἀθάνατοι· μακρὸς δὲ καὶ ὄρθιος οἶμος ἐς αὐτὴν 290

καὶ τρηχὺς τὸ πρῶτον· ἐπὴν δ' εἰς ἄκρον ἵκηται,

ῥηιδίη δὴ ἔπειτα πέλει, χαλεπή περ ἐοῦσα.

Muitos séculos mais tarde, a escritora francesa George Sand reapresentou a questão da

conversão de πόνος em ἔργον praticamente nos mesmos termos: “Deixai-me fugir da ilusão

mentirosa e criminosa da felicidade! Dai-me o trabalho, a fadiga, a dor e o entusiasmo. 293”.

É o entusiasmo pelo esforço penoso, e não a rejeição a este, que possibilita esta conversão.

Por outro lado, não existe excelência, não existe virtude, sem esforço penoso. Só a partir

deste, aquela é alcançada. Este ponto de partida para a virtude foi dado a todos os homens

indistintamente a partir da ocultação do sustento, por parte dos deuses. Todos os homens

ficaram, desde então, destinados a trabalhar. Cabe a cada um aceitar ou recusar, tal como

Perses, este destino e suportar as consequências de sua decisão.

Daí resulta uma visão do homem como um ser ambíguo, oscilante entre o divino e o

bestial. Na medida em que é o único ente que presta culto aos deuses, o homem aproxima-se

destes, mas, no entanto, a diferença hierárquica é fortemente assinalada: é o homem quem

trabalha e sacrifica aos deuses e não o inverso. Privado do fogo, não há nem trabalho nem

sacrifício possível e o homem se afasta dos deuses, tendendo para as bestas que se devoram

umas às outras, de quem devem se manter distintos por desígnio de Zeus 294.

293
Le Monde. Dossiers & documents. n. 51. Avril 2006. pag.1.
294
Trab. 276-279. τόνδε γὰρ ἀνθρώποισι νόμον διέταξε Κρονίων,/ ἰχθύσι μὲν καὶ θηρσὶ καὶ οἰωνοῖς
πετεηνοῖς/ ἔσθειν ἀλλήλους, ἐπεὶ οὐ δίκη ἐστὶ μετ' αὐτοῖς·/ ἀνθρώποισι δ' ἔδωκε δίκην,
Pois o Cronida dispôs aos homens a lei/ Aos peixes, às feras e às aves aladas,/ que se devorem./Justiça
não há entre eles./Aos homens, sim, deu a Justiça.
157
Passamos agora a examinar o segundo ponto comum entre as duas versões hesiódicas

do mito de Prometeu, isto é, a chegada da mulher, que completa a questão da condição

humana neste mito.

Se nossa interpretação sobre a diferença entre o fogo que foi ocultado por Zeus e o fogo

que foi retornado por Prometeu tem algum fundamento, a chegada da mulher/Pandora tem um

significado simbólico e alude à mudança de natureza, à queda, sofrida pelo homem como

consequência do embate entre o Cronida e o titânida. Pandora solicita um olhar muito mais

simbólico do que antropológico, sob a pena de ficarmos discutindo questões feministas que

não estão contidas e nem cabem no mito, isto é, sob a pena de perdermos o mito.

Vale lembrar que a imagem da mulher como encarnação das qualidades negativas da

humanidade é algo amplamente reconhecido não só na literatura e na iconografia grega, como

também na mitologia judaico-cristã.

Kathryn Stoddard compartilha do mesmo ponto de vista. Para ela, a criação da mulher,

tal como é apresentada na Teogonia, é um evento da mesma magnitude cósmica da separação

entre deuses e homens.

“Hesíodo não inclui o mito “misógino” da criação da mulher simplesmente


porque talvez ele não goste da mulher, do mesmo modo que ele não inclui,
em sua narrativa, o Hino a Hécate por causa de uma devoção pessoal à
deusa. O narrador da Teogonia está preocupado em mostrar como o cosmos
atingiu o estado atual e a infeliz posição do homem neste cosmos é parte
significativa da questão, quando vista a partir de seu ponto de vista
mortal. 295”

Pandora e o pote são a marca da ruptura dos deuses com os homens e do consequente

fim da raça de ouro, bem como de uma tomada de consciência da diferenciação de gênero –

295
Stoddard (2004) pag. 156.
158
não há nenhuma menção à mulher na raça de ouro, ela só surge na raça de prata – e da vida

pautada na reprodução sexuada.

No plano simbólico, isto está expresso pelas seguintes divisões sucessivas: primeiro

Prometeu dividiu as carnes; depois homens e deuses, que têm a mesma origem 296, dividiram-

se; por fim, a humanidade se dividiu em homem e mulher 297.

Estas divisões implicam a tomada de consciência da própria finitude. Ao dizer que as

mulheres “amontoam em seu ventre o esforço alheio 298”, Hesíodo convoca a reprovação das

Musas à humanidade ocorrida no verso 26 299. O ventre carrega o alimento e o feto,

simbolizando a necessidade do indivíduo de comer para viver e a necessidade da reprodução

para que a humanidade não sucumba.

Em uma palavra, Pandora simboliza a vida permeada por males inevitáveis. Estes males

parecem ser os filhos de Éris, aos quais os deuses são imunes 300. Só mesmo entre os homens

eles podem se manifestar. Então Hesíodo os colocou todos num pote e enviou-os aos homens

junto com Pandora, pura e simplesmente porque a tomada de consciência de um único traço

da condição humana implica na tomada de consciência de todo o “pacote”.

A mulher anônima da Teogonia e a Pandora de Os Trabalhos e os Dias representam não

somente a primeira fêmea humana, mas a noiva, com todos os seus adornos e esplendor

sedutor. Sua chegada inaugura a instituição do matrimônio, que tal como o sacrifício aos

296
Trab. 108. ὡς ὁμόθεν γεγάασι θεοὶ θνητοί τ' ἄνθρωποι
que têm mesma origem deuses e homens mortais.
297
Stoddard (2004) pag. 156-157.
298
Teog. 599. ἀλλότριον κάματον σφετέρην ἐς γαστέρ' ἀμῶνται·
299
Teog. 26. ποιμένες ἄγραυλοι, κάκ' ἐλέγχεα, γαστέρες οἶον,
Pastores agrestes, vis infâmias e ventres só,
300
Até mesmo o Juramento é diferente para deuses e homens. O Juramento dos homens é um dos
filhos de Éris: “Juramento, que aos sobreterrâneos homens/ muito arruina quando alguém adrede
perjura.” (Teog. 231-232. Ὅρκόν θ', ὃς δὴ πλεῖστον ἐπιχθονίους ἀνθρώπους/ πημαίνει, ὅτε κέν τις
ἑκὼν ἐπίορκον ὀμόσσῃ· e), enquanto o Juramento dos deuses é Styx: “fez dela própria o grande
juramento dos Deuses.” (Teog. 400. αὐτὴν μὲν γὰρ ἔθηκε θεῶν μέγαν ἔμμεναι ὅρκον)
159
deuses e o trabalho, são as coordenadas que delimitam a condição humana. Sendo mortais, os

homens são compelidos a se reproduzirem. Para continuarem vivos enquanto espécie, mas,

diferente das bestas que praticam o incesto, os homens são os únicos a regularem sua

sexualidade por meio desta instituição.

Por ser humana, a esposa é ambígua. Por ser um presente dos deuses, é irrecusável:

aquele que evitar o casamento terá uma velhice miserável 301; aquele que consegue uma má

esposa está igualmente arruinado, mas aquele que consegue uma boa esposa terá o melhor

destino possível para um homem 302: uma vida inteira de males misturados aos bens, conforme

atestam os versos 610 da Teogonia “para este desde cedo ao bem contrapesa o mal

constante. 303”, e o verso 179 de Os trabalhos e os dias, ao final do mito das raças: “Ainda

assim para eles bens estarão mesclados aos males. 304”

O papel da boa esposa é, então, o de ajudar na administração dos bens conquistados

pelo trabalho. Um precioso auxílio com o qual os que têm uma má esposa e os que não têm

nenhuma não podem contar. Estes últimos versos que acabamos de examinar têm sido

sistematicamente ignorados pela leitura feminista – que não é exclusividade das mulheres – de

Hesíodo, que prefere insistir em rotulá-lo como misógino.

301
Teog. 603-605. ὅς κε γάμον φεύγων καὶ μέρμερα ἔργα γυναικῶν/ μὴ γῆμαι ἐθέλῃ, ὀλοὸν δ' ἐπὶ
γῆρας ἵκηται/ χήτει γηροκόμοιο·
Quem fugindo a núpcias e a obrigações com mulheres/ não quer casar-se, atinge a velhice funesta/
sem quem o segure
302
Trab. 702-706. οὐ μὲν γάρ τι γυναικὸς ἀνὴρ ληίζετ' ἄμεινον/ τῆς ἀγαθῆς, τῆς δ' αὖτε κακῆς οὐ
ῥίγιον ἄλλο,/ δειπνολόχης, ἥ τ' ἄνδρα καὶ ἴφθιμόν περ ἐόντα/ εὕει ἄτερ δαλοῖο καὶ ὠμῷ γήραϊ δῶκεν.
Um homem não consegue nada melhor do que mulher/ dedicada, nem há pior/ desgraça do que a
má,/parasita, que o marido, por mais forte que seja,/consome sem fogo e à velhice precoce o condena.
e Teog.607-610. ᾧ δ' αὖτε γάμου μετὰ μοῖρα γένηται,/ κεδνὴν δ' ἔσχεν ἄκοιτιν, ἀρηρυῖαν πραπίδεσσι,/
τῷ δέ τ' ἀπ' αἰῶνος κακὸν ἐσθλῷ ἀντιφερίζει/ ἐμμενές·
A quem vem o destino de núpcias/ e cabe cuidosa esposa concorde consigo,/ para este desde cedo ao
bem contrapesa o mal constante.
303
Teog. 610. τῷ δέ τ' ἀπ' αἰῶνος κακὸν ἐσθλῷ ἀντιφερίζει.
304
Trab. 179. ἀλλ’ ἔμπης καὶ τοῖσι μεμείξεται ἐσθλὰ κακοῖσιν.
160
Ao longo destes últimos parágrafos estivemos abordando, de forma indistinta e quase

espontânea, as duas versões do mito de Prometeu. Neste trajeto, algumas passagens do mito

das raças foram visitadas. Observemos mais de perto a intimidade que estes dois importantes

mitos da obra de Hesíodo guardam entre si.

A simples menção do nome de Epimeteu ligando-o à aceitação da mulher enviada por

Zeus já liga imediatamente o início do mito de Prometeu com o fim do mito das raças.

O símile do zangão é um retrato da vida do homem da raça de ferro 305. Segundo

Stoddard, Hesíodo mostra como a separação da humanidade, um evento ocorrido no início

dos tempos e no nível do divino, continua a afetar a humanidade no presente, por meio de um

fenômeno cotidiano, mas eternamente presente – a ativa vida da colmeia sempre foi assim.

Desta forma, prossegue Stoddard, “Hesíodo age como uma ponte entre ἀληθέα e ἔτυμος,

função que lhe foi concedida pelas Musas 306.”

Não há, no Prometeu da Teogonia, nenhuma menção à idade do ouro, o que é

compreensível, uma vez que o que está em jogo é a decisão sobre o que é ser deus e o que é

ser humano. Logo, o enfoque deve incidir sobre a diferença entre ambos, e não sobre a

semelhança. Esta é introduzida no início do Prometeu de Os Trabalhos e os Dias, com a

isenção quase absoluta do trabalho, bastando apenas um dia para garantir o sustento de um

305
Teog. 594-602. ὡς δ' ὁπότ' ἐν σμήνεσσι κατηρεφέεσσι μέλισσαι/ κηφῆνας βόσκωσι, κακῶν
ξυνήονας ἔργων·/ αἱ μέν τε πρόπαν ἦμαρ ἐς ἠέλιον καταδύντα/ ἠμάτιαι σπεύδουσι τιθεῖσί τε κηρία
λευκά,/ οἱ δ' ἔντοσθε μένοντες ἐπηρεφέας κατὰ σίμβλους/ ἀλλότριον κάματον σφετέρην ἐς γαστέρ'
ἀμῶνται·/ ὣς δ' αὔτως ἄνδρεσσι κακὸν θνητοῖσι γυναῖκας/ Ζεὺς ὑψιβρεμέτης θῆκε, ξυνήονας ἔργων/
ἀργαλέων.
Tal quando na colméia recoberta abelhas/ nutrem zangões,/ emparelhados de malefício,/ elas todo o
dia até o mergulho do sol/ diurnas fadigam-se e fazem os brancos favos,/ eles ficam no abrigo do
enxame à espera/ e amontoam no seu ventre o esforço alheio,/ assim um mal igual fez aos homens
mortais/ Zeus tonítruo
306
Stoddard (2004) pag. 157.
161
ano, e totalmente realizada no mito das raças, onde diz que os homens da raça de ouro

“viviam como deuses 307.”

Os últimos quinze versos do Prometeu de Os Trabalhos e os Dias mostram claramente a

transição da vida do homem da raça de ouro, quando os homens viviam “bem longe dos

males, bem longe da dura fadiga/ das doenças dolorosas que trazem morte aos homens 308”,

para a vida do homem da raça de ferro: “Dez mil pesares já estavam lançados aos

homens 309”, verso que articula o verso 609 do Prometeu da Teogonia, “para este desde cedo

ao bem contrapesa o mal constante.”, com o verso 179 de Os Trabalhos e os Dias, no início

da raça de ferro: “ainda assim, para eles bens estarão mesclados aos males”, o que prova

que, segundo a visão do poeta, o homem pode transcender ao seu destino.

Para finalizar com esta análise, é preciso salientar que a construção do discurso humano

tornou-se, a partir de então, necessária. Uma vez decidido o que é ser deus e o que é ser

homem, os deuses partiram do mundo e o homem viu-se só. As presenças divinas

remanescentes na terra vestidas são todas vestidas de ar, o que equivale dizer que nos são

inacessíveis. E mesmo estas também podem deixar os homens, o que significará o fim da

humanidade. Portanto, é imperioso que o homem descubra o seu norte. Se o homem era um

elemento secundário e passivo na primeira versão 310 do mito, na segunda a questão do homem

ocupa o centro da narrativa, não para dizer o que é o homem, mas para explicar como ele veio

307
Trab. 112. ὥστε θεοὶ δ' ἔζωον ἀκηδέα θυμὸν ἔχοντες
308
Trab. 91-92. νόσφιν ἄτερ τε κακῶν καὶ ἄτερ χαλεποῖο πόνοιο/ νούσων τ' ἀργαλέων, αἵ τ' ἀνδράσι
κῆρας ἔδωκαν.
309
Trab. 100. ἄλλα δὲ μυρία λυγρὰ κατ' ἀνθρώπους ἀλάληται·
310
Após ter definido o que é ser deus e o que é ser homem, o poema segue seu fluxo e conta os eventos
finais da constituição do cosmos divino e os homens desaparecem do cenário, só retornando no verso
967, quando surgem referências aos heróis, que compõem o final do poema. Estudos mais recentes
começam a levantar a hipótese de considerar o Catálogo das mulheres como um poema que se situa
entre a Teogonia e Os Trabalhos e os Dias, na medida em que o primeiro trata dos deuses, o segundo
dos heróis e o terceiro dos homens. Até onde eu saiba, estes estudos estão em andamento. O próprio
mito de Prometeu, neste poema, parece mais ser uma digressão, já que surge no bojo da narrativa da
linhagem de Jápeto, e conta o destino de cada um de seus filhos, Menécio, Atlas, Prometeu e
Epimeteu.
162
a chegar à situação presente e, a partir daí, descobrir como ele deve agir. Em outras palavras,

está em jogo o sentido do homem.

3.3 Os trabalhos e os dias

O curso da investigação mostrou que o vínculo mais forte entre os dois poemas é o mito

de Prometeu. Desta forma, a passagem da Teogonia para Os trabalhos e os dias foi feita por

esta porta, mas, ainda que isto nos encaminhe para o mito das raças, dada a enorme intimidade

existente entre estas duas narrativas, é preciso, antes disso, recuperar alguns aspectos do

proêmio deste último poema, assim como traçar algumas considerações sobre as duas Lutas

para que se possa acompanhar mais de perto a marcha do pensamento do poeta. O problema

das duas Lutas será visto com maior detalhe no próximo capítulo.

Conforme já vimos, entre os versos 8 e 10, Zeus é convocado para corrigir, com justiça,

as sentenças (δίκῃ δ' ἴθυνε θέμιστας). Esta é a preocupação central de Hesíodo neste poema, já

que os reis comedores de presentes estão se afastando da Justiça.

Este poder de Zeus já estava anunciado desde o verso 7: “fácil o torto endireita e

enfraquece o nobre” (ῥεῖα δέ τ' ἰθύνει σκολιὸν καὶ ἀγήνορα κάρφει 311
). O verbo ἰθύνει (corrigir,

endireitar) aparece duas vezes neste trecho, ligando claramente σκολιὸν (torto) e θέμιστας

(sentenças), mostrando que são as sentenças que estão tortas e devem ser corrigidas.

Entretanto, vimos também que, uma vez que estas são divinas, elas não podem estar erradas.

O erro está em quem as aplica e quem as aplica está representado no verso 7 pelo epíteto

311
Modificamos aqui nossa tradução para ἀγήνορα. Cf. Hesíodo (2011). pág. 117, onde tinhamos
optado por “arrogante”, guardando assim um pouco da sonoridade da palavra. Aqui, interessa
assinalar que ninguém escapa do poder de Zeus.
163
ἀγήνορα (nobre) 312. Deste modo, para fazer isto, Zeus deve enfraquecer o poder de quem as

administra.

O enfraquecimento do nobre dá a Hesíodo a oportunidade de substituí-lo na

administração da justiça, mas o poeta não visa uma usurpação de poder e aplicar corretamente

ele mesmo as sentenças. Seu propósito é educar Perses e os ouvintes de modo que todos

assumam um comportamento que previne o estabelecimento das disputas na ágora. Por isso

ele lança mão das duas Lutas, a primeira verdade que ele conta ao irmão.

Se o modo de vida dos nobres é centrado na guerra e na administração da justiça na

ágora, ele o liga à Luta má: “Uma traz a guerra e a discórdia funesta,” (v.14. ἣ μὲν γὰρ

πόλεμόν τε κακὸν καὶ δῆριν ὀφέλλει). A outra Luta é mais antiga, o que equivale dizer, é mais

proeminente. O verso 19 diz que é muito melhor para os homens (ἀνδράσι πολλὸν ἀμείνω), pois

desperta até mesmo o indolente para o trabalho (v.20.ἥ τε καὶ ἀπάλαμόν περ ὁμῶς ἐπὶ ἔργον

ἐγείρει·).

Em suma, temos que o proêmio de Os trabalhos e os dias introduz o problema da

justiça como questão central do poema. O mito das duas Lutas introduz o trabalho como a via

de consecução da justiça. Tudo isto nos leva ao mito de Prometeu, já que este conta como a

necessidade do trabalho surgiu para o homem, por imposição divina. Este mito, por sua vez,

está intimamente ligado, desde a sua primeira parte, ainda na Teogonia, ao mito das raças, que

será abordado a seguir.

312
Acatamos a interpretação que Pucci dá a este verso, entendo que ἀγήνορα só pode se referir aos
nobres “pois somente estes administram a justiça e somente um nobre pode ser dito ἀγήνορα”. Cf.
Pucci (1996) pág.202-203. Pucci ainda menciona a ressonância que o verso de Hesíodo guarda com
Il.16. 387. οἳ βίῃ εἰν ἀγορῇ σκολιὰς κρίνωσι θέμιστας. Rousseau tem entendimento semelhante. Cf.
Rousseau (1996) pág.100-101.

164
3.3.1 Apresentação

O mito das raças é introduzido por três versos (vv. 106-8) que dizem:

Mas, se queres, coroarei [esta] com outra história,

bem e sabiamente contada, e tu guarda na mente/

que têm a mesma origem deuses e homens mortais.

Εἰ δ' ἐθέλεις, ἕτερόν τοι ἐγὼ λόγον ἐκκορυφώσω

εὖ καὶ ἐπισταμένως· σὺ δ' ἐνὶ φρεσὶ βάλλεο σῇσιν

[ὡς ὁμόθεν γεγάασι θεοὶ θνητοί τ' ἄνθρωποι].

Este último verso constitui-se num ponto importantíssimo para a compreensão da visão

de mundo de Hesíodo. Deuses e homens compartilham da mesma origem. Sua diferença

estabelece-se, então, num plano axiológico e é progressiva, já que ao tempo do poeta, na

quinta raça, a maioria dos os deuses já se tinha retirado do convívio dos mortais 313, restando

apenas Pudor e Partilha, invisíveis entre os homens 314.

A narração do mito, propriamente dito, ocupa os versos 109 a 201.

Cada uma das idades está aparentada com um metal, cujo nome toma e cuja sucessão se

ordena do mais ao menos precioso, do superior ao inferior; ouro, prata, bronze, ferro. Insere,

entre as duas últimas, a raça dos heróis, que não possui correspondente metálico. Sua inserção

no relato das idades é indispensável para completar o quadro dos seres invisíveis que engloba

313
Ainda que o verso 108 seja considerado duvidoso por alguns, ele não altera em nada a
compreensão do texto, parecendo antes reforçá-la: ὁμόθεν pode significar tanto origem consanguínea
quanto proximidade no espaço. No primeiro caso, deuses e homens têm a mesma origem, Γαῖα, Terra.
No segundo, reforça a ideia de que deuses e homens conviviam e chegavam mesmo a produzir filhos
semidivinos de seus encontros. Daí até a partida de Pudor e Partilha, o afastamento entre deuses e
homens foi se dando progressivamente. Cf. Moura in Hesíodo (2012) pág. 73, nota 14.
314
Trab. 198-200. λευκοῖσιν φάρεσσι καλυψαμένω χρόα καλὸν/ ἀθανάτων μετὰ φῦλον ἴτον
προλιπόντ' ἀνθρώπους/ Αἰδὼς καὶ Νέμεσις·
belo corpo escondido em brancas vestes,/ à tribo dos imortais irão, abandonando os homens,/ Pudor e
Partilha.

165
os deuses, os demônios, os heróis e os mortos. De um lado, um mito genealógico que explica

a decadência – e não a origem, pois esta já estava estabelecida como a mesma dos deuses - da

humanidade, de outro, uma divisão estrutural do mundo divino que possibilita a inserção dos

heróis. Primeiro a de ouro (v.109), segundo, a de prata (vv.127-8), a de bronze é a terceira

(vv. 143-4), heróis a quarta (vv. 157-9) e, por fim, a quinta, de ferro (vv.173-6).

O poeta não poderia ter sido mais minucioso no que se à ordenação temporal, dando a

impressão de ter alcançado o ápice do processo de ordenação do discurso iniciado no proêmio

da Teogonia, processo este abordado no item 3.2 Hesíodo e as Musas.

A introdução de cada raça é assinalada por numerais ordinais que funcionam como

advérbios de tempo, o que sugere, à primeira vista, uma sucessão em ordem cronológica

linear, em ordem decrescente de valor. O poeta nos dá ainda outras referências temporais: a

raça de ouro viveu no tempo da Cronos 315, que é anterior a Zeus; a raça de bronze, numa

época em que o ferro não existia 316; os heróis formaram a raça que nos precedeu 317; por fim, a

raça de ferro é a que vive agora 318.

As raças de ouro e prata foram criadas pelos olímpicos 319. Zeus criou as raças de bronze

e dos heróis 320. Aceitando-se a autenticidade do verso 173d, Zeus “forjou outra raça de

homens falantes 321”, a quinta, de ferro.

315
Trab. 111. οἳ μὲν ἐπὶ Κρόνου ἦσαν, ὅτ' οὐρανῷ ἐμβασίλευεν·
Era no tempo de Kronos, quando reinava no céu.
316
Trab. 151. χαλκῷ δ' εἰργάζοντο· μέλας δ' οὐκ ἔσκε σίδηρος.
com o bronze trabalhavam, pois não havia negro ferro.
317
Trab. 160. ἡμίθεοι, προτέρη γενεὴ κατ' ἀπείρονα γαῖαν.
semideuses. Precedem a nossa na terra sem fim.
318
Trab. 176. νῦν γὰρ δὴ γένος ἐστὶ σιδήρεον·
pois agora é a raça de ferro:
319
Trab. 109-110. Χρύσεον μὲν πρώτιστα γένος μερόπων ἀνθρώπων/ ἀθάνατοι ποίησαν Ὀλύμπια
δώματ' ἔχοντες.
Primeiro a raça de ouro, de homens falantes/criaram os imortais que habitam olímpias moradas.
127-128. Δεύτερον αὖτε γένος πολὺ χειρότερον μετόπισθεν/ ἀργύρεον ποίησαν Ὀλύμπια δώματ'
ἔχοντες,
166
Quanto ao fim de cada raça, os homens da raça de ouro “morriam como que enlaçados

pelo sono. 322”. Os homens de prata foram escondidos por Zeus encolerizado 323. Já os homens

de bronze “devastaram-se uns aos outros pelas próprias mãos 324”, enquanto os heróis foram,

uns devastados pela guerra, uns em Tebas 325, outros em Tróia 326. Esta menção aos heróis do

ciclo trágico e do ciclo épico mostra que Hesíodo reverencia outros poetas e reforça o nosso

entendimento de que os versos 27 e 28 da Teogonia não podem ser lidos como um ataque aos

poetas gregos.

A raça de ferro ainda está viva, mas sob ela paira uma ameaça: “Zeus findará com esta

raça de homens falantes/ assim que nascerem com brancas melenas 327”.

Quanto ao destino pós-morte de cada raça, os homens de ouro “são anjos por vontade

de Zeus grandioso,/ nobres sobre a terra, guardiões de homens mortais. 328” Os homens de

prata são “chamados subterrâneos bem aventurados pelos mortais,/ secundários, mas ainda

assim, honra os acompanha 329”, o que quer dizer que eles são, de alguma forma, venerados

pelos homens viventes, isto é, os homens da raça de ferro. Os homens de bronze, “desceram à

E uma segunda raça, muito pior, em seguida,/ de prata, criaram os deuses que habitam olímpias
moradas,
320
Trab. 143-144. Ζεὺς δὲ πατὴρ τρίτον ἄλλο γένος μερόπων ἀνθρώπων/χάλκειον ποίησ',
Zeus pai, outra raça – terceira – de homens falantes/ de bronze, fez ...
157-158. αὖτις ἔτ' ἄλλο τέταρτον ἐπὶ χθονὶ πουλυβοτείρῃ/ Ζεὺς Κρονίδης ποίησε.
de novo, outra quarta sobre a terra multinutriz/ Zeus Cronida fez.
321
Trab. 173d. Ζεὺς δ'αὖτ' ἀλλο γένος θῆκεν μερόπων ἀθρώπων
e Zeus forjou outra raça de homens falantes
322
Trab. 116. θνῇσκον δ' ὥσθ' ὕπνῳ δεδμημένοι· ἐσθλὰ δὲ πάντα
Morriam como que enlaçados pelo sono.
323
Trab. 138. Ζεὺς Κρονίδης ἔκρυψε χολούμενος, οὕνεκα τιμὰς
Zeus Cronida, encolerizado, os escondeu.
324
Trab. 152. καὶ τοὶ μὲν χείρεσσιν ὑπὸ σφετέρῃσι δαμέντες
325
Trab. 162-163. τοὺς μὲν ὑφ' ἑπταπύλῳ Θήβῃ, Καδμηίδι γαίῃ,/ ὤλεσε μαρναμένους μήλων ἕνεκ'
Οἰδιπόδαο,
Uns, na Tebas de sete portas, terra de Cadmo,/ devastou, ao combaterem pelos rebanhos de Édipo.
326
Trab. 165. ἐς Τροίην ἀγαγὼν Ἑλένης ἕνεκ' ἠυκόμοιο.
327
Trab. 180-181. Ζεὺς δ' ὀλέσει καὶ τοῦτο γένος μερόπων ἀνθρώπων,/ εὖτ' ἂν γεινόμενοι
πολιοκρόταφοι τελέθωσιν.
328
Trab. 122-123. τοὶ μὲν δαίμονες ἁγνοὶ ἐπιχθόνιοι τελέθουσιν/ ἐσθλοί, ἀλεξίκακοι, φύλακες θνητῶν
ἀνθρώπων,
329
Trab. 141-142. τοὶ μὲν ὑποχθόνιοι μάκαρες θνητοὶ καλέονται, δεύτεροι, ἀλλ' ἔμπης τιμὴ καὶ τοῖσιν
ὀπηδεῖ.
167
casa do frio Plutão,/ anônimos 330”, em outras palavras, foram completamente esquecidos

pelos vivos, que não lembram nem mesmo de seus nomes. Dentre os heróis, “alguns foram

envolvidos com destino de morte 331”, enquanto outros foram levados por Zeus para a Ilha dos

Bem-aventurados 332.

As raças também são apresentadas de modo comparativo. A raça de ouro vivia como os

deuses 333; a raça de prata é bem inferior 334 e em nada parecida com a de ouro 335; a de bronze

não se parece com a de prata 336; a dos heróis é mais justa e mais nobre; por fim, a raça de

ferro parece ser a pior de todas, pois poeta preferia ter morrido antes ou nascido depois 337.

Hesíodo silencia sobre o destino final de sua própria raça – a nossa, caso a ameaça que

sobre ela paira se concretize. Tampouco nos diz se haverá uma sexta, caso Zeus nos

extermine.

A primeira impressão é de que a apresentação das raças é ordenada no tempo e

articulada em termos comparativos que indicam uma ordem decrescente de valor. A descrição

do modo de vida de cada raça dá a impressão de apresentar uma história da humanidade, onde

nenhuma raça é uma forma modificada da precedente. O presente não parece ser resultado do

330
Trab. 153-154. βῆσαν ἐς εὐρώεντα δόμον κρυεροῦ Ἀίδαο,/ νώνυμοι.
331
Trab. 166. ἔνθ' ἦ τοι τοὺς μὲν θανάτου τέλος ἀμφεκάλυψε.
332
Trab. 168-172. τοῖς δὲ δίχ' ἀνθρώπων βίοτον καὶ ἤθε' ὀπάσσας/ Ζεὺς Κρονίδης κατένασσε πατὴρ
ἐς πείρατα γαίης./ καὶ τοὶ μὲν ναίουσιν ἀκηδέα θυμὸν ἔχοντες/ ἐν μακάρων νήσοισι παρ' Ὠκεανὸν
βαθυδίνην,/ ὄλβιοι ἥρωες.
333
Trab.112. ὥστε θεοὶ δ' ἔζωον ἀκηδέα θυμὸν ἔχοντες
Viviam como deuses, tendo o ânimo isento de penas.
334
Trab.127. Δεύτερον αὖτε γένος πολὺ χειρότερον μετόπισθεν
E uma segunda raça, muito pior, em seguida,
335
Trab.129. χρυσέῳ οὔτε φυὴν ἐναλίγκιον οὔτε νόημα·
no porte e na mente desigual à dourada.
336
Trab.144. χάλκειον ποίησ', οὐκ ἀργυρέῳ οὐδὲν ὁμοῖον,
de bronze, criou. Nada parelhos à raça de prata.
337
Trab. 174-176. Μηκέτ' ἔπειτ' ὤφελλον ἐγὼ πέμπτοισι μετεῖναι/ ἀνδράσιν, ἀλλ' ἢ πρόσθε θανεῖν ἢ
ἔπειτα γενέσθαι./ νῦν γὰρ δὴ γένος ἐστὶ σιδήρεον·
Quem dera eu não tivesse nascido na quinta raça,/ mas tivesse antes morrido, ou nascido mais tarde/
pois agora é a raça de ferro.
168
passado: uma vez que cada nova raça só é introduzida após o desaparecimento da anterior, a

sucessão de raças parece ser discreta.

3.3.2. A recepção contemporânea do mito das raças.

Uma vez que este mito é a passagem mais comentada de todo o poema na atualidade e

que muitas interpretações contemporâneas levam em conta a interpretação estruturalista

proposta por Jean-Pierre Vernant 338, nada mais natural que esta seja adotada como ponto de

partida e que se passe em revista algumas das que se a seguem para a construção de uma

interpretação que fundamente os propósitos da presente pesquisa.

Resumidamente, o mito, segundo a interpretação de Vernant, dá conta,

simultaneamente, da separação entre deuses e homens, uma vez que entre estes existem as

raças de ouro, prata, bronze e dos heróis; da compreensão da estratificação da sociedade indo-

européia em três camadas constituintes, cada uma desempenhando uma função própria, a

saber, a função real, a função guerreira e a função produtora 339; e, por fim, dá conta da

instauração da justiça no mundo.

Valendo-se do artifício de dividir a raça de ferro em duas 340, sendo a primeira a do

tempo presente e a segunda a de um futuro mítico e negro onde a injustiça dominará e levará

Zeus a extinção dos homens (vv. 173-201), Vernant propõe que as seis raças sejam agrupadas

em três pares:

A análise minuciosa do mito vem assim confirmar e frisar em todos os


aspectos o esquema que, desde o início, as grandes articulações do texto
pareceram nos impor: não cinco raças se sucedendo cronologicamente

338
Cf. VERNANT, J-P. (1990) p.22-50.
339
Cf. Vernant (1990) pág. 46 e nota 103.
340
Idem, ibidem. pág. 31. “O texto mostra, entretanto, que na realidade não há uma Idade do Ferro,
mas dois tipos de existência humana, rigorosamente opostos, num dos quais se situa Dike, em outro
apenas Hýbris.”
169
segundo uma ordem de decadência mais ou menos progressiva, mas uma
construção com três andares, cada um se dividindo em dois aspectos
complementares. Essa arquitetura que regula o ciclo de idades é também
aquela que preside ao ordenamento da sociedade humana e do divino; o
“passado”, tal como o compõe a estratificação das raças, estrutura-se sob o
modelo de uma hierarquia intemporal de funções de valores. Cada par de
idades acha-se, então, definido, não somente pela sua situação na série (as
duas primeiras, as seguintes, as últimas), mas também por uma qualidade
temporal particular, estreitamente associada ao tipo de atividade que lhe
corresponde. Ouro e prata: são idades de vitalidade totalmente jovem; bronze
e heróis: uma vida adulta, que ignora o jovem e o velho ao mesmo tempo;
ferro: uma existência que se degrada ao longo de um tempo envelhecido e
gasto 341.

Com isto, descreve cada par em função do comportamento que cada uma adota no que
respeita à justiça ou à desmedida. Em outras palavras, de acordo com a transitividade que
cada par apresenta no eixo Díke – Hýbris. Assim sendo, o primeiro par, composto pelas raças
de outro e prata, apresenta uma transição de Díke para Hýbris; o segundo, composto pelas
raças de bronze e a dos heróis, apresenta uma transição de Hýbris para Díke, enquanto o
último, composto pela raça de ferro do presente e a raça do futuro, apresentaria um
deslocamento de Díke para Hýbris 342.

A tabela abaixo tem o propósito de facilitar a visualização da proposta de Vernant.

Pares de raças Transitividade

Ouro-Prata Díke-Hýbris

Bronze-Heróis Hýbris-Díke

Ferro presente-Ferro futuro Díke-Hýbris

341
Idem, ibidem. pág. 44. O itálico visa por em evidência que Vernant atribui uma temporalidade
particular ao mito.
342
Cf. Idem, ibidem. pág. 28-32.
170
Por ser referência, é natural que esta tese suscite críticas e correções. Exatamente a

partir destas, cada um dos estudiosos que serão visitados em seguida construiu sua

interpretação. Passaremos em revista e discutirei algumas destas interpretações, sem a menor

pretensão de exaustão, visando tão somente à conquista de uma compreensão própria desta

enigmática e importantíssima narrativa de Hesíodo.

De um modo geral, estas críticas e correções incidem sobre quatro pontos que, no

entanto, permanecem profundamente interligados.

O primeiro problema é o da temporalidade na sucessão ou acontecimento das raças.

Seria o tempo hesiódico linear, levando à extinção total da raça humana, como sugere

Córdova 343, pautada nos advérbios de tempo e nos numerais empregados para introduzir cada

raça, ou seria um tempo cíclico que prevê a retomada de tempos melhores, como sugere

Vernant, apoiando-se no lamento de Hesíodo, quando este diz que preferia ter morrido antes

ou nascido depois da raça de ferro?

De fato, a partir dos versos 174-176, citados há pouco, parece que qualquer das opções é

um destino melhor do que o negro “agora” da raça de ferro, o que faz supor um tempo

cíclico, já que se por um lado a aparente sequência de queda que acompanha a sucessão das

raças – ainda que interrompida pela raça dos heróis – parece atingir o seu auge com a

destruição final da raça de ferro, por outro, o desejo de nascer depois dá indício de que o

poeta pode pensar na possibilidade de haver um novo ciclo de raças.

O segundo ponto polêmico é o da interrupção da sequência de queda das raças

metálicas, provocada pelo surgimento da raça dos heróis entre a raça de bronze e a raça de

343
Cf. Córdova in Hesíodo (1986) pág. xlvii-liv.
171
ferro 344, que Vernant tenta resolver com o seu esquema de seis raças orientadas no eixo Dike-

Hýbris.

Daí deriva o terceiro problema: se o “agora” da raça de ferro, que ainda é melhor do que

o futuro que o poeta profetiza para esta raça, já é injusto, haja vista a manifestação, por parte

do poeta, do desejo de que nem ele nem seu filho fossem justos, já que, nestes tempos, melhor

parte cabe ao injusto 345, como é possível aceitar a transição de Díke para Hýbris que Vernant

propõe para os dois momentos desta mesma raça, uma vez que a raça à qual pertencemos não

pode ser caracterizada como justa? Por conseguinte, surge a questão; será que esta clivagem é

admissível?

O quarto problema que tem inquietado os pesquisadores diz respeito à sucessão das

raças, se ela se dá de forma discreta ou contínua.

Couloubaritsis 346 coloca o problema da temporalidade como questão crucial para

abordar o mito. Em primeiro lugar, entende que o mito das raças é um mito genealógico,

ainda que esta genealogia não seja apresentada aqui nos moldes de diferentes linhagens de

divindades da Teogonia, mas pela enumeração sucessiva de raças - γένη - distintas, produzidas

- ποίησαν, ποίησε - pelos deuses. Em ambas as ocorrências, o discurso genealógico está

relacionado a uma estrutura hierárquica.

Em segundo lugar, o autor aponta para uma limitação do nosso modo contemporâneo de

pensar. É difícil saber se o homem arcaico acreditava na literalidade de seus mitos. E mesmo

em caso afirmativo, nada garante que o pensamento arcaico não tivesse algum nível de

344
Os estudiosos são unânimes ao considerar que este é um mito de origem oriental e que Hesíodo
inseriu a raça dos heróis na sua recriação do mito.
345
Trab. 270-272. νῦν δὴ ἐγὼ μήτ' αὐτὸς ἐν ἀνθρώποισι δίκαιος/ εἴην μήτ' ἐμὸς υἱός, ἐπεὶ κακὸν
ἄνδρα δίκαιον/ ἔμμεναι, εἰ μείζω γε δίκην ἀδικώτερος ἕξει.
346
Cf. Couloubaritsis (1996) pp. 485-487.
172
consciência da existência de alguma distorção 347 entre aquilo que um mito conta e aquilo que

ele significa.

Dito de outro modo, o discurso genealógico incorpora a “mentira” para dizer a verdade.

Esta distorção é magistralmente explicada por meio de um recurso a Plotino:

Os mitos, se são realmente mitos, devem fracionar no tempo tudo aquilo que
eles trazem para o discurso e separar seres que estão juntos, mas que se
distinguem por sua posição e seu poder, e daí constroem discursos e
gerações dos [seres] não-gerados. E uma vez que eles nos ensinaram da
maneira como eles podem fazê-lo, eles permitem àquele que refletiu reunir
os elementos fracionados.
Δεῖ δὲ τοὺς μύθους, εἴπερ τοῦτο ἔσονται, καὶ μερίζειν χρόνοις ἃ λέγουσι, καὶ
διαιρεῖν ἀπ' ἀλλήλων πολλὰ τῶν ὄντων ὁμοῦ μὲν ὄντα, τάξει δὲ ἢ δυνάμεσι
διεστῶτα, ὅπου καὶ οἱ λόγοι καὶ γενέσεις τῶν ἀγεννήτων ποιοῦσι, καὶ τὰ
ὁμοῦ ὄντα καὶ αὐτοὶ διαιροῦσι, καὶ διδάξαντες ὡς δύνανται τῷ νοήσαντι ἤδη
συγχωροῦσι συναιρεῖν 348.

Em outras palavras, o mito articula o real complexo fracionando-o e submetendo-o a

uma narrativa temporal para manifestar segundo engendramentos sucessivos até mesmo o que

é eterno.

Por isto, Couloubaritsis entende que a abordagem de um mito genealógico deve incluir

diacronia e sincronia. Enquanto a leitura diacrônica põe em relevo a relação de proximidade

entre deuses e homens, com a raça de ouro ocupando a posição de proximidade máxima dos

deuses - ὥστε θεοὶ (v.112.) – e a raça de ferro-futuro ocupando a posição de distanciamento

máximo, por conta da partida para o Olimpo de Αἰδώς e Νέμεσις, de Pudor e Partilha (v.197-

201), a leitura sincrônica mostra que mortais e imortais existem desde sempre.

347
Couloubaritsis retira o termo distorção das técnicas de interpretação alegórica que filósofos
posteriores aplicaram aos mitos. Eles eliminavam aquilo que não estava de acordo com a filosofia
devido às distorções - διαστροφάς - dos poetas. Cf. Couloubaritsis (1996) pág.486.
348
Plotino. Eneada III, 5,9, 24-29.
173
Desta forma, a origem comum entre deuses e homens passa a ser o tempo e se as

afirmações contidas na narrativa de que os deuses ou Zeus fizeram ou fez tal ou tal raça, isto

pode significar uma partilha hierárquica do poder.

Esta partilha pode ser entendida a partir do destino pós-morte dos homens das raças

anteriores. Para tanto, é preciso ter em mente que todos estes mortos transmutados fazem

parte do presente dos homens da raça de ferro, ainda que invisíveis. Os homens da raça de

ouro tornaram-se, por vontade de Zeus, os δαίμονες ἁγνοὶ ἐπιχθόνιοι (v.122.), enquanto os da

raça de prata, ainda que δαίμονες inferiores, recebem honras (vv.141-142). Os homens de

bronze foram para o Hades e lá permanecem anônimos (vv.153-154). Já os heróis receberam

um duplo destino pós-morte: uns permaneceram sob o anonimato que cobriu os homens da

raça de bronze, enquanto outros receberam um destino semelhante à vida dos homens da raça

de ouro. Os homens da raça de ferro não recebem nenhum destino pós-morte e como o seu

futuro parece ser ainda mais terrível do que sua vida presente, o artifício da clivagem desta

raça em presente e futuro proposto por Vernant é aceito por Couloubaritsis.

Para contornar a dificuldade imposta pela interrupção da sequência de queda provocada

pela posição da raça dos heróis entre a raça de bronze e a raça de ferro, sem fugir ao esquema

estrutural e aceitando a clivagem da raça de ferro, Couloubaritsis propõe um ordenamento,

não em três pares, mas em dois trios, sendo o primeiro composto pelas raças de ouro, prata e

bronze e o segundo, composto por heróis, ferro presente e ferro futuro 349, num arranjo que

pode ser percebido com maior facilidade mediante o recurso à tabela abaixo:

Ouro (Díke) Prata (Hýbris) Bronze (Hýbris máxima)

Heróis (Díke) Ferro (Hýbris) Ferro 2 (Hýbris máxima)

349
Cf. Couloubaritsis (1996) p. 495.
174
Isto permite entrever dois ciclos distintos de transitividade direta de Díke para Hýbris,

atenuando assim a aparente interrupção da queda introduzida pela raça dos heróis, já que por

meio deste ordenamento pode-se ainda estabelecer um paralelo entre estes dois trios no que

respeita o eixo Díke – Hýbris. A posição que a raça de ouro ocupa no primeiro ciclo é

ocupada pela raça dos heróis no segundo e tanto a raça de ouro quanto a raça dos heróis são a

expressão da Díke, ainda que a raça dos heróis seja inferior à de ouro; em seguida,

respectivamente em cada ciclo de três raças, vêm as raças de prata e ferro, que correspondem

a um estágio inicial de Hýbris; por último, bronze, no primeiro trio e ferro futuro, no segundo,

podem ser vistos como expressão da Hýbris guerreira, da violência em estado puro, que já

determinou o desaparecimento da raça de bronze e será a causa da destruição final do homem,

desencadeando, talvez, um novo ciclo, acatando assim a concepção de uma temporalidade

cíclica herdada de Vernant 350.

No que diz respeito à sucessão discreta ou contínua das raças, Couloubaritsis entende

que há uma acentuada distância entre as duas primeiras raças e as demais. Sem entrar no

mérito de se há ou não alguma continuidade entre as raças de ouro e de prata, ressalta,

pautado no verso 144, “de bronze fez, nada parelhos à raça de prata.” (χάλκειον ποίησ', οὐκ

ἀργυρέῳ οὐδὲν ὁμοῖον), que entre prata e bronze não há nenhuma semelhança. Ainda que

ambas exibam comportamentos desmedidos, estão em planos hierárquicos diferentes.

Daí em diante, entende o autor, a distância entre as raças tende a diminuir. A

continuidade entre as raças de bronze e heróis é garantida pelo verso 158, “Zeus Cronida fez,

mais justa e mais nobre.” (Ζεὺς Κρονίδης ποίησε, δικαιότερον καὶ ἄρειον). Ao dizer que os

heróis são mais justos e mais nobres do que a raça anterior, Hesíodo teria admitido alguma

350
Cf. Couloubaritsis (1996) p. 502.
175
justiça e nobreza aos homens de bronze. A referência à raça de ferro dois versos adiante,

“semideuses. Precedem a nossa na terra sem fim” (ἡμίθεοι, προτέρη γενεὴ κατ' ἀπείρονα γαῖαν),

contribui para encurtar a distância entree as raças e torná-las, de algum modo, semelhantes.

Mas ao dizer que a raça dos heróis é apenas a raça que antecedeu a nossa, Couloubaritsis

ignorou a presença de ἡμίθεοι abrindo o verso, o que, a meu ver, marca uma distância que não

pode ser desprezada, tanto em relação à raça de bronze, quanto à de ferro, ainda que a ideia de

continuidade entre as raças soe interessante: Hesíodo menciona três raças num intervalo de

quatro versos, coisa que não faz em nenhum outro momento da narrativa.

Clay 351 rejeita a divisão da raça de ferro em ferro presente e ferro futuro. Por outro lado,

acata a lição de Vernant quanto à discussão sobre a relação Díke – Hýbris. Mantendo o

número de raças em cinco, ela chama atenção para o fato, bastante ignorado entre os

contemporâneos, da raça de bronze ocupar a posição central na estrutura do mito, numa

manobra que minimiza o problema da interrupção da queda:

Ouro Prata Bronze Heróis Ferro

Clay justifica sua posição argumentando que a criação dos homens, primeiro pelos

deuses, na primeira e na segunda raça e depois somente por Zeus, deve atender a algum

propósito. Neste sentido, a raça de bronze foi a primeira raça feita por Zeus e somos muito

mais próximos desta raça do que pensamos, na medida em que “é a primeira raça a sofrer a

morte anônima na casa de Hades (...) e partilha conosco este caráter específico da

mortalidade humana. 352”, o que leva a crer que para ela, a sucessão é contínua. Além do

mais, a raça de bronze permite articular a Teogonia com os Trabalhos e os Dias, na medida

351
Cf. Clay (2003) p.81-100.
352
Clay. (2003) pag. 91.
176
em que há uma espantosa semelhança entre os homens da raça de bronze, que “vieram do

freixo, terrível e forte 353” e os Gigantes, a quem as Musas devem cantar juntamente com a

raça dos homens 354. Os versos 185-187 355, onde os Gigantes são apresentados de uma forma

que evoca os ferozes homens de bronze, também autorizam Clay a supor que a raça humana

surgiu de uma união entre as Ninfas e os Gigantes.

A partir daí, Clay tenta articular a origem dos homens descrita no mito das raças com a

origem dos homens apresentada na Teogonia, sem levar em conta o verso 108 de Os

trabalhos e os dias, que assegura que deuses e homens têm a mesma origem. Neste ponto,

afastamo-nos dela, entendendo que o mito das raças não trata da origem dos homens, questão

já respondida pelo verso citado. O mito tratará então da origem de outra coisa.

Entretanto, no que respeita Díke, Clay sustenta que esta não encontra espaço na era de

ouro. Uma vez que a abundância imperava, não havia necessidade de trabalho, nem de

propriedade privada e nem de competição pelo sustento, seja pela via da boa ou da má Éris.

Por conseguinte, não havia nenhuma necessidade de Díke. Seguindo este raciocínio temos que

no proêmio de Os trabalhos e os dias, Hesíodo conclama Zeus a corrigir as sentenças com

Díke (v.9. δίκῃ δ' ἴθυνε θέμιστας). Em uma palavra, Díke é corretiva e isto pressupõe uma

quebra na ordem, algo inexistente na era do ouro.

A este respeito, já tinhamos tentado, em trabalho anterior, contornar este problema que

também toca a questão da temporalidade, já que a era de ouro viveu no tempo de Cronos, e

não no Cosmos de Zeus. Dissemos então: “independente de sincronia ou diacronia, há que se

353
Trab. 145. ἐκ μελιᾶν, δεινόν τε καὶ ὄβριμον·
354
Teog.50-51. αὖτις δ' ἀνθρώπων τε γένος κρατερῶν τε Γιγάντων/ ὑμνεῦσαι.
e ainda o ser de homens e poderosos Gigantes/ hineando.
355
Teog.185-187. γείνατ' Ἐρινῦς τε κρατερὰς μεγάλους τε Γίγαντας,/ τεύχεσι λαμπομένους, δολίχ'
ἔγχεα χερσὶν ἔχοντας,/ Νύμφας θ' ἃς Μελίας καλέουσ' ἐπ' ἀπείρονα γαῖαν.
[Terra]... gerou as Erínias duras, os grandes Gigantes/ rútilos nas armas com longas lanças nas mãos/ e
Ninfas chamadas Freixos sobre a terra infinita.
177
considerar a vigência de duas ordens distintas no mundo, a de Cronos e a de Zeus, e, a partir

daí, nos perguntarmos se falar em Dike sob a vigência de Cronos não parecerá fora de

propósito. 356”. Neste trabalho, apontamos para o problema: o fato da Justiça só se manifestar

em face de uma quebra da ordem. Por isso, Hesíodo apresenta-a vestida de ar. Díke é

invisível, isto é, é inalcançável na sua totalidade, só se dando a conhecer pontualmente.

Ao rejeitar a cisão da raça de ferro, Clay rejeita também a concepção cíclica do tempo

mítico sustentada por Vernant e Couloubaritsis, argumentando que esta visão solapa por

completo o caráter parenético do mito: “Por que preocupar-se se dias melhores virão? 357”

Aqui encerramos nossos comentários sobre a posição de Clay, com relação ao mito das

raças. Antes de estudarmos o pensamento do último comentador convocado para a discussão,

convém apresentar nosso entendimento sobre o que, efetivamente, é posto em jogo na

narrativa do mito das raças. E nosso olhar se volta para a hýbris.

O único verbo que ocorre no presente do indicativo ativo em toda a apresentação da

raça de ferro é o verbo ser, no verso 176: νῦν γὰρ δὴ γένος ἐστὶ σιδήρεον· (“Pois agora é a raça

de ferro.”). Todos os demais ocorrem no futuro, salvo o verbo μείγνυμι, que ocorre no futuro

do perfeito: ἀλλ' ἔμπης καὶ τοῖσι μεμείξεται ἐσθλὰ κακοῖσιν (Trab.179. “ainda assim, para eles

bens estarão mesclados aos males”), o que mostra que o estabelecimento dos males entre os

homens é uma condição que se dá desde o princípio, conforme Hesíodo anunciou na única

menção a Epimeteu na Teogonia: “que foi um mal dês o começo - ἐξ ἀρχῆς - aos homens

come-pão, 358”, e reforçou ao fim da versão de Prometeu em Os trabalhos e os dias, com outro

verbo no perfeito, ou seja, o resultado presente de algo que se deu no passado: ἄλλα δὲ μυρία

λυγρὰ κατ' ἀνθρώπους ἀλάληται· (Trab. 100. “Dez mil pesares já estão lançados aos homens.”). Os

356
Mantovaneli (2007) pag.10.
357
Clay (2003) pag. 85.
358
Teog. 512. ὃς κακὸν ἐξ ἀρχῆς γένετ' ἀνδράσιν ἀλφηστῇσι·
178
bens só surgem no verso 609 da Teogonia, ainda assim, condicionados ao casamento e à boa

esposa. Em suma, os males extrínsecos fazem parte da condição humana desde sempre, desde

os versos 50-51 da Teogonia, que colocam os homens ao lado dos Gigantes, no início do

processo cosmogônico.

Por outro lado, há o mal intrínseco, a hýbris. Esta surge na raça de prata 359 e, nesta raça,

restringe-se ao desrespeito para com o semelhante e a recusa ao sacrifício aos deuses. Ainda

que a palavra hýbris não figure na apresentação da raça de bronze, ela está indubitavelmente

presente lá, mudando apenas sua manifestação, assumindo o caráter de violência física

desmedida.

Ora, estas manifestações particulares da hýbris não são exclusividade de cada raça, mas

ao contrário, estão incorporadas desde sempre na vida humana. Os heróis não estavam livres

dela. Embora Hesíodo não fale de uma hýbris heróica, ele decerto a conhecia muito bem, haja

vista as menções que ele faz aos ciclos tebano e troiano. Talvez mesmo o duplo destino pós-

morte que ele reservou aos heróis, mandando uns para a Ilha dos Bem-Aventurados e outros

para a morte comum dos homens de bronze e de ferro seja um reconhecimento da presença da

hýbris nesta raça.

Mais uma palavra acerca de hýbris. Esta não é uma deusa como Díke, Aidôs e Nêmesis.

Tampouco se assemelha aos filhos e netos da Noite - aflições que só afetam aos homens -

igualmente divinos. Também não é uma hipostasia como Elpís. Hýbris é humana,

essencialmente humana, eternamente humana e sempre dentro do homem. Por isso, por estar

dentro, o poeta não a personificou de nenhuma forma, pois isto lhe daria um aspecto externo.

Por isso Zeus deu Díke aos homens e a mais ninguém, nem aos deuses nem às bestas.

359
Trab. v.134. ἀφραδίῃς· ὕβριν γὰρ ἀτάσθαλον οὐκ ἐδύναντο.
179
Díke, não a palavra, é certo, mas o radical, faz sua primeira aparição, no mito das raças,

exatamente na apresentação dos heróis:

Zeus Cronida criou, mais justa e mais nobre,

raça divina de homens heróis. São chamados

semideuses. Precedem a nossa na terra sem fim. 160

Ζεὺς Κρονίδης ποίησε, δικαιότερον καὶ ἄρειον,

ἀνδρῶν ἡρώων θεῖον γένος, οἳ καλέονται

ἡμίθεοι. προτέρη γενεὴ κατ' ἀπείρονα γαῖαν. 160

Este é o momento em que os deuses começam a se retirar do convívio dos mortais. Clay

entende que há continuidade entre a raça dos heróis e a raça de ferro. Apenas, por conta do

retraimento dos deuses, o sangue divino vai se diluindo 360. De fato, os heróis participam do

divino em níveis distintos. Aquiles é filho de uma deusa com um mortal. Ulisses é filho de

Laerte, que é filho de Autólico, que é filho de Hermes. Heitor é praticamente um homem

comum, mas assemelha-se aos deuses por seus atos.

Díke é o presente de Zeus aos homens no momento de sua retirada. É o norte invisível

da ação humana para contrabalançar a hýbris que está totalmente presente na raça de ferro: os

versos 182-186 dão, no seio da apresentação da raça de ferro, uma descrição acurada do

comportamento que os homens de prata tinham entre si: “e pai não se assemelhar aos filhos,

nem filhos ao pai,/nem hóspede ao hospedeiro, nem/ camarada ao companheiro,/nem o irmão

for mais amigo, como sempre tem sido./ Virá, tão logo envelheçam, o desrespeito dos

filhos,/lançando censuras com duras palavras. 361”. O verso 187 mostra o descaso com os

360
Cf. Clay (2003) pag. 91.
Trab. 182-188. οὐδὲ πατὴρ παίδεσσιν ὁμοίιος οὐδέ τι παῖδες/ οὐδὲ ξεῖνος ξεινοδόκῳ καὶ ἑταῖρος
361

ἑταίρῳ,/ οὐδὲ κασίγνητος φίλος ἔσσεται, ὡς τὸ πάρος περ./ αἶψα δὲ γηράσκοντας ἀτιμήσουσι
τοκῆας/·μέμψονται δ' ἄρα τοὺς χαλεποῖς βάζοντες ἔπεσσι.
180
deuses, igualmente presente na raça de prata: “Não vêem o olho dos deuses 362”. Já os versos

189 e 192, “é a força do braço: um saqueará a cidade do outro.” e “É a lei do mais forte e

pudor/ não haverá. 363”, retratam a hýbris do homem de bronze, igualmente espelhada na raça

de ferro. Em suma, não há nada de novo, o homem sempre foi e é assim. Se não guardar a

justiça, a ruína é certa. Hesíodo não faz nenhuma profecia, apenas expõe sua sabedoria.

Com isto, passamos a investigar a contribuição de Carrière, que se destacará, sobretudo,

por nos ajudar a compreender a assimilação de alguns heróis aos homens da raça de ouro.

Para este, a questão central do mito é a polaridade máxima entre as raças de ouro e a de

ferro futuro, acatando, à primeira vista, o esquema de Vernant. “As demais raças servem para

intermediar estas posições, mostrando como as diferenças entre ambas foram constituídas e

como e em que medida elas podem se reaproximar. 364”

Entretanto, sua adesão a Vernant já começa a se tornar problemática a partir de sua

análise da raça de ouro , quando diz que nesta não há traços de uma sociedade organizada,

logo, não há moral 365. Os frutos abundantes, o mel fornecido pelas abelhas e as ovelhas

lanosas são mais dádivas espontâneas da natureza 366 do que produtos do trabalho agrícola.

Por outro lado, entende que é possível identificar aspectos de Díke começando a serem

delineados, através do destino pósmorte destes homens, na medida em que são convertidos em

“distribuidores de riquezas 367”. Pelo seu outro atributo, o de “guardiães de homens

362
Trab. 187. σχέτλιοι, οὐδὲ θεῶν ὄπιν εἰδότες· οὐδέ κεν οἵ γε.
363
Trab. 189. χειροδίκαι· ἕτερος δ' ἑτέρου πόλιν ἐξαλαπάξει· e Trab.192. δίκη δ' ἐν χερσί·
364
Carrière (1987) pag. 316.
365
Cf. Carrière (1987) pag. 170-176.
366
Trab. 117-118. καρπὸν δ' ἔφερε ζείδωρος ἄρουρα/ αὐτομάτη πολλόν τε καὶ ἄφθονον.
A terra farta dava fruto/ espontânea, muito e sempre.
367
Trab. 126. πλουτοδόται· καὶ τοῦτο γέρας βασιλήιον ἔσχον. Já estão assimilados à função real. A
tarefa judiciária e distributiva de riquezas é a mesma que os reis terrestres devem cumprir, mas os reis
de Hesíodo são comedores de presentes.
181
mortais 368”, estão bem próximos das noções abstratas que o poeta personifica como Aidôs e

Dike. Ambas vestem-se de ar, trazendo na invisibilidade a marca da abstração. Todas estas

deusas são, no fundo, atributos de Zeus. Na teologia hesiódica, Zeus domina o sistema

político e moral.

Carrière também entende que é com a raça de prata que surge o primeiro traço de

moralidade: a longa permanência ao lado da mãe – sem nehuma referência à figura do pai –

os impede de amadurecer 369, mas não percebe que a articulação Díke - Hýbris que Vernant

atribui ao par formado pelas raças de ouro e prata é problemática. Se, segundo suas próprias

palavras, não há traços de uma sociedade organizada nem moral na raça de ouro, não há Díke.

Esta, necessita de algo anterior a ela mesma para que possa se manifestar, necessita da Hýbris,

que faz, como já vimos, aqui na raça de prata, a sua primeira aparição, manifestando-se como

um desrespeito ao outro e aos imortais. A transição de Díke para Hýbris entrevista por

Vernant a partir desta raça é impossível.

Em outras palavras, surgem, juntas a recusa de prestar culto aos deuses, condição que já

tinha sido estabelecida no mito de Prometeu, e a violência contra o próximo, que se manifesta,

neste primeiro momento, pela falta do respeito ao outro, condição precípua para a vida em

comum.

Carrière, tal como Clay, vê semelhança entre os homens da raça de bronze e os gigantes,

mas entende que a única semelhança entre estes é temática. Os homens de bronze são

caracterizados pela violência selvagem e desordenada. Combatem individualmente e sem

causa definida. Uma vez que não formam um exército, não se pode dizer que se dedicam à

guerra. Sua violência os levava necessariamente à morte, de forma que Zeus nem ao menos se

368
Trab. 122. ἐσθλοί, ἀλεξίκακοι, φύλακες θνητῶν ἀνθρώπων,
369
Trab. 130-131. ἀλλ’ ἑκατὸν μὲν παῖς ἔτεα παρὰ μητέρι κεδνῇ/ ἐτρέφετ’ ἀτάλλων, μέγα νήπιος, ᾧ
ἐνὶ οἴκῳ·
Por cem anos o filho ficava ao lado da mãe digna crescia brincando – grande néscio – dentro de casa.
182
deu ao trabalho de extingui-los: seu fim foi o do extermínio recíproco e eles desceram

anônimos para o Hades.

Por outro lado, entende que Hesíodo já começa, a partir daqui, a construir sua crítica aos

valores guerreiros da ética homérica. A guerra é o campo das atividades mais selvagens. Visto

deste modo, o destino pósmorte desta raça parece ser um reforço a esta crítica, projetando a

sombria possibilidade de um destino semelhante para as raças vindouras 370.

Se os homens da raça de prata podem ser considerados imaturos devido à ausência da

figura paterna, os da raça de bronze podem muito bem ter a sua violência atribuída à ausência

da mãe. De fato, não há nenhuma referência à presença nem da mãe nem de nehuma outra

mulher na apresentação desta raça.

De qualquer forma, o conjunto das raças de prata e de bronze dá conta de todo o

espectro da hýbris humana, que se manifesta pelo desrespeito aos deuses, pelo desrespeito ao

semelhante e pela violência física que beira a bestialidade 371. As raças subsequentes estarão

marcadas para sempre pela hýbris. Vista por este prisma, a grande distância entre as raças de

prata e de bronze preconizada por Couloubaritsis parece ficar diminuída.

Entretanto a raça de bronze é apresentada em clara ruptura com relação à raça de prata –

são “nada parelhos à raça de prata. 372”. Por outro lado, seu vínculo com os heróis é bem

nítido: o herói “é mais justo e mais nobre 373” que os homens da raça de bronze. Isto quer

dizer que há uma comparação possível. Há uma identidade que viabiliza a diferença. A

370
Carrière (1987) pag.203.
371
Hesíodo retornará a esta questão alguns versos a frente, em 274-278, reforçando a necessidade de
regulação da conduta humana pela Justiça. Nesta passagem, o eco da vida dos homens da raça de
bronze é visível, na medida em que as bestas tem destino semelhante, aniquilando-se uns aos outros:
Ὦ Πέρση, σὺ δὲ ταῦτα μετὰ φρεσὶ βάλλεο σῇσι/ καί νυ Δίκης ἐπάκουε, βίης δ’ ἐπιλήθεο
πάμπαν./τόνδε γὰρ ἀνθρώποισι νόμον διέταξε Κρονίων,/ ἰχθύσι μὲν καὶ θηρσὶ καὶ οἰωνοῖς
πετεηνοῖς/ἔσθειν ἀλλήλους, ἐπεὶ οὐ Δίκη ἐστὶ μετ’ αὐτοῖς·
Ó Perses, tu, então, guarda isto na mente:/ escuta a Justiça e esquece a desmedida de vez!/ Pois o
Cronida dispôs aos homens a lei./ Aos peixes, às feras e às aves aladas,/ que se devorem. Justiça não
há entre eles.
372
Trab. 144. οὐκ ἀργυρέῳ οὐδὲν ὁμοῖον.
373
Trab. 158. Ζεὺς Κρονίδης ποίησε, δικαιότερον καὶ ἄρειον.
183
identidade em questão é a violência física, que na quarta raça se manifesta através da guerra,

mas esta pressupõe uma organização social ausente na raça de bronze.

Esta organização social está manifesta através dos nomes das citades citadas, Tebas e

Tróia, nos versos 162 e 165, respectivamente. Na apresentação desta raça aparecem os únicos

nomes próprios em toda a narrativa, os de Cadmo, Édipo e Helena, também uma clara

oposição aos homens da raça de bronze, explicitamente anônimos 374.

Além do mais, as guerras de Tebas e de Tróia tiveram motivações sociais, os rebanhos

de Édipo para a primeira e o rapto de Helena para a segunda. Ambas foram empreendidas

visando uma reparação a uma violência sofrida. Os heróis não se batem gratuitamente como

os homens da raça de bronze.

Os heróis são também, ao mesmo tempo e no mesmo verso, semideuses e a raça que nos

precedeu 375, isto é, Hesíodo é bastante cuidadoso ao apontar que esta raça está a meio

caminho entre nós e os deuses.

Entretanto, não havia ainda entre eles o sentido de coletividade integrada a um corpo

social. Para usar a expressão de Carrière, “ainda não eram os guerreiros de Atena 376”. Para

usar a visão de Platão, ainda não estavam dispostos a dar suas vidas em holocausto pela

sobrevida pacífica da cidade da República. A sede de glória os ofuscava e os impedia de

construir relações sociais mais profundas.

Apesar disto, os heróis eram o modelo cultural que Hesíodo dispunha para apresentar

aos gregos sua concepção de vida moral justa. Para conseguir seu intento, o poeta foi de uma

simplicidade surpreendente: introduziu uma divisão no seio desta raça, reservando para uns

um destino de morte semelhante ao fim dos homens de bronze 377 e para outros, uma vida livre

de cuidados na Ilha dos Bem-Aventurados. É importante assinalar: esta vida que os heróis que

374
Trab. 154. νώνυμνοι·
375
Trab. 165. ἡμίθεοι, προτέρη γενεὴ κατ’ ἀπείρονα γαῖαν.
376
Carriére (1987) pag.221.
377
Trab. 162-164.
184
foram levados para a Ilha dos Bem-Aventurados levam é muito próxima ou talvez igual

àquela que os homens da raça de ouro levavam.

Os verdadeiros heróis hesiódicos não são brutos que mais se assemelham aos homens de

bronze. São imortais que vivem num paraíso de fertilidade. Graças a Zeus, tornam-se os

grandes proprietários das terras férteis do outro mundo. Carrière vê aqui a integração perfeita

das três funções contidas nas sociedades indo-européias: são, ao mesmo tempo, tempo reis,

guerreiros e agircultores. Num momento onde a pólis está em vias de se organizar, Hesíodo

inscreve dentro da história mítica uma metamorfose iniciática da função guerreira. À medida

que as transformações sócio-econômicas da pólis tornavam caduco e imoral o sistema de

ataques e saques que constituíam o exercício habitual da função guerreira, onde também os

nobres perdiam o monopólio da guerra com o advento das falanges hoplitas, era cada vez

mais necessário fundar novas bases de hierarquização social em conformidade com a lição da

boa Éris 378. O guerreiro metamorfoseado deverá também assumir a função de criador de

justiça, pois é daí que resulta a fertilidade da terra e a prosperidade de toda a coletividade,

conforme mostram em conjunto a passagem dos Reis e Poetas, na Teogonia, e o díptico das

duas cidades 379, em Os trabalhos e os dias, onde figura um verso excepcional, que descreve a

cidade justa na sua relação de dependência da atividade humana para com a lei de Zeus: para

estes a cidade germina e nela o povo floresce. (τοῖσι τέθηλε πόλις, λαοὶ δ' ἀνθεῦσιν ἐν αὐτῇ·) 380.

Mas cabe ainda perguntar, já que ele não os nomeou, quem eram estes heróis que

Hesíodo salvou, enviando-os para as Ilhas dos Bem Aventurados. É quase certo que os gregos

o sabiam tão bem que foi desnecessário nomeá-los, mas para nós, só resta especular.

Se Hesíodo constrói sua crítica aos valores guerreiros da ética homérica a partir de

própria formulação épica, ele precisa buscar dentro daquele acervo de heróis alguns que

378
Cf. Carriére (1987) pag. 254.
379
Cf. Trab. 222-247.
380
Trab. 227.
185
possam se conformar ao seu intento. Ele precisa, portanto, buscar heróis que tenham

sobrevivido à guerra, suprema expressão da èris má, como veremos mais adiante, para inseri-

lo no seio da cidade pacífica, onde germinam as condições para o florescimento do povo.

Neste sentido, Príamo e Heitor poderiam ter sido bons nomes, homens justos e amados

por seu povo, mas tiveram seu destino de morte em Tróia. Aquiles aparece como a negação

máxima do ideal hesiódico, pois, além do destino de morte, escolheu a guerra para eternizar

seu nome.

Carrière nos acena com a possibilidade de Menelau, a partir dos versos Od.4.563-

567 381, onde é dito Menelau não receberá o destino de morte em Argos, mas antes, será

levado pelos imortais para os Campos Elísios. Nestor, evocado por Laks 382 por conta da sua

palavra apaziguadora, pode ser outro nome que nos permita entender um pouco melhor o que

está em jogo. Do mesmo modo, Odisseu era amado pelos habitantes de Ítaca e sua ausência

propiciou a instalação dos excessos dos pretendentes. Mas Hesíodo parece dar um passo além:

negando-se a nomear os heróis que foram levados para as Ilhas dos Bem Aventurados,

qualquer homem habitante da cidade pacífica pode passar a aspirar por este status de novo

Aquiles, conforme a expressão usada por Rousseau 383 para referir-se ao novo modelo de

homem segundo os ensinamentos de Hesíodo.

O que surge daí é a percepção de que a promulgação das retas sentenças e a distribuição

equitativa de bens conquistados sem o recurso à violência são o meio de aceder a um modo de

vida que se assemelha ao da vida da raça de ouro.

381
Od.4.563-567. σοὶ δ' οὐ θέσφατόν ἐστι, διοτρεφὲς ὦ Μενέλαε,/ Ἄργει ἐν ἱπποβότῳ θανέειν καὶ
πότμον ἐπισπεῖν,/ ἀλλά σ' ἐς Ἠλύσιον πεδίον καὶ πείρατα γαίης/ ἀθάνατοι πέμψουσιν, ὅθι ξανθὸς
Ῥαδάμανθυς,/ τῇ περ ῥηΐστη βιοτὴ πέλει ἀνθρώποισιν·
Quanto a ti, Menelau, prole de Zeus, os deuses/decidem que não cumpras teu destino em Argos/
nutriente de cavalos: aos confins do plaino/ Elísia, onde Radamanto, o louro está,/ te enviam os
numes. O homem vive fácil lá.
382
Cf. Laks (1996) pág. 84.
383
Cf. Rousseau (1996) pág.125.
186
Se compararmos os versos 172, 173 e 173a, “Felizes heróis! Para eles doces frutos,

espontâneos/dão os brotos da terra, três vezes ao ano./longe dos imortais. Para eles Cronos é

rei 384”, que descrevem os heróis bem aventurados, com os versos 111 e 112, alusivos à raça

de ouro - “Era no tempo de Cronos, quando reinava no céu./ Viviam como deuses, com ânimo

isento de penas. 385”; e ainda com os versos 117 a 119 - “A terra farta dava fruto/ espontânea,

muito e sempre. E eles, contentes/ tranqüilos, partilhavam os bens, que eram muitos 386”, que

também descrevem a vida dos homens da raça de ouro, a semelhança fica posta em evidência.

Curiosamente, imediatamente após aproximar a vida de alguns heróis à vida dos

homens da raça de ouro, Hesíodo lança o lamento que introduz a apresentação da raça de

ferro, a raça à qual tanto ele quanto nós pertencemos: “Quem dera eu não tivesse nascido na

quinta raça,/mas tivesse antes morrido, ou nascido mais tarde/pois agora é a raça de

ferro: 387”. À primeira vista, parece que a situação desta raça é irremediável, sobretudo

quando se pensa que a apresentação de raça de ferro se encerra com os versos 200 e 201: “Só

restarão tristes pesares/ aos homens mortais. Contra o mal, não haverá defesa. 388” De fato, o

verso 202 nos leva a crer que Hesíodo mudou de assunto: “Conto, agora, um conto aos reis,

embora já o saibam: 389.

Acontece que o poeta não abandona mais a raça de ferro. Daí até o final do poema, ele

trata sempre das coisas desta raça. É para ela que ele endereça seus conselhos. E no final do

poema lemos: “Feliz e abastado é aquele que todo este saber/ sabendo, trabalha isento

perante os imortais,/consultando as aves e evitando exageros.”.

384
Trab. 172, 173, 173ª. ὄλβιοι ἥρωες, τοῖσιν μελιηδέα καρπὸν/ τρὶς ἔτεος θάλλοντα φέρει ζείδωρος
ἄρουρα./ τηλοῦ ἀπ᾽ ἀθανάτων: τοῖσιν Κρόνος ἐμβασιλεύει.
385
Trab. 111-112. οἳ μὲν ἐπὶ Κρόνου ἦσαν, ὅτ' οὐρανῷ ἐμβασίλευεν· ὥστε θεοὶ δ' ἔζωον ἀκηδέα θυμὸν
ἔχοντες.
386
Trab. 117-119. τοῖσιν ἔην· καρπὸν δ’ ἔφερε ζείδωρος ἄρουρα/ αὐτομάτη πολλόν τε καὶ ἄφθονον·
οἳ δ’ ἐθελημοὶ/ ἥσυχοι ἔργ’ ἐνέμοντο σὺν ἐσθλοῖσιν πολέεσσιν.
387
Trab. 174-176. Μηκέτ’ ἔπειτ’ ὤφελλον ἐγὼ πέμπτοισι μετεῖναι/ ἀνδράσιν, ἀλλ’ ἢ πρόσθε θανεῖν ἢ
ἔπειτα γενέσθαι. / νῦν γὰρ δὴ γένος ἐστὶ σιδήρεον·
388
Trab. 200-201. τὰ δὲ λείψεται ἄλγεα λυγρὰ/ θνητοῖς ἀνθρώποισι· κακοῦ δ' οὐκ ἔσσεται ἀλκή.
389
Trab. 202. Νῦν δ' αἶνον βασιλεῦσιν ἐρέω φρονέουσι καὶ αὐτοῖς·
187
Isto mostra claramente que Hesíodo vê a possibilidade de uma vida feliz dentro dos

limites impostos pelos deuses aos homens. Para usar a expressão de Carrière, é possível

reaproximar os polos maximamente opostos do mito das raças, a raça de ouro e o futuro da

raça de ferro 390. Esta aproximação é possível no texto de Hesíodo, mas ela passa

obrigatoriamente por um momento específico da raça dos heróis.

Vamos aos textos, partindo da raça de ferro (v.826-827), passando pela raça dos heróis

(v.170-172), para recuperarmos a idade do ouro (v.112).

Feliz e abastado é aquele que todo este saber


sabendo, trabalha isento perante os imortais, 825
consultando as aves e evitando exageros.
τάων εὐδαίμων τε καὶ ὄλβιος ὃς τάδε πάντα
εἰδὼς ἐργάζηται ἀναίτιος ἀθανάτοισιν, 825
ὄρνιθας κρίνων καὶ ὑπερβασίας ἀλεείνων.

Onde habitam, com ânimo isento de penas, 170


as Ilhas dos Bem Aventurados, além do Oceano profundo.
Felizes heróis! Para eles doces frutos espontâneos,
καὶ τοὶ μὲν ναίουσιν ἀκηδέα θυμὸν ἔχοντες 170
ἐν μακάρων νήσοισι παρ' Ὠκεανὸν βαθυδίνην,
ὄλβιοι ἥρωες, τοῖσιν μελιηδέα καρπὸν

Viviam como deuses, com o ânimo isento de penas. 112


ὥστε θεοὶ δ' ἔζωον ἀκηδέα θυμὸν ἔχοντες.

O adjetivo εὐδαίμων, que Hesíodo emprega no verso 826 para designar o homem que

segue seus conselhos, é muito próximo semânticamente de μακάρων que no verso 171

qualifica a ilha, a Ilha dos Bem-Aventurados, para onde os heróis. O adjetivo ὄλβιος é atribuído

tanto ao homem da raça de ferro bem educado (εὐδαίμων τε καὶ ὄλβιος ὃς τάδε πάντα) quanto aos

felizes heróis (ὄλβιοι ἥρωες). Se o adjetivo recebeu duas traduções (abastado e feliz) é porque

390
Cf. Carrière (1987) pag. 316.
188
ele, de fato, as comporta, designando a um só tempo as condições materiais necessárias para

se levar uma vida confortável e o estado anímico que estas condições ajudam a produzir.

Segundo Hesíodo, vale ressaltar, a felicidade não se reduz a isto. Tudo isto, por sua vez,

remete a ὥστε θεοὶ, que descreve o modo de vida dos homens da raça de ouro no verso 112. A

fórmula ἀκηδέα θυμὸν ἔχοντες (v. 112 e 171) equipara o modo de vida dos heróis que foram

levados para as Ilhas dos Bem Aventurados à vida dos homens da raça de ouro. Estes vivem

como deuses (ὥστε θεοὶ). Desta forma, mirando o modelo mais próximo, a raça dos heróis,

que precede a nossa na terra sem fim (v.160), o homem da raça de ferro pode alcançar a Idade

do Ouro e mesmo transcendê-la (ὥστε θεοὶ). É certo este homem não leva esta vida boa

(ἀκηδέα θυμὸν ἔχοντες) daqueles heróis e dos homens da raça de ouro, mas ele pode

aproximar-se dela trabalhando (ἐργάζηται) pautado num saber (πάντα εἰδὼς) e subordinando-se

aos deuses, isto é, mantendo-se isento perante os imortais (ἀναίτιος ἀθανάτοισιν), conforme o

disposto no verso 825.

Evitar exageros (ὑπερβασίας ἀλεείνων, v.826) parece ser um eufemismo para a hýbris, o

mal interno, do qual o homem deve se resguardar acima de tudo. A este respeito, devemos

retornar à questão do herói como modelo para a raça de ferro, pois esta raça remete o homem

da raça de ferro tanto à raça de ouro quanto à raça de bronze e também à de prata:

Depois que ocultou esta raça debaixo da terra, 150

De novo, outra, quarta, sobre a terra multinutriz

Zeus Cronida criou, mais justa e mais nobre,

raça divina de homens heróis. São chamados

semideuses. Precedem a nossa na terra sem fim. 160

Αὐτὰρ ἐπεὶ καὶ τοῦτο γένος κατὰ γαῖα κάλυψεν, 150

αὖτις ἔτ' ἄλλο τέταρτον ἐπὶ χθονὶ πουλυβοτείρῃ

Ζεὺς Κρονίδης ποίησε, δικαιότερον καὶ ἄρειον,

189
ἀνδρῶν ἡρώων θεῖον γένος, οἳ καλέονται

ἡμίθεοι. προτέρη γενεὴ κατ' ἀπείρονα γαῖαν. 160

Hesíodo lista três raças no espaço de cinco versos, algo único neste mito e que parece

apontar para algo de comum entre as raças. O ponto comum é a hýbris. Já vimos que a raça

dos heróis é como um cadinho que funde as hýbrides distintas das raças anteriores e as

transmite fundidas para a nossa raça. De fato, os ciclos tebano e troiano, mencionados na

apresentação desta raça, evocam as desmedidas dos heróis, seja na guerra (raça de bronze),

seja no governo das cidades, seja na casa (raça de prata). Daí o duplo destino pós-morte desta

raça, uns indo para o Hades, outros para as Ilhas dos Bem Aventurados. Ao olhar para os

heróis como modelos, os homens da raça de ferro podem escolher seu caminho e descobrem,

no meio dele, a necessidade de evitar exageros (ὑπερβασίας ἀλεείνων).

A observação em conjunto destas passagens também trouxe à tona uma mudança de

perspectiva no modo de encarar o deus Cronos. Este, que na Teogonia era um deus terrível,

devorador de seus próprios filhos, passa a ser, em Os Trabalhos e os Dias, o rei pacífico de

um tempo e de um local paradisíacos, presente tanto para os homens da raça de ouro quanto

para alguns dos heróis.

Como veremos em seguida, Platão guardou este aspecto pacífico do deus no seu

tratamento do mito das raças, mas antes de abordar o mito em Platão, é importante inventariar

o que foi conquistado até aqui com o recurso aos estudiosos visitados.

No que diz respeito à temporalidade, Couloubaritsis sustenta que o mito deve ser

abordado pelo viés da sincronia e da diacronia, lembrando que o mito genealógico obedece

outra lógica distinta da nossa e esta é a lógica da distorção. Os demais, atentos à estrutura

narrativa, necessariamente ordenada no tempo, respeitam o tempo linear, que aponta para o

fim irreversível da vida humana.

190
Quanto à queda, Couloubaritsis rearranja em trios a estrutura proposta por Vernant,

contornando o problema. Enquanto Córdova e Carrière não atacam o problema, Clay rejeita a

clivagem da raça de ferro e coloca a raça de bronze no centro da narrativa, tentando ligar Os

trabalhos e os dias à Teogonia, no que diz respeito às origens do homem. Todos os demais

estudiosos acatam a cisão da raça de ferro em ferro-presente e ferro-futuro.

As observações de Clay e de Carriére mostraram que a transitividade Díke-Hýbris é

problemática. Hýbris surge no mito antes de Díke, dando a entender que é não só

cronológicamente, mas também ontológicamente anterior a Díke. Esta é o presente de Zeus

aos homens para sanar a falta essencial humana e trazer/reconduzir o homem para junto dos

deuses.

Quanto à sucessão das raças, esta parece tender mais para a continuidade do que para a

aparente discreção que uma primeira leitura do mito pode sugerir, mas a proximidade ou

distância entre as raças não está suficientemente esclarecida, se é que isso é possível. O mito

das raças parece contar a história do surgimento cumulativo da hýbris, partindo do desrespeito

ao próximo e da recusa das honras aos deuses, característicos da raça de prata, passando pela

violência física própria à raça de bronze. Todos estes comportamentos são integrados na raça

dos heróis, que, entretanto, conhece Díke, por meio de alguns dos seus membros. Esta mescla

de todas as hýbrides com a possibilidade de Díke parece ser o legado da raça dos heróis para a

raça de ferro.

3.3.3 O recurso a Platão

A preocupação com a influência de Hesíodo no pensamento de Platão tem se tornado

crescente nos últimos anos. Prova disto é o recente volume Plato & Hesiod 391, publicado em

391
Boys-Stones & Haubold (2010).
191
2010, reunindo vários pesquisadores em torno da questão. Lá, encontramos listadas algumas

referências do filósofo ao mito das raças.

Em sua contribuição para este livro, Most 392 afirma que Platão “ocupou-se

consideravelmente de Hesíodo ao longo de toda a sua carreira” e que, “na maioria dos casos

as referências a Hesíodo na obra de Platão funcionavam como substrato para uma

construção argumentativa mais ampla. 393”

Neste mesmo estudo, Most nos oferece um levantamento, ainda não exaustivo, de

diversas citações de Hesíodo ao longo de todo o corpus platônico. Lá são encontradas três

passagens da República e uma do Crátilo que fazem alusão ao mito das raças. São elas

Rep.3.415a; 3.468e-469a; 8.546d-547a e Crat. 397e-398b. A passagem do Crátilo, por focar

apenas a demonologia hesíodica, não interessa para o presente estudo.

Haulbould, 394 no mesmo volume afirma que o mito das raças é a passagem hesiódica

favorita de Platão e acrescenta à lista de referências ao mito das raças na obra de Platão as

passagens Leis 713.c5 – d3 e Político 268e4 - 274e4. Estas referências são igualmente

atestadas por El Murr 395num trabalho dedicado à presença da raça de ouro no Político,

igualmente publicado em Plato & Hesiod. Por serem restritas à raça de ouro, a passagem do

Político e a do Crátilo, não serão examinadas aqui.

Nosso recurso a Platão vai, de certa forma, na contramão dos estudos investigados neste

livro. Enquanto estes pretendem identificar em Platão o desenvolvimento de temas suscitados

por Hesíodo, procuramos aqui lançar mão de Platão para melhor entender a lição do poeta no

mito das raças.

392
Most (2010) pag. 52-67.
393
Cf. Most (2010) pag. 54-55.
394
Cf. Haubould (2010) pag.11-30.
395
El Murr (2010) pag. 276-297.
192
Mesmo assim, é preciso assinalar que nossa consulta ao uso platônico do mito das raças

é tributária da chave de leitura de um mito encontrada no Fedro, mais precisamente na

passagem em que Sócrates e Fedro discutem sobre o rapto de Orítia por Bóreas 396. Lá,

Sócrates rechaça duas leituras possíveis do mito. A primeira seria uma leitura histórica, onde

o mito explicaria que a força do vento Norte (Bóreas) teria provocado o deslizamento de

algumas rochas no local onde Orítia se encontrava, causando sua morte. A segunda, uma

leitura alegórica superficial e poética, transformaria a morte da jovem num rapto e ela teria

sido levada pelo vento e desaparecido para sempre. Em seguida, o filósofo apresenta sua

razão para não se ocupar destas leituras: ele ainda não tinha sido capaz de cumprir a

determinação do oráculo de Delfos de investigar-se a si mesmo para saber quem ele era.

Coisa semelhante, fazemos aqui: embora reconhecendo que a obra de Hesiódo se abra

para diversas leituras possíveis, é imperioso que assumamos uma e a ela nos dediquemos. Já

no primeiro capítulo, descartamos a leitura alegórica e há pouco, optamos por seguir outro

rumo que não o de uma leitura do mito como uma história da humanidade, presente em

diferentes medidas tanto em Vernant, quanto em Carrière, Clay e também em Couloubaritsis,

ainda que este nos tenha acenado a possibilidade de uma leitura ao mesmo tempo sincrônica e

diacrônica do mito das raças. Resta-nos então seguir o caminho de Sócrates e procurar extrair

do mito das raças de Hesíodo uma investigação sobre quem somos nós, não, é claro, nossa

pessoa, mas procurar saber quem somos enquanto homens, o que quer dizer que pretendemos

realizar uma leitura filosófica deste mito.

Deste modo, o mito das raças de Hesíodo, que já ficou demonstrado ser uma

continuação do mito de Prometeu, iniciado na Teogonia e desenvolvido em Os trabalhos e os

396
Cf. Fedro 229b- 230a.
193
dias, é a continuação de uma explanação sobre a condição humana e para entendê-lo melhor,

fazemo-nos valer das leituras de Platão.

Começamos então pela República.

Lá, no livro III, a referência a Hesíodo é escamoteada e o mito é introduzido como uma

nobre mentira 397 de origem fenícia 398, sendo usado para explicar a existência dos distintos

extratos sociais da cidade.

Mas o deus que vos modelou, àqueles dentre vós que eram aptos para
governar, misturou-lhes ouro à sua composição, motivo por que são mais
preciosos; aos auxiliares, prata; ferro e bronze aos lavradores e demais
399
artífices .

ὁ θεὸς πλάττων, ὅσοι μὲν ὑμῶν ἱκανοὶ ἄρχειν, χρυσὸν ἐν τῇ γενέσει


συνέμειξεν αὐτοῖς, διὸ τιμιώτατοί εἰσιν· ὅσοι δ' ἐπίκουροι, ἄργυρον· σίδηρον
δὲ καὶ χαλκὸν τοῖς τε γεωργοῖς καὶ τοῖς ἄλλοις δημιουργοῖς

O Sócrates platônico, narrador do mito, faz a ressalva que “do ouro pode acontecer de

nascer uma prole argêntea, e da prata uma áurea, e assim todos os restantes, uns dos

outros 400”. Por isso os chefes devem exercer a máxima vigilância sobre as crianças,

397
Rep. 414.b8-c2. Τίς ἂν οὖν ἡμῖν, ἦν δ' ἐγώ, μηχανὴ γένοιτο τῶν ψευδῶν τῶν ἐν δέοντι γιγνομένων,
ὧν δὴ νῦν ἐλέγομεν, γενναῖόν τι ἓν ψευδομένους πεῖσαι μάλιστα μὲν καὶ αὐτοὺς τοὺς ἄρχοντας, εἰ δὲ
μή, τὴν ἄλλην πόλιν;
E agora, como arranjaremos maneira de, com uma nobre mentira, daquelas que se forjam por
necessidade, e de que há pouco falavamos, convencer disso, sobretudo os próprios chefes, e, se não
for possível, o resto da cidade?
398
Rep. 414 c.4-7. Μηδὲν καινόν, ἦν δ' ἐγώ, ἀλλὰ Φοινικικόν τι, πρότερον μὲν ἤδη πολλαχοῦ
γεγονός, ὥς φασιν οἱ ποιηταὶ καὶ πεπείκασιν, ἐφ' ἡμῶν δὲ οὐ γεγονὸς οὐδ' οἶδα εἰ γενόμενον ἄν,
πεῖσαι δὲ συχνῆς πειθοῦς.
Não é nenhuma mentira nova, mas da Fenícia, coisa já sucedida anteriormente em muitas partes,
segundo contam e fazem crer os poetas, mas que não aconteceu entre nós, nem sei se sucederá, e só se
pode acreditar a custa de um sólido poder de persusão.
399
Rep.415a4-7.
400
Rep. 415b 1-4. ἔστι δ' ὅτε ἐκ χρυσοῦ γεννηθείη ἂν ἀργυροῦν καὶ ἐξ ἀργύρου χρυσοῦν ἔκγονον καὶ
τἆλλα πάντα οὕτως ἐξ ἀλλήλων. τοῖς οὖν ἄρχουσι καὶ πρῶτον καὶ μάλιστα παραγγέλλει ὁ θεός,
194
identificando qual a matéria que predomina na composição de cada criança para que ela possa

ser levada a tornar-se um adulto capacitado a desempenhar a função que lhe é própria 401.

Não há, no texto, nenhuma referência à raça dos heróis, o que contribui ainda mais para

obscurecer a referência a Hesíodo, e Sócrates encerra a passagem em franco tom de deboche –

“Sabes de algum expediente para fazer acreditar neste mito? 402” – ainda que retorne, mais

adiante, a lançar mão do mito para dar continuação à sua argumentação.

A despeito disso, há uma importante observação a ser registrada: as raças, que em

Hesíodo eram apresentadas como sucedidas no tempo, agora coexistem na cidade e apontam

para a organização da divisão dos poderes dentro dela. O tempo do mito, ao menos como

Platão o entende, é o presente.

Mais adiante, ainda na República, ao tratar das honras que se devem aos valentes e

tomando Ájax como paradigma, Sócrates diz:

Ora, daqueles que caírem em campanha, quem cair gloriosamente, não


diremos que pertencem à raça de ouro? E não acreditaremos em Hesíodo, ao
afirmar que depois de morrerem, os homens desta raça acabarão como
gênios puros sobre a terra, nobres, afastando os males, como guardiães dos
mortais 403.

Εἶεν· τῶν δὲ δὴ ἀποθανόντων ἐπὶ στρατιᾶς ὃς ἂν εὐδοκιμήσας τελευτήσῃ ἆρ'


οὐ πρῶτον μὲν φήσομεν τοῦ χρυσοῦ γένους εἶναι; Πάντων γε μάλιστα.
Ἀλλ' οὐ πεισόμεθα Ἡσιόδῳ, ἐπειδάν τινες τοῦ τοιούτου γένους
τελευτήσωσιν, ὡς ἄρα οἱ μὲν δαίμονες ἁγνοὶ ἐπιχθόνιοι τελέθουσιν, ἐσθλοί,
ἀλεξίκακοι, φύλακες μερόπων ἀνθρώπων;

Sócrates reproduz, com pequena alteração, os versos 122-3 de Os trabalhos e os dias:

eles são anjos, por vontade de Zeus grandioso,

401
Cf.Rep. 415.b3-c6.
402
Rep. 415.c7.τοῦτον οὖν τὸν μῦθον ὅπως ἂν πεισθεῖεν, ἔχεις τινὰ μηχανήν;
403
Rep.468.e4-469.a2.
195
nobres sobre a terra, guardiães de homens mortais. 404

τοὶ μὲν δαίμονες ἁγνοὶ ἐπιχθόνιοι καλέονται

ἐσθλοί, ἐπιχθόνιοι φύλακες θνητῶν ἀνθρώπων.

Interessa aqui observar que além de Hesíodo ter sido citado nominalmente,

reconhecendo-o como a verdadeira fonte de referência em lugar da nobre mentira fenícia, a

passagem introduz, pela menção a Ajax, a raça dos heróis, que tinha sido suprimida na

primeira menção ao mito, juntamente com o nome do poeta. Por fim, tal como no mito de

Hesíodo, não são todos os heróis, mas apenas os melhores dentre estes, os que recebem o

destino pós-morte reservado aos homens da raça de ouro, sendo mesmo equiparados a estes.

Percebe-se, com isto, que a proposta de Couloubaritsis, de aproximação entre os bons

heróis e os homens da raça de ouro, é dotada de fundamento e isto permite entender um dos

motivos mais fortes de Hesíodo, isto é, o de fazer saber que o homem pode, por meio da ação

nobre e justa, reaproximar-se dos deuses, com quem partilha a mesma origem.

A importância dos guardiões - não dos gênios, mas dos vivos - para o sucesso ou

insucesso da cidade fica mais clara no livro VIII 405, quando Sócrates discorre sobre as

degenerações das constituições, desde a aristocracia até a tirania. Lá as Musas profetizam a

queda de Calípolis quando os governantes ignorantes promoverem casamentos indevidos. Os

filhos destas uniões negligenciarão as Musas e falharão em “discernir as raças de Hesíodo

(...) que haverá no meio de vós” e da mistura do ferro com a prata e do bronze com o ouro

surgirá uma anomalia. Como consequência, emergirá a sedição dos homens de ferro e de

bronze contra os de alma rica.

Dentre eles serão investidos os chefes que não têm espírito para guardião,
nem para discernir as raças de Hesíodo, nem a de ouro, de prata, de bronze e

404
Córdova e Evellyn-White adotam ἀλεξίκακοι, que foi empregado por Platão no lugar de ἐπιχθόνιοι.
405
Rep. 546. d 8-547.b7.
196
de ferro que haverá no meio de vós. Misturando-se o ferro com a prata e o
bronze com o ouro, surgirá uma desigualdade e uma anomalia desarmônica,
que, uma vez constituídas, onde quer que apareçam, produzem sempre a
guerra e o ódio. É desta geração que devemos dizer que surge a discórdia,
onde quer que apareça. E nós diremos, disse ele, que as Musas falaram bem.
Força é que o façam, retruquei, já que são Musas. A seguir a isto, o que
dizem as Musas? Quando surge a discórida, disse eu, ambas essas raças, a de
ferro e a de bronze, voltam-se para o lucro, posse de terras e de casas, ouro e
prata; por sua vez, a raça de ouro e a de prata, como não são carecidas, mas
dotadas por natureza da verdadeira riqueza que é a das almas, conduzem à
virtude e à antiga constituição.

ἐκ δὲ τούτων ἄρχοντες οὐ πάνυ φυλακικοὶ καταστήσονται πρὸς τὸ


δοκιμάζειν τὰ Ἡσιόδου τε καὶ τὰ παρ'ὑμῖν γένη, χρυσοῦν τε καὶ ἀργυροῦν
καὶ χαλκοῦν καὶ σιδηροῦν· ὁμοῦ δὲ μιγέντος σιδηροῦ ἀργυρῷ καὶ χαλκοῦ
χρυσῷ ἀνομοιότης ἐγγενήσεται καὶ ἀνωμαλία ἀνάρμοστος, ἃ γενόμενα, οὗ
ἂν ἐγγένηται, ἀεὶ τίκτει πόλεμον καὶ ἔχθραν. <ταύτης τοι γενεῆς> χρὴ φάναι
εἶναι στάσιν, ὅπου ἂν γίγνηται ἀεί. Καὶ ὀρθῶς γ', ἔφη, αὐτὰς ἀποκρίνεσθαι
φήσομεν. Καὶ γάρ, ἦν δ' ἐγώ, ἀνάγκη Μούσας γε οὔσας. Τί οὖν, ἦ δ' ὅς, τὸ
μετὰ τοῦτο λέγουσιν αἱ Μοῦσαι; Στάσεως, ἦν δ' ἐγώ, γενομένης εἱλκέτην
ἄρα ἑκατέρω τὼ γένει, τὸ μὲν σιδηροῦν καὶ χαλκοῦν ἐπὶ χρηματισμὸν καὶ
γῆς κτῆσιν καὶ οἰκίας χρυσίου τε καὶ ἀργύρου, τὼ δ' αὖ, τὸ χρυσοῦν τε καὶ
ἀργυροῦν, ἅτε οὐ πενομένω ἀλλὰ φύσει ὄντε πλουσίω, τὰς ψυχὰς ἐπὶ τὴν
ἀρετὴν καὶ τὴν ἀρχαίαν κατάστασιν ἠγέτην·

Ecoa neste trecho o final da apresentação da raça de ferro que Hesíodo retrata lá em Os

trabalhos e os dias.

Neste momento, a inspiração hesiódica atinge o clímax. Tudo está presente: o nome de

Hesíodo, as Musas e todas as raças, já que a raça dos heróis foi definitivamente incorporada à

raça de ouro na passagem visitada acima, dando oportunidade para que as raças de ferro e de

bronze formem uma só, como já estava delineado desde a nobre mentira. Para coroar, o tom

das Musas é idêntico ao da “profecia” de Hesíodo ao final da apresentação da raça de ferro lá

em Os trabalhos e os dias.

197
Entendemos que o futuro que colore a profecia atribuida às Musas por Sócrates é

francamente retórico. Na verdade ele se refere à realidade concreta – às ἐτήτυμα – das cidades

que adotam constituições degeneradas.

É o caso então de retornar a Hesíodo e investigar se ele, de fato, fazia ali uma profecia

ou se mirava o presente. É claro que temos como ponto de partida os versos que introduzem a

raça de ferro.

Quem dera, eu não tivesse nascido na quinta raça,

mas tivesse antes morrido, ou nascido mais tarde. 175

pois agora é a raça de ferro.

Μηκέτ' ἔπειτ' ὤφελλον ἐγὼ πέμπτοισι μετεῖναι


ἀνδράσιν, ἀλλ' ἢ πρόσθε θανεῖν ἢ ἔπειτα γενέσθαι 175
νῦν γὰρ δὴ γένος ἐστὶ σιδήρεον·

Aqui o poeta exclui o antes e o depois e afirma que o problema está no agora. Mas isto

seria resolver o problema com uma parte dele, já que estes versos fazem parte da narrativa do

mito das raças, que apresenta uma temporalidade obscura. Temos então de procurar alguma

passagem exterior ao mito que nos dê alguma indicação.

Alguns versos adiante, logo após a fábula do gavião e do rouxinol, no díptico das

cidades, o poeta opõe, em dois desenvolvimentos paralelos, a prosperidade da cidade justa

(vv.225-37) à desgraça que se abate sobre aqueles que baniram Díke (vv.238-47). O que se

vê então é uma brevíssima descrição da cidade bem ordenada onde cada um cumpre sua

função, contraposta à descrição da cidade injusta nos versos que se seguem, dando, neste

segundo trecho, conta apenas e tão somente das consequências da inobservância desta

ordenação. Hesíodo apela para a experiência do ouvinte – novamente ἐτήτυμα – para que

todos vejam o quadro que ele pinta com palavras: de um lado, a terra dá alimento, as ovelhas

198
ficam pesadas de lã e as mulheres parem filhos que parecem com os pais; de outro, os

castigos de Zeus: fome, flagelos, infertilidade das mulheres, guerras e catástrofes, enfim, o

mesmo destino anunciado pela “profecia”.

No livro IV das Leis, Platão retoma o tema da raça de ouro 406. Nesta passagem o

filósofo fala que muito antes de existirem as mais antigas cidades conhecidas, existia, no

tempo de Cronos, um Estado tão excelentemente constituído que serviu de modelo para a

constituição do melhor dos Estados atuais.

Platão diz que Cronos sabia da disposição naturalmente oscilante do homem e, por amor

aos homens, designou como reis e governantes, não seres humanos, mas de uma raça mais

divina, nomeadamente daímones, para nos governar, e distribuir entre os homens a paz, o

senso de honra, as leis e a justiça 407. Por conta disso, devem os homens, por todos os meios,

imitar a vida da época de Cronos, dando a essa ordenação o nome de lei 408.

Conforme se lê em Os Trabalhos e os Dias, a raça de ouro foi gerada pelos deuses e

desapareceu quando Cronos reinava e os homens desta raça foram convertidos em “daímones

Leis 713 a.4-b.4. Πάνυ μὲν οὖν. τῶν γὰρ δὴ πόλεων ὧν ἔμπροσθε τὰς συνοικήσεις διήλθομεν, ἔτι
406

προτέρα τούτων πάμπολυ λέγεταί τις ἀρχή τε καὶ οἴκησις γεγονέναι ἐπὶ Κρόνου μάλ' εὐδαίμων, ἧς
μίμημα ἔχουσά ἐστιν ἥτις τῶν νῦν ἄριστα οἰκεῖται.
Ótimo! Longas eras antes que existissem até mesmo essas cidades das quais indicamos a formação
anteriormente, existia no tempo de Cronos, conta-se, um governo e fundação sumamente prósperos,
com base nos quais o melhor dos estados atualmente existentes foi moldado.
407
Leis 713.c.5-d.3. γιγνώσκων ὁ Κρόνος ἄρα, καθάπερ ἡμεῖς διεληλύθαμεν, ὡς ἀνθρωπεία φύσις
οὐδεμία ἱκανὴ τὰ ἀνθρώπινα διοικοῦσα αὐτοκράτωρ πάντα, μὴ οὐχ ὕβρεώς τε καὶ ἀδικίας μεστοῦθαι,
ταῦτ' οὖν διανοούμενος ἐφίστη τότε βασιλέας τε καὶ ἄρχοντας ταῖς πόλεσιν ἡμῶν, οὐκ ἀνθρώπους
ἀλλὰ γένους θειοτέρου τε καὶ ἀμείνονος, δαίμονας, οἷον νῦν ἡμεῖς δρῶμεν τοῖς ποιμνίοις καὶ ὅσων
ἥμεροί εἰσιν ἀγέλαι·
Cronos estava ciente de que nenhum ser humano, por sua natureza (como já explicamos) tem a
capacidade de ter controle absoluto de todos os assuntos humanos sem se tornar locupletado de
insolência e injustiça, assim, ponderando sobre estes fatos, designou como reis e governantes para
nossas cidades não seres humanos, mas sim seres de uma raça mais divina, nomeadamente, os
daímones, da mesma forma que nós governamos os rebanhos de animais domesticáveis por lhes
sermos superiores
408
Leis 713 e.6-a.2. ἀλλὰ μιμεῖσθαι δεῖν ἡμᾶς οἴεται πάσῃ μηχανῇ τὸν ἐπὶ τοῦ Κρόνου λεγόμενον
βίον, καὶ ὅσον ἐν ἡμῖν ἀθανασίας ἔνεστι, τούτῳ πειθομένους δημοσίᾳ καὶ ἰδίᾳ τάς τ' οἰκήσεις καὶ τὰς
πόλεις διοικεῖν, τὴν τοῦ νοῦ διανομὴν ἐπονομάζοντας νόμον.
Por isso devemos, por todos os meios, imitar a vida na época de Cronos, tal como a tradição a retrata,
ordenando tanto nossos lares quanto nossos estados, dando a esta ordenação o nome de lei.
199
epikhthónioi”, isto é, “anjos sobre a terra”, e estes, por sua vez, são associados ao batalhão

de guarda de Díke, segundo alguns intérpretes. A transformação dos guardiães de Calípolis

em “gênios puros sobre a terra, nobres, afastando os males, como guardiães dos mortais”

parece reforçar este entendimento, mas, como já vimos, incluindo entre eles os bons heróis .

O papel atribuído ao deus é esclarecedor, pois é precisamente Cronos quem reina na Ilha dos

Bem-Aventurados, para onde, segundo Hesíodo, alguns dos heróis foram enviados. Assim,

referências a Cronos e aos “daímones”, nas Leis, funcionam como um reforço da inclusão dos

heróis na República. Lá, como também em Hesíodo, os melhores dentre eles são considerados

igualmente daímones e serão objeto de culto.

Retornando a Hesíodo, se o herói, por ser mais justo e mais nobre, é um modelo de

ação, a posição da raça na narrativa não pode ser outra: a raça que precedeu a nossa na terra

sem fim, conforme o verso 160 do poema. O máximo de excelência que nossa raça pode

aspirar está representado pelo bom herói, que ainda está muito longe dos deuses – e a

audiência de Hesíodo sabia bem disso. Paralelo a isso, Hesíodo parece igualmente preocupado

em chamar atenção para o perigo que representa a extrema radicalização da Hýbris, que ele

projeta para o futuro exatamente para nos mostrar quais condutas devem ser evitadas agora.

Este agora nos leva a mais um uso platônico do mito das raças, não mencionado por

nenhum dos autores de Plato & Hesiod, do qual já tinhamos lançado mão anteriormente 409.

No livro I das Leis, 644 d 8-e 4, ao apresentar a imagem do teatro das marionetes, o

estrangeiro de Atenas diz que:

cada um de nós é uma marionete, um brinquedo dos deuses – dos quais nada
sabemos – e que somos movidos pelos nossos sentimentos interiores que,

409
Cf. Hesíodo (2011) pag. 219.
200
como tendões ou cordéis, nos arrastam em movimentos de oposição
recíproca; e aqui jaz a linha divisória entre a virtude e o vício.

εἴτε ὡς παίγνιον ἐκείνων εἴτε ὡς σπουδῇ τινι συνεστηκός· οὐ γὰρ δὴ τοῦτό


γε γιγνώσκομεν, τόδε δὲ ἴσμεν, ὅτι ταῦτα τὰ πάθη ἐν ἡμῖν οἷον νεῦρα ἢ
σμήρινθοί τινες ἐνοῦσαι σπῶσίν τε ἡμᾶς καὶ ἀλλήλαις ἀνθέλκουσιν ἐναντίαι
οὖσαι ἐπ' ἐναντίας πράξεις, οὗ δὴ διωρισμένη ἀρετὴ καὶ κακία κεῖται.

Por isso, o homem deve obedecer ao fio condutor sagrado da avaliação, e esta deve ser

assumida como lei. Esse fio condutor, flexível e uniforme, visto que é de ouro – ao passo que

os demais são de ferro - leva o homem ao rumo correto da ação, pois é capaz de

assegurar que a raça áurea dentro de nós possa derrotar as outras raças 410.

ὅπως ἂν ἐν ἡμῖν τὸ χρυσοῦν γένος νικᾷ τὰ ἄλλα γένη.

Esta frase convida a refletir mais profundamente sobre o problema da temporalidade no

mito das raças. Platão, à diferença de nós, pensadores contemporâneos, não interpreta o mito,

mas reconta-o, para que ele permaneça vivo e sua mensagem não se perca. E permanecendo

vivo, o tempo do mito é o presente.

Seu emprego na República permite entender, junto com Vernant, que o mito foi usado

para colocar em evidência a existência dos distintos extratos sociais da cidade. Mas com

relação à questão da temporalidade no mito, o que vemos são as raças coexistindo no tempo, a

cada uma correspondendo uma classe social, e não mais se sucedendo.

As referências aos daímones, tomadas em conjunto, tanto na República quanto nas Leis,

permitem entender que os heróis se constituem em modelos de conduta, mas é apenas nas

Leis, que a questão fica esclarecida. O fio condutor de ouro é exatamente aquilo que assegura

que a raça áurea dentro de nós – na condição de indivíduos - derrote as outras raças. A

analogia da cidade com a alma, apresentada na República, projeta-se então para Leis, de

410
Leis. 645. b1.
201
forma que a luta travada entre a raça áurea e as demais dentro de nós seja percebida como

uma metáfora da condição humana, eternamente oscilante entre hýbris e Díke.

Esta luta remete o homem da raça de ferro a uma escolha entre a Boa Luta, encarnada

pelo bom herói e projetada, em Os trabalhos e os dias, no vizinho, e a má Luta, encarnada

pelos demais heróis e também pelos homens da raça de bronze, ambos anônimos no Hades, e

projetada no poema para Perses e os reis comedores de presentes.

3.4 Conclusão

Hesíodo é um poeta cioso em marcar sua presença no corpo de seus poemas. Ele já

começa a Teogonia com as Musas e a partir das Musas, mas sempre com o intuito de assumir

o controle do discurso e orientá-lo para termos humanos. Uma prova disso é a diferença entre

os dois cantos das Musas, ainda no proêmio deste poema: no primeiro (v.10-22), há um

catálogo de divindades que nem segue um esquema genealógico nem é exaustivo. Já o

segundo (v. 43-50), após a sua conversão de pastor em poeta, é temporalmente estruturado e

pode ser considerado um resumo do canto que ele pedirá mais adiante (v.116-ss.) às deusas,

especificando como elas devem proceder - ἐξ ἀρχῆς. Nesta manobra, o poeta parece querer

traduzir o mundo divino em termos humanamente compreensíveis.

Mas a relação do poeta com as deusas na busca pelo controle do discurso é ainda mais

complexa. Ele assegura para si, além do papel de condutor da trama de seus poemas, – eu, por

mim, quero dizer verdades a Perses – a autoridade para mediar conflitos. Depois de

demonstrar, na passagem dos reis e poetas (Teog. 80-103) que sua fala também é política, ele

chama para si a função jurídica que está sendo mal desempenhada pelos reis comedores de

presentes.

202
O Hino a Hécate começa a delinear o lugar do homem no mundo, à medida que trás à

baila dois temas fundamentais, o do sacrifício aos deuses, do qual a deusa é uma

intermediadora incontornável, e o do trabalho, onde ela está presente em todas as obras dos

homens.

O mito de Prometeu é o grande ponto de articulação entre os dois poemas. A menção

aparentemente casual feita a Epimeteu no início da versão da Teogonia já o liga fortemente ao

final da versão de Os trabalhos e os dias, onde seu papel como acolhedor de Pandora será

explicitado. Além do mais, o símile do zangão (Teog. 594-601) parece ser uma metáfora da

vida do homem da raça de ferro, o que já liga a primeira versão hesiódica de Prometeu ao

mito das raças no outro poema. Neste segundo poema, o vínculo entre Prometeu e o mito das

raças é reforçado, desta feita com as referências à raça de ouro (Trab. 43-44 e, sobretudo, 90-

92).

Como mito que fala sobre a condição humana, o mito de Prometeu retoma e aprofunda

os temas introduzidos pelo Hino a Hécate explicando a necessidade do sacrifício como marca

da submissão humana aos deuses, e do trabalho, que começa a ser apresentado como forma de

reaproximação aos deuses, já que “quem trabalha é muito mais caro aos deuses” (Trab. 309).

O casamento é abordado pelo mito como a via de perpetuação da espécie. A chegada de

Pandora simboliza a tomada de consciência da própria finitude. A vida é permeada por males

inevitáveis para os homens. Então Hesído os colocou todos num pote e enviou-os aos homens

junto com Pandora, pura e simplesmente porque a tomada de consciência de um único traço

da condição humana implica na tomada de consciência de todo o “pacote”.

Este mito introduz também a polaridade entre πόνος (sofimento ou fadiga) e ἔργον

(realização da obra). É possível notar que dentro do mito ἔργον só ocorre no início da versão

de Os trabalhos e os dias, isto é, antes da ocultação do fogo por Zeus e do roubo do fogo,
203
efetuado por Prometeu. A constatação de que o fogo oculto por Zeus no freixo difere do fogo

roubado pelo titã na férula é mais uma marca da separação entre deuses e homens. A partir de

então, ἔργον é substituído por πόνος e a meta do homem passa a ser a conversão de πόνος em

ἔργον, num misto de culto e reaproximação do homem com a divindade. Daí em diante, todas

as vezes que Hesíodo exortar Perses ao ἔργον, πόνος estará implícito.

Dentro da leitura que estamos tentando desenvolver, que vê a separação entre deuses e

homens expressa por palavras cuidadosamente escolhidas pelo poeta, a partir da distinção

entre ἀληθέα e ἐτήτυμα, aos pares de oposição entre divino e humano - Musas x pastores

agrestes; γερύσασθαι (anunciar) x μυθησαίμεν (relatar); Zeus x “Eu”- identificados no

capítulo anterior, somam-se os pares Hefesto x bigorna; Στύξ (Stix) x Ὅρκος (Juramento);

freixo x férula e ἔργον (realização da obra) x πόνος (sofrimento ou fadiga), este último

constituindo-se no norte da ação humana.

Por fim, uma vez que é neste mito que fica decidido o que é ser homem e o que é ser

deus, fica aí posta a própria necessidade de se constituir um discurso propriamente humano

que oriente o homem sobre como agir num mundo que é divino.

Apesar da enorme dívida que a recepção contemporânea do mito das raças tem a Jean-

Pierre Vernant, a interpretação deste mito continua sendo uma pedra de escândalo e algumas

questões permanecem vivas nas mentes dos estudiosos. O primeiro problema é o da

temporalidade linear ou cíclica na sucessão ou acontecimento das raças. O segundo ponto é o

da interrupção da sequência de queda das raças metálicas, provocada pelo surgimento da raça

dos heróis entre a raça de bronze e a raça de ferro. O terceiro problema é duplo: a clivagem da

raça de ferro em ferro-presente e ferro-futuro para acomodar o ordenamento das raças em

pares, segundo o deslocamento no eixo Díke-hýbris. O quarto problema diz respeito à

sucessão das raças, se ela se dá de forma discreta ou contínua.


204
O entendimento de que a raça de ouro, por sua vida semelhante à dos deuses, não

necessita de Díke põe em cheque todo este arranjo estrutural proposto por Vernant, abrindo a

possibilidade de uma abordagem do mito como uma história do surgimento da hýbris, em suas

diferentes manifestações, como o mal intrínseco dos homens, que vem se somar aos males

extrínsecos, introduzidos no mito de Prometeu. Díke passa a ser encarada como o presente de

Zeus aos homens contra este mal, sendo, portanto, algo que só diz respeito aos homens e

posterior à hýbris.

Nesta perspectiva, a raça dos heróis, que é ao mesmo tempo uma raça de semideuses,

mais justa e mais nobre do que a de bronze e a que antecedeu a nossa na vasta terra (v.158-

160), é também a raça que integrou em si todas as possibilidades da hýbrides exibidas pelas

raças de prata e de bronze. Carregando a terrível contradição de ser justa e violenta, ela teve o

seu destino pós-morte cindido entre um destino semelhante ao da raça de ouro, digno de um

semideus, e outro, semelhante ao da raça de bronze, digno de uma besta.

O recurso a Platão parece corroborar nossa leitura, já que ele fez com que a raça dos

heróis fosse totalmente identificada com a de ouro, deixando a raça de prata discretamente

associada à classe guerreira e tornando as raças de bronze e de ferro praticamente indistintas.

O filósofo radicalizou o problema da sucessão das raças, abordando-o dentro de uma

perspectiva filosófica e fazendo com que todas coexistam sempre, num primeiro momento, na

cidade, como raça dirigente, raça de guardiões e raça de trabalhadores, e depois, já em Leis,

dentro de cada um de nós. Com isso, as questões ligadas à temporalidade do mito, à sucessão

discreta ou contínua das raças e à cisão da raça de ferro, com a profecia sobre a destruição

desta raça no futuro, simplesmente desaparecem. O tempo do mito é o presente e o drama das

raças se dá na cidade e em nós, sendo fundamental “assegurar que a raça áurea dentro de

nós possa derrotar as outras raças”.

205
Não foi por acaso que Hesíodo colocou a raça dos heróis imediatamente antes da nossa

no corpo de sua narrativa e concentrou os seus três predicados – são semideuses; são mais

justos e mais nobres do que a raça de bronze; e são a raça que antecedeu a nossa na terra – em

três versos consecutivos (158-160). É para ela que o homem de ferro tem que olhar para

resolver a sua contradição de ser, ao mesmo tempo, um ser violento e dotado de senso de

justiça.

Talvez por terem se detido única e exclusivamente sobre narrativa de Hesíodo, os

intérpretes contemporâneos depararam-se com tamanha pedra de escândalo. O recurso a

Platão, ou melhor, o recurso ao recurso que Platão fez deste mito, nos permite entender que

todos os aspectos do tempo estão incluídos, na medida em que fala muito mais da condição

humana, que é humana por todo o tempo, do que da história da humanidade.

206
4. As noções morais em Hesíodo.

O Hino a Hécate mostra a vida humana em perfeita ressonância com os deuses, na

medida em que a deusa, por ser intermediadora dos sacrifícios, está presente em cada sucesso

obtido em cada atividade humana, da caça à administração da Justiça.

Como ficou demonstrado, a partir do estudo do mito de Prometeu, a decisão entre o que

é ser deus e o que é ser homem resultou na separação necessária entre deuses e homens. Este

mito mostra ainda o surgimento dos males externos e inevitáveis que atacam o homem, fome,

doenças, fadiga, velhice, morte, males que fundam a necessidade do trabalho, do qual o fogo

contido na férula é a sua maior expressão simbólica.

O mito das raças, por sua vez, pode ser entendido como a história da hýbris. Narrado no

modo genealógico, este mito mostra como hýbrides distintas vão surgindo e sedimentando-se

na alma humana. Em outras palavras, a hýbris, em suas distintas manifestações, faz parte da

natureza humana. Ao contrário dos males contidos no pote de Pandora, que são externos, a

hýbris é interna ao homem. Isto nos convida a pensar que, diferente dos outros, este é um mal

que é, em alguma medida, passível de controle, o que introduz, ainda que de modo implícito,

o tema da responsabilidade 411. Além do mais, boa parte de suas manifestações – mentira,

escárnio, sentenças tortas e outras – está ligada à palavra 412 e mesmo a violência física não

está necessariamente desvinculada dela, podendo, em muitos casos, ser mesmo um

desdobramento da palavra: a guerra é a política por outros meios.

Desta forma, o discurso propriamente humano que Hesíodo buscava desde o primeiro

verso da Teogonia, só pode ser um discurso moral. Neste capítulo, para investigar este

411
Cf. Córdova in Hesíodo (1986) pág. L-LII.
412
Por outro lado, a palavra é também a marca do homem e estruturante da civilização, o que deixa
claro que a palavra, seja ela criação do homem ou criadora dele, carrega em si a mesma ambiguidade
essencial do homem.
207
discurso moral, estaremos totalmente no âmbito de Os trabalhos e os dias, mas a presença,

ora visível, ora invisível do primeiro poema será sempre constante.

4.1 Díke, uma abordagem preliminar.

É preciso retornar à “profecia” do texto da raça de ferro, com a questão da

temporalidade resolvida – a hýbris está presente dentro de nós, na cidade, e aí se mantém,

enquanto o homem existir sobre a terra – e a partir daí começar a perseguir a concepção

hesiódica de Justiça, que se manifesta a contrario, a partir da descrição da hýbris extrema da

raça de ferro que o poeta nós dá, nos versos 182-188:

e pai não se assemelhar aos filhos, nem filhos ao pai,

nem hóspede ao hospedeiro, nem camarada ao companheiro,

nem o irmão for mais amigo, como sempre tem sido.

Virá, tão logo envelheçam, o desrespeito dos filhos, 185

lançando censuras com duras palavras.

Insolentes! Não vêem o olho dos deuses e nem mesmo

devolvem devidos cuidados aos pais.

εὖτ’ ἂν γεινόμενοι πολιοκρόταφοι τελέθωσιν.


οὐδὲ πατὴρ παίδεσσιν ὁμοίιος οὐδέ τι παῖδες
οὐδὲ ξεῖνος ξεινοδόκῳ καὶ ἑταῖρος ἑταίρῳ,
οὐδὲ κασίγνητος φίλος ἔσσεται, ὡς τὸ πάρος περ. 185
αἶψα δὲ γηράσκοντας ἀτιμήσουσι τοκῆας·
μέμψονται δ’ ἄρα τοὺς χαλεποῖς βάζοντες ἔπεσσι,
σχέτλιοι, οὐδὲ θεῶν ὄπιν εἰδότες· οὐδέ κεν οἵ γε
γηράντεσσι τοκεῦσιν ἀπὸ θρεπτήρια δοῖεν·

A quebra do respeito devido retrata a violência em todos os ambitos, seja em casa,

contra pais e irmãos, seja na pólis, contra hóspedes e companheiros. A isto, soma-se a

desconsideração para com os deuses. O resultado é exatamente a hýbris descrita para a raça de

prata, perfeitamente introjetada na de ferro.


208
Em seguida, entre 189 e 194, lemos:

é a força do braço: um saqueará a cidade do outro


Não terá alegria quem jura certo, nem o justo 190
nem o bom, mas ao que é perverso e desmedido
o povo estimará. É a lei do mais forte e pudor
não haverá. O covarde lesará o varão,
lançando palavras esquivas, sobre as quais jurará.

χειροδίκαι· ἕτερος δ’ ἑτέρου πόλιν ἐξαλαπάξει·


οὐδέ τις εὐόρκου χάρις ἔσσεται οὐδὲ δικαίου 190
οὐδ’ ἀγαθοῦ, μᾶλλον δὲ κακῶν ῥεκτῆρα καὶ ὕβριν
ἀνέρα τιμήσουσι· δίκη δ’ ἐν χερσί· καὶ αἰδὼς
οὐκ ἔσται, βλάψει δ’ ὁ κακὸς τὸν ἀρείονα φῶτα
μύθοισι σκολιοῖς ἐνέπων, ἐπὶ δ’ ὅρκον ὀ μεῖται.

O saque à cidade e a lei do mais forte remetem à hýbris característica da raça de bronze.

Em suma, a hýbris da raça de ferro é a perfeita integração das hýbrides das raças anteriores.

Como demonstrou Platão, está presente dentro de nós e na cidade. O mito das raças é uma

reflexão sobre a condição humana.

Ao construir a cidade, o homem leva sua hýbris, como Platão o mostrou, para o seio

dela. E no seio da cidade (vv.190-192) há alguém que não encontra alegria: o homem que

guarda o juramento, que é justo e que é bom: “Não terá alegria quem jura certo, nem é justo/

nem é bom, mas ao que é perverso e desmedido/ o povo estimará.”

Entendemos aqui, junto com Carrière, que os três predicados pertencem ao mesmo

homem e não a homens distintos. Do mesmo modo, seu contrário é triplamente caracterizado

(193-194) – o homem mau, que fala de modo tortuoso e que presta falso juramento: “O

covarde lesará o varão,/ lançando palavras esquivas, sobre as quais jurará.”. O autor

observa que os desvios da justiça são todos de ordem verbal. São palavras e sentenças tortas,

209
mentiras, querelas e falsos juramentos. São os filhos de Éris portadores de palavra descritos

na Teogonia: Lítígio, Mentira, Fala, Disputa, Desordem, e Juramento 413.

A pólis é uma civilização da palavra política e o lógos político é fundamentado na

Justiça e na Verdade, isto é, demanda um saber. Entretanto, Carrière vê aí uma separação

entre lógos e érgon, à qual corresponde uma separação social entre ricos e pobres, pautando-

se nos versos 27 a 34 de Os trabalhos e os dias, onde Hesíodo exorta Perses a abandonar as

disputas da ágora sob o argumento de que apenas os que já têm o sustento garantido podem

dedicar-se a elas. Os pobres estão, segundo esta leitura, excluídos dos debates da ágora 414.

Oh, Perses! Guarda isso em teu ânimo:

que a Luta que se alegra com o mau não te desvie do trabalho


nem te traga à ágora para ouvir arengas,
pois o tempo é curto para arengas da ágora 30
para quem ainda não proveu o sustento do ano.
Ao tempo certo, a terra traz o alimento de Deméter.
Fartando-te disso, poderias entrar em arengas e brigas
em vista dos bens alheios.
Ὦ Πέρση, σὺ δὲ ταῦτα τεῷ ἐνικάτθεο θυμῷ,
μηδέ σ’ Ἔρις κακόχαρτος ἀπ’ ἔργου θυμὸν ἐρύκοι
νείκε’ ὀπιπεύοντ’ ἀγορῆς ἐπακουὸν ἐόντα. 30
ὤρη γάρ τ’ ὀλίγη πέλεται νεικέων τ’ ἀγορέων τε
ᾧτινι μὴ βίος ἔνδον ἐπηετανὸς κατάκειται
ὡραῖος, τὸν γαῖα φέρει, Δημήτερος ἀκτήν.
τοῦ κε κορεσσάμενος νείκεα καὶ δῆριν ὀφέλλοις
κτήμασ’ ἐπ’ ἀλλοτρίοις.

Concordamos com Carrière quando este diz que Hesíodo entende que a administração

da Justiça implica num saber: os reis comedores de presentes são uns tolos que não sabem que

a metade é maior do que o todo 415, mas discordamos da exclusão dos pobres do discurso

Cf. Teog. 229-231. Νείκεά τε Ψεύδεά τε Λόγους τ' Ἀμφιλλογίας τε Δυσνομίην τε, (...),Ὅρκόν.
413
414
Cf. Carrière (1987) pag. 296-303.
415
Trab. 40. νήπιοι, οὐδὲ ἴσασιν ὅσῳ πλέον ἥμισυ παντὸς
210
político proposta pelo autor. Pela via de aquisição da riqueza preconizada por Hesíodo,

constrói-se, junto com esta, um caráter justo. Ao menos é esta a lição que recebemos do poeta.

O que Carriére entende como concentração de poder nas mãos dos ricos pode ser lido como

uma exortação a Perses – e à audiência, isto é, nós - para concentrar seus esforços no trabalho

e desviar os olhos dos bens dos outros; para cessar de querer conquistar os bens pela força do

braço ou pela palavra esquiva. O trabalho é para Hesíodo o único caminho da virtude.

É possível ver aí um deslocamento do particular para o geral, dos casos concretos para a

abstração. Tudo se passa como se Hesíodo quisesse mostrar que todas as virtudes e todas as

faltas incidem sobre o mesmo princípio 416, ainda que Hesíodo queira coroar o homem

trabalhador com o sucesso material e o prestígio social, como é patente nos já visitados

últimos versos do poema.

Nada aqui permite identificar o homem que guarda o juramento, que é justo e que é

bom, com alguém de nível social superior ou inferior. A moral se universaliza e em outras

passagens do poema ela vai ser mesmo o motor de uma ascensão social – algo impensável em

Homero - como nos versos 308-310: “pelo trabalho os homens são ricos de gado e de bens/ e

quem trabalha é muito mais caro aos deuses também/ [e o mesmo serás para os homens:

odeiam os lerdos.] 417”

Com relação à hýbris, o poeta se porta de modo diferente. Ela é decerto universalizada,

mas para fazê-lo, ele sente necessidade de abordá-la destacando os extratos sociais - “A

desmedida é má para o pobre mortal. Nem mesmo o nobre/ a pode aguentar facilmente. É

esmagado por ela. 418” Hesíodo ataca os valores morais da poesia épica. Por isto enfatiza o

fato do nobre poder ser esmagado pela sua desmedida.

416
Para Hesíodo, este princípio tem um nome: Zeus.
417
Trab. 308-310. ἐξ ἔργων δ' ἄνδρες πολύμηλοί τ' ἀφνειοί τε,/ καί τ' ἐργαζόμενος πολὺ φίλτερος
ἀθανάτοισιν/ [ἔσσεαι ἠδὲ βροτοῖς· μάλα γὰρ στυγέουσιν ἀεργούς].
418
Trab. 214-215. ὕβρις γάρ τε κακὴ δειλῷ βροτῷ, οὐδὲ μὲν ἐσθλὸς/ῥηιδίως φερέμεν δύναται, βαρύθει
δέ θ’ ὑπ’ αὐτῆς.
211
Para Hesíodo, a justiça de seu tempo não está de acordo com a justiça de Zeus, o que já

está claro desde o verso 9 do poema, onde ele convoca a presença de Zeus: “vem! Vê e escuta:

com justiça endireita as sentenças, 419”. Com os versos 35 a 39 ele torna a questão mais clara:

“Mas não terás segunda chance/ de agires assim. Julguemos aqui nossa arenga/ com retas

sentenças vindas de Zeus, as melhores./ Pois a nossa herança já foi repartida e muito/ levaste

de rapina, bajulando bastante os reis/comedores de presentes que querem fazer estas

trocas. 420” O que está em jogo é a corrupção, ativa por parte de Perses e passiva por parte dos

reis. O direito virou pura força, afastada do seu fundamento, e a palavra está presente tanto na

origem, quanto na consumação da injustiça, ou seja, na bajulação e na sentença torta.

A violência física como manifestação da hýbris só aparecerá muito mais tarde no

poema, nos versos 321-326:

Bens não devem ser roubados; dados por deus são bem melhores.
Pois se alguém, pela força do braço, alcança a riqueza,
ou a consegue pela palavra, o que com frequência
acontece quando o lucro ilude a mente
dos homens e Perfídia afugenta Pudor 325
facilmente os deuses escurecem e mínguam a casa.

χρήματα δ’ οὐχ ἁρπακτά, θεόσδοτα πολλὸν ἀμείνω·


εἰ γάρ τις καὶ χερσὶ βίῃ μέγαν ὄλβον ἕληται,
ἢ ὅ γ’ ἀπὸ γλώσσης ληίσσεται, οἷά τε πολλὰ
γίνεται, εὖτ’ ἂν δὴ κέρδος νόον ἐξαπατήσῃ
ἀνθρώπων, αἰδῶ δέ τ’ ἀναιδείη κατοπάζῃ, 325
ῥεῖα δέ μιν μαυροῦσι θεοί, μινύθουσι δὲ οἶκον.

Ainda que neste texto a força do braço seja mencionada antes da palavra, a lição geral é

a de que a violência pela palavra é anterior e fundadora da violência física, tanto na sucessão

Trab. 9. κλῦθι ἰδὼν ἀίων τε, δίκῃ δ’ ἴθυνε θέμιστας


419

Trab. 35-39. ἀλλ’ αὖθι διακρινώμεθα νεῖκος/ ἰθείῃσι δίκῃς, αἵ τ’ ἐκ Διός εἰσιν ἄρισται./ ἤδη μὲν γὰρ
420

κλῆρον ἐδασσάμεθ’, ἄλλα τε πολλὰ/ ἁρπάζων ἐφόρεις μέγα κυδαίνων βασιλῆας/ δωροφάγους, οἳ
τήνδε δίκην ἐθέλουσι δικάσσαι.
212
das raças – primeiro o desrespeito da raça de prata e depois a força bruta da raça de bronze –

quanto na cidade, onde a guerra, interna ou externa é um desdobramento de um desacordo

verbal.

Até o presente momento, o esforço para perseguir a concepção Hesiódica de Justiça não

fez mais do que mostrar a hýbris como constituinte essencial da natureza humana, tão humana

que o poeta não fez dela nenhum tipo de personificação. A hýbris é humana e não existe fora

do homem. É preciso então prosseguir neste esforço de alcançar Díke, a deusa vestida de ar

(ἠέρα ἑσσαμένη, Trab.223). É preciso buscar algo anterior, mais profundo. O proêmio de Os

trabalhos e os dias pode ser de grande valia.

Lá, os versos 5 a 7 descrevem o poder de Zeus de transformar as coisas em seus

opostos 421: Zeus tanto dá força quanto enfraquece; ofusca o brilhante e ilumina o obscuro;

endireita o torto e enfraquece o arrogante 422.

O verso 9, “vem! Vê e escuta: com justiça endireita as sentenças, 423”, mostra com

bastante precisão o que o poeta espera de Zeus, isto é, endireitar as sentenças, e como ele

espera que o Cronida o faça: “com justiça”. Este verso ilumina todo o poema. Não só as

transformações de Zeus descritas nos versos precedentes não são voluntariosas, mas são feitas

segundo um princípio, a justiça, que se mostra um instrumento nas mãos do deus, como

também este é o eixo de todas as modificações que Hesíodo tenta operar em Perses, nos reis e

421
Trab. 5-7. ῥέα μὲν γὰρ βριάει, ῥέα δὲ βριάοντα χαλέπτει,/ ῥεῖα δ’ ἀρίζηλον μινύθει καὶ ἄδηλον
ἀέξει,/ ῥεῖα δέ τ’ ἰθύνει σκολιὸν καὶ ἀγήνορα κάρφει.
pois fácil fortalece, e fácil ao forte faz falir,/ fácil o brilho escurece e o escuro esclarece/ fácil o torto
endireita e enfraquece o arrogante.
422
Transcrevemos nossa nota sobre a tradução de ἀγήνορα em Hesíodo (2011) pag 117. “Pietro Pucci
(BLAISE , F; JUDET de la COMBE , P.; ROUSSEAU 1996 : p.203) esclarece tratar-se de um epíteto
reservado aos nobres que ressalta a força e o poder destes. Uma vez que o que está em jogo aqui
envolve justamente os valores que Hesíodo quer inverter, há algo de negativo neste epíteto que optei
por traduzir por “arrogante”.” A isto, acrescentamos que também procuramos preservar algo da
sonoridade do termo: arrogante parece ser o termo que mais se aproxima da sonoridade de agénora,
respeitando, ao mesmo tempo o significado.
423
Trab. 9. κλῦθι ἰδὼν ἀίων τε, δίκῃ δ’ ἴθυνε θέμιστας.

213
na audiência ao longo de toda a obra, na medida em que se reserva a tarefa de dizer

“verdades” a Perses.

Os versos 9 e 10 colocam justiça e verdade em estreita relação. Assim sendo, para

alcançar a visão que o poeta tem da primeira, parece sensato seguir investigando as verdades

contidas no poema.

4.2 Éris.

A primeira verdade que o poeta conta a Perses, e que ocupa os versos 11 a 41 de Os

trabalhos e os dias, é introduzida sob a forma de uma retificação, pelos versos 11-13:

pois não há uma só raça de Lutas, mas sobre a terra


são duas. A uma quem conhecer louvará
a outra é censurável. Ambas têm ânimos distintos
Οὐκ ἄρα μοῦνον ἔην Ἐρίδων γένος, ἀλλ' ἐπὶ γαῖαν
εἰσὶ δύω· τὴν μέν κεν ἐπαινήσειε νοήσας,
ἣ δ' ἐπιμωμητή· διὰ δ' ἄνδιχα θυμὸν ἔχουσιν.

Todos os estudiosos visitados concordam que há, nos três versos citados acima, uma

referência aos versos 224-225 da Teogonia, onde a Luta – Éris – é apresentada como filha da

Noite 424. Mas ainda há algo a acrescentar: a possibilidade de receber louvor ou censura, isto é

de ser qualificada como boa ou má, é a marca da entrada no âmbito da moral. Por isso, esta

distinção só se dá na terra. A terra é o lugar onde se exercem as atividades humanas, em

oposição ao mundo dos deuses. A terra é, portanto, o lugar onde a distinção entre as Lutas

adquire sentido. Pode-se perceber aqui, mais uma vez, a oposição entre alétheia e etétyma. O

lugar dos homens é o lugar de etétyma.

Para Rousseau, a oposição entre as Lutas é expressa numa fórmula que condensa

diversas expressões da Ilíada sem que nenhuma delas seja reproduzida exatamente. Guiado

424
Teog. 224-225. Νὺξ ὀλοή· μετὰ τὴν δ' Ἀπάτην τέκε καὶ Φιλότητα/ Γῆράς τ' οὐλόμενον, καὶ Ἔριν
τέκε καρτερόθυμον.
Noite funérea. Depois pariu Engano e Amor /e Velhice funesta e pariu Éris de ânimo cruel.
214
pela leitura de que Hesíodo intenta reverter os paradigmas morais da tradição épica fazendo-

se valer da própria composição épica, o autor ressalta que importa então descobrir qual o

sentido desta distinção entre as Lutas e qual o papel que Hesíodo lhe destina dentro do projeto

do poema, que será o de construir um novo modelo de herói. Dentro desta perspectiva, aceitar

Perses como um homem regrado pelos modelos da ética épica pode ser uma chave útil para a

compreensão do que está sendo criticado e do que está sendo exaltado, e é exatamente isso

que Hesíodo faz com as Lutas: critica uma e exalta outra 425.

Já Carrière faz um acurado levantamento de passagens da Ilíada onde Éris figura, das

quais destacamos três 426. Em Il.4.440-41, “Terror, Temor e Luta, sanha que não cessa,/ irmã

e sócia de Ares, matador de gente. 427”, Éris surge divinizada, como irmã de Ares; em Il.1.6-7,

“desde que por primeiro a discórdia apartou/ o Atreide, chefe de homens e o divino

Aquiles. 428”, no contexto da disputa entre Aquiles e Agamêmnon; e em Il.3.100, no contexto

da disputa entre Menelau e Páris, o primeiro diz que devem afastar-se “Aqueus e Troianos, já
429
que muito sofrestes/por causa da minha disputa contra Alexandre, desde o princípio ”. A

primeira passagem destaca o aspecto gurreiro da Luta, enquanto nas outras duas, bem como

das demais passagens por ele assinaladas, o que está em jogo é o caráter jurídico ligado à

disputa de bens.

Na Teogonia, Éris é hipostatizada, tal como na primeira passagem homérica citada, mas,

desta feita, como filha da Noite e, através de sua descendência 430, pode-se ver que encampa os

dois aspectos, o guerreiro e o jurídico. Tal como em Homero, Éris é sempre má 431.

425
Cf. Rousseau (1996) pag. 120-125.
426
Cf. Carriére (1987) pag. 704.
427
Il.4.440-441. Δεῖμός τ' ἠδὲ Φόβος καὶ Ἔρις ἄμοτον μεμαυῖα,/ Ἄρεος ἀνδροφόνοιο κασιγνήτη
ἑτάρη τε. Tradução de Haroldo de Campos, com modificações.
428
Il.1.6-7. ἐξ οὗ δὴ τὰ πρῶτα διαστήτην ἐρίσαντε/ Ἀτρεΐδης τε ἄναξ ἀνδρῶν καὶ δῖος Ἀχιλλεύς.
429
Il.3.99-100. Ἀργείους καὶ Τρῶας, ἐπεὶ κακὰ πολλὰ πέπασθε /εἵνεκ' ἐμῆς ἔριδος καὶ Ἀλεξάνδρου
ἕνεκ' ἀρχῆς· Tradução do autor.
430
Teog. 226-232. αὐτὰρ Ἔρις στυγερὴ τέκε μὲν Πόνον ἀλγινόεντα/Λήθην τε Λιμόν τε καὶ Ἄλγεα
δακρυόεντα/ Ὑσμίνας τε Μάχας τε Φόνους τ' Ἀνδροκτασίας τε/ Νείκεά τε Ψεύδεά τε Λόγους τ'
215
Em Os trabalhos e os dias, Hesíodo introduz uma inovação tremenda: há duas Érides, e

não uma. E mais, uma é boa, enquanto a outra é má. Os aspectos, jurídico e guerreiro, estão

presentes, mas ambos no âmbito da Éris má 432. Estes aspectos, é importante assinalar,

coincidem exatamente com o somatório das hýbrides das raças de prata e de bronze, o que

representa todo o espectro possível da hýbris. É o que deve ser evitado.

A Éris boa é encontrada no cotidiano dos homens. Está fincada no seio da cidade do

mesmo modo que Zeus a fincou nas raízes da terra 433. A Éris boa tem uma função definida,

que é apresentada, não por acaso 434, logo em seguida: despertar o homem – até o indolente –

para o trabalho 435, que é primeiro apresentado de um modo geral, abstrato, para depois ser

especificado por ações: arar, plantar, bem dispor a casa 436, e mais tarde por ofícios: oleiro,

carpinteiro, poeta e mendigo 437. Tudo isto está referido a um agente, o vizinho 438, que pode se

desdobrar em qualquer uma das atividades ou em qualquer um dos ofícios e é o modelo a ser

imitado 439.

Ἀμφιλλογίας τε/ Δυσνομίην τ' Ἄτην τε, συνήθεας ἀλλήλῃσιν,/ Ὅρκόν θ', ὃς δὴ πλεῖστον ἐπιχθονίους
ἀνθρώπους/ πημαίνει, ὅτε κέν τις ἑκὼν ἐπίορκον ὀμόσσῃ·
Éris hedionda pariu Fadiga cheia de dor,/ Olvido, Fome e Dores cheias de lágrimas,/ Batalhas,
Combates, Massacres e Homicídios,/ Litígios, Mentiras, Falas e Disputas,/ Desordem e Derrota
conviventes uma da outra,/ e Juramento, que aos sobreterrâneos homens/ muito arruina quando
alguém adrede perjura.
431
Καρτερόθυμον, de ânimo cruel e στυγερὴ, hedionda, segundo a tradução de Torrano para os versos
225 e 226 repectivamente.
432
Trab.14. ἣ μὲν γὰρ πόλεμόν τε κακὸν καὶ δῆριν ὀφέλλει, (Uma traz a guerra e a discórdia funesta).
433
Trab.18-19. θῆκε δέ μιν Κρονίδης ὑψίζυγος, αἰθέρι ναίων,/ γαίης [τ'] ἐν ῥίζῃσι καὶ ἀνδράσι πολλὸν
ἀμείνω·
Fincou-a o Cronida altirregente que mora no éter/ nas raízes da terra; é muito melhor para os homens.
434
A importância do trabalho é enfatizada pela repetição da palavra nos versos 20 e 21.
435
Trab.20. ἥ τε καὶ ἀπάλαμόν περ ὁμῶς ἐπὶ ἔργον ἐγείρει·
Esta desperta ao trabalho até o indolente.
436
Trab.22-23. ὃς σπεύδει μὲν ἀρόμεναι ἠδὲ φυτεύειν/ οἶκόν τ' εὖ θέσθαι·
que se apressa a arar, e a plantar/e bem dispor a casa.
437
Trab.25-26. καὶ κεραμεὺς κεραμεῖ κοτέει καὶ τέκτονι τέκτων, /καὶ πτωχὸς πτωχῷ φθονέει καὶ
ἀοιδὸς ἀοιδῷ.
O oleiro provoca o oleiro e carpinteiro ao carpinteiro,/ mendigo se mede ao mendigo, aedo ao aedo.
438
Trab.23-24. ζηλοῖ δέ τε γείτονα γείτων/ εἰς ἄφενος σπεύδοντ'·
E vizinho emula vizinho/ que corre atrás da riqueza.
439
Trab.21. εἰς ἕτερον γάρ τίς τε ἴδεν ἔργοιο χατίζων
pois anseia por trabalho ao olhar para o outro.
216
Vários comentadores avaliam negativamente os verbos ligados às ações entre vizinhos

(ζελοῖ), oleiros e carpinteiros (κοτέει), bem como entre mendigos e entre aedos (φθονέει), nos

versos 23, 25 e 26, aqui traduzidos por “emula”, “provoca” e “se mede”, precisamente para

enfatizar o aspecto construtivo da lição. É certo que estes verbos, tomados em si, podem ter

um valor negativo, mas no contexto onde ocorrem eles são indubitavelmente positivos, na

medida em que o resultado de cada um destes olhares dirigidos ao vizinho é um esforço

direcionado para si e não contra o outro 440: ao olhar para o vizinho “rico” – este adjetivo foi

intencionalmente omitido quando abordamos há pouco o verso 22, para podermos recuperá-lo

agora - o homem corre atrás da riqueza 441, e não do rico, e vai envidar esforços para ser rico

da mesma forma, sem querer apossar-se da riqueza do outro por meio de disputas jurídicas ou

pelo roubo 442. Hesíodo está plenamente consciente disso: “Esta é a boa Luta para os

mortais 443.”.

A presença da boa Luta no seio da cidade da raça de ferro mostra que o homem desta

raça, por mais que possa vir a se aproximar ao do da raça de ouro, não é, ao contrário deste,

isento de tensões. A paz da raça de ferro é ausência de pólemos, mas não de agôn.

Por isso Havelock tem razão ao dizer que ocorreu, na escalada que se inicia na Ilíada,

passa pela Teogonia e culmina em Os Trabalhos e os Dias, um “ato de genuína criação

intelectual” e prossegue: “um conceito nasceu, ou antes, recebeu expressão linguística, coisa

que era o principal objetivo da batalha. 444”.

440
Trab. 195-196 mostram a ação de Zêlos sob a égide da Luta má. São quase sinônimos. ζῆλος δ'
ἀνθρώποισιν ὀιζυροῖσιν ἅπασι/ δυσκέλαδος κακόχαρτος ὁμαρτήσει στυγερώπης.
Inveja perseguirá aos homens – desgraçados, todos –/ horripilante – alegra-se com a dor alheia –
asquerosa.
441
Trab. 24. εἰς ἄφενος σπεύδοντ'·
que corre atrás da riqueza.
442
Nunca é demais lembrar que o poeta quer recompensar aquele que se dedica ao trabalho com o
sucesso, o prestígio e a riqueza.
443
Trab. 24. ἀγαθὴ δ' Ἔρις ἥδε βροτοῖσιν.
444
Cf. Havelock (1996) pag. 227.
217
Entretanto, parece que Havelock comete um deslize no seu estudo sobre o mito das

Lutas. Sua análise é voltada para demonstrar a progressão de uma argumentação lógica no

seio dos versos de Hesíodo. Mas, segundo o autor, o poeta só consegue sustentá-la até o verso

26 e, a partir daí, esta lógica se afrouxa porque Hesíodo é obrigado a recorrer a um

vocabulário imprestável para seus propósitos 445.

Segundo entendemos, a apresentação do conceito, para usar o termo de Havelock, está

completa e acabada exatamente neste espaço, entre os versos 11 e 26. Aí Hesíodo apresenta

suas duas Lutas, diz que uma é boa e outra é má, qual a origem de ambas, como elas se

dispuseram de tal forma e quais são os efeitos de uma e outra para os homens. Havelock não

percebe que daí em diante, entre os versos 27 e 39, o poeta não está mais falando de forma

conceitual e sim, exortando Perses a afastar-se da Luta má 446 e explicando-lhe o quanto a

adesão a esta pode ser danosa. Em outras palavras, Hesíodo está tratando de um caso concreto

à luz da norma, mas não pela via jurídica e sim pela didática.

Um ponto importante precisa ser sublinhado: do bojo da apresentação das duas Lutas,

surge o trabalho como o modo humano de se engajar na boa Luta. Deste modo, o trabalho

pode ser visto igualmente como uma noção moral.

A primeira verdade humana de Hesíodo já trás a marca da ambiguidade. A Luta humana

pode ser boa ou má. Isto parece ser uma marca no pensamento hesiódico. Suas verdades são

noções morais e, como tal, ambíguas. Demandam sempre um princípio que oriente a sua

aplicação. O princípio é Díke, no âmbito do humano. No nível cósmico, o princípio é Zeus.

445
Cf. Havelock (1996) pag. 227.
446
Trab. 27. Ἔρις κακόχαρτος.
218
4.3 Pónos – Érgon

O trabalho é a atividade humana fundamental para Hesíodo. Para melhor entender a sua

importância no bojo de sua obra é necessário operar uma síntese dos diferentes aspectos do

mesmo tema que são abordados em diferentes momentos dos dois poemas.

A relação visceral entre Luta e trabalho acabou de ser posta em evidência. A relação

entre trabalho e sacrifício está presente tanto no Hino a Hécate quanto no mito de Prometeu.

Este aborda a questão do sacrifício na Teogonia e a do trabalho em Os trabalhos e os dias,

deixando sempre claro que todos estes aspectos visam uma reconciliação com o divino, o que,

traduzido em termos de experiência humana implica em chegar o mais próximo possível da

vida dos homens da raça de ouro.

Uma vez que a construção do discurso é uma questão de extrema importância para a

nossa investigação, vale salientar que o trabalho é também o ponto de união, ou de transição,

para o mito que se segue à narrativa das duas Lutas em Os trabalhos e os dias, isto é, o

episódio de Prometeu, que o apresenta como imposição divina. Isto nos convida a questionar

a posição de West, quando este sustenta que

Hesíodo não obedece a um plano pré-estabelecido. A escolha de começar a


enunciar suas verdades pelo tema das duas Lutas resulta de uma combinação
acidental de dois fatores, primeiro um procedimento comum na poesia épica,
depois, talvez, uma revelação da existência de duas Lutas posterior à Teogonia 447.

Ao contrário de West, entendemos que o tema do trabalho, após ter sido introduzido no

poema pela narrativa das duas Lutas, não sairá mais de pauta e permeará todas as relações

humanas, seja entre si, seja com os deuses.

447
West (1966) pag. 46-49.
219
Para observar mais de perto as relações entre homens e deuses, é necessário retornar à

Teogonia: as atividades humanas descritas no Hino a Hécate serão o ponto de partida para

esta síntese.

A quem quer, grandemente dá auxílio e ajuda,

no tribunal senta-se junto aos reis venerandos, 430

na assembléia entre o povo distingue a quem quer,

e quando se armam para o combate homicida

os homens, aí a Deusa assiste a quem quer

e, propícia, concede vitória e oferece-lhe glória.

Diligente quando os homens lutam nos jogos, 435

aí também a Deusa lhes dá auxílio e ajuda,

e, vencendo pela força e vigor, leva belo prêmio

facilmente, com alegria, e aos pais dá a glória.

Diligente entre os cavaleiros assiste a quem quer,

e aos que lavram o mar de ínvios caminhos 440

e suplicam a Hécate e ao troante Treme-terra,

fácil a gloriosa Deusa concede muita pesca

ou surge e arranca-a, se o quer no seu ânimo.

Diligente no estábulo com Hermes aumenta

o rebanho de bois e a larga tropa de cabras 445

e a de ovelhas lanosas, se o quer no seu ânimo,

de poucos avoluma-os e de muitos faz menores.

ᾧ δ' ἐθέλῃ, μεγάλως παραγίνεται ἠδ' ὀνίνησιν·

ἔν τε δίκῃ βασιλεῦσι παρ' αἰδοίοισι καθίζει, 430

ἔν τ' ἀγορῇ λαοῖσι μεταπρέπει, ὅν κ' ἐθέλῃσιν·

ἠδ' ὁπότ' ἐς πόλεμον φθισήνορα θωρήσσωνται

ἀνέρες, ἔνθα θεὰ παραγίνεται, οἷς κ' ἐθέλῃσι

220
νίκην προφρονέως ὀπάσαι καὶ κῦδος ὀρέξαι.

ἐσθλὴ δ' ἱππήεσσι παρεστάμεν, οἷς κ' ἐθέλῃσιν· 435

ἐσθλὴ δ' αὖθ' ὁπότ' ἄνδρες ἀεθλεύωσ' ἐν ἀγῶνι·

ἔνθα θεὰ καὶ τοῖς παραγίνεται ἠδ' ὀνίνησι·

νικήσας δὲ βίῃ καὶ κάρτει, καλὸν ἄεθλον

ῥεῖα φέρει χαίρων τε, τοκεῦσι δὲ κῦδος ὀπάζει.

καὶ τοῖς, οἳ γλαυκὴν δυσπέμφελον ἐργάζονται, 440

εὔχονται δ' Ἑκάτῃ καὶ ἐρικτύπῳ Ἐννοσιγαίῳ,

ῥηιδίως ἄγρην κυδρὴ θεὸς ὤπασε πολλήν,

ῥεῖα δ' ἀφείλετο φαινομένην, ἐθέλουσά γε θυμῷ.

ἐσθλὴ δ' ἐν σταθμοῖσι σὺν Ἑρμῇ ληίδ' ἀέξειν·


βουκολίας δὲ βοῶν τε καὶ αἰπόλια πλατέ' αἰγῶν 445
ποίμνας τ' εἰροπόκων ὀίων, θυμῷ γ' ἐθέλουσα,
ἐξ ὀλίγων βριάει κἀκ πολλῶν μείονα θῆκεν.
οὕτω τοι καὶ μουνογενὴς ἐκ μητρὸς ἐοῦσα

Nesta passagem, a deusa aparece presidindo diversas atividades humanas que englobam

tanto as que estão sob a égide da Luta má – não devemos perder de vista que esta é uma

imposição dos deuses 448 - como o combate homicida (v.432, ἠδ' ὁπότ' ἐς πόλεμον φθισήνορα

θωρήσσωνται), quanto os trabalhos que compõem a Luta boa, como o pastoreio de bois, cabras

e ovelhas (v.445-446, βουκολίας δὲ βοῶν τε καὶ αἰπόλια πλατέ' αἰγῶν/ ποίμνας τ' εἰροπόκων ὀίων) e

até mesmo a administração da justiça (v.430-431, ἔν τε δίκῃ βασιλεῦσι παρ' αἰδοίοισι καθίζει/ ἔν

τ' ἀγορῇ λαοῖσι μεταπρέπει), a angústia mais urgente do poeta.

448
Trab. 15-16. σχετλίη· οὔ τις τήν γε φιλεῖ βροτός, ἀλλ' ὑπ' ἀνάγκης/ ἀθανάτων βουλῇσιν Ἔριν
τιμῶσι βαρεῖαν.
Cruel. Nenhum mortal a ama, mas forçados/ pela vontade dos imortais, honram a luta opressora.

221
Mas se Hécate preside todas estas atividades, o faz de forma indireta, pela via do

sacrifício 449, a forma por excelência do homem se relacionar com os deuses. Hesíodo reserva

à deusa um papel específico com relação ao sacrifício, o que faz dela uma interface entre o

humano e o divino. Como Clay observa 450, ela interfere em favor dos homens junto a outros

deuses, como é o caso dos navegantes que suplicam a Hécate e ao troante Treme-terra (v.441

εὔχονται δ' Ἑκάτῃ καὶ ἐρικτύπῳ Ἐννοσιγαίῳ), ou dos pastores, a quem a deusa, junto com

Hermes aumenta o rebanho de bois, de cabras e de ovelhas (v.444-446, σὺν Ἑρμῇ ληίδ' ἀέξειν·/

ποίμνας τ' εἰροπόκων ὀίων, θυμῷ γ' ἐθέλουσα / ποίμνας τ').

O quadro geral da passagem é a descrição de uma cidade em paz que funciona como

modelo divino a ser perseguido e este motivo é retomado na descrição da cidade justa, onde

todas as relações entre os homens estão em acordo com as trocas justas de Zeus.

Os que dão a estrangeiros e patrícios reparos 225


corretos e não se afastam do que é justo,
para estes, a cidade germina e nela o povo floresce
e a Paz, nutriz de jovens, espalha-se sobre a terra.
A estes jamais traz guerra cruel Zeus de ampla mirada,
jamais a Fome persegue os homens de retas trocas, 230
nem a Ilusão. Em festa repartem o fruto do trabalho.
A estes a terra dá muito alimento. No monte, o carvalho,
no topo dá frutos e no tronco dá mel
e as ovelhas ficam pesadas, tão farta é sua lã.
Mulheres parem filhos que parecem com os pais 235
e vicejam em meio aos bens. Jamais partem em naus:
não navegam, pois a terra arada dá frutos.
οἳ δὲ δίκας ξείνοισι καὶ ἐνδήμοισι διδοῦσιν 225

449
Teog. 416-420. καὶ γὰρ νῦν, ὅτε πού τις ἐπιχθονίων ἀνθρώπων/ ἔρδων ἱερὰ καλὰ κατὰ νόμον
ἱλάσκηται,/ κικλήσκει Ἑκάτην· πολλή τέ οἱ ἔσπετο τιμὴ/ ῥεῖα μάλ', ᾧ πρόφρων γε θεὰ ὑποδέξεται
εὐχάς,/ καί τέ οἱ ὄλβον ὀπάζει, ἐπεὶ δύναμίς γε πάρεστιν.
Hoje ainda, se algum homem sobre a terra/ com belos sacrifícios conforme os ritos propicia/ e invoca
Hécate, muita honra o acompanha/ facilmente, a quem a Deusa propensa acolhe a prece/ e torna-o
opulento, porque ela tem força.
450
Cf. Clay (2003). pag. 138.
222
ἰθείας καὶ μή τι παρεκβαίνουσι δικαίου,
τοῖσι τέθηλε πόλις, λαοὶ δ’ ἀνθεῦσιν ἐν αὐτῇ·
Εἰρήνη δ’ ἀνὰ γῆν κουροτρόφος, οὐδέ ποτ’ αὐτοῖς
ἀργαλέον πόλεμον τεκμαίρεται εὐρύοπα Ζεύς·
οὐδέ ποτ’ ἰθυδίκῃσι μετ’ ἀνδράσι Λιμὸς ὀπηδεῖ 230
οὐδ’ Άτη, θαλίῃς δὲμεμηλότα ἔργα νέμονται.
τοῖσι φέρει μὲν γαῖα πολὺν βίον, οὔρεσι δὲ δρῦς
ἄκρη μέν τε φέρει βαλάνους, μέσση δὲ μελίσσας·
εἰροπόκοι δ’ ὄιες μαλλοῖς καταβεβρίθασι·
τίκτουσιν δὲ γυναῖκες ἐοικότα τέκνα γονεῦσι· 235
θάλλουσιν δ’ ἀγαθοῖσι διαμπερές· οὐδ’ ἐπὶ νηῶν
νίσονται, καρπὸν δὲ φέρει ζείδωρος ἄρουρα.

Importa ainda assinalar a estreita relação entre o sacrifício e o trabalho: os sacrifícios

oferecidos a Poseidon (v.441) e a Hermes (v.444) visam o sucesso em atividades ligadas ao

campo de cada deus, o que nos permite inferir que a deusa desempenhava a mesma função de

intermediária junto aos demais deuses.

O mito de Prometeu aborda esta relação mais de perto. Na Teogonia, a necessidade do

sacrifício aos deuses surgiu da decisão do que é ser deus e o que é ser homem 451. Desde então
452
os homens ficaram obrigados a reverenciar os deuses . Em Os trabalhos e os dias a

necessidade do trabalho é igualmente uma imposição dos deuses aos homens 453. O trabalho se

apresenta, ao fim desta narrativa, como algo penoso (v.91, χαλεποῖο πόνοιο), num claro

contraste com os versos 43-46, na abertura do mito: “senão, facilmente trabalharias

451
Teog. 535-536. καὶ γὰρ ὅτ' ἐκρίνοντο θεοὶ θνητοί τ' ἄνθρωποι /Μηκώνῃ,
quando deuses e homens mortais decidiam quem eram em Mecona
452
Cf. Teog. 556-557. ἐκ τοῦ δ' ἀθανάτοισιν ἐπὶ χθονὶ φῦλ' ἀνθρώπων /καίουσ' ὀστέα λευκὰ θυηέντων
ἐπὶ βωμῶν.
Por isso aos imortais sobre a terra a grei humana /queima os alvos ossos em altares turiais.
453
Trab. 42-46. Κρύψαντες γὰρ ἔχουσι θεοὶ βίον ἀνθρώποισιν. /ῥηιδίως γάρ κεν καὶ ἐπ' ἤματι
ἐργάσσαιο,/ὥστε σε κεἰς ἐνιαυτὸν ἔχειν καὶ ἀεργὸν ἐόντα· /αἶψά κε πηδάλιον μὲν ὑπὲρ καπνοῦ
καταθεῖο, /ἔργα βοῶν δ' ἀπόλοιτο καὶ ἡμιόνων ταλαεργῶν.
Os deuses mantêm oculto aos homens o sustento/senão, facilmente trabalharias por um dia/ e o tinhas
por um ano, mesmo ficando ocioso,/ e logo içavas o leme acima do fumo/ e os trabalhos de bois e
sofridas mulas seriam largados.
223
(ἐργάσσαιο) por um dia/ e o tinhas por um ano, mesmo ficando ocioso (ἀεργὸν)/(...)/ e os

trabalhos (ταλαεργῶν) de bois e sofridas mulas seriam largados.”

Este contraste pode ser entendido como uma comparação entre a vida da raça de ferro e

a vida da raça de ouro, nos faz acatar a proposta de Carrière de que πόνος e ἔργον são duas

representações da mesma realidade 454. Daí o nosso entendimento de que a tarefa humana

consiste, segundo Hesíodo, em transformar o esforço em obra, isto é, transformar πόνος em

ἔργον, como uma forma do homem reaproximar-se dos deuses, já que os homens da raça de

ouro viviam com deuses (Trab. 112, ὥστε θεοὶ δ' ἔζωον ἀκηδέα θυμὸν ἔχοντες.)

Cabe ainda observar que todas as palavras ligadas ao trabalho aqui presentes são

expressas em termos de ἔργα. A inatividade está expressa como a negação da realização da

obra, como ἀεργὸν.

A ressonância com a raça de ouro reaparece quando da introdução do pote de Pandora:

Pois antes vivia na terra uma tribo de homens 90

bem longe dos males, bem longe da dura fadiga

das doenças dolorosas que trazem morte aos homens.

[pois súbito em desgraça os homens envelhecem.]

Mas a mulher, retirando a grande tampa do jarro

espalhou e preparou duras penas aos homens. 95

Πρὶν μὲν γὰρ ζώεσκον ἐπὶ χθονὶ φῦλ' ἀνθρώπων 90

νόσφιν ἄτερ τε κακῶν καὶ ἄτερ χαλεποῖο πόνοιο


νούσων τ' ἀργαλέων, αἵ τ' ἀνδράσι κῆρας ἔδωκαν.
[αἶψα γὰρ ἐν κακότητι βροτοὶ καταγηράσκουσιν.]
ἀλλὰ γυνὴ χείρεσσι πίθου μέγα πῶμ' ἀφελοῦσα
ἐσκέδασ', ἀνθρώποισι δ' ἐμήσατο κήδεα λυγρά. 95

Nesta segunda descrição, o trabalho foi substituído pela dura fadiga. Em grego, ἔργα foi

substituído por χαλεποῖο πόνοιο, isto é, pela dura fadiga.

454
Cf. Carrière (1987) pag. 525.
224
Tudo leva a crer que esta segunda descrição aborda a raça de ouro do ponto de vista da

raça de Hesíodo, a raça de ferro, de vida tão dura que ele preferia ter morrido antes ou nascido

depois 455, enquanto a primeira abordava a raça de ouro a partir do ponto de vista da própria

raça de ouro, que vivia como os deuses, isto é, livre de penas, fadigas e cansaços 456.

É importante repetir: o contraste entre ἔργον e πόνος nos parece capital: estando o ἔργον

reservado aos deuses e aos homens que lhes são próximos, enquanto o πόνος é a parte que

cabe ao comum dos mortais, a conversão do πόνος em ἔργον é também uma forma de culto e

de aproximação da divindade. Assim sendo, os diferentes termos abordam a mesma realidade

sob pontos de vista diferentes.

A observação de Carrière ainda suscita outra: a palavra πόνος está ausente de todas as

exortações ao trabalho dirigidas a Perses. Isto não significa que Hesíodo queira iludir o irmão.

Na famosa passagem dos caminhos ele deixa claro que a missão exige esforço (ἱδρῶτα) e

nunca deixa de ser difícil (χαλεπή):

Mas perante a virtude suor ordenaram os deuses


imortais. É longa e inclinada a subida até ele, 290
espinhosa no início, mas quando se chega ao topo
mais fácil se torna, ainda que seja difícil.

τῆς δ' ἀρετῆς ἱδρῶτα θεοὶ προπάροιθεν ἔθηκαν


ἀθάνατοι· μακρὸς δὲ καὶ ὄρθιος οἶμος ἐς αὐτὴν 290
καὶ τρηχὺς τὸ πρῶτον· ἐπὴν δ' εἰς ἄκρον ἵκηται,
ῥηιδίη δὴ ἔπειτα πέλει, χαλεπή περ ἐοῦσα.

455
Trab. 174-175. Μηκέτ' ἔπειτ' ὤφελλον ἐγὼ πέμπτοισι μετεῖναι /ἀνδράσιν, ἀλλ' ἢ πρόσθε θανεῖν ἢ
ἔπειτα γενέσθαι.
Quem dera eu não tivesse nascido na quinta raça,/ mas tivesse antes morrido, ou nascido mais tarde.
456
Trab. 110-114. Χρύσεον μὲν πρώτιστα γένος μερόπων ἀνθρώπων/ ἀθάνατοι ποίησαν Ὀλύμπια
δώματ' ἔχοντες./ οἳ μὲν ἐπὶ Κρόνου ἦσαν, ὅτ' οὐρανῷ ἐμβασίλευεν·/ ὥστε θεοὶ δ' ἔζωον ἀκηδέα θυμὸν
ἔχοντες / νόσφιν ἄτερ τε πόνων καὶ ὀιζύος,
Primeiro a raça de ouro, de homens falantes,/ criaram os imortais que habitam olímpias moradas./ Era
no tempo de Kronos, quando reinava no céu./ Viviam como deuses, tendo o ânimo isento de penas/
sem dor, nem cansaço.
225
Neste contexto, o poeta convida sempre seu irmão a encarar o trabalho como realização

e não como fadiga: “assim obra: trabalho sobre trabalho trabalha.” (Trab. 382, ὧδ' ἔρδειν,

καὶ ἔργον ἐπ' ἔργῳ ἐργάζεσθαι.)”, verso este que interpretamos como: “assim obra (ὧδ' ἔρδειν): a

força de realização (ἔργον) na própria obra (ἐπ' ἔργῳ) se realiza (ἐργάζεσθαι.)”. Em outras

palavras, Hesíodo quer dizer que o efeito mais importante do trabalho se dá em quem

trabalha, e não sobre o produto do trabalho.

O estudo da raça dos heróis mostrou que esta pode funcionar como uma ponte entre as

raças extremas, de ouro e de ferro. O que se encontra lá é o estado de bem aventurança

reservado a alguns heróis, característico do reinado de Crónos, preservado pela vontade de

Zeus 457. Deste modo, o vetor que parte da raça de ferro e busca a reconciliação via raça dos

heróis aponta para a raça de ouro, mas na verdade, se este vetor é realmente uma

reconciliação com o divino, ele deve apontar para além do humano, reconduzindo o olhar para

a cidade de Hécate, que, em última análise é o modelo divino da cidade justa que Hesíodo

descreve nos versos 225 a 237.

A passagem remete mais à cidade de Hécate do que à vida na era da raça de ouro

porque, a despeito de uma inegável semelhança com a vida paradisíaca desta raça, é a terra

arada quem dá frutos, o que implica na necessidade do esforço. Nesta passagem ainda, torna-

se evidente a visão que Hesíodo tem da submissão do homem - e da sua vida política – às leis

do cosmos. Hesíodo a expressa em termos de φύσις, empregando um vocabulário que remete

à vida vegetal, no verso 227, aqui traduzido da forma mais literal possível: “para estes, a

cidade germina e o povo floresce (τοῖσι τέθηλε πόλις, λαοὶ δ' ἀνθεῦσιν ἐν αὐτῇ· )”.

Deste cenário emerge o trabalho como noção moral. Numa de suas mais belas

exortações a Perses, o poeta canta:

Deuses e homens partilham, contra quem vive

457
Trab. 168-173.
226
ocioso como um zangão sem ferrão, da mesma raiva:
consomem o trabalho das abelhas, os lerdos, 305
e o comem. Que te empenhes em articular obras certas
e a abastecer a despensa na hora oportuna.
Pelo trabalho os homens são ricos de gado e de bens
e quem trabalha é muito mais caro aos deuses também
[e o mesmo serás para os homens: odeiam os lerdos.] 310
Trabalho não é vergonha. Vergonha é não trabalhar
se trabalhares, logo te inveja o preguiçoso
porque enriqueces. Sucesso e glória acompanham a riqueza.
Seja lá para quem for, trabalhar é melhor,
se desvias a mente dos bens do vizinho 315
para o trabalho e ganhas teu pão, como te aconselho.
τῷ δὲ θεοὶ νεμεσῶσι καὶ ἀνέρες ὅς κεν ἀεργὸς
ζώῃ, κηφήνεσσι κοθούροις εἴκελος ὀργήν,
οἵ τε μελισσάων κάματον τρύχουσιν ἀεργοὶ 305
ἔσθοντες· σοὶ δ' ἔργα φίλ' ἔστω μέτρια κοσμεῖν,
ὥς κέ τοι ὡραίου βιότου πλήθωσι καλιαί.
ἐξ ἔργων δ' ἄνδρες πολύμηλοί τ' ἀφνειοί τε,
καί τ' ἐργαζόμενος πολὺ φίλτερος ἀθανάτοισιν
[ἔσσεαι ἠδὲ βροτοῖς· μάλα γὰρ στυγέουσιν ἀεργούς]. 310
ἔργον δ' οὐδὲν ὄνειδος, ἀεργίη δέ τ' ὄνειδος.
εἰ δέ κεν ἐργάζῃ, τάχα σε ζηλώσει ἀεργὸς
πλουτεῦντα· πλούτῳ δ' ἀρετὴ καὶ κῦδος ὀπηδεῖ.
δαίμονι δ' οἷος ἔησθα, τὸ ἐργάζεσθαι ἄμεινον,
εἴ κεν ἀπ' ἀλλοτρίων κτεάνων ἀεσίφρονα θυμὸν 315
ἐς ἔργον τρέψας μελετᾷς βίου, ὥς σε κελεύω.

O verso 311 é a moral da história: “Trabalho não é vergonha, vergonha é não trabalhar.

(ἔργον δ' οὐδὲν ὄνειδος, ἀεργίη δέ τ' ὄνειδος. )”. Mas a passagem mostra também que o trabalho é

uma forma de culto aos deuses, na medida em que “quem trabalha é muito mais caro aos

deuses também (v.310, καί τ' ἐργαζόμενος πολὺ φίλτερος ἀθανάτοισιν ). Este aspecto tem sido

negligenciado por diversos estudiosos de Hesíodo, para quem o poeta camponês visava

apenas o sucesso e a glória.Tal leitura não leva em conta a exigência do trabalho como
227
condição necessária para ser caro aos deuses (φίλτερος ἀθανάτοισιν ). São estes os homens a

quem Zeus “fácil fortalece”, como já estava anunciado no início do poema.

Para finalizar, um recurso ao Econômicos de Xenofonte nos ajuda a entender a estreita

relação entre trabalho, moral e culto aos deuses. No que diz respeito à formação do caráter,

diz o discípulo de Sócrates:

o melhor trabalho e o melhor saber é a agricultura”, pois “incita os


lavradores a serem corajosos, já que aquilo de que precisam, ela faz crescer e
nutre fora dos muros. Por isso é também a vida mais nobre, pois, ao que nos
parece, torna os cidadãos melhores e mais bem dispostos para com a
comunidade 458.

No que diz respeito ao culto aos deuses, acrescenta:

sendo a terra uma deusa, ensina também a justiça os que podem aprendê-la,
pois aos que lhe prestam os melhores serviços, dá em troca muitos bens 459.

Nesta perspectiva, trabalhar a terra significa acatar a necessidade do trabalho que foi

imposta pelos deuses aos homens desde o mito de Prometeu. Por outro lado,

a preguiça no cultivo da terra denuncia, de modo claro, a alma vil 460.

Nestas passagens, Xenofonte parece fazer uma referência implícita a Hesíodo, por

abordar o tema do trabalho agrícola, ao qual o poeta era amplamente associado, associando o

trabalho agrícola tanto à construção do caráter quanto ao culto aos deuses.

4.4 Elpís/Esperança 461

Investigar Esperança é algo desesperador. Sobre este tema, os melhores filólogos, entre

eles Willamowitz, Nestle e Solmsen, confessaram sua impotência 462. West intrigou-se com o

458
Xenofonte. Econômico, VI, 10.
459
Idem, ibidem, V, 12.
Idem, ibidem, XIX, 17.
461
O uso verbal que Hesíodo faz de esperança (ἔολπα, espero) leva-me a pensar que não há outra
tradução possível para o termo ἐλπίς.
228
paradoxo provocado pela saída dos males de dentro do pote e a permanência de Esperança em

seu interior, levantando a seguinte questão: “O que significa isto, que os males estão entre os

homens porque saíram do pote, enquanto Esperança está entre os homens porque ficou

dentro dele?”. Outra pergunta dá a entender que, segundo o autor, a Esperança é vista por

Hesíodo como um bem: “O que Esperança estava fazendo dentro do pote se este é um pote de

males?”. Por fim, West expressa abertamente seu incômodo: “É ilógico fazer o mesmo pote

servir a propósitos distintos ao mesmo tempo. 463”.

É tão cansativo quanto desnecessário listar todas as dificuldades encontradas pelos

estudiosos que se dedicaram ao tema. Assim sendo, pretendo elencar as posições de alguns

dos estudiosos que se debruçaram sobre este problema e, longe de pretender resolvê-lo de

uma vez por todas, pretendemos apenas propor uma leitura que possa ao menos amenizar este

desconforto.

Evidentemente, algum cuidado é preciso. Em primeiro lugar, retornemos ao incômodo

de West. O motivo deste é o seguinte: ver um mesmo pote servindo a propósitos distintos ao

mesmo tempo agride a coerência. Ora, Hesíodo operava em outra modalidade discursiva, a

poesia, onde a necessidade de coerência não impera. Talvez seja interessante – na medida em

que formos capazes de fazê-lo – descartá-lo por um tempo, se é que queremos nos aproximar

do pensamento do poeta. Isto não significa andar às cegas. Partimos então do texto

sabidamente problemático, que é a apresentação de Esperança ao final do mito de Prometeu,

tal como consta em Os trabalhos e os dias, para relacioná-lo com as demais ocorrências -

substantivas ou verbais – de Esperança no poema, procurando articulá-las com o poema como

um todo, para enfim estabelecer uma discussão com alguns estudiosos que se debruçaram

sobre o problema. Além de West, para quem, como já vimos, a Esperança é um bem, Vernant

462
Carrière (1987) pág. 590.
463
West (1978) pág.169-170.
229
e Clay , que a vêm como uma ilusão, Córdova, para quem é um mal e Carrière, que a vê como

ambígua, serão aqui visitados 464.

Isto posto, passemos à apresentação dos trechos do poema onde figura Esperança. Esta

surge no poema ao fim do mito de Prometeu:

Mas a mulher, retirando a grande tampa do pote


espalhou e preparou duras penas aos homens 95
e ali só Esperança, em morada inabalável,
ficou dentro do pote, abaixo das bordas, e não transpôs
os umbrais, pois logo repôs a tampa do pote
por vontade de Zeus porta-escudo, agrega-nuvens.
Dez mil pesares já estavam lançados aos homens: 100
a terra repleta de males; o mar também está repleto.
doenças de dia, outras de noite visitam os homens
espontâneas, trazendo desgraça aos mortais
em silêncio, pois da voz lhes privou Zeus pensante.
Então, não há como escapar do espírito de Zeus. 105
ἀλλὰ γυνὴ χείρεσσι πίθου μέγα πῶμ' ἀφελοῦσα
ἐσκέδασ', ἀνθρώποισι δ' ἐμήσατο κήδεα λυγρά. 95
μούνη δ' αὐτόθι Ἐλπὶς ἐν ἀρρήκτοισι δόμοισιν
ἔνδον ἔμεινε πίθου ὑπὸ χείλεσιν οὐδὲ θύραζε
ἐξέπτη· πρόσθεν γὰρ ἐπέμβαλε πῶμα πίθοιο
[αἰγιόχου βουλῇσι Διὸς νεφεληγερέταο].
ἄλλα δὲ μυρία λυγρὰ κατ' ἀνθρώπους ἀλάληται· 100
πλείη μὲν γὰρ γαῖα κακῶν, πλείη δὲ θάλασσα·
νοῦσοι δ' ἀνθρώποισιν ἐφ' ἡμέρῃ, αἳ δ' ἐπὶ νυκτὶ
αὐτόματοι φοιτῶσι κακὰ θνητοῖσι φέρουσαι
σιγῇ, ἐπεὶ φωνὴν ἐξείλετο μητίετα Ζεύς.
οὕτως οὔ τί πη ἔστι Διὸς νόον ἐξαλέασθαι. 105

Em seguida, ao fim de um lamento motivado pela injustiça que ele vê campear ao seu

redor, surge Esperança em forma verbal no verso 273:

464
Para um levantamento mais amplo sobre a bibliografia atinente ao caso, ver Carrière (1987) pág.
590-602 e Clay (2003) pág 103, nota 7.
230
Agora eu mesmo justo entre os homens não quereria ser 270
e nem meu filho, porque é um mal homem justo ser
quando se sabe que maior justiça terá o mais injusto
mas espero isto não deixar cumprir-se o tramante Zeus.
νῦν δὴ ἐγὼ μήτ' αὐτὸς ἐν ἀνθρώποισι δίκαιος 270
εἴην μήτ' ἐμὸς υἱός, ἐπεὶ κακὸν ἄνδρα δίκαιον
ἔμμεναι, εἰ μείζω γε δίκην ἀδικώτερος ἕξει.
ἀλλὰ τά γ' οὔπω ἔολπα τελεῖν Δία μητιόεντα.

Outra ocorrência de forma verbal ocorre nos versos 475-476, estimulando Perses ao

trabalho:

(...)espero que 475

te alegres juntando a colheita dentro de casa.

(...) καί σε ἔολπα 475


γηθήσειν βιότου αἰρεύμενον ἔνδον ἐόντος.

Por fim, numa ocorrência dupla, o substantivo retorna nos versos 498-501:

O homem indolente, apoiado em vã esperança,


quando falta alimento, muito maldiz sua alma.
E a vã esperança acompanha o homem indolente 500
que descansa no galpão sem sustento já certo.

πολλὰ δ' ἀεργὸς ἀνήρ, κενεὴν ἐπὶ ἐλπίδα μίμνων,


χρηίζων βιότοιο, κακὰ προσελέξατο θυμῷ.
ἐλπὶς δ' οὐκ ἀγαθὴ κεχρημένον ἄνδρα κομίζει, 500
ἥμενον ἐν λέσχῃ, τῷ μὴ βίος ἄρκιος εἴη.

As quatro ocorrências de Esperança foram então apresentadas respeitando a ordem de

surgimento no poema e serão examinadas nesta ordem. Neste exame, pretendemos também

entabular uma discussão com os estudiosos citados.

231
Assim sendo, Esperança faz sua primeira aparição no poema no final de um mito que

começa com o desaparecimento do alimento e termina com a dispersão dos males pelo

mundo. Nesta passagem, o poeta põe quatro elementos em relação: a mulher, o pote, os males

soltos no mundo e Esperança. Ainda que nem todas as relações entre estes elementos venham

a ser efetivamente empregadas na presente investigação, elas seguem listadas, sem a menor

pretensão de ser uma lista exaustiva, na esperança de poder contribuir para futuros estudos.

Segundo Clay, a mulher e o pote podem ser vistos como duplos um do outro 465. Ambos

são feitos de argila, ambos são depósitos que guardam a perpetuação da vida e, enquanto

aquela foi apresentada na Teogonia como um belo mal 466, este continha os males que se

espalharam pelo mundo.

Existe, por conseguinte, uma relação entre a mulher e os males: no plano de Zeus, ela

foi concebida como um mal que parece um bem 467. Além do mais, ela recebeu sua voz de

Hermes 468 enquanto Zeus tirou a voz dos males 469.

A mulher, por causa da reprodução, e Esperança, sobretudo pelas formas verbais do

verso 273, “mas espero isto não deixar cumprir-se o tramante Zeus” (ἀλλὰ τά γ' οὔπω ἔολπα

τελεῖν Δία μητιόεντα)” e dos versos 475-6, “espero que/ te alegres juntando a colheita dentro

de casa” (καί σε ἔολπα/ γηθήσειν βιότου αἰρεύμενον ἔνδον ἐόντος)”, relacionam-se, de alguma

forma, com o futuro.

465
Clay (2004) pág. 124.
466
Teog. 585. αὐτὰρ ἐπεὶ δὴ τεῦξε καλὸν κακὸν ἀντ' ἀγαθοῖο,
Após ter criado belo o mal em vez de um bem.
467
Trab. 57-58. τοῖς δ' ἐγὼ ἀντὶ πυρὸς δώσω κακόν, ᾧ κεν ἅπαντες /τέρπωνται κατὰ θυμὸν ἑὸν κακὸν
ἀμφαγαπῶντες.
a eles,em troca do fogo, darei um mal com o qual todos/ se alegrarão, cumulando de agrados seu
próprio mal.
468
Trab. 79-80. τεῦξε Διὸς βουλῇσι βαρυκτύπου· ἐν δ' ἄρα φωνὴν/ θῆκε θεῶν κῆρυξ, ὀνόμηνε δὲ
τήνδε γυναῖκα
por vontade de Zeus trovejante. Voz/ acrescenta o arauto dos deuses e nomeia a mulher
469
Trab. 104. σιγῇ, ἐπεὶ φωνὴν ἐξείλετο μητίετα Ζεύς.
em silêncio, pois da voz lhes privou Zeus pensante.
232
O pote e os males guardam entre si uma relação de continente e conteúdo que foi

rompida com a disseminação dos males pelo mundo afora.

O pote e Esperança guardam uma relação problemática, também de continente e

conteúdo. O que significa Elpís dentro do pote? Se for mantida a relação do pote com os

males, Esperança está fora do mundo, pois o pote isolava os males do mundo:

Pois antes vivia na terra uma tribo de homens 90


bem longe dos males, bem longe da dura fadiga
das doenças dolorosas que trazem morte aos homens.
Pois súbito em desgraça os homens envelhecem
mas a mulher, retirando com as mãos a grande tampa do pote
espalhou e preparou duras penas aos homens. 95
Πρὶν μὲν γὰρ ζώεσκον ἐπὶ χθονὶ φῦλ' ἀνθρώπων 90
νόσφιν ἄτερ τε κακῶν καὶ ἄτερ χαλεποῖο πόνοιο
νούσων τ' ἀργαλέων, αἵ τ' ἀνδράσι κῆρας ἔδωκαν.
[αἶψα γὰρ ἐν κακότητι βροτοὶ καταγηράσκουσιν.]
ἀλλὰ γυνὴ χείρεσσι πίθου μέγα πῶμ' ἀφελοῦσα
ἐσκέδασ', ἀνθρώποισι δ' ἐμήσατο κήδεα λυγρά. 95

Ou será que a manutenção de Esperança no pote é exatamente o que assegura ao

homem algum controle sobre ela, como sugerem os versos 368-369? “Farta-te do pote no

início e no fim./ Sê comedido no meio. Poupar o fundo é inútil”. (Ἀρχομένου δὲ πίθου καὶ

λήγοντος κορέσασθαι,/ μεσσόθι φείδεσθαι· δειλὴ δ' ἐν πυθμένι φειδώ.) No caso da Esperança, o

poeta lança mão de dois usos distintos da mesma coisa, o pote, em momentos diferentes.

Enquanto fechado, isolava todo o seu conteúdo do mundo, males e Esperança. Depois de

aberto, coloca certamente Esperança em oposição aos males, mas será que isola Esperança do

mundo? Ou ao menos dos homens?

Se assumirmos a proposição de Clay de que o pote é um duplo de Pandora e se

assumirmos que a chegada de Pandora no mundo marca da reprodução sexuada, Esperança é

algo que está dentro de cada homem nascido de mulher. “Só os homens esperam”, diz

233
Clay 470. Estando dentro de cada homem, Esperança parece ser, de fato, algo que está sujeito a

algum controle.

Começa a se divisar um aspecto instrumental da Esperança. Este aspecto pode ser

melhor entendido a partir de uma observação de Vernant. Este diz que Esperança deve ser

entendida a partir da visão de mundo de Hesíodo e que este não era um pessimista radical. A

vida, para o poeta é uma mistura de bens e de males, conforme atestam os versos 607 de

Teogonia e 179 de Os trabalhos e os dias 471. A partir daí, tendência do homem é perseguir – e

de certo sentido, esperar – acumular bens e evitar males.

É preciso, antes de tudo, observar quais são os males contidos no pote de Pandora. De

acordo com os versos 91-93, estes são a fadiga, as doenças e a velhice. As duas últimas são

físicas e, ligadas à nossa condição de mortais, inevitáveis. Já a fadiga – πόνος – foi imposta

pelos deuses como condição de sobrevivência. Todos são inevitáveis e estão no mundo, em

oposição à Esperança, confinada dentro do pote.

As doenças que trazem velhice e a morte são a própria expressão da condição dos

homens de mortais. São incontornáveis. Assim sendo, se Esperança opõe-se aos males, opõe-

se a πόνος. Este sim é mais sujeito a algum controle por parte do homem.

Quanto a este, o homem tem três atitudes possíveis: ou sucumbe ao peso da fadiga, ou

transforma-o em ἔργον, como vimos acima, ou tenta evitá-lo, como discutiremos mais

adiante.

O sentido de Esperança no pensamento do poeta pode ainda ser perseguido a partir do

que ele mesmo diz que espera. Como já vimos, no verso 273 ele diz: “mas espero isto não

deixar cumprir-se o tramante Zeus,”. Este verso ocorre ao final de um violento desabafo:

Agora eu mesmo justo entre os homens não quereria ser 270


e nem meu filho, porque é um mal homem justo ser

470
Clay (2003) pág. 103.
471
Vernant (1979) pág. 126.
234
quando se sabe que maior justiça terá o mais injusto,
mas espero isto não deixar cumprir-se o tramante Zeus,
νῦν δὴ ἐγὼ μήτ' αὐτὸς ἐν ἀνθρώποισι δίκαιος 270

εἴην μήτ' ἐμὸς υἱός, ἐπεὶ κακὸν ἄνδρα δίκαιον

ἔμμεναι, εἰ μείζω γε δίκην ἀδικώτερος ἕξει.

ἀλλὰ τά γ' οὔπω ἔολπα τελεῖν Δία μητιόεντα.

É preciso examinar o contexto mais de perto. Imediatamente antes deste desabafo o

poeta acaba de explicar aos reis de seu tempo o modo de agir de Díke, nos versos 258-263:

Quando alguém a ultraja, desdenha ou debocha,


corre p’ra junto do pai Zeus Cronida, toma assento
e denuncia a mente dos homens injustos, para que pague 260
o povo a loucura dos reis que tramam vilezas
e deturpam transações com palavras esquivas.
Tendo isso em mente, endireitai as sentenças, oh reis.
καί ῥ' ὁπότ' ἄν τίς μιν βλάπτῃ σκολιῶς ὀνοτάζων,
αὐτίκα πὰρ Διὶ πατρὶ καθεζομένη Κρονίωνι
γηρύετ' ἀνθρώπων ἀδίκων νόον, ὄφρ' ἀποτείσῃ 260
δῆμος ἀτασθαλίας βασιλέων οἳ λυγρὰ νοεῦντες
ἄλλῃ παρκλίνωσι δίκας σκολιῶς ἐνέποντες.
ταῦτα φυλασσόμενοι, βασιλῆς, ἰθύνετε μύθους.

O comportamento destes reis é bastante semelhante aos reis da cidade injusta que ele

descreve nos versos 238-247.

Àqueles a quem desmedida intenta obras escusas,


a estes, justiça decreta o Cronida Zeus de ampla mirada.
Muitas vezes se vê que toda a cidade padece 240
por um só homem mau que maquina vilezas.
A estes o Cronida, de lá do céu, destina castigos:
fome e flagelos, fraquejam os homens,
as mulheres não parem, mínguam as casas
pela sagacidade de Zeus do Olimpo. Outras vezes 245
devasta-lhes imenso exército, ou ainda a muralha
235
ou, no mar, reclama o Cronida as naves deles.
οἷς δ' ὕβρις τε μέμηλε κακὴ καὶ σχέτλια ἔργα,
τοῖς δὲ δίκην Κρονίδης τεκμαίρεται εὐρύοπα Ζεύς.
πολλάκι καὶ ξύμπασα πόλις κακοῦ ἀνδρὸς ἀπηύρα, 240
ὅστις ἀλιτραίνῃ καὶ ἀτάσθαλα μηχανάαται.
τοῖσιν δ' οὐρανόθεν μέγ' ἐπήγαγε πῆμα Κρονίων,
λιμὸν ὁμοῦ καὶ λοιμόν, ἀποφθινύθουσι δὲ λαοί·
[οὐδὲ γυναῖκες τίκτουσιν, μινύθουσι δὲ οἶκοι
Ζηνὸς φραδμοσύνῃσιν Ὀλυμπίου· ἄλλοτε δ' αὖτε] 245
ἢ τῶν γε στρατὸν εὐρὺν ἀπώλεσεν ἢ ὅ γε τεῖχος
ἢ νέας ἐν πόντῳ Κρονίδης ἀποτείνυται αὐτῶν

Em ambas as passagens, uma preocupação em comum: “toda a cidade pedece/ por um

só homem mau que maquina vilezas.” (v.240-241, ξύμπασα πόλις κακοῦ ἀνδρὸς ἀπηύρα/ ὅστις

ἀλιτραίνῃ καὶ ἀτάσθαλα μηχανάαται.). A boa administração da justiça é tema de extrema

importância para o poeta. Tanto é assim que vinte versos mais adiante ele retorna ao ponto,

especificando quem é este homem mau que maquina vilezas : “reis que tramam vilezas/ e

deturpam transações com palavras esquivas” (v.261-262, βασιλέων οἳ λυγρὰ νοεῦντες/ ἄλλῃ

παρκλίνωσι δίκας σκολιῶς ἐνέποντες).

Neste caso, Esperança confunde-se com a fé na lei Zeus. Entretanto, é importante

acrescentar que esta lei não é somente punitiva. Zeus também recompensa a cidade justa, o

que confirma a interpretação de Vernant, que diz que para o poeta, a vida é uma mistura de

males e de bens:

A estes jamais

traz guerra cruel Zeus de ampla mirada, 225

jamais a Fome persegue os homens de retas trocas,

οὐδέ ποτ’ αὐτοῖς


ἀργαλέον πόλεμον τεκμαίρεται εὐρύοπα Ζεύς· 225
οὐδέ ποτ’ ἰθυδίκῃσι μετ’ ἀνδράσι Λιμὸς ὀπηδεῖ

236
Já nos versos 475-476, onde Hesíodo espera que o irmão se alegre juntando a colheita

dentro de casa (καί σε ἔολπα/ γηθήσειν βιότου αἰρεύμενον ἔνδον ἐόντος), a situação é outra.

Examinado o contexto, vê-se que dez versos antes, Hesíodo aconselha ao irmão:

Pede a Zeus, rei da terra, e à sagrada Deméter 465

que, ao fim, o dourado grão de Deméter seja farto,

já no início da primeira arada, assim que a rabiça

empunhes e lances o chuço ao lombo dos bois

que arrastam canga e cavilha.

Εὔχεσθαι δὲ Διὶ χθονίῳ Δημήτερί θ' ἁγνῇ 465

ἐκτελέα βρίθειν Δημήτερος ἱερὸν ἀκτήν,

ἀρχόμενος τὰ πρῶτ' ἀρότου, ὅτ' ἂν ἄκρον ἐχέτλης

χειρὶ λαβὼν ὅρπηκι βοῶν ἐπὶ νῶτον ἵκηαι

ἔνδρυον ἑλκόντων μεσάβων.

Na primeira ocorrência do verbo esperar (ἔολπα), o que está em jogo é a administração

da justiça, enquanto na segunda é a presença do trabalho. Em ambas, Zeus é a referência e a

garantia do sucesso dos acontecimentos. Dito de outro modo, Zeus é o princípio fudamental

do pensamento do poeta, ao qual ele quer submeter tanto os reis quanto Perses, que podem ser

entendidos como tipos, personagens que são apresentados à audiência como exemplos

concretos e elucidativos do conteúdo didático do seu canto.

Vamos então ao último emprego hesiódico da Esperança:

O homem indolente, apoiado em vã esperança,


quando falta alimento, muito maldiz sua alma.
E a vã esperança acompanha o homem indolente 500
que descansa no galpão sem sustento já certo.
πολλὰ δ' ἀεργὸς ἀνήρ, κενεὴν ἐπὶ ἐλπίδα μίμνων,
χρηίζων βιότοιο, κακὰ προσελέξατο θυμῷ.
ἐλπὶς δ' οὐκ ἀγαθὴ κεχρημένον ἄνδρα κομίζει, 500
ἥμενον ἐν λέσχῃ, τῷ μὴ βίος ἄρκιος εἴη.
237
O retorno do substantivo Esperança nos versos 498-501 trás à tona a questão da

Esperança como noção moral, na medida em que é qualificada como vazia - κενέην - e

acompanha o homem que não trabalha e descansa no galpão. A escolha do termo é perfeita,

pois alerta que esta não-ação - ἀεργός 472 - leva ao vazio, à penúria, que mais tarde poderá

suscitar neste indolente atitudes contrárias à lei de Zeus, seja a força do braço, seja a arenga

na ágora.

A existência desta Esperança compromete o entendimento de que a Esperança é um

bem, do qual West parece participar. Quando acompanha o homem indolente ela torna-se

vazia, numa avaliação que é nitidamente negativa. Mas Esperança também não é um mal

absoluto. Esta possibilidade de avaliação positiva ou negativa justifica a sua leitura como

noção moral.

Vernant e Clay, ainda que por caminhos diferentes, terminam encarando Esperança

como uma ilusão e recorrem aos mesmos versos de Ésquilo para dar voz ao seu

entendimento 473. Vernant diz que a mistura de bens e de males no mundo induz os homens a

esperarem incessantemente. Isto é um traço característico do homem: os deuses, por serem

imortais e estarem isentos dos males, não têm nenhuma necessidade de esperar, enquanto as

feras, por ignorarem a inexorabilidade da morte, também não esperam 474. Clay diz que

Esperança seduz e promete, mas raramente entrega, levando os homens à ilusão. Com isso,

Clay conclui tratar-se de um mal absoluto 475.

A percepção de Esperança como ilusão vinculada a Ésquilo enfatiza a questão da

previsão da própria morte, preocupação absolutamente ausente em Hesíodo. Ele não está

472
Observar que ἀεργός só tem valor positivo na raça de ouro.
473
Prometeu acorrentado, 248-250. θνητούς γ' ἔπαυσα μὴ προδέρκεσθαι μόρον./ τὸ ποῖον εὑρὼν
τῆσδε φάρμακον νόσου;/ τυφλὰς ἐν αὐτοῖς ἐλπίδας κατῴκισα.
Aos mortais impedi prever a morte/ Curaste esta moléstia com que droga?/ Dei-lhes cega esperança
como dote. (Tradução nossa).
474
Cf. Vernant (1974) pág.193.
475
Cf. Clay (2004) pág. 103.
238
preocupado nem com a morte individual nem com a vida pós-morte da raça de ferro. Vimos

acima que nem mesmo a possibilidade do fim da raça de ferro pode ser levada ao pé da letra,

devendo antes ser entendida como recurso retórico. É certo que há uma esperança vazia que

pode ser entendida como ilusória, mas esta ilusão é de outra ordem, ligada ao trabalho, ligada

ao modo como cada um conduz a vida.

Assim sendo, a posição de Carrière parece respeitar mais o pensamento de Hesíodo.

Para este, Esperança está mais enraizada do que aprisionada entre os homens. Escolhe-se não

trabalhar, mas não se pode escolher não esperar 476. Como presença persistente no recôndito

mais íntimo da alma humana, Esperança é o sinal de que Zeus não abandonou por completo o

homem. Por isso, prossegue, Esperança é sempre a espera de um bem. É claro que o homem é

capaz de prever o mal, mas prever é algo distinto de esperar. Prever é resultado de aplicação

de conhecimento prático, enquanto Esperança é o primeiro motor para a ação: o impulso

natural para um bem. Logo, o verdadeiro problema de Esperança é moral e metafísico. Sua

realização depende de dois tipos de fatores: a ação humana e elementos imponderáveis, onde

os gregos viam a mão dos deuses 477.

Creio que ainda é possível ensaiar outra abordagem ao problema, ainda que esta leve à

mesma conclusão de Carrière. Até aqui, estivemos todos abordando a questão por um prisma

demasiado conceitual e talvez seja interessante examinarmos o aspecto concreto que a poesia

de Hesíodo comporta, o que, espero, permitirá uma intuição mais ampla de sua arquitetura.

Para tanto, é importante ter sempre em mente que Hesíodo fala por hipóstases para podermos

ver mais de perto como ele as relaciona.

Esperança não aparece na Teogonia. Não é uma descendente da Noite nem nenhum

outro tipo de deusa. Trata-se de uma personificação rarefeita, tal como Díke, Aidôs, Nêmesis

476
Neste sentido, Esperança está mais para o que Aristóteles consideraria como uma faculdade.
477
Cf. Carrière (1987) pág. 630-637.
239
e os daímones da raça de ouro, que Hesíodo nos apresenta no preciso momento em que ele

nos humaniza ao máximo, ao dizer que precisamos trabalhar para sobreviver como indivíduos

e nos reproduzir para sobreviver como espécie. No cerne de toda esta apresentação está

Pandora, por sua vez a personificação da mulher. A mulher da Teogonia é construída, em

cada detalhe, perante nossos olhos e ouvidos para que possamos tocá-la, cheirá-la, sentir-lhe o

sabor e, a partir desta experiência, saber quem somos.

Este máximo de humanização – nem deus nem besta – é um desígnio de Zeus, figura

central e, por que não dizer, princípio e conceito orientador de Hesíodo. Além de Pandora,

Zeus também deu aos homens a Boa Luta – “fincou-a o Cronida altirregente que mora no

éter/ nas raízes da terra; é muito melhor para os homens 478.” e Justiça – “aos homens, sim,

deu a Justiça, muito mais nobre. 479”. Zeus está por trás de tudo em Hesíodo.

Esperança relaciona-se também com Deméter: “Pede a Zeus, rei da terra, e à sagrada

Deméter/ que, ao fim, o dourado grão de Deméter seja farto 480”. Em primeiro lugar, é preciso

observar que pedir é a expressão verbal de Esperança: quem pede, espera algo. Deméter é a

deusa das forças vivas – e por extensão, doadoras de vida – da terra. A precedência de Zeus

está sempre assegurada: foi na terra que Zeus fincou a Boa Luta para os homens e é na terra

que Deméter em pessoa está encarregada de retribuir aos homens o fruto do trabalho. Clay 481

observa que, das sete aparições do nome da deusa no poema, quatro figuram dentro da

fórmula “sagrado grão de Deméter”. O alimento assegurado é a imagem que o poeta usa

como expressão do sucesso, não só quando ele diz a Perses, nos versos 475-476 que espera

que ele se alegre juntando a colheita dentro de casa, como também, no início do poema,

478
Trab. 18-19. θῆκε δέ μιν Κρονίδης ὑψίζυγος, αἰθέρι ναίων,/ γαίης [τ'] ἐν ῥίζῃσι καὶ ἀνδράσι
πολλὸν ἀμείνω·
479
Trab. 279. ἀνθρώποισι δ' ἔδωκε δίκην, ἣ πολλὸν ἀρίστη
480
Trab. 465-466. Εὔχεσθαι δὲ Διὶ χθονίῳ Δημήτερί θ' ἁγνῇ/ ἐκτελέα βρίθειν Δημήτερος ἱερὸν ἀκτήν,
481
Cf. Clay (2004) pág. 143.
240
adverte que “o tempo é curto para as arengas da ágora para quem ainda não proveu o

sustento de um ano. 482”

Mas Esperança não se relaciona com Prometeu. Não no mito de Hesíodo. Afinal de

contas, se a vontade de Prometeu tivesse prevalecido, Epimeteu não teria recebido Pandora

para dá-la aos homens e, por conseguinte, não haveria mulher para destampar o pote e

recolocar a tampa em seguida, aprisionando Esperança.

Epimeteu 85

esquece que Prometeu lhe disse que nunca

aceitasse presente de Zeus e mandasse

de volta para que nenhum mal acontecesse aos mortais.

οὐδ' Ἐπιμηθεὺς 85

ἐφράσαθ' ὥς οἱ ἔειπε Προμηθεὺς μή ποτε δῶρον

δέξασθαι πὰρ Ζηνὸς Ὀλυμπίου, ἀλλ' ἀποπέμπειν

ἐξοπίσω, μή πού τι κακὸν θνητοῖσι γένηται·

Com isso, fica demonstrado, por outra via, que a aproximação entre Esperança e Prometeu

tentada tanto por Vernant quanto por Clay é improcedente.

Dadas estas considerações, podemos retornar a Carrière, para quem a Esperança em

Hesíodo não é nem um bem nem um mal, nem tampouco é a ilusão que nos protege da

angústia em face à morte, mas sim, e sempre, esperança de um bem. Neste sentido, ela é ao

mesmo tempo o princípio motor e a finalidade da ação. Ela parece estar ligada à capacidade

humana de se propor um fim e articular as ações necessárias para a sua consecução, conforme

atestam os versos 293-294:

Eis o melhor: aquele que pensa tudo por si.


Conjugando o próximo passo com o fim.

482
Trab. 30-31. ὤρη γάρ τ' ὀλίγη πέλεται νεικέων τ' ἀγορέων τε/ ὡραῖος, τὸν γαῖα φέρει, Δημήτερος
ἀκτήν.
241
Οὗτος μὲν πανάριστος, ὃς αὐτῷ πάντα νοήσει
φρασσάμενος τά κ' ἔπειτα καὶ ἐς τέλος ᾖσιν ἀμείνω.

Dito de outro modo, Esperança é uma atividade dianoética que, por ser intrinsecamente

ligada à ação, é passível de uma receber uma avaliação moral, como é o caso do homem da

esperança vazia do verso 498, o qual pode muito bem ser associado ao homem inútil dos

versos 296-297:

mas quem não pensa por si, nem ouvindo o conselho


não o guarda na mente, este é um homem inútil.

ὃς δέ κε μήτ' αὐτῷ νοέῃ μήτ' ἄλλου ἀκούων


ἐν θυμῷ βάλληται, ὃ δ' αὖτ' ἀχρήιος ἀνήρ.

4.5 Aidôs

As noções morais que estivemos analisando até aqui falam, sobretudo, do

comportamento individual. Aidôs e a Amizade, a noção a ser estudada na sequência, colocam

claramente o indivíduo em contato com o outro, quer dizer, são noções que preparam para a

vida na pólis.

Aidôs/Pudor é uma noção que apresenta inúmeros problemas quando se a tenta definir,

mas, por outro lado, é também uma excelente oportunidade para acompanhar mais de perto a

estrutura do pensamento moral do poeta em seu rumo ao discurso humano e a abstração.

Devido às enormes dificuldades encontradas para traduzir o termo, optei por repeti-lo ao

lado de cada tradução adotada, fazendo o mesmo com os termos com os quais Aidôs se

relaciona, com o intuito de assinalar a multivocidade da palavra grega e tentar, com isto,

tornar mais claras as situações que envolvem Aidôs.

Assim sendo, apresentamos as ocorrências do termo no poema, mas o fazemos agora

sem respeitar a ordem dos versos, em respeito à deusa. De fato, sempre que se fala de Aidôs

242
em Hesíodo, o que nos vem à mente é a imagem da deusa prestes a abandonar o convívio dos

mortais:

Então, para o Olimpo, desde a terra vasta,

belo corpo escondido em brancas vestes,

à tribo dos imortais irão, abandonando os homens,

Pudor (Αἰδὼς) e Partilha (Νέμεσις). 200

καὶ τότε δὴ πρὸς Ὄλυμπον ἀπὸ χθονὸς εὐρυοδείης

λευκοῖσιν φάρεσσι καλυψαμένω χρόα καλὸν

ἀθανάτων μετὰ φῦλον ἴτον προλιπόντ' ἀνθρώπους

Αἰδὼς καὶ Νέμεσις· 200

Na verdade, Aidôs surge no poema alguns versos antes. Em 191-193, lemos:

mas ao que é perverso e desmedido (ὕβριν)


o povo estimará. É a lei do mais forte e pudor (αἰδὼς)
não haverá. O covarde lesará o varão.

μᾶλλον δὲ κακῶν ῥεκτῆρα καὶ ὕβριν


ἀνέρα τιμήσουσι· δίκη δ' ἐν χερσί· καὶ αἰδὼς
οὐκ ἔσται, βλάψει δ' ὁ κακὸς τὸν ἀρείονα φῶτα

Estas duas primeiras ocorrências do termo estão no contexto da “profecia” do fim da

raça de ferro, já discutida anteriormente e que visa pintar um cenário hipotético de

radicalização extrema da hýbris. Aqui estamos num contexto puramente retórico, cujo

propósito é o de convidar o ouvinte a se afastar da hýbris.

O tema do afastamento de Aidôs retorna mais de 120 versos adiante, nos versos 321-

325:

pois se alguém, pela força do braço, alcança a riqueza,

ou a consegue pela palavra, o que com frequência

acontece quando o lucro ilude a mente

dos homens e perfídia (ἀναιδείη) afugenta o escrúpulo (αἰδῶ),

εἰ γάρ τις καὶ χερσὶ βίῃ μέγαν ὄλβον ἕληται,


243
ἢ ὅ γ' ἀπὸ γλώσσης ληίσσεται, οἷά τε πολλὰ

γίνεται, εὖτ' ἂν δὴ κέρδος νόον ἐξαπατήσῃ

ἀνθρώπων, αἰδῶ δέ τ' ἀναιδείη κατοπάζῃ, 325

Mas quem foge aqui já não é a deusa Aidôs. Trata-se de algo distinto, que será

precisado mais adiante.

Por fim, mas não em ordem de ocorrência, e sim por serem os mais problemáticos, os

versos 317-319:

A timidez (αἰδὼς) não é boa para o homem necessitado,

timidez que aos homens muito atrapalha ou ajuda.

Timidez vai com a pobreza, a audácia (θάρσος) vai junto com a riqueza.

αἰδὼς δ' οὐκ ἀγαθὴ κεχρημένον ἄνδρα κομίζει,

αἰδώς, ἥ τ' ἄνδρας μέγα σίνεται ἠδ' ὀνίνησιν·

αἰδώς τοι πρὸς ἀνολβίῃ, θάρσος δὲ πρὸς ὄλβῳ.

Nestas duas últimas ocorrências, é Aidôs que está no centro das atenções. É aqui que

Hesíodo apresenta sua reflexão sobre a natureza de Aidôs.

Desta forma, vemos aqui propostas quatro traduções diferentes para Aidôs: a deusa

Pudor, no verso 200 e os sentimentos 483 de pudor, no verso 192; escrúpulo, em 325 e timidez

nos versos 317-319. É claro que o que importa não é encontrar uma tradução definitiva para o

termo grego, mas antes mostrar, o mais possível, seu amplo espectro para melhor

compreendê-lo. Por outro lado, é importante assinalar que em cada uma destas ocorrências,

Αἰδὼς mantém uma relação íntima com algum outro termo. A deusa Pudor (Αἰδὼς) vem

483
Na Ética a Nicômaco 1128 b10-26, Aristóteles afirma que Αἰδὼς não é uma virtude, e sim um
sentimento e a toma mais no sentido de “vergonha”, considerando-a como ambivalente. Se por um
lado este sentimento convém ao jovem, porque este age frequentemente premido por suas paixões e a
vergonha atua nele como um freio, por outro, este sentimento não é característico do homem bom,
pois se a vergonha anda junto com as más ações, o homem bom jamais cometerá ações más
voluntariamente. Como veremos, Hesíodo faz usos mais nuançados deste sentimento.
244
acompanhada da deusa Partilha 484 (Νέμεσις) no verso 200; pudor, como sentimento, relaciona-

se por oposição ao homem desmedido (ὕβριν) do verso 191; escrúpulo opõe-se a perfídia

(ἀναιδείη) no verso 325; e, por fim, a timidez, dos versos 317-319, além de ser qualificada

como “não boa” no verso 317, opõe-se a audácia (θάρσος), no verso 319. O exame das

relações que são estabelecidas com Aidôs pode nos ajudar a avançar na sua compreensão.

A deusa Aidôs, ao contrário de Nêmesis 485, não figura no panteão da Teogonia. Na

verdade, é uma das quatro novas deusas introduzidas pelo poeta em Os trabalhos e os dias,

sendo as demais a Boa Éris 486, Díke e a má Fama 487. Ainda que seja justo perguntar por que

Hesíodo elevou Aidôs ao status de deusa, na prática, só podemos especular a respeito, já que,

ao contrário das outras duas, o poeta não apresenta nenhuma justificativa para esta nova

deusa.

Talvez ele entenda que, tal qual uma deusa, ela é uma força incontornável entre os

mortais. Vejamos: os homens louvam a [má] Éris por imposição dos mortais 488; Já a Boa Éris

484
Nêmesis, embora seja visivelmente uma noção moral, não será estudada aqui porque só existem
duas menções de Hesíodo a ela: esta e o verso 223 da Teogonia. Com isso, não dispomos de material
minimamente suficiente para tentar aprofundar a compreensão desta noção no sistema de pensamento
do poeta.
485
Nêmesis é apresentada no catálogo dos descendentes da Noite no verso 223 da Teogonia. Embora a
linhagem da Noite seja, na maioria das vezes, vista sob uma avaliação negativa, em Os Trabalhos e os
Dias esta deusa é nítidamente positiva.
486
Cf. Trab. 17-26. τὴν δ' ἑτέρην προτέρην μὲν ἐγείνατο Νὺξ ἐρεβεννή,/ θῆκε δέ μιν Κρονίδης
ὑψίζυγος, αἰθέρι ναίων,/ γαίης [τ'] ἐν ῥίζῃσι καὶ ἀνδράσι πολλὸν ἀμείνω·/ ἥ τε καὶ ἀπάλαμόν περ
ὁμῶς ἐπὶ ἔργον ἐγείρει·/ εἰς ἕτερον γάρ τίς τε ἴδεν ἔργοιο χατίζων/ πλούσιον, ὃς σπεύδει μὲν ἀρόμεναι
ἠδὲ φυτεύειν/ οἶκόν τ' εὖ θέσθαι· ζηλοῖ δέ τε γείτονα γείτων/ εἰς ἄφενος σπεύδοντ'· ἀγαθὴ δ' Ἔρις ἥδε
βροτοῖσιν. / καὶ κεραμεὺς κεραμεῖ κοτέει καὶ τέκτονι τέκτων,/ καὶ πτωχὸς πτωχῷ φθονέει καὶ ἀοιδὸς
ἀοιδῷ.
Uma traz a guerra e a discórdia funesta,/ cruel. Nenhum mortal a ama, mas forçados/ pela vontade dos
imortais, honram a Luta opressora./ A outra, gerou-a primeiro Noite tenebrosa./ Fincou-a o Cronida
altirregente que mora no éter/ nas raízes da terra; é muito melhor para os homens./ Esta desperta ao
trabalho até o indolente.
487
Cf. Trab. 760-764. δεινὴν δὲ βροτῶν ὑπαλεύεο φήμην·/ φήμη γάρ τε κακὴ πέλεται κούφη μὲν
ἀεῖραι/ ῥεῖα μάλ', ἀργαλέη δὲ φέρειν, χαλεπὴ δ' ἀποθέσθαι./ φήμη δ' οὔ τις πάμπαν ἀπόλλυται, ἥντινα
πολλοὶ/ λαοὶ φημίξουσι· θεός νύ τίς ἐστι καὶ αὐτή.
evita a má fama dos mortais./ Má fama é coisa ligeira, muito fácil de erguer,/ mas é dura de suportar e
difícil de se livrar./ Ninguém fica livre de todo da fama que um dia/ o povo espalhou. Por certo,
também ela é um deus.
488
Cf. Trab. 15-16. σχετλίη· οὔ τις τήν γε φιλεῖ βροτός, ἀλλ' ὑπ' ἀνάγκης/ ἀθανάτων βουλῇσιν Ἔριν
τιμῶσι βαρεῖαν.
245
foi fincada nas raízes da terra por Zeus e é muito melhor para os homens 489; Díke foi dada aos

homens para que eles não se devorem uns aos outros como as bestas; Da má Fama, ninguém

fica livre, uma vez ela tenha sido espalhada pelo povo 490; A partida de Aidôs e Nêmesis para

o Olimpo implica o fim da possibilidade de vida humana. Só restarão pesares aos homens

mortais e contra o mal, não há defesa 491. Resultado: Zeus findará com esta raça de homens

falantes 492. Em outras palavras, Aidôs e Nêmesis são forças morais essenciais para a

manutenção da vida humana e, como tais, são divinas.

Para investigar as relações entre Aidôs e o homem desmedido (ὕβριν) nos versos 191 a

193, assim como entre Aidôs e perfídia (ἀναιδείη) nos versos 321-324, seguimos a observação

de Carrière, segundo a qual os dois termos relacionados a aidôs têm significado amplo e

muito póximos entre si, podendo, portanto, os dois termos serem tomados como

equivalentes 493, com a ressalva de que o primeiro é um adjetivo e que, portanto, refere a um

homem concreto, enquanto o segundo, por ser um substantivo abstrato, já representa uma

noção moral, no caso a Hýbris. Neste ponto, Carrière assinala uma importante diferença entre

Homero e Hesíodo. Enquanto o primeiro fala sempre de casos concretos 494, o segundo

circunscreve um campo de ação. O que está em jogo em Hesíodo é um gênero que comporta

diferentes espécies de atos: mentira, roubo, assalto, enfim, uma lista que corresponde a um

código moral válido para todos, onde nenhum caso concreto é citado.

Examinando os contextos onde estes versos estão inseridos, encontramos, nos versos

182-186, faltas que ocorrem no âmbito familiar:

e pai não se assemelhar aos filhos, nem filhos ao pai,

489
Cf. Trab. 18-19. θῆκε δέ μιν Κρονίδης ὑψίζυγος, αἰθέρι ναίων,/ γαίης [τ'] ἐν ῥίζῃσι καὶ ἀνδράσι
πολλὸν ἀμείνω·
490
Cf. Trab. 763-764. φήμη δ' οὔ τις πάμπαν ἀπόλλυται, ἥντινα πολλοὶ/ λαοὶ φημίξουσι· θεός νύ τίς
ἐστι καὶ αὐτή.
491
Cf. Trab. 201. θνητοῖς ἀνθρώποισι· κακοῦ δ' οὐκ ἔσσεται ἀλκή.
492
Cf. Trab. 180. Ζεὺς δ' ὀλέσει καὶ τοῦτο γένος μερόπων ἀνθρώπων.
493
Cf. Carrière (1987) pag. 796.
494
Cf. Il. 1.149,158; 9.372. e Od. 22.424; 17.449.
246
nem hóspede ao hospedeiro, nem camarada ao companheiro,
nem o irmão for mais amigo, como sempre tem sido.
Virá, tão logo envelheçam, o desrespeito dos filhos, 185
lançando censuras com duras palavras.

οὐδὲ πατὴρ παίδεσσιν ὁμοίιος οὐδέ τι παῖδες


οὐδὲ ξεῖνος ξεινοδόκῳ καὶ ἑταῖρος ἑταίρῳ,
οὐδὲ κασίγνητος φίλος ἔσσεται, ὡς τὸ πάρος περ.
αἶψα δὲ γηράσκοντας ἀτιμήσουσι τοκῆας· 185
μέμψονται δ' ἄρα τοὺς χαλεποῖς βάζοντες ἔπεσσι

Os versos 193-196, no âmbito social:

O covarde lesará o varão,


lançando palavras esquivas, sobre as quais jurará.
Inveja perseguirá aos homens, desgraçados todos, 195
horripilante – alegra-se com a dor alheia – asquerosa.

δίκη δ' ἐν χερσί· καὶ αἰδὼς


οὐκ ἔσται, βλάψει δ' ὁ κακὸς τὸν ἀρείονα φῶτα
μύθοισι σκολιοῖς ἐνέπων, ἐπὶ δ' ὅρκον ὀμεῖται.
ζῆλος δ' ἀνθρώποισιν ὀιζυροῖσιν ἅπασι 195
δυσκέλαδος κακόχαρτος ὁμαρτήσει στυγερώπης.

Os versos 320-321 permanecem no âmbito social

Bens não são roubados; doados por deus são mais nobres,320
pois se alguém, pela força do braço, alcança a riqueza,

χρήματα δ' οὐχ ἁρπακτά, θεόσδοτα πολλὸν ἀμείνω· 320


εἰ γάρ τις καὶ χερσὶ βίῃ μέγαν ὄλβον ἕληται,

E o verso 189 faz menção à guerra 495:

e um saqueará a cidade do outro.


ἕτερος δ' ἑτέρου πόλιν ἐξαλαπάξει·

495
Ainda que este verso seja considerado duvidoso por alguns, prefiro recebê-lo como o faz
Jacqueline de Romilly a respeito dos grandes textos fundadores da cultura grega, cuja forma definitiva
foi sendo conquistada aos poucos e mesmo hoje ainda é objeto de disputas: “encontramos nestes
textos muitos traços de possíveis alterações, ou mesmo de adições, mais ou menos em conformidade
com o restante da obra. (...). Estas ocorrências são indícios do interesse que estas obras suscitaram,
mas é preciso dizer: jamais estas supostas manipulações abalaram a soberba arquitetura destes textos.
Elas conseguiram, talvez, reforçá-las.” Romilly (1997) pág. 211.
247
Sobretudo, há, de Homero para Hesíodo, um deslocamento do campo da guerra para o

campo da defesa da propriedade. O respeito ao outro é manifestado pelo respeito aos bens do

outro, na medida em que os bens devem ser conquistados de uma maneira determinada: “Bens

não devem ser roubados, são doados por um deus como fruto do trabalho 496.”

Os versos 317-319, todos começando por Aidôs são, talvez, os mais problemáticos. Foi

por “timidez” que traduzimos Aidôs neste texto:

A timidez (αἰδὼς) não é boa para o homem necessitado,

timidez que muito atrapalha ou ajuda.

Timidez vai com a pobreza, a audácia (θάρσος) vai junto com a riqueza.

αἰδὼς δ' οὐκ ἀγαθὴ κεχρημένον ἄνδρα κομίζει,

αἰδώς, ἥ τ' ἄνδρας μέγα σίνεται ἠδ' ὀνίνησιν·

αἰδώς τοι πρὸς ἀνολβίῃ, θάρσος δὲ πρὸς ὄλβῳ.

De imediato, algumas questões pertinentes podem ser levantadas. Em primeiro lugar, se

existem duas Aidôs, uma boa e uma má, tal como no caso das Lutas, ou apenas uma; em

segundo, é preciso explicar por que ela é má para o homem necessitado e qual a sua relação

com a pobreza;

Em terceiro lugar, o primeiro verso desta passagem, - αἰδὼς δ' οὐκ ἀγαθὴ κεχρημένον

ἄνδρα κομίζει - é idêntico ao verso 500 de Os Trabalhos e os Dias - ἐλπὶς δ' οὐκ ἀγαθὴ

κεχρημένον ἄνδρα κομίζει, salvo que neste é a Esperança quem não é boa para o homem

necessitado; e também idêntico ao verso 17.347 da Odisséia, αἰδὼς δ' οὐκ ἀγαθὴ κεχρημένῳ

ἀνδρὶ παρεῖναι
497
, havendo, neste caso, uma substituição de verbo, figurando, em Hesíodo,

κομίζει no lugar de παρεῖναι. A partir disto, é lícito perguntar também se há algum tipo de

ligação entre Aidôs e Esperança. Por outro lado, a partir desta semelhança com o verso

homérico, também parece interessante investigar o significado de Aidôs desde o seu emprego

496
Cf. Carrière (1987) pág. 803-805.
497
Od. 17.347. Por pudor, não deve conter-se um homem desprovido.
248
naquele poema, na esperança de que esta investigação nos ajude a esclarecer a noção

hesiódica.

Por fim, uma vez que ousadia (θάρσος) figura em oposição a Aidôs no verso 319, uma

investigação sobre θάρσος pode nos ajudar a compreender o que está em jogo. Também aqui,

uma visita à Odisséia nos será útil.

Porém, antes de examinarmos os versos homéricos mais de perto, devemos recorrer ao

painel geral que Carrière apresenta sobre Aidôs em Homero 498.

Segundo o autor, Aidôs é o fundamento afetivo e emocional da virtude, logo, para os

gregos, uma manifestação pública que envolve a todos, sejam detentores de autoridade, como

reis ou guerreiros; sejam protegidos pelos deuses, como sacerdotes e aêdos, membros da

família, como os pais, ou ainda, os necessitados, como estrangeiros, hóspedes, mendigos e

mesmo os mortos.

Entretanto, a sua manifestação varia segundo o status de cada um. Aos superiores, deve-

se respeito, fidelidade, obediência e fé na sua proteção. Aos amigos e parentes, moderação e

afeição. E aos necessitados, doçura, proteção e piedade, piedade esta que faltou a Aquiles, a

respeito do cadáver de Heitor 499, causando comoção até mesmo entre os deuses.

Aidôs aplica-se a domínios diversos. A sexualidade exige recato; as relações sociais

exigem respeito, não só ao outro, como também à propriedade do outro; a guerra exige a
500
coragem e o sentimento de honra, que impede a fuga, o abandono do companheiro . Desta

forma, Aidôs parece resumir em uma palavra um conjunto não codificado 501 de normas de

comportamento, mas antes introjetado no indivíduo sob a forma de um sentimento – por isto o

498
Cf. Carrière (1987). pag 833.
499
Il.24.44-45. ὣς Ἀχιλεὺς ἔλεον μὲν ἀπώλεσεν, οὐδέ οἱ αἰδὼς/ γίγνεται, ἥ τ' ἄνδρας μέγα σίνεται ἠδ'
ὀνίνησι. (A piedade, Aquiles aboliu-a/ e a reverência (Aidôs), fausta ou funesta aos mortais.). O verso
45 da Ilíada é igual ao 318 de Os Trabalhos e os dias: αἰδώς, ἥ τ' ἄνδρας μέγα σίνεται ἠδ' ὀνίνησιν·
500
Cf. Carrière (1987) pág. 794-795.
501
No domínio da guerra, hoje em dia, a Convenção de Genebra nada mais é do que a codificação de
Aidôs no âmbito da guerra.
249
termo comporta tantas traduções - cuja transgressão se dá por ações que são percebidas pela

coletividade como desmedidas e pérfidas – termos que traduzem hýbris e anaideíe –

suscitando um sentimento de indignação (nêmesis). Este sentimento é o ponto de partida para

a aplicação de sanções.

Feitas estas observações, podemos passar a examinar alguns versos homéricos

pertinentes.

Nos verso 17.346-347 da Odisséia, Telêmaco manda Ulisses, disfarçado de mendigo,

mendigar por comida:

Que esmole entre os cortejadores todos.


Não é bom que pudor esteja presente no homem necessitado.

αἰτίζειν μάλα πάντας ἐποιχόμενον μνηστῆρας·


αἰδὼς δ' οὐκ ἀγαθὴ κεχρημένῳ ἀνδρὶ παρεῖναι.

O verso é praticamente igual ao verso 317 de Os trabalhos e os dias: αἰδὼς δ' οὐκ ἀγαθὴ

κεχρημένον ἄνδρα κομίζει, mas Hesíodo substitui aqui o verbo παρεῖναι por κομίζει, sem que se

produza alteração significativa no sentido: em ambos os casos, Aidôs determina que inferiores

respeitem superiores, a ponto de quase impedi-los de exercer seu ofício, mendigar 502.

Como os versos e os contextos são idênticos, importa procurar mais algumas

ocorrências que nos ajudem a trazer à tona o que está em jogo.

Na conversa entre Nestor e Telêmaco, por ocasião da visita deste àquele, em Pilos, para

buscar notícias do pai, nos versos 3.14-16,

Telêmaco! Não te acanhes nem te apequenes


Pois cruzaste o mar a fim te informar 15
Sobre teu pai, em que terra está e o que sofreu.

Τηλέμαχ', οὐ μέν σε χρὴ ἔτ' αἰδοῦς οὐδ' ἠβαιόν·

502
Ainda que nos pareça de certa forma estranho encarar a mendicância como um ofício, parece que
Hesíodo a considerava como tal. A emulação provocada pela boa Luta nos versos 24 a 26 faz com que
oleiro provoque oleiro, carpinteiro a carpinteiro, que mendigo se meça a mendigo e aêdo a aêdo. A
aproximação entre mendigo e aêdo no mesmo verso não deve ser vista como obra do acaso. Afinal,
eles trabalham no mesmo campo, isto é, no domínio da palavra.
250
τοὔνεκα γὰρ καὶ πόντον ἐπέπλως, ὄφρα πύθηαι 15
πατρός, ὅπου κύθε γαῖα καὶ ὅν τινα πότμον ἐπέσπεν.

Nestor exorta Telêmaco a não ter Aidôs. Telêmaco é aqui um jovem em plena transição

para a fase adulta, que se sente impossibilitado, por causa de sua Aidôs, de dar este salto e de

assumir a posição que lhe é de direito, como filho de quem é. Para resolver o impasse que já

se prolonga, em 3.75-76, Atena instila a ousadia – θάρσος - que faltava ao jovem: “... ao que

Telêmaco, inspirado/ ousa resposta. Atenas lhe deu ousadia 503.”.

Os casos aqui descritos falam da Aidôs de pessoas que se encontram numa situação de

inferioridade, relativa, como no caso de Telêmaco, ou absoluta, como no caso do mendigo.

Falam também da necessidade de superar este sentimento que, neste momento, impede tanto o

jovem quanto o mendigo de agirem da forma que lhes é requerida. Na medida em que este

sentimento impede a ação, ele é prejudicial, podendo receber a qualificação de não-bom (οὐκ

ἀγαθή), ou seja, mau. A mola propulsora da superação deste sentimento é a ousadia (θάρσος).

Desta forma, respondendo a uma das questões propostas a respeito de Aidôs, se ela era

uma ou duas, entendemos que se trata do mesmo sentimento cujo efeito se desloca segundo a

oportunidade podendo ora ser bom, ora mau. Por isso Hesíodo cantou o aparentemente

lacônico verso 318, “Aidôs que muito atrapalha ou ajuda.” (αἰδώς, ἥ τ' ἄνδρας μέγα σίνεται ἠδ'

ὀνίνησιν·)

O jovem e o mendigo encontram-se numa posição de inferioridade social que pode ser

transferida mutatis mutandi para o homem necessitado do verso 317 de Os trabalhos e os

dias. A Aidôs do homem necessitado é igualmente má pelo mesmo motivo: impede a ação.

A relação com a Esperança, no verso 500 de Os trabalhos e os dias, parece ficar clara na

medida em que esta má Esperança - οὐκ ἀγαθή - é má na medida em está ligada ao homem

Od.75-76. τὸν δ' αὖ Τηλέμαχος πεπνυμένος ἀντίον ηὔδα,/ θαρσήσας· αὐτὴ γὰρ ἐνὶ φρεσὶ θάρσος
503

Ἀθήνη
251
que não age. Tudo aquilo que inibe a ação deve ser eliminado. O primeiro mandamento de

Hesíodo é agir.

Não parece restar dúvida sobre qual é a ação que se impõe ao homem necessitado:

trabalhar, arar, plantar e bem dispor a casa.

Resta ainda investigar o verso 319, αἰδώς τοι πρὸς ἀνολβίῃ, θάρσος δὲ πρὸς ὄλβῳ, o mais

problemático de todos: Timidez vai com a pobreza, audácia vai junto à riqueza.

Carrière retém, de sua investigação sobre a ocorrência dos termos na Odisséia, a idéia

geral de que os valores sociais destas noções variam de acordo com o status do observador,

Desta forma, do ponto de vista dos ricos, a aidôs dos inferiores é percebida como respeito, o

que é positivo, enquanto thársos é percebido como ousadia ou insolência, o que é negativo

(fazer nota aqui com Od.17.449.). Por outro lado, do ponto de vista dos hierarquicamente

inferiores – Telêmaco aí incluído, enquanto jovem perante o ancião Nestor – aidôs assume o

papel de complexo de inferioridade, o que é negativo, enquanto thársos funciona como a

autoconfiança que impede o inferior de se paralisar perante o superior, tendo então um valor

positivo 504.

Entretanto, ao aplicar o que foi colhido na Odisséia ao poema de Hesíodo, o autor

transfere para o segundo a rigidez social presente no primeiro: “A boa aidôs pressupõe um

conjunto de comportamentos fundados na recusa ao roubo e à violência, na opção pelo

trabalho e na adequação deste modelo a cada posição social. 505”.

A partir desta percepção equivocada, Carrière constrói seu raciocínio:

504
Cf. Carrière (1987) pág. 818.
505
Carrière (1987) pág. 827.
252
“a cada um o seu trabalho” significa dizer “a cada um as capacidades de produção

de seu oîkos”. A retribuição econômica vira retribuição moral e a concentração de

propriedade fica justificada pela virtude superior dos ricos 506.

Esta restrição não está em Hesíodo, já que este visava antes à possibilidade de

mobilidade social. Para dar apenas um exemplo, nos versos 311-313, isto é, muito perto dos

versos 317-319 que estamos examinando, ele diz a Perses:

Trabalho não é vergonha. Vergonha é não trabalhar.


Se trabalhares, logo te inveja o preguiçoso,
porque enriqueces.

ἔργον δ' οὐδὲν ὄνειδος, ἀεργίη δέ τ' ὄνειδος.


εἰ δέ κεν ἐργάζῃ, τάχα σε ζηλώσει ἀεργὸς
πλουτεῦντα·

Numa sutil manobra retórica, o poeta colocou Perses na posição do vizinho, que foi

apresentado como modelo de ação por ocasião de apresentação da Boa Luta, para que ele

pudesse sentir um gosto do destino que seus ensinamentos reservam:

Esta desperta ao trabalho até o indolente, 20


pois anseia por trabalho ao olhar para o outro,
rico, que se apressa a arar e a plantar
e bem dispor a casa. E vizinho emula vizinho
que corre atrás da riqueza.

ἥ τε καὶ ἀπάλαμόν περ ὁμῶς ἐπὶ ἔργον ἐγείρει· 20


εἰς ἕτερον γάρ τίς τε ἴδεν ἔργοιο χατίζων

506
Carrière (1987) pág. 834. Na conclusão de sua tese de doutorado, o autor chega mesmo a dizer que
“A diké hesiódica, antes de ser revolucionária parece ser bem mais modesta. Para ela a cidade só
pode existir na medida em que funciona em benefício dos mais ricos e mais poderosos.” Idem,
ibidem, pág. 849. Em trabalho mais recente o autor adota uma posição mais imparcial e mais
interessante: “Entretanto, há duas alegorias de Éris, a Luta. Ambas são ancestrais distantes de dois
grandes mitos modernos. A Éris negra, que concerne às usurpações sociais sem trabalho
(aniquilação dos pobres e roubo dos ricos) é, mesmo que individual, diretamente ligada ao processo
de produção. Desta forma, ela é uma ancestral da luta de classes marxista (....). A Éris boa, que é
transversal e corporativa (entre pessoas do mesmo ofício) tende mais ao mito da concorrência
liberal. A importância dos contextos levou o pensador a desdobrar a nação de Luta no plano
alegórico. É de se admirar a acuidade de sua reflexão social.” Carrière in Blaise, Judet de la Combe
& Rousseau (1996) pág. 408, nota 31.
253
πλούσιον, ὃς σπεύδει μὲν ἀρόμεναι ἠδὲ φυτεύειν
οἶκόν τ' εὖ θέσθαι· ζηλοῖ δέ τε γείτονα γείτων
εἰς ἄφενος σπεύδοντ'· ἀγαθὴ δ' Ἔρις ἥδε βροτοῖσιν.

Na raiz disso tudo está o entendimento de Carrière de que aidôs é um atributo do pobre,

enquanto thársos é um atributo do rico 507. Ora, se aidôs e thársos são sentimentos, não são

atributos e sim atitudes psicológicas que se deslocam como peso e contrapeso sobre um único

eixo, sendo este pobreza e riqueza. Hesíodo está aqui tratando de noções muito mais gerais

do que atributos fixos de classes sociais. O que está em jogo aqui são as manifestações

externas destas atitudes, quando ligadas ao trabalho: uma aidôs exacerbada, que inibe a ação

do homem, leva-o ou o mantém na pobreza. Não é difícil, ao menos no Brasil, visualizar isto.

Todos nós conhecemos alguém que, de tão humilde – eis aí mais uma possível tradução de

aidôs, é incapaz de orientar sua vida no sentido de lutar – a Boa Luta – para conquistar uma

situação melhor para si. Por outro lado, todos nós também conhecemos alguém que, oriundo

de extrema pobreza, jamais aceitou esta situação como fato consumado e reuniu forças –

thársos – para lutar contra esta condição, observando todos os interditos de Hesíodo, a saber,

a conquista de bens pela força do braço e/ou pela fraude da palavra.

Este debate com Carrière levanta a necessidade de mostrar que deve existir então uma

Aidôs para o rico e poderoso. E isto já está posto desde o verso da Ilíada, que fala da falta de

aidôs de Aquiles no trato com o cadáver de Heitor, falta tão grave que ofendeu até mesmo os

deuses. Em Hesíodo, a Aidôs universal, isto é, válida para todos os homens consiste nos dois

últimos versos do seu poema moral, que preconiza o trabalho isento de culpa perante os

imortais, consultando as aves e evitando todo exagero. Mas é certo que aqui também existe a

Aidôs própria ao poderoso, que é a de pronunciar retas sentenças e não comer presentes.

507
Carrière (1987) pág. 823.
254
Para finalizar, mais uma palavra sobre thársos. Se este se desloca no mesmo eixo que

aidôs, e existe uma aidôs excessiva, que é má e leva à pobreza, thársos também conhece o

excesso, que é a anaideíe, isto é, anaidôs, ou a ausência total de aidôs. Esta não leva à

riqueza, mas suscita Nêmesis e Diké. A Nêmesis veio para Aquiles sob a forma de Moira.

4.6 Amizade 508.

Embora Hesíodo jamais empregue o termo φιλία no seu poema moral, o que apontaria

mais diretamente para uma reflexão sobre uma noção moral abstrata, isto é, um conceito, ele

já põe em jogo, em “Os Trabalhos e os Dias”, elementos fundamentais para a constituição de

uma amizade segundo a virtude, conforme os padrões de Aristóteles.

Hesíodo aborda o relacionamento com o vizinho na passagem que abrange os versos

342-370. Logo no primeiro verso deste passo, o vizinho já se desdobra em duas

possibilidades: ou é amigo, ou é inimigo. Este é um castigo, aquele, grande socorro. Na base

de tudo está a utilidade: “se alguma desgraça se dá em tua casa,/ os vizinhos de presto te

acodem, parentes demoram. 509”. Mas, se esta utilidade é regida por uma noção de

reciprocidade, onde prevalece, à primeira vista, o interesse próprio: “Mede bem o que vem do

vizinho e bem o retorna/ na mesma medida ou mais, se puderes,/ para que, precisando mais

tarde, o encontres disposto. 510”, ou ainda, numa fala mais crua: “Dá a quem te dá e a quem

não te dá nada dês:/ dá-se a quem dá, ao que não dá, ninguém dá. 511”, por outro lado, é

508
As considerações que se seguem reproduzem, com ligeiras modificações, dois estudos anteriores
que empreendemos sobre a questão da amizade em Hesíodo, constando o primeiro na nossa
dissertação de mestrado, defendida em 2009 e mais tarde publicada junto com a nossa tradução de Os
trabalhos e os dias, em 2011, e a segunda, o fruto das observações que David Konstan, autor com
quem estabelecemos diálogo por ocasião da dissertação, acrescentou à nossa investigação tão logo
dela tomou conhecimento. Cf. Mantovaneli (2010).
509
Trab. 344-345. εἰ γάρ τοι καὶ χρῆμ' ἐγκώμιον ἄλλο γένηται,/ γείτονες ἄζωστοι ἔκιον, ζώσαντο δὲ
πηοί.
510
Trab. 349-351. εὖ μὲν μετρεῖσθαι παρὰ γείτονος, εὖ δ' ἀποδοῦναι,/ αὐτῷ τῷ μέτρῳ, καὶ λώιον αἴ κε
δύνηαι, / ὡς ἂν χρηίζων καὶ ἐς ὕστερον ἄρκιον εὕρῃς.
511511
Trab.354-355. καὶ δόμεν ὅς κεν δῷ καὶ μὴ δόμεν ὅς κεν μὴ δῷ·/ δώτῃ μέν τις ἔδωκεν, ἀδώτῃ δ'
οὔ τις ἔδωκεν·
255
também delimitada por um preceitos morais, o primeiro expresso por uma negação: “Nada

de ganhos escusos, estes são como ilusões. 512”, o segundo por uma afirmação: “Doação é

boa, roubo é mau: traz a morte. (v.356) 513”.

Em outras palavras, a doação pressupõe também uma recepção, isto é, troca, algo que

está em questão desde o início do poema: a distinção entre a troca justa e a troca escusa

(vv.35-41).

Por detrás deste linguajar seco e pragmático, descortina-se um tipo de relação

interpessoal ausente em Homero: uma associação que visa à preservação da vida boa. A

associação entre os heróis de Homero, a symakheía, visava à guerra e a honra, o que

instaurava uma tensão permanente: os heróis eram aliados na medida em que buscavam a

vitória, mas eram eternos rivais na busca pela glória.

Hesíodo agiu aqui, na sua dissertação sobre a amizade, de modo semelhante ao que

tratou da virtude. Em nenhum dos casos, apresentou uma definição, mas enquanto com

relação à virtude, conforme já visto, apresentou sua via de aquisição, ao tratar da amizade,

apresentou suas condições de possibilidade, onde a principal é a reciprocidade, expressa,

dentre outros, pelo preceito de dar a quem dá e de negar a quem não der, seguida pela

convivência, expressa pela proximidade do vizinho, contrastante com a distância dos

parentes, que demoram com o auxílio.

No bojo da exigência da conquista dos bens pela via do trabalho - nada de ganhos

escusos, ou ainda, o roubo é mau – subjaz a própria exigência do trabalho, aqui expressa de

forma discreta, mas que sugere também a repetição do ato, que não é outra coisa que o

512
Trab.352. μὴ κακὰ κερδαίνειν· κακὰ κέρδεα ἶσ' ἄτῃσι.
513
Trab.356. δὼς ἀγαθή, ἅρπαξ δὲ κακή, θανάτοιο δότειρα·

256
caminho da virtude: “E se acrescentares pouco ao pouco/ e com freqüência o fizeres, logo

muito será. 514.”

É bem verdade que a exigência do trabalho como condição para tornar-se também

merecedor de auxílio fica mais esclarecida mais adiante, já fora desta passagem dedicada à

relação com o amigo:

(...) Trabalha, Perses tolo,

os trabalhos que os deuses destinaram aos homens

para que nunca, com filhos e mulher, coração aflito, 400

peças sustento aos vizinhos e eles te neguem

Duas ou três vezes talvez consigas, mas se insistires

não terás coisa alguma (...)

(...) ἐργάζευ, νήπιε Πέρση,


ἔργα τά τ' ἀνθρώποισι θεοὶ διετεκμήραντο,
μή ποτε σὺν παίδεσσι γυναικί τε θυμὸν ἀχεύων 400
ζητεύῃς βίοτον κατὰ γείτονας, οἳ δ' ἀμελῶσιν.
δὶς μὲν γὰρ καὶ τρὶς τάχα τεύξεαι· ἢν δ' ἔτι λυπῇς,
χρῆμα μὲν οὐ πρήξεις (...)

Em outras palavras, para tornar-se merecedor do auxílio do vizinho, o homem deve

exibir um caráter trabalhador. A busca condicionada de auxílio junto aos vizinhos dá ensejo a

um novo sentimento: “Ganha um tesouro quem tem um vizinho de escol. 515”. As relações que

se estabelecem entre estes fundam uma nova experiência social, e a prática reiterada da

doação transforma-se em prazer: “O homem que dá por vontade, ainda que muito,/ alegra-se

com o presente e agrada seu espírito. 516”.

514
Trab. 361-362. εἰ γάρ κεν καὶ σμικρὸν ἐπὶ σμικρῷ καταθεῖο/ καὶ θαμὰ τοῦτ' ἔρδοις, τάχα κεν μέγα
καὶ τὸ γένοιτο·

Trab. 347. ἔμμορέ τοι τιμῆς ὅς τ' ἔμμορε γείτονος ἐσθλοῦ·


515
516
Trab. 357-358. ὃς μὲν γάρ κεν ἀνὴρ ἐθέλων, ὅ γε καὶ μέγα, δώῃ,/ χαίρει τῷ δώρῳ καὶ τέρπεται ὃν
κατὰ θυμόν·
257
Na raiz deste processo encontra-se a auto-suficiência (autarquia), algo muito caro a

Hesíodo: “É bom colher o que é seu, castigo para a alma/ é precisar do que falta. Pense bem
517
nisto. ”, e que Aristóteles apresentará duplamente, primeiro por meio de uma negativa:

“Por auto-suficiente não entendemos aquilo que é suficiente para o homem isolado, para

alguém que leva uma vida solitária, mas também para os pais, os filhos, a esposa, e em

geral, para os seus amigos e concidadãos, já que o homem é um animal político 518”, em

seguida positivamente: “Definimos a auto-suficiência como aquilo que, em si mesmo, torna a

vida desejável, por não ser carente de nada 519.”

Além do mais, a própria cidade, segundo Platão, tem sua origem no fato de cada um de

nós não ser auto-suficiente 520 e assim, auto-suficiência que o oîkos não conseguir prover, será

provida pela pólis.

Deste modo, a nova experiência social que está sendo gestada a partir da associação

pacífica entre os vizinhos com vistas à manutenção da vida boa é a pólis e o sentimento que

surge em decorrência desta associação é a amizade, o agente de união entre os oikonómoi.

Séculos mais tarde, Aristóteles escreverá, em concordância com Hesíodo, na abertura

de sua discussão sobre a amizade na Ética a Nicômaco, que a amizade é o que há de mais

necessário para a vida, e que sem amigos ninguém quereria viver. Todos: ricos ou pobres,

jovens ou velhos, beneficiam-se dela. No campo das ações humanas, dá-se de modo natural

entre pais e filhos e até mesmo entre aves e animais. Mesmo nas viagens, isto é, fora de sua

pólis natal - traço fundamental na construção da identidade do homem grego - ainda é

possível sentir a sua força e o homem, agora ξένος, que quer dizer simultaneamente

517
Trab. 366-367. ἐσθλὸν μὲν παρεόντος ἑλέσθαι, πῆμα δὲ θυμῷ/ χρηίζειν ἀπεόντος· ἅ σε φράζεσθαι
ἄνωγα.
518
EN. I.7.1097b 9-11.
519
Idem, 1097b 15.
520
Rep. 369b.
258
estrangeiro e hóspede, ainda hoje, no grego moderno, permanece amigo e familiar ao

homem 521.

Após ter ultrapassado os limites da muralha da pólis, Aristóteles retorna a ela:

Parece, ademais, que a amizade mantém unidas as cidades, e que os legisladores


consagram mais esforços a ela do que à justiça. Com efeito, a concórdia assemelha-se de
alguma forma à amizade e [os legisladores] lançam-se mais na sua direção, enquanto
procuram evitar a discórdia, por ser inimiga 522.

Coloca em seguida a amizade no patamar da phýsis, como fica demonstrado em seguida

ao abordar as investigações de Eurípides, Heráclito e Empédocles, para então retornar ao

âmbito humano do qual se ocupará no restante da sua investigação 523.

Mas há ainda algo desta apresentação da amizade que foi intencionalmente omitido e é

agora trazido à cena: a primeira definição que Aristóteles apresenta é que a amizade é uma

virtude, ou vem acompanhada da virtude 524.

Ora, na abertura do Livro II da Ética a Nicômaco, o filósofo sustenta que há dois tipos

de virtude, a intelectual e a moral 525. Uma vez que a amizade exige a existência de outro com

quem se relacionar, é válido inferir, já que Aristóteles não esclarece que tipo de virtude é

aquele que é ou acompanha a amizade, que trata-se aqui de uma virtude moral. A virtude

moral é adquirida pelo hábito 526 e resulta do exercício, ou seja, “adquirimos as virtudes

depois de termos trabalhado 527”. Isto implica em que há aqui um “trabalho trabalhando

sobre o trabalho” ou, como já foi dito, uma força de realização que se atualiza na própria

521
EN. VIII, 1, 1155 a 1-22.
522
Idem, VIII, 1, 1155 a 22-26.
523
Idem, VIII, 1, 1155 b 1-11.
524
Idem, VIII, 1, 1155 a 2.
525
Idem, II, 1, 1103 a 14.
526
Idem, 1, 1103 a 17.
527
Idem, II, 1, 1103 a 31.
259
obra, no próprio agir. Se a amizade é, de certa forma uma capacidade natural, ela demanda

uma ação sobre si para realizar-se.

Se alguém que age sobre si vê o vizinho agindo, também ele, sobre ele mesmo, o

reconhecimento é imediato e suas trocas e retribuições são necessariamente justas.

Esta é, para Aristóteles, “a amizade perfeita, aquela que se dá entre homens bons e

iguais em virtude, pois tais pessoas desejam o bem um ao outro de modo idêntico, e são bons

em si mesmos. 528”. Esta forma de amizade, que o filósofo assumirá como o padrão segundo o

qual as demais formas de amizade, seja com vistas ao que é útil, seja com vistas ao que é

prazeroso, guardam certa semelhança 529, atende, em última análise, às mesmas condições

estabelecidas pelos versos de Hesíodo, pois lá a relação começa a partir da utilidade, mas a

exigência de reciprocidade marcada pelo verso 344 - “Dá a quem dá e a quem não te dá

nada dês. 530”- introduz a exigência do trabalho, fonte da virtude e, retornando a Aristóteles, a

amizade segundo a virtude é justamente a única que conjuga nela mesma a utilidade e o

prazer, enquanto que as amizades pautadas unicamente no prazer ou na utilidade são ditas

amizade devido à semelhança.

Se o poeta não aborda estes outros tipos de amizade, e menos ainda discute se estes

tipos assemelham-se a ela ou dela derivam, como faz Aristóteles, nem por isso seu mérito é

menor. O modelo de amizade apresentado por Hesíodo é algo a ser seguido e imitado pelos

filhos e servos dos οἰκονόμοι virtuosos. Pouco importa que a imitação seja ou não bem

sucedida. O importante é que o movimento gerado pelo esforço da imitação desembocou em

transformação social. Os sucessos e os insucessos decorrentes deste esforço imitativo

geraram a tensão instauradora e mantenedora da pólis.

528
Idem, VIII, 3, 1156 b, 7.
529
Idem, VIII, 4, 1157 a, 1-2.
530
Trab. 344. καὶ δόμεν ὅς κεν δῷ καὶ μὴ δόμεν ὅς κεν μὴ δῷ·
260
Talvez seja oportuno aproximar as considerações aqui apresentadas com as que

Konstan desenvolve em seu livro, “A amizade no mundo clássico 531”.

Em primeiro lugar, há concordância de entendimento no que diz respeito ao mundo

homérico. Segundo Konstan, não há, em Homero, uma referência específica a amigos. A

afeição entre heróis está inserida em uma estrutura hierárquica que envolve um elemento de

deferência e até de medo 532. Mesmo a relação entre Aquiles e Pátroclo, tida por muitos como

uma das amizades paradigmáticas do mundo antigo 533, revela traços de assimetria

incompatíveis com a simetria requerida pela amizade, seja devido a um possível elo erótico,

onde, no mundo grego a assimetria era requerida 534, seja pela relação hierárquica, uma vez

que Pátroclo é descrito como uma espécie de escudeiro de Aquiles.

Outro ponto de concordância é o fato do autor reconhecer, não só nos versos já aqui

visitados sobre a amizade, como também em outra passagem de Os trabalhos e os dias, os

versos 707 -718, que ficam fora da presente discussão, os elementos que oferecerão o

contexto da amizade pessoal na cidade-estado clássica. A Konstan não causa muita surpresa

que o mundo camponês descrito por Hesíodo pareça antecipar a sociedade da pólis 535.

O ponto onde os entendimentos se afastam é a visão de Konstan de que Hesíodo tem

em vista a conveniência, ou, no jargão aristotélico, Hesíodo visa uma amizade regida pela

utilidade. A convicção do autor é tão forte que ele a expressa por duas vezes nas três páginas

que ele dedica a Hesíodo nesta obra. Na primeira oportunidade ressalta que a “cooperação é

um valor importante, mas deve ser tratada com cautela e considerando a vantagem

própria”, quando aborda os versos 353e 354, aqui transcritos segundo a tradução brasileira

531
Konstan (2005)
532
Idem, p. 58.
533
Idem, p.32
534
Idem, p.57.
535
Idem,p. 63.
261
do livro: “recebe bem quem o recebe [tòn philéonta phileîn], entra em contato com quem

entra em contato contigo, dá se ele der, não dês se ele não der.” A segunda, é a ocasião onde

analisa os versos 344-6, que tratam da preferência pelos vizinhos aos parentes, especificando

que é melhor convidar os que moram mais próximos: “pois se qualquer problema local

surgir, vizinhos[geítones] vêm como estão, ao passo que os parentes se vestem: um mau

vizinho é um desastre tanto quanto um bom vizinho é uma benção.” Konstan considera este

conselho prático, não como cultivo de amizade, mas como uma disposição para ser amistoso

e útil aos vizinhos, algo reconhecido como valor em qualquer sociedade de aldeia 536.

É possível começar a contestar a posição do autor a partir de seu próprio livro. Já na

Introdução, escreve: “Se amigos proporcionam presentes, presentes proporcionam amigos

(...) o fluxo material subscreve ou inicia relações sociais. 537” Os presentes que os candidatos

a amigos trocam entre si podem ser bens materiais (skeúa, khrémata) ou favores, que são

ações (práxeis). Por outro lado, a expressão “inicia relações sociais” sugere um continuum

que leva a um aprofundamento, enquanto que a abordagem de Konstan parece descrever uma

série repetitiva de trocas pontuais e estanques.

Mas dentro mesmo da passagem em questão, Konstan não deu atenção a dois versos

importantes, o verso 352, “Nada de ganhos escusos: estes são como ilusões. 538” E o verso

356, “Doação é boa; roubo é mau: traz a morte. 539” Em primeiro lugar, a interdição ao

roubo é patente. Nunca é demais lembrar que este é um dos pontos nevrálgicos do poema.

Hesíodo quer revogar a ética heróica que legitima o ganho pelo saque. Em segundo lugar, é a

doação quem é boa, e não o favor recebido. Como então pode haver uma vantagem própria

fundando o ato de dar? Por outro lado, parece lícito inferir que aquilo que se está dando foi

536
Idem, p. 61-2
537
Idem, p. 5.
538
Trab. 352. μὴ κακὰ κερδαίνειν· κακὰ κέρδεα ἶσ' ἄτῃσι.
539
Trab. 356. δὼς ἀγαθή, ἅρπαξ δὲ κακή, θανάτοιο δότειρα·
262
conquistado com o próprio trabalho, e não com o saque. Conquistar as coisas com o próprio

trabalho confunde-se, como já visto, com o caminho da virtude.

Os versos que se seguem, “O que o homem dá por vontade/ alegra-o como presente e

agrada seu espírito. (357-8) 540”, introduzem o prazer que marca as trocas que se estabelecem

entre homens que já trilharam o caminho da virtude.

Ao tomar conhecimento destas ponderações, Konstan observou que nosso principal


ponto, o de que os laços aprovados por Hesíodo estão fundados na apreciação do caráter – as
virtudes de trabalho duro e honestidade – e deste modo, a sugestão de que Hesíodo visava
somente a utilidade como base fundadora da amizade torna-se muito limitada. O ponto foi
considerado bem sustentado.

Entretanto, prossegue, não nos demos conta de algo que ele escreveu a respeito de
Hesíodo, que poderia talvez aproximar ainda mais nossas visões, referindo a uma passagem
onde Hesíodo parece estar claramente falando sobre amizade:

“Não tornes um hetaîros igual a um irmão [kasígnetos], mas se o fizeres, não sejas
o primeiro a enganá-lo ou mentir para ele com a própria língua. Se ele começar a dizer ou
fazer algo ofensivo, lembra-te de lhe pagar em dobro. Se ele te aceitar novamente em sua
afeição [philótes] e estiver disposto a pagar a sanção, recebe-o: desprezível é o homem
que faz um phílos aqui, um phílos ali.” 541

Konstan assinala que o termo phílos, que aqui ocorre na sua fórmula usual,
acompanhado de poieisthai, parece ser antes substantivo do que adjetivo; além do mais, o
contexto sugere o deliberado reconhecimento de um laço especial que tanto pode ser quebrado
quanto cultivado. O amigo aqui é uma categoria distinta do parente, do vizinho e do
camarada. Estabelecer uma amizade com alguém envolve não só sentimentos calorosos, como
também um comprometimento com a relação.

Como se pode ver, Konstan admite que Hesíodo pensa na existência de amigos
verdadeiros e não apenas vizinhos.
540
Trab. 357-358. ὃς μὲν γάρ κεν ἀνὴρ ἐθέλων, ὅ γε καὶ μέγα, δώῃ,/ χαίρει τῷ δώρῳ καὶ τέρπεται ὃν
κατὰ θυμόν·
541
Hesíodo, Os Trabalhos e os Dias - versos 707-13, segundo a tradução brasileira do livro de David
Konstan.
263
E prossegue:

Esses são os elementos que oferecerão o contexto da amizade pessoal na cidade-


estado clássica: a articulação de uma esfera entre o lar individual e a sociedade civil em
geral, regulada por convenções de sentimento mais do que pela lei da propriedade e
direitos políticos, e que atrai, ao menos nos primeiros estágios, uma conexão específica
com uma identidade de classe articulada em torno do banquete coletivo ou simpósio. Não
é de causar muita surpresa que o mundo camponês descrito por Hesíodo pareça antecipar
a sociedade da pólis.

Ainda assim faz a ressalva de que talvez tenha falhado em indicar que o poeta tinha em
mente as virtudes e o caráter como base desta amizade, e isto merece ser reconhecido para
apreciar a amizade dentro dos termos aristotélicos 542.

Em face às observações de Konstan, temos que admitir nossa falha na leitura da


passagem por ele empregada, os versos 707 a 713, que apontam para o continuum do qual
reclamamos acima a ausência, decerto obscurecidos pela prescrição, no caso em tela, de
retornar o malfeito e não o favor ou o presente recebido.

De qualquer forma, Konstan lança luz sobre o conselho de Hesíodo para mantermo-nos
sempre numa disposição de possibilidade de retomar o curso da construção da amizade. No
seu comentário aos versos acima, ele chama atenção para a fragilidade da amizade,
principalmente quando se tem como elemento comparativo a profundidade e a intensidade dos
laços de sangue, sobretudo o irmão, que não deve nunca ser equiparado ao camarada, e que
abre a passagem em tela no papel de referência profunda. A amizade, sobretudo a nascente,
demanda cuidados constantes.

No final de sua réplica, Konstan aponta para a articulação da esfera individual com a
sociedade civil como um todo. Com esta manobra, a amizade é guindada à sua função de
cimento social e mostra que a sociedade é mais regulada e regulável por sentimentos do que
por leis. Não há como discordar disto.

542
Konstan in Mantovaneli (2010) pag. 71-72.
264
4.7 Díke, a integração das noções morais.

As noções morais presentes no pensamento de Hesíodo são integradas em uma única,

que é Díke, que é Justiça. Por outro lado, esta só pode ser minimamente compreendida

quando todas as demais são levadas em consideração.

Por isso, é importante retornarmos ao poema e percorrermos mais uma vez as noções

morais que acabamos de estudar, mas agora enfocando o modo como o poeta articula-as com

vistas a uma integração. Mas para bem realizarmos movimento de retorno, já devemos estar

familiarizados com o método didático do poeta: ele parte de sínteses da experiência que

desembocam em máximas, expressas por meio de um imperativo ou, na maioria das vezes,

por um indicativo categórico, que já têm o valor de lei moral. Em outras palavras, Hesíodo

indica um caminho para a Justiça.

Vale lembrar que estas sínteses da experiência já são abstrações. O único caso concreto

mencionado em todo Os trabalhos e os dias, o julgamento da questão judicial com Perses, é

deixado inconcluso, pois Hesíodo já parte daí para uma investigação sobre a natureza da

Justiça.

Indicar parece ser o verbo mais adequado para o caminho da Justiça, já que é

amplamente aceito que Díke e o verbo deíknymi, que significa mostrar, apontar, indicar 543,

têm radical comum. Dentre estas possibilidades, indicar é a que mais convém aqui, porque,

além de sua ligação com o caminho, também preserva a herança – dic – do radical comum.

Como já sustentamos que Justiça foi o último presente de Zeus aos homens para que

eles se possam precaver da desmedida, da Hýbris, partimos do entendimento inicial de que a

Justiça só se dá a conhecer a partir de uma injustiça e que é preciso percorrer todo o caminho

543
Cf. Santoro (2011) pág.66, onde o autor também liga Díke a caminho.
265
daquela injustiça em direção à Justiça. Deste modo, Justiça é algo que nunca se revela por

completo, já que ela se mostrará sempre a partir de e dentro dos limites da questão inicial que

desencadeou a sua busca. Isto confere à deusa um aspecto predominantemente punitivo, mas

ao longo do caminho, teremos a oportunidade de constatar que é possível chegar até ela a

partir de uma ação boa, que é quando Díke se manifesta como recompensa. Mas, de todo

modo, isto não invalida a percepção, ainda hoje vigente, de que a justiça só atua quando

provocada. Por isso ela é incognoscível na sua totalidade. Por isso, Hesíodo a vestiu de ar.

Éris, a Luta, é o fundamento de toda moral, não só por ser apresentada como uma deusa

– e como tal, pode ser entendida como um modo de regulação de forças no cosmos – mas,

sobretudo, por ser a primeira coisa a receber as qualificações possíveis de boa ou má, o que só

foi possível depois que ela foi fincada por Zeus nas raízes da terra. Isto equivale dizer que está

possibilidade de qualificação só diz respeito aos homens.

Exatamente por apresentar os efeitos de cada uma das duas Érides sobre os homens em

geral, isto é como sínteses de experiência, que o poeta pode ser categórico: uma é boa e outra

é má, o que lhe permite lançar uma máxima exortativa a Perses: “que a Luta que se alegra

com o mal não te desvie o ânimo do trabalho” (v.28, μηδέ σ' Ἔρις κακόχαρτος ἀπ' ἔργου θυμὸν

ἐρύκοι).

O Trabalho surge como consequência disso. Se a Luta má traz a guerra e a Luta boa é

lutada por meio do trabalho; e se o que importa é escolher o que é bom como um caminho

para o que é justo, a escolha do Trabalho está justificada.

O Trabalho, Pónos ou Érgon, é tão ambíguo quanto a Luta, mas enquanto esta se cindia

em duas distintas, uma boa e outra má, no Trabalho a ambiguidade se internaliza. É a mesma

realidade que pode ser vista ora como boa, ora como má, sendo sempre ambas. Nisto, já vai

266
uma indicação importante: se o Trabalho só diz respeito ao homem e é ambíguo, o homem

também o é.

Por isso, as considerações sobre o Trabalho serão, num primeiro momento, incorporadas

ao bojo mítico do poema, que constitui também seu núcleo teórico, e o Trabalho se faz

presente no mito de Prometeu, recuperando aspectos da versão constante na Teogonia,

carregando o acento sobre o aspecto de Pónos, bem como recupera o Hino a Hécate, onde o

acento recai sobre o aspecto de Érgon. O mito das raças, por sua vez, coloca em evidência a

Hýbris, como elemento constituinte do homem. A ambiguidade do homem se manifesta por

sua eterna oscilação entre Hýbris e Díke.

Em outras palavras, apesar do tema do Trabalho já ter sido introduzido junto com a

Luta, o poeta sente a necessidade de esclarecer porque ele é necessário ao homem, para depois

retomá-lo.

A “profecia” do fim da raça de ferro funciona como um recurso para levar Hýbris às

últimas consequências, o que propicia ao poeta a oportunidade de resumir tudo em mais uma

máxima categórica: a desmedida é má para o pobre mortal (v.214. ὕβρις γάρ τε κακὴ δειλῷ

βροτῷ), o que desencadeia a necessidade de Díke para o homem, e esta é apresentada logo a

seguir como um antídoto à Hýbris:

Mas há outro caminho a seguir,

que é melhor: o das coisas justas. Justiça vence a desmedida,

revelando-se ao fim

ὁδὸς δ' ἑτέρηφι παρελθεῖν


κρείσσων ἐς τὰ δίκαια· δίκη δ' ὑπὲρ ὕβριος ἴσχει
ἐς τέλος ἐξελθοῦσα·

267
Estes versos (216-218), além de oporem Díke a Hýbris, apresentam a primeira como um

caminho, que é um envio, ou melhor, uma articulação de ações e de discursos e também uma

articulação entre as ações e o discurso, que se revela ao fim. O que se revela ao fim é a

verdade. Sendo preciso percorrer um caminho para encontrá-la, esta verdade radica numa

experiência que não pode ser errática. Ela deve ser norteada por um pensamento que é sempre

testado pelo ato de caminhar, confirmando-se ou não como verdade e corrigindo-se o rumo,

sempre que necessário. Cremos que o discurso que Hesíodo marca como étymos ou etétymos

remete a uma verdade desta ordem.

Deste ponto até o verso 273 Hesíodo entoa um hino à Justiça, para em seguida, no verso

279, deixar patente que a Justiça é algo privativo do homem: “Aos homens, sim, [Zeus] deu a

Justiça, muito mais nobre” (ἀνθρώποισι δ' ἔδωκε δίκην, ἣ πολλὸν ἀρίστη). Um pouco antes, no

verso 276, o poeta deixa patente que recebe este presente de Zeus como lei: “Pois o Cronida

dispôs aos homens a lei”. (τόνδε γὰρ ἀνθρώποισι νόμον διέταξε Κρονίων).

Ainda que até aqui tudo indique que esta lei tenha um estatuto moral, o destino do seu

caminho é também jurídico e político, para regrar não só a conduta individual, como também

para reger as transações que os homens estabelecem entre si 544.

Sendo então a Justiça uma questão de caminho, Hesíodo oportunamente apresenta a já

visitada passagem dos caminhos, para que Perses e nós saibamos nos orientarmos na trilha:

Pois eu que conheço o bem, te digo, Perses, grande tolo:

mui pronto o vício conquista multidões,

é muito fácil: seu caminho é plano e está logo ali.

Mas perante a virtude, suor ordenaram os deuses

imortais. É longa e inclinada a subida até ela, 290

espinhosa no início, mas quando se chega ao topo

mais fácil se torna, ainda que seja difícil.

544
Também assim Platão recebeu esta lição. Cf. Leis 713 e.6-a.2 e nota 406.
268
Σοὶ δ' ἐγὼ ἐσθλὰ νοέων ἐρέω, μέγα νήπιε Πέρση·

τὴν μέν τοι κακότητα καὶ ἰλαδὸν ἔστιν ἑλέσθαι

ῥηιδίως· λείη μὲν ὁδός, μάλα δ' ἐγγύθι ναίει·

τῆς δ' ἀρετῆς ἱδρῶτα θεοὶ προπάροιθεν ἔθηκαν

ἀθάνατοι· μακρὸς δὲ καὶ ὄρθιος οἶμος ἐς αὐτὴν 290

καὶ τρηχὺς τὸ πρῶτον· ἐπὴν δ' εἰς ἄκρον ἵκηται,

ῥηιδίη δὴ ἔπειτα πέλει, χαλεπή περ ἐοῦσα.

Agora sim, está preparado o terreno para abordar o Trabalho, daí em diante, sempre

enquadrado como Érgon.

No decorrer de quase oitenta versos, entre os versos 303 e 381, Hesíodo alterna várias

sínteses da experiência com máximas que abordam o Trabalho sob os seus múltiplos aspectos.

Sem pretensão de sermos exaustivos, apresentaremos algumas e retornaremos a outras

passagens já visitadas, contidas neste trecho, com o único intuito de assinalar como as noções

morais integram-se à Justiça.

Entre os versos 303 e 310, o poeta chama atenção para a imagem que deuses e homens

fazem daquele que não trabalha: odeiam o lerdo (v.303, ἀεργὸς), numa síntese que desemboca

na máxima “Trabalho não é vergonha. Vergonha é não trabalhar” (v. 311, ἔργον δ' οὐδὲν

ὄνειδος, ἀεργίη δέ τ' ὄνειδος).

Esta máxima, por sua vez, permite o poeta abordar outra possível causa da inatividade,

que é Aidôs, ou Pudor, que é a vergonha.

Como o que importa aqui é examinar a integração das noções morais na Justiça, vamos

retornar a duas ocorrências de Aidôs que, embora compondo o mesmo trem de pensamento,

foram abordadas em separado anteriormente:

A timidez (αἰδὼς) não é boa para o homem necessitado,

269
timidez que aos homens muito atrapalha ou ajuda.

Timidez vai com a pobreza, a audácia (θάρσος) vai junto com a


riqueza.

Bens não devem ser roubados: doados por deus são muito melhores.

pois se alguém, pela força do braço, alcança a riqueza,

ou a consegue pela palavra, o que com frequência

acontece quando o lucro ilude a mente

dos homens e perfídia (ἀναιδείη) afugenta o escrúpulo (αἰδῶ),

αἰδὼς δ' οὐκ ἀγαθὴ κεχρημένον ἄνδρα κομίζει,

αἰδώς, ἥ τ' ἄνδρας μέγα σίνεται ἠδ' ὀνίνησιν·

αἰδώς τοι πρὸς ἀνολβίῃ, θάρσος δὲ πρὸς ὄλβῳ.

χρήματα δ' οὐχ ἁρπακτά, θεόσδοτα πολλὸν ἀμείνω·

εἰ γάρ τις καὶ χερσὶ βίῃ μέγαν ὄλβον ἕληται,

ἢ ὅ γ' ἀπὸ γλώσσης ληίσσεται, οἷά τε πολλὰ

γίνεται, εὖτ' ἂν δὴ κέρδος νόον ἐξαπατήσῃ

ἀνθρώπων, αἰδῶ δέ τ' ἀναιδείη κατοπάζῃ, 325

Em primeiro lugar, cumpre assinalar que a ausência do Trabalho é um mal absoluto. Pouco

importa se por preguiça ou por vergonha, a ausência do Trabalho é injustificável. Em seguida, vemos

que Aidôs, ou timidez, ou vergonha, foi introduzida no debate por causa de sua ligação com o

Trabalho. Esta ligação se mantém presente neste texto, já que os melhores bens, isto é, os

doados por deus, só são doados como recompensa pelo Trabalho, o que faz com que o verso

320 – “Bens não devem ser roubados: doados por deus são muito melhores” – funcione

como máxima moral que torna evidente que Justiça não é apenas punitiva, sabendo

recompensar as boas ações dos homens.

270
Aidôs, ou Pudor, é a expressão do sentimento moral e, além de muito ajudar ou

atrapalhar (v.318, ἥ τ' ἄνδρας μέγα σίνεται ἠδ' ὀνίνησιν) os homens 545, isto é, de poder ser

qualificada como boa ou má, exige a medida certa para configurar-se como boa. E Justiça é

sempre uma questão de medida, na medida em que o poeta avança outra máxima: “Mede bem

o que vem do vizinho e bem o retorna” (v. 349, εὖ μὲν μετρεῖσθαι παρὰ γείτονος, εὖ δ'

ἀποδοῦναι,).

Este verso expande entre os homens o que já havia se estabelecido na relação do homem

com o deus: ele receberá na medida em que deu. Se ele deu Trabalho, recebe os bens, se nada

deu, nada recebe. O mesmo se dá na cidade, como forma de regular as transações humanas.

O vizinho, por ser humano, é ambíguo, coisa que o poeta registra logo de saída: “o mau

vizinho é um castigo, o bom, grande socorro” (v.346, πῆμα κακὸς γείτων, ὅσσον τ' ἀγαθὸς μέγ'

ὄνειαρ·). O mau vizinho é logo descartado, de forma seca, mas sem rancor: “Dá a quem te dá,

a quem não te dá nada dês.” (v.354, καὶ δόμεν ὅς κεν δῷ καὶ μὴ δόμεν ὅς κεν μὴ δῷ·) O bom

vizinho, estamos bem lembrados, é o amigo em potencial. É aquele com quem, se as

transações forem regidas pelos bons preceitos, se vai contar nos momentos difíceis, se vai

crescer junto e com quem a convivência, observados estes termos, tende a ser prazerosa,

podendo mesmo, toda esta experiência expandir-se por toda a cidade e produzir a cidade justa

dos versos 225 a 237. Neste movimento, a proposta moral é também proposta ética.

Dentro deste quadro, Elpís, a Esperança, na medida em que deve estar sempre ligada à

ação, ao Trabalho, desponta como a força prospectiva do homem sábio, sendo, talvez, uma

das primeiras formulações de uma causalidade prática.

Eis o melhor: aquele que pensar tudo por si,


conjugando o próximo passo com o fim.

545
Aidôs é mais uma marca do homem, já que nem deuses nem bestas fazem uso dela.
271
É bom também quem ouve do bem e obedece, 295
mas quem não pensa por si, nem ouvindo o conselho
não o guarda na mente, este é um homem inútil.

Οὗτος μὲν πανάριστος, ὃς αὐτῷ πάντα νοήσει

φρασσάμενος τά κ' ἔπειτα καὶ ἐς τέλος ᾖσιν ἀμείνω

ἐσθλὸς δ' αὖ κἀκεῖνος ὃς εὖ εἰπόντι πίθηται· 295

ὃς δέ κε μήτ' αὐτῷ νοέῃ μήτ' ἄλλου ἀκούων

ἐν θυμῷ βάλληται, ὃ δ' αὖτ' ἀχρήιος ἀνήρ.

O que está em jogo é saber escolher o bem final e os meios para atingi-lo, tendo sempre

em mente que o próximo passo deve ser dado sempre com vistas ao fim que se propôs, numa

atividade marcadamente intelectual, conforme assegura o verso 293, “aquele que pensar tudo

por si” (ὃς αὐτῷ πάντα νοήσει 546). Esta é sem dúvida a boa esperança. Não foi por acaso que

Aristóteles citou estes versos de Hesíodo logo no início da Ética a Nicômaco 547, no momento em que

introduz a felicidade como tema de discussão, acrescentando que o homem bem educado, ou já

conhece esses princípios ou poderá vir a conhecê-los com facilidade, mas quem não os conhece deve

ouvir os ensinamentos do poeta. Desta forma, o homem que é o melhor (πανάριστος) de Hesíodo não é

outro senão o prudente (φρόνιμος) de Aristóteles.

Retornando ao poema, bem mais adiante o poeta faz a ressalva de que a capacidade

prospectiva do homem sábio opera dentro dos limites das possibilidades do homem, pois em

face ao acaso ou perante as forças da natureza, a boa Esperança converte-se em piedade e

sacrifício, pois já nos encontramos no insondável âmbito dos deuses e também isto é preciso

considerar:

546
Não é por acaso que este verbo está no futuro.
547
E.N. I.4.1095b.7-14.
272
Se ao fim o Olímpico permite um ciclo perfeito,

As teias de aranha tu tiras do pote e espero 475

Que te alegres juntando a colheita dentro de casa.

εἰ τέλος αὐτὸς ὄπισθεν Ὀλύμπιος ἐσθλὸν ὀπάζοι,

ἐκ δ' ἀγγέων ἐλάσειας ἀράχνια, καί σε ἔολπα 475

γηθήσειν βιότου αἰρεύμενον ἔνδον ἐόντος.

O Trabalho é então o fio que une todas as demais noções, a Luta, a Esperança, o Pudor e

a Amizade à Justiça, sendo para Hesíodo o único caminho que leva à deusa que não se revela

nunca por inteiro, mas se manifesta a cada instante da vida. Por isso o poeta encerra sua

explanação sobre o Trabalho, iniciada no verso 303, com a poderosa exortação a Perses,

constante no verso 382, “Assim obra: Tabalho sobre trabalho trabalha” (ὧδ' ἔρδειν, καὶ ἔργον

ἐπ' ἔργῳ ἐργάζεσθαι). Daí em diante inicia-se a seção dos Trabalhos, onde ele vai ensinar a

Perses quais os Trabalhos ele deve cumprir para trabalhar sobre si mesmo e fazer-se um

homem bom. Daí para frente é mãos à obra para que, através da repetição dos ciclos anuais de

Trabalho deixem de ser apenas discurso e se incorporem, isto é, se tornem corpo, força

criativa, virtude do e no homem que trabalha, o novo herói de Hesíodo.

4.8 Conclusão

As noções morais que acabamos de estudar – é importante assinalar que Nêmesis não

foi considerada porque o poema não nos fornece subsídios para uma investigação mais

aprofundada; que o estudo da piedade, aqui apenas indicado, é, talvez, tema para outra tese; e

que não excluímos a possibilidade da presença de outras noções que nos tenham escapado –

integram-se em Díke, a Justiça, unidas pelo fio condutor do Trabalho.

273
Digno de nota é o modo como o poeta realiza sua obra no plano do discurso: partindo de

sínteses gerais da experiência, o poeta converte estas sínteses em máximas de enorme poder

persuasivo que alcançam mesmo o valor de lei.

Ao contemplarmos o conjunto da obra, isto é, quando reconhecemos unidos a força

persuasiva do discurso didático e o rigor da integração das noções morais, que não só

organizam a vida do indivíduo, mas também o colocam em disposição para relacionar-se com

o outro, constatamos que Hesíodo repetiu em Os trabalhos e os dias o que já tinha realizado

na Teogonia, isto é, enquanto no primeiro poema logrou organizar uma sistematização dos

deuses que resultou na compreensão do cosmos divino, no segundo, organizou

sistematicamente as ações humanas de modo a que aconteça (γίγνεται) um cosmos humano,

de modo natualizado (φύσει): “para estes a cidade germina e nela o povo floresce” (v.227,

τοῖσι τέθηλε πόλις, λαοὶ δ' ἀνθεῦσιν ἐν αὐτῇ·).

Tudo isto, dentro de um cosmos de palavras (κόσμον ἑπέων) 548.

548
Devemos a noção de κόσμον ἑπέων a Jenny Strauss Clay, por seu livro Hesiod’s Cosmos, onde
esta noção perpassa toda a obra.
274
5. Conclusão

Tentamos mostrar que, tomados em conjunto, os dois principais poemas de Hesíodo

apontam para a construção de um discurso propriamente humano e assumimos que este

discurso, por demandar alto grau de autonomia, é a condição fundamental para a emergência

do discurso filosófico. Para tanto, tomamos como ponto de partida os versos 27 e 28 da

Teogonia e 10 de Os trabalhos e os dias. Do confronto destes textos resulta que no primeiro

temos um sujeito divino (Μοῦσα) que fala de um modo próprio (γερύσασθαι) anunciando

verdades (ἀληθέα) que pertencem ao seu modo próprio e divino de ser. No segundo texto, há

também um sujeito (ἐγώ) que fala de um modo próprio (μυθησαίμην) discorrendo sobre as

verdades (ἐτήτυμα) que o homem deve levar em conta para lograr uma vida feliz, propósito

que os três versos que fecham o poema confirmam: “Feliz e abastado é aquele que, tendo

todo este/ saber, trabalha isento de culpa perante os imortais,/ consultando as aves e

evitando todo exagero. (Trab. 826-828.).” Estes versos mostram claramente que o trânsito do

discurso divino para o humano não implica num ruptura entre as duas instâncias, mas antes

reafirmam a subordinação do humano ao divino. Além do mais, a posse do saber (εἰδώς)

coloca a verdade como norte da ação (ἐργάζεται) que levará à vida feliz (εὐδάιμων) e abastada

(ὄλβιος).

Para levar a cabo tal tarefa, sentimos a necessidade de tornar patente a relevância da

obra do poeta – e, por conseguinte, a relevância do próprio autor – na façanha que foi levada a

cabo pelo pensamento grego, isto é, a construção da filosofia.

Neste sentido, uma desconstrução da visão contemporânea das escolas filosóficas pré-

socráticas, e mesmo da própria filosofia como disciplina escolar, foi necessária para podermos

ter bem evidente o caráter histórico do surgimento da filosofia. Para tanto, a noção de

reflexividade revelou-se instrumento de grande valia. Esta mostrou a existência, àquela época,
275
de um vasto campo de batalha discursivo onde pensadores que se reconheciam e eram

conhecidos como sábios (σοφοί) exerciam no e recebiam influência, ou força, deste mesmo

campo discursivo que, se por um lado era multifacetado, por outro era público, o que justifica

tanto a desconstrução da filosofia como disciplina, quanto a da noção da escola filosófica pré-

socrática, que apontaria para uma atividade mais sistematizada na forma e mais restrita quanto

ao modo de atuação.

Com este propósito, a metáfora da “nebulosa dos primeiros filósofos”, cunhada por

André Laks, foi incorporada e amplificada, pois nos permite visualisar, poeticamente, como

cada um daqueles astros recebeu e deu sua contribuição para um movimento cuja resultante

obteve direção e sentido a partir desta interação de forças.

Esta metáfora nos permite ainda apresentar Hesíodo como astro de primeira grandeza,

bem como assinalar que naquele vasto aglomerado de corpos celestes o poeta era a única

categoria reconhecida que se destacava naquela constelação de sábios. Quanto aos demais, era

impreciso dizer se eram matemáticos, médicos, historiadores ou filósofos.

Mas a poesia não é um campo de saber constituído e determinado. Ela é antes um meio

de difusão, o mais eficaz de então. E como tal, ela se difundiu, impregnando campos que

estavam em via de se determinar. A filosofia não escapou a isso, recebendo da poesia tópoi,

temas e problemas.

Postas estas considerações, o passo seguinte foi o de tentar tornar o autor e sua obra, ao

menos seus dois principais poemas, mais visíveis. Isto demandou nova desconstrução, desta

vez da imagem de Hesíodo como poeta camponês, o que para muitos intérpretes

contemporâneos implica num poeta menor. Neste sentido, o trabalho de Haubold mostra que o

narrador de cada um dos poemas em questão desempenha funções adequadas ao propósito de

276
cada obra, sendo o pastor da Teogonia alguém que, por viver nos limites da terra cultivada, o

que equivale dizer nos limites do humano, está mais propenso a um encontro com o divino,

enquanto o camponês de Os trabalhos e os dias é a marca da entrada no âmbito do humano,

podendo mesmo ser visto como índice de excelência e, portanto, habilitado a ensinar como ser

“feliz e abastado” e a “trabalhar isento de culpa perante os imortais.”

Foi igualmente necessário contrastar Hesíodo a Homero, indiscutivelmente o maior

poeta grego, de onde o poeta de Ascra surge como o segundo poeta. Mas este segundo aqui é

visto não na ordem de grandeza, mas antes como o momento dialético da diferença, o que

permite por em evidência que a fala de Hesíodo é bem menos dependente da inspiração das

Musas do que a fala de Homero, chegando mesmo a falar na primeira pessoa do singular, um

“eu” humano, que fala sobre assuntos humanos. Sem dúvida, um passo considerável na

conquista do discurso humano autônomo.

Começamos enfim a mergulhar no bojo da nossa pesquisa, levantando como os dois

versos da Teogonia e o verso de Os trabalhos e os dias têm sido recebidos pelos intérpretes

contemporâneos, para dai extrairmos nosso próprio entendimento. Ao contrário da maioria,

que entende que Hesíodo está assegurando a verdade de sua fala e denuncia da mentira da

poesia de outros poetas, entendemos que Hesíodo aponta para a distância entre o divino e o

humano, tomada pelo viés epistemológico, isto é, pela questão do saber e de sua expressão.

Segundo este olhar, a diferença radical entre o saber divino e o saber humano, ainda que

intransponível, admite gradações, que são expressas por ψεύδεα πολλὰ, e dentro deste

gradiente o humano pode se aproximar do divino. Entre estas e o saber divino (ἀληθέα) cabe

um saber propriamente humano (ἐτήτυμα) que permite ao homem agir segundo as

determinações daquilo que lhe é inalcançável – o divino.

277
Hesíodo mergulha no mundo divino para daí extrair o seu discurso humano. A primeira

questão com que se defronta é a da temporalidade narrativa. Se os deuses são eternos, seu

tempo é o sempre presente. Mas para os mortais, que nascem, crescem e morrem, é necessário

que as coisas sejam apresentadas obedecendo alguma orientação temporal que reproduza esta

experiência para que a narrativa lhes resulte compreensível. Isto é ilustrado pela necessidade

de ordenação do canto das Musas. O seu primeiro canto é truncado (Teog. 2-22.) tanto pela

nomeação não exaustiva dos deuses quanto pela falta de organização temporal, chegando

mesmo a seguir uma cronologia invertida. Já o segundo (Teog. 43-50.) aponta para o

surgimento dos deuses ἐξ ἀρχῆς (Teog. 45.). Este canto temporalmente ordenado só surge

como consequência do encontro entre humano e divino que se deu entre os versos 22 e 34, de

onde Hesíodo chegou como pastor e saiu como poeta iniciado.

Daí surge um modelo de narrativa: em Os trabalhos e os dias, o ciclo das Plêiades (v.

384-616) orienta a apresentação do ciclo anual dos trabalhos do campo e assinala a hora mais

perigosa para a navegação (v.619). O mito das raças é a culminação da tarefa de estabelecer

um discurso temporalmente estruturado, com cada uma de suas etapas introduzida por um

numeral ordinal e bem delimitada por advérbios de tempo.

O Hino a Hécate introduz um modelo divino de cidade onde as ações (ἔργα) são

apresentadas ligadas ao sacrifício, isto é, ao culto aos deuses, o que deixa patente a submissão

do homem ao divino. Estes dois temas, ἔργα e sacrifício, são retomados no mito de Prometeu

que se revela o lugar crucial para entender o lugar do humano e o lugar do divino (Teog. 535-

536: καὶ γὰρ ὅτ' ἐκρίνοντο θεοὶ θνητοί τ' ἄνθρωποι/ Μηκώνῃ,), justificando a necessidade da

construção do discurso humano. Isto permite que Hesíodo mergulhe mais fundo na

investigação da condição humana: o homem é um ser que tem de trabalhar para garantir a sua

existência individual, unir-se à mulher pela via do matrimônio para garantir a sua existência

como espécie e prestar culto aos deuses. Neste mito, vemos ainda surgirem os males dispersos
278
no mundo, a partir do pote de Pandora (Trab. 93-104). Estes males são inevitáveis, mas dão,

por outro lado, a oportunidade do homem organizar suas ações e esperar, por meio delas, não

ser imediatamente destruído por um destes males, ou por todos eles.

A íntima relação evidenciada entre o mito de Prometeu e o mito das raças levou-nos a

entender que este mito é um complemento daquele (Trab. 106 Εἰ δ' ἐθέλεις, ἕτερόν τοι ἐγὼ λόγον

ἐκκορυφώσω), o que nos levou a procurar algo que estivesse presente no mito das raças – este,

também um mito sobre a condição humana – mas ausente em Prometeu. Isto nos levou ao

problema da hýbris, que surge como um mal interno ao homem, em contraste aos males

externos e dispersos pelo mundo, a partir da abertura do pote de Pandora. A hýbris é então um

mal essencial do homem e o mito das raças nos conta como suas diferentes manifestações,

desrespeito ao outro, recusa ao sacrifício, violência física e verba, foram se estabelecendo no

homem.

Por ser um mal essencial, e contra este, antes de tudo, que o homem tem de se

organizar, para depois poder fazer face aos males exteriores. Mas diferente destes últimos, a

hýbris é um mal evitável e é isto, acima de tudo, que Hesíodo quer ensinar a Perses e a nós.

O recurso às ocorrências do mito das raças na obra de Platão confirma nossa leitura de

que este mito tem na hýbris o seu tema principal e mostra também que, por ser essencial, a

hýbris é eterna no homem. Ao recontar este mito, Platão mostra que as diferentes hýbrides

coexistem tanto na cidade quanto dentro da alma do indivíduo. Isto não invalida de modo

algum a pereição alcançada por Hesíodo na questão da estruturação temporal do discurso: o

homem continua precisando ordenar no tempo a descrição de eventos simultâneos.

Pelo exposto, o discurso propriamente humano de Hesíodo só pode ser um discurso

moral: suas verdades visam orientar a ação humana.

279
Todas as noções morais hesiódicas aqui estudadas, Luta, Trabalho, Esperança, Aidôs e

Amizade, são integradas em uma única, que é Díke, a Justiça. Esta, por sua vez, só pode ser

minimamente vislumbrada quando todas aquelas são levadas em conta.

O ponto de partida é a hýbris. Esta não é nem deusa, nem noção moral, nem sentimento.

Ela é um traço constitutivo, esencial, do homem e foi para combatê-la que Zeus deu Díke aos

homens – e só a estes.

Por ter a hýbris múltiplos modos de manifestação, Díke precisa igualmente assumir

múltiplos aspectos.

Como Luta, é um princípio geral. O modo de ser do homem determina que ele esteja em

eterno embate no mundo. Este embate pode produzir efeitos destrutivos, onde a guerra é

apresentada como principal paradigma, os construtivos, de onde surge a noção do trabalho.

Este visa, é certo, seu produto, mas visa, sobretudo, a construção do caráter daquele que

trabalha. É pela via do esforço penoso, repetitivo e doloroso que se produz a mais bela obra: o

homem bom, justo e sábio.

Neste quadro, a Esperança surge como um motor – imóvel, porque enraizado dentro de

todo e cada homem – para a ação. Por estarem contidos no mesmo pote, o homem tornou-se

ciente da existência dos males no mundo, mas passou a saber, por meio da Esperança, que ele

pode agir no sentido de evitar alguns, a Fome, a Fadiga, as Intrigas, e ao menos tentar atenuar

os inevitáveis. Mas antes, é claro, deve evitar a própria hýbris. Em outras palavras, a

Esperança hesiódica é o que dá sentido à ação humana. Quando não vinculada à ação,

Esperança é vazia.

Tendo formado o caráter do indivíduo. Hesíodo o põe em contato com o outro, por meio

de Aidôs e da Amizade.

280
Uma relação tão complexa demanda uma noção moral igualmente complexa. A bem

dizer, Aidôs, termo que comporta diversas traduções, das quais tomamos aqui Pudor, por ser o

nome atribuído à deusa Aidôs, é uma noção que se desdobra em duas – Aidôs e Thársos,

Pudor e Ousadia – que atuam como peso e contrapeso; a ausência de uma, deixando a outra

livre ao extremo, produz efeitos negativos em ambos os casos. A charada humana consiste em

encontrar o quanto de cada uma empregar no caso concreto. Hesíodo convida Aristóteles a

pensar o problema do meio termo.

Se no caso de Aidôs a presença do outro é apenas insinuada, na Amizade ela se

concretiza. O termo amizade está ausente na obra, mas o amigo é descrito em cores vivas. Por

outro lado, amigo não é referido a nenhum particular, mas antes descrito como um tipo.

Podemos dizer que estamos a meio caminho do conceito.

Este tipo é descrito em suas relações. Ele é aquele que é útil. Ele é aquele que dá e

merece receber. Ele é um igual. E dessa convivência surge o prazer.

Mas esta convivência é regrada. Só se dá aquilo que se tem. E aquilo que se tem deve

ser obtido pelo esforço penosos do trabalho, estando interditada qualquer outra forma de

obtenção de bens. Aquele a quem se dá deve se mostrar merecedor de receber. Deve se

mostrar igualmente trabalhador e deve ter o mesmo prazer de dar a quem merece num

momento de necessidade ou no banquete.

Todo este regramento nas relações de amizade está presente, sem que nada falte, na

noção de amizade segundo a virtude que Aristóteles apresenta no livro VIII da Ética a

Nicômaco. Mais uma vez Hesíodo é mestre de Aristóteles. Temos um conceito.

Digno de nota é o modo como o poeta realiza sua obra no plano do discurso: partindo de

sínteses gerais da experiência, o poeta converte estas sínteses em máximas de enorme poder

persuasivo que alcançam mesmo o valor de uma lei que convida o ouvinte a realizá-la como

281
experiência própria, e não mais geral, para comprovar sua eficácia, isto é sua verdade, o tipo

de verdade que Hesíodo designou como etétyma.

Ao contemplarmos o conjunto da obra, isto é, quando reconhecemos unidos a força

persuasiva do discurso didático e o rigor da integração das noções morais, que não só

organizam a vida do indivíduo, mas também o colocam em disposição para relacionar-se com

o outro, constatamos que Hesíodo repetiu em Os trabalhos e os dias o que já tinha realizado

na Teogonia, isto é, enquanto no primeiro poema logrou organizar uma sistematização dos

deuses que resultou na compreensão do cosmos divino, no segundo, organizou

sistematicamente as ações humanas de modo a que aconteça (γίγνεται) um cosmos humano,

de modo natualizado (φύσει): “para estes a cidade germina e nela o povo floresce” (v.227,

τοῖσι τέθηλε πόλις, λαοὶ δ' ἀνθεῦσιν ἐν αὐτῇ·). Temos um sistema, ou melhor, dois, que se

articulam, na medida em que o segundo se inscreve no primeiro, já que o homem de Hesíodo

está subordinado aos deuses, o que é outro modo de dizer que o homem é parte da natureza,

está inscrito nela. Temos um filósofo.

Citamos Levet, na introdução desta tese, para quem a verdade é “o orgulho do homem

justo e honesto, a ambição inteligente do sábio e do pensador e o privilégio do iniciado que

contemplou a realidade.” Hesíodo, um dos mestres da verdade, conjuga em si estes três tipos.

Findas estas considerações, remetemos o leitor ao Anexo A, onde uma tabela apresenta

as palavras que Hesíodo guardou para os deuses, em contraste com as que ele destinou aos

homens.

282
Anexo A Palavras dos deuses, palavras dos homens

A tabela abaixo apresenta as palavras que Hesíodo guardou para os deuses, em contraste

com as que ele destinou aos homens. O contraste entre uns e outros, que o poeta explicitou

por meio destas palavras, nos permite assegurar que não há, segundo esta visão de mundo,

uma ruptura entre deuses e homens, mas antes uma continuidade garantida pela sumissão

destes àqueles.

Este levantamento não é exaustivo nem tampouco consciente de todas as possibilidades

de entendimento da obra de Hesíodo que ele pode, porventura, suscitar ou viabilisar, sendo

antes um achado sem pretensões exaustivas da pesquisa.

283
Deuses ocorrência Homens ocorrência contraste

Musas Teog. 26-28 “Eu” Trab. 10 Iniciação do


poeta x
introdução do
discurso
didático

γερύσασθαι Teog. 28 μυθησαίμεν Trab 10 Marcador/


(anunciar) (relatar) delimitador da
autoridade de
quem fala

ἀληθέα Teog. 28 ἐτήτυμα Trab.10 Natureza das


(verdade) (verdade) verdades
envolvidas

Hefesto Il. 1.591-592 bigorna Teog. 720-725 A bigorna é a


experiência
humana e
limitada do
deus.

1 dia e uma Il. 1.591-592 Nove dias e Teog. 720-725 Marca


noite nove noites quantitativa da
diferença
qualitativa entre
deuses e
homens.

Stix Teog. 400 Juramento Teog.231-232 O cometimento


entre os deuses
é diferente do
dos homens.

Freixo Teog. 562-564 Férula Teog. 566-567. Fogo criativo


divino contra
fogo técnico
humano.

Érgon Teog. 440 Pónos Trab. 91 Direciona o


esforço humano
Trab. 42 para a
reconciliação
com o divino.

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