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Tema IV

Elementos naturais do contrato. Vícios redibitórios. Conceito. Requisitos. Efeitos. Ações


edilícias. Prazos.
Notas de Aula

1. Vícios redibitórios

Nos contratos comutativos, em que há sinalagma, uma prestação sendo causa da


recíproca, pode acontecer de a coisa transferida ao adquirente possuir defeitos que a tornem
inadequada ao fim a que se destinam ou lhes diminuam sensivelmente o valor. Nestes casos,
poderá o adquirente rejeitar a coisa, sendo restituído o preço por ele pago.
Veja que esta possibilidade reside justamente no desequilíbrio que se percebe nas causas
do contrato: uma causa passa a não mais corresponder ao que dela se esperava, não mais tendo
equivalência entre as prestações. Daí a lógica da redibição.
Caio Mário preleciona que, na hipótese de transferência de coisa de qualquer natureza,
deve ser assegurado ao adquirente a sua posse útil, sem frustrar as suas expectativas: o
adquirente tem direito à posse útil da coisa. Para este autor, o vício redibitório é:

“O defeito oculto de que portadora a coisa objeto de contrato


comutativo, que a torna imprópria ao uso a que se destina, ou lhe
prejudica sensivelmente o valor.”

Para Orlando Gomes, são vícios redibitórios:

“Defeitos ocultos que desvalorizam a coisa ou fazem-na imprestável.”

E para Gustavo Tepedino, são:

“Os defeitos ocultos que afetam a coisa transferida nos contratos


comutativos, tornando-a imprópria para o uso a que se destinava ou
diminuindo-lhe o valor, por tal forma que, se conhecesse o vício, o
adquirente da coisa não teria realizado o contrato ou teria oferecido
uma contraprestação maior.”

Veja o que dispõe o artigo 441 do CC:

“Art. 441. A coisa recebida em virtude de contrato comutativo pode ser


enjeitada por vícios ou defeitos ocultos, que a tornem imprópria ao uso
a que é destinada, ou lhe diminuam o valor.
Parágrafo único. É aplicável a disposição deste artigo às doações
onerosas.”

A partir do próprio conceito já se pode colher os requisitos deste defeito oculto. Antes
de abordá-los, é importante, porém, deixar claro que há brutal diferença entre os vícios
redibitórios, tal como tratados no CC, e o tratamento dado pela teoria da qualidade às relações
de consumo.
A teoria da qualidade está diretamente adstrita à confiança que se deposita nos produtos
e serviços postos no mercado de consumo, e por isso suas bases são diversas das bases dos
vícios redibitórios. O artigo 4º, II, “d”, do CDC, traça esta política da qualidade como almejada
pelo legislador:

“Art. 4º A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo


o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua
dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses

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econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a
transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os
seguintes princípios: (Redação dada pela Lei nº 9.008, de 21.3.1995)
(...)
II - ação governamental no sentido de proteger efetivamente o
consumidor:
(...)
d) pela garantia dos produtos e serviços com padrões adequados de
qualidade, segurança, durabilidade e desempenho.
(...)”

A idéia por trás da teoria da qualidade é que não só o bem ou serviço tem que se
adequar ao fim a que se destina, como deve também garantir a incolumidade física do
consumidor – respectivamente, a qualidade-adequação e a qualidade-segurança. Daí surge a
maior diferença: quando se fala em qualidade-adequação, se fala em vício; quando se fala em
qualidade-segurança, se fala em fato do produto ou serviço, ou o acidente de consumo.
Assim, não se pode confundir um fundamento com outro, porque o vício de consumo é
regido pela protetividade imposta pelo CDC, enquanto o vício redibitório da relação regida pelo
CC é baseado tão somente na disparidade entre as causas do negócio.
Vale consignar apenas uma peculiaridade: o CC, de fato, apenas em matéria de prazos,
é mais protetivo ao contratante padecente do vício. Pelo diálogo das fontes, e pela ausência de
lógica que seria detrir proteção ao consumidor simplesmente porque a norma não está no CDC,
a doutrina entende que o prazo para argüir vício redibitório em bens imóveis a ser aplicado em
relações e consumo é o mais favorável ao consumidor, qual seja , o prazo de um ano do caput
do artigo CC, enquanto que, na literalidade, seria de noventa dias, pois que imóveis são bens
duráveis, adequando-se aos incisos I e II do caput do artigo 26 do CDC:

“Art. 445. O adquirente decai do direito de obter a redibição ou


abatimento no preço no prazo de trinta dias se a coisa for móvel, e de
um ano se for imóvel, contado da entrega efetiva; se já estava na posse,
o prazo conta-se da alienação, reduzido à metade.
(...)”

“Art. 26. O direito de reclamar pelos vícios aparentes ou de fácil


constatação caduca em:
I - trinta dias, tratando-se de fornecimento de serviço e de produtos não
duráveis;
II - noventa dias, tratando-se de fornecimento de serviço e de produtos
duráveis.
(...)”

Feita esta introdução, ficando claro que o tratamento dispensado ao vício redibitório,
aqui, não se aplica às relações de consumo, passemos ao estudo dedicado ao vício redibitório do
Código Civil.
Quatro são os fundamentos para a existência da redibição: a própria equidade, vez que
as prestações são injustas, se uma é boa e a outra imprestável; a teoria do erro, pois que o
adquirente houve para si produto diverso do que desejava, pois que não desejava produto
imprestável; a teoria do risco, vez que quem tem que suportar os ônus do risco é o alienante; e o
princípio da garantia, que impõe que haja satisfação do adquirente. Parece, diante de toda a
normatividade civilista atual, que o melhor fundamento é o que se baseia no princípio da
garantia, segundo o qual é necessário que seja resguardada a posse útil ao adquirente.

1.1. Requisitos do vício redibitório

1.1.1.Existência de contrato comutativo

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O contrato comutativo é o único que comporta a disparidade de causas, pois somente ali
estas são recíprocas, e por isso só nele há lógica para tal instituto. A exceção é a doação
onerosa, doação com encargo, em que, mesmo não havendo obrigações recíprocas, há encargo a
ser suportado, equiparando-se ao contrato oneroso como dispõe o próprio parágrafo único do
artigo 441, acima transcrito – não deixando de ser liberalidade, porém.
A alienação em hasta pública gera divergência sobre comportar ou não o vício
redibitório. Isto porque, no antigo CC de 1916, havia vedação expressa à invocação deste vício
quando da venda em hasta pública, mas esta vedação não se repetiu no CC de 20002. Assim,
Carlos Roberto Gonçalves, por exemplo, defende que pode ser invocado o vício hoje, nesta
alienação pública.
Data venia, Caio Mario tem a posição mais coerente sobre este aspecto. Este autor
defende que a alienação em hasta pública, por ser um ato compulsório, imposto ao alienante
pelo Poder Público, não permite a aplicação do instituto, que apenaria o proprietário do bem
arrematado por ato que lhe foi imposto. Ademais, o adquirente pode perscrutar as qualidades do
bem antes de adquiri-lo em hasta pública.

1.1.2. Existência de defeito oculto

Os vícios aparentes, ou de fácil constatação, não podem ser objetos de redibição. Esta é
uma grande diferença entre este instituto do CC e os vícios tratados no CDC: na seara
consumerista, o vício não precisa ser oculto para ensejar redibição.
Se o adquirente, regido pelo CC, tem à sua disposição o em que está adquirindo, antes
de consumar o contrato, presume-se que teve como identificar o vício aparente ou de fácil
constatação, pelo que se entende que aquiesceu em havê-lo no estado em que se encontrava.

1.1.3. Existência de defeito grave

Não é qualquer vício que autoriza a redibição. Segundo Carlos Roberto Gonçalves:

“Defeitos de somenos importância ou que possam ser removidos são


insuficientes para justificar a invocação da garantia.”

Esta exigência se deve à necessária atenção ao princípio da conservação dos contratos,


pois se o vício é pouco relevante, se entende que satisfaz a vontade do adquirente, ou seja, a
causa de sua contratação não foi abalada. E mais: o vício insignificante é exemplo claro de
adimplemento substancial, capaz de satisfazer o interesse do credor.

1.1.4. Existência de defeito preexistente

É bastante óbvio: o defeito que surge, que inicia sua existência, após a entrega ao
adquirente, não pode ser argüido como causa à redibição. Isto porque vige a lógica do res perit
domino, segundo a qual a coisa perece para o dono.
Não se pode confundir com o vício que já existia, mas apenas se revelou após a
tradição: se assim for, é claro vício redibitório, pois que o vício preexistia, estando apenas
oculto. A lógica vem do artigo 444 do CC:

“Art. 444. A responsabilidade do alienante subsiste ainda que a coisa


pereça em poder do alienatário, se perecer por vício oculto, já existente
ao tempo da tradição.”

Veja que, mesmo no caso em que o vício seja redibitório, há sim uma certa mitigação à
regra do res perit domino, porque a tradição já se tendo operado imporia que o adquirente
suportasse, agora, os riscos do perecimento.

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1.2. Efeitos dos vícios redibitórios

O principal efeito oriundo dos vícios redibitórios é possibilitar ao adquirente os meios


de não sofrer a perda, que seria injusta. Para tanto, tem em suas mãos as chamadas ações
edilícias: a ação redibitória, que intenta resolver o contrato, e a ação estimatória, ou quanti
minoris, que tem por escopo reduzir a contraprestação devia até patamar que o faça equivalente
à coisa defeituosa.
Vale frisar que, uma vez eleita a via, o adquirente não pode alterar sua pretensão: se
ajuíza a redibitória, não pode pretender, ulteriormente, a quanti minoris. Nem mesmo o pedido
alternativo é possível, eis que se demonstram absolutamente contraditórios: não há lógica em se
entender que é satisfatória a redução do preço e ao mesmo tempo a coisa é absolutamente
imprestável. Assim, a escolha da ação é uma espécie de concentração da opção do adquirente.

1.3. Relevância da boa-fé

Para caracterização dos vícios redibitórios, basta a existência de um vício oculto,


desconhecido, preexistente e grave. Pouco importa a ignorância do alienante. Significa que,
mesmo sendo responsabilidade subjetiva, a garantia é que fundamenta a redibição, ou seja, é a
necessidade de haver posse útil ao adquirente que sustenta o instituto, e não a culpa, o dolo, a
boa ou má-fé do alienante.
Entretanto, este elemento subjetivo, mesmo não sendo relevante para imputar-lhe ou
não responsabilidade pelo vício redibitório – imputa-se independentemente do elemento
subjetivo –, é relevante para configuração de responsabilidade por perdas e danos, assim como
dispõe o artigo 443 do CC:

“Art. 443. Se o alienante conhecia o vício ou defeito da coisa, restituirá


o que recebeu com perdas e danos; se o não conhecia, tão-somente
restituirá o valor recebido, mais as despesas do contrato.”

Destarte, se estava de má-fé, ao alienante, além de restituir o preço, impõe-se


responsabilidade por demais despesas oriundas de perdas e danos. Se de boa-fé, apenas o preço
e as despesas de contrato são imponíveis.

1.4. Prazos

O direito do adquirente exigir a redibição ou o abatimento proporcional do preço está


sujeito à um prazo decadencial variável, conforme a natureza do bem, prazo que é contado da
entrega efetiva.
Veja o que dispõe o artigo 445 do CC:

“Art. 445. O adquirente decai do direito de obter a redibição ou


abatimento no preço no prazo de trinta dias se a coisa for móvel, e de
um ano se for imóvel, contado da entrega efetiva; se já estava na posse,
o prazo conta-se da alienação, reduzido à metade.
§ 1o Quando o vício, por sua natureza, só puder ser conhecido mais
tarde, o prazo contar-se-á do momento em que dele tiver ciência, até o
prazo máximo de cento e oitenta dias, em se tratando de bens móveis; e
de um ano, para os imóveis.
§ 2o Tratando-se de venda de animais, os prazos de garantia por vícios
ocultos serão os estabelecidos em lei especial, ou, na falta desta, pelos
usos locais, aplicando-se o disposto no parágrafo antecedente se não
houver regras disciplinando a matéria.”

O caput deste artigo é de simples interpretação, se traduzindo no seguinte quadro


esquemático:

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Adquirente que não estava na Adquirente que estava na posse
posse

Bem móvel Trinta dias a contar da tradição Quinze dias a contar da


alienação

Bem imóvel Um ano a contar da tradição Seis meses a contar da alienação

É o § 1º deste artigo que oferece problemas, e demanda bastante atenção. Veja eu este
dispositivo já se inicia por uma premissa um tanto estranha: diz ali que quando o vício, por sua
natureza, só puder ser conhecido mais tarde, há tratamento especial. Ora, todo e qualquer vício
redibitório só pode ser conhecido mais tarde, porque se for cognoscível antes da alienação, não
é oculto, e não há redibição. Parece, então, que o legislador quis criar uma categoria de vício
oculto que é, de fato, “ainda mais oculto”, ou seja, algo que vai demorar muito para se
manifestar.
E é na estipulação dos prazos especiais que surge ainda mais perplexidade: o prazo para
o bem móvel é sextuplicado, enquanto o prazo para bens imóveis permanece o mesmo. Por
conta disso, surgem duas correntes disputando a leitura deste dispositivo.
A primeira corrente defende interpretação literal: qualquer que seja o prazo, quando se
manifestar este vício de natureza “ainda mais oculta”, começa a correr o prazo para reclamar do
vício, tal qual ali escrito. É claro que esta interpretação cria uma situação de insegurança
jurídica insustentável, pois que cria garantia ad aeternum para o adquirente.
Por isso, tem mais força a segunda corrente, que diz que os prazos ali previstos são
limítrofes para o ajuizamento das ações edilícias, somados ao caput. Entenda: o prazo ali
previsto é o prazo máximo para que o vício se manifeste, a contar da tradição (ou alienação, se o
adquirente já estava na posse). A conta é a seguinte: a partir da tradição, conta-se o prazo do §
1º; de seu fim em diante, corre o prazo do caput, que é o prazo de reclamação. Somados, dão o
prazo total para cada caso: duzentos e dez dias para bens móveis com defeitos “ainda mais
ocultos”; dois anos para imóveis com vícios desta natureza.
Esta interpretação parece mais coerente, mesmo porque é condizente com a orientação
da doutrina majoritária na interpretação de dispositivo que apresenta problema semelhante, no
CDC: o artigo 26, § 3º. Veja:

“Art. 26. O direito de reclamar pelos vícios aparentes ou de fácil


constatação caduca em:
(...)
§ 3° Tratando-se de vício oculto, o prazo decadencial inicia-se no
momento em que ficar evidenciado o defeito.”

Ainda, quanto aos prazos, as normas são derrogáveis pela vontade das partes: estes
prazos podem ser reduzidos ou suprimidos pelas partes, desde que não se trate de contrato de
adesão, quando então será a cláusula claramente abusiva, e portanto nula.
Por fim, vale comentar a previsão do artigo 446, que trata da garantia convencional:

“Art. 446. Não correrão os prazos do artigo antecedente na constância


de cláusula de garantia; mas o adquirente deve denunciar o defeito ao
alienante nos trinta dias seguintes ao seu descobrimento, sob pena de
decadência.”

Significa que, enquanto vige a garantia contratual, não corre a garantia legal, mas se o
adquirente, no curso da garantia contratual, souber do defeito, não pode quedar-se inerte, ou
perde o direito à redibição.

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