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Aula 07

Abordagem Familiar

Módulo 4
MINISTÉRIO DA SAÚDE
Secretaria de Atenção Primária à Saúde
Departamento de Promoção à Saúde

Projeto Cuida APS

Curso de Aperfeiçoamento
Qualificação do Processo de Trabalho e
do Cuidado de Pessoas com Condições
Crônicas na APS

Eixo 1
Fortalecimento do Processo de
Trabalho da APS

Módulo 4
Gestão do Cuidado: Ferramentas e Tecnologias
para Qualificar a Prática Clínica

São Paulo – SP
2022
Projeto Cuida APS

Créditos
MINISTÉRIO DA SAÚDE FECS - FACULDADE DE EDUCAÇÃO EM
Programa de Apoio Desenvolvimento CIÊNCIAS DA SAÚDE
Institucional do Sistema Único de Saúde - Coordenação geral de pós-graduação:
PROADI/SUS Paula Zanelatto Neves
Projeto Cuida APS: Cuidado das Pessoas com Secretaria Acadêmica e Apoio:
Doenças Crônicas Não Transmissíveis Juliana Leite dos Santos
Bruna Aparecida de Souza Manoel
EQUIPES DIRETIVAS
EQUIPE TÉCNICA DO HOSPITAL ALEMÃO
MINISTÉRIO DA SAÚDE
OSWALDO CRUZ (HAOC)
Ministro da Saúde:
Coordenadora:
Marcelo Antônio Cartaxo Queiroga Lopes
Flávia Landgraf
Secretaria de Atenção Primária à Saúde:
Analistas:
Raphael Câmara Medeiros Parente
Ana Cecília Miranda de Araujo
Diretoria de Promoção da Saúde:
Daniela de Almeida Pereira
Juliana Rezende Melo da Silva
Tauana Sequalini
Coordenadora-Geral de Prevenção de Doenças
Assistente Administrativo:
Crônicas e Controle do Tabagismo:
Julia Victoria Costa Maximino
Patrícia Lisboa Izetti Ribeiro
Assessores, consultores e pesquisadores:
Adelson Guaraci Jantsch
CONASEMS
Presidente: Alexandre Sizilio
Wilames Freire Bezerra Clarissa Willets Bezerra
Secretário Executivo: Iara de Oliveira Lopes
Mauro Guimarães Junqueira Leonardo Graever
Fernanda Ferreira Marcolino
HOSPITAL ALEMÃO OSWALDO CRUZ Fernanda Rocco Oliveira
Diretor Presidente: Lara Paixão
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Diretora-executiva de Sustentabilidade e Luciana Soares de Barros
Responsabilidade Social: Patricia Sampaio Chueiri
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Diretor do Centro Internacional de Pesquisa: Rafael Santana Santos
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GRUPO EXECUTIVO DO PROJETO
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Fernanda Rocco Oliveira
Lara Paixão
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Autor:
Pâmela Santiago Mariath Vidal
Patrícia Lisboa Izetti Ribeiro Daniel Trindade Araujo do Espirito Santo
Samara Kielmann Revisão Técnica:
Clarissa Willets Bezerra
Thais Coutinho de Oliveira
Fernanda Rocco Oliveira
Revisão de Conteúdo Digital:
Fernanda Rocco Oliveira

03
Projeto Cuida APS

Sumário

Aula 07 – Abordagem Familiar

Objetivos de Aprendizagem ................................................................................................................................................................................. 06

Apresentação da Aula ................................................................................................................................................................................................. 07

Paradigmas e Suas Implicações no Nosso Trabalho ....................................................................................................................... 08

Família ......................................................................................................................................................................................................................................... 11

Focando nas memórias positivas .................................................................................................................................................. 12

Trabalhando os aspectos negativos das histórias ........................................................................................................... 16

A Narrativa Familiar Revela Tipos Familiares e Desafios do Ciclo de Vida ..................................................................... 18

A Terapia Narrativa ..................................................................................................................................................................................... 19

Tipos familiares e ciclos de vida ..................................................................................................................................................... 23

As ferramentas genograma e círculo familiar apoiando o entendimento do contexto familiar .............. 27

O genograma e o círculo familiar ................................................................................................................................................. 27

A importância do contexto ................................................................................................................................................................ 32

A Teoria Sistêmica e a Entrevista Familiar Circular ........................................................................................................................... 34

A circularidade na entrevista ............................................................................................................................................................ 36

Como lidar com o conflito? ............................................................................................................................................................... 39

Considerações Finais ................................................................................................................................................................................................... 42

Referências ........................................................................................................................................................................................................................... 43

O Autor ..................................................................................................................................................................................................................................... 45

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Projeto Cuida APS

Aula 07

Abordagem Familiar

Daniel Trindade Araujo do Espirito Santo


Projeto Cuida APS

Objetivos de Aprendizagem
Ao final desta aula vocês serão capazes de:
✓ conceitualizar os paradigmas biopsicossocial e sistêmico;
✓ definir família e seus variados tipos;
✓ indicar situações sensíveis à Abordagem Familiar na APS;
✓ reconhecer os ciclos de vida familiar e os principais desafios de cada
um deles;
✓ construir genogramas e círculos familiares, identificando tensões
familiares das narrativas contidas neles e que são sensíveis à
Abordagem Familiar;
✓ conhecer a ferramenta da conferência familiar para a resolução de
conflitos e problemas complexos.

Aula 07 – Abordagem Familiar 06


Projeto Cuida APS

Apresentação da Aula
Olá, pessoal!

Nesta aula vamos discutir o protagonismo que a Abordagem Familiar pode


exercer em nossas consultas e atividades em grupo, com a finalidade de melhores
desfechos clínicos para os atendimentos prestados nas unidades de Atenção Primária à
Saúde (APS). Para quem já aplica esse princípio cotidianamente, a aula servirá como meio
de ampliar e aprofundar o repertório de ferramentas neste tema. E, para quem ainda não
se convenceu da potência desse recurso ou está curioso, é outra oportunidade de
perceber como as questões familiares estão intimamente imbricadas numa trama
relacional e sistêmica.

Quando abordamos as relações, principalmente aquelas que se mostram


momentaneamente disfuncionais, causamos modificações no sistema familiar e os
sintomas clínicos que nos são consultados pelos pacientes se modificam com frequência.
Quanto mais aplicamos essa ferramenta, percebemos as mudanças, tornando maiores
nossos escopos de ferramentas de trabalho e satisfação dos envolvidos: pacientes e
profissionais.

Convidamos a vocês para nos familiarizarmos com alguns conceitos importantes a


fim de bem desempenhar a Abordagem Familiar e se aprofundar nas possibilidades
desse trabalho.

Aula 07 – Abordagem Familiar 07


Projeto Cuida APS

Paradigmas e suas implicações no


nosso trabalho
Inicialmente, para “esquentar os motores”, vamos retomar uma reflexão sobre
paradigmas, como eles podem influenciar a prática do profissional da saúde e em qual
deles a Abordagem Familiar está situada. Já falamos um pouco sobre paradigma na aula
de prevenção quaternária, lembram?

Paradigma é a forma como vemos o mundo, que advém dos aprendizados em


relação a como selecionar e registrar o que é certo e errado. Um paradigma dominante
reúne as principais regras sobre a maneira que devemos viver em sociedade, como
funcionam as leis da natureza etc. Tendemos a ser tão fiéis ao paradigma que podemos
chegar a distorcer o que não combina com nossas expectativas paradigmáticas. Aqui o
provérbio popular se inverte: “é crer pra ver”.

Nos próximos tópicos da aula, abordaremos o papel da família na prescrição desta


forma de ser e atuar em sociedade. Por enquanto, limitaremos aos paradigmas científicos
e como eles nos ensinam e “desensinam” a forma de trabalhar na área da saúde.

O paradigma científico é constituído por um conjunto de premissas compartilhadas


por comunidades de pesquisadores, que tentam explicar as leis da natureza e passam a ser
ensinadas em escala mundial. No entanto, alguns estudiosos perceberam que a evolução
paradigmática pode apresentar uma vulnerabilidade, que seria a dificuldade de
reconhecer os próprios limites, na qual o paradigma não consegue explicar alguns
fenômenos. Thomas Kuhn1, por exemplo, questiona os limites excedidos pela comunidade
científica para defender um paradigma, na tentativa de acumular estudos e pareceres
favoráveis à manutenção do padrão vigente. Como no seguinte excerto:

“[…] (cientistas e professores em) uma tentativa exaustiva e


devotada de forçar a natureza para dentro das caixas conceituais
fornecidas pela educação profissional.” (p. 45)1

Um exemplo histórico sobre a evolução paradigmática é o advento da


racionalização científica, marcante nos séculos XV e XVI e promovida por autores clássicos
como Galileu Galilei, Francis Bacon, René Descarte, Isaac Newton etc. Estes cientistas
representavam um grupo de pessoas que ofereciam uma maneira de entender os
fenômenos da natureza em contraposição ao mundo mágico-religioso predominante até
então e monopolizado pela Igreja.

Os paradigmas científicos evoluem, segundo Thomas Kuhn, quando anomalias do


paradigma dominante se tornam mais evidentes, outro emerge reconstruindo o campo de
estudo com base em novos fundamentos, generalizações teóricas mais elementares. Os
fatos não sofrem alterações, mas sim a percepção sobre eles!

Aula 07 – Abordagem Familiar 08


Projeto Cuida APS

A racionalização da ciência, que há quinhentos anos é ratificada pela comunidade


científica, também apresenta algumas anomalias. Uma delas é analisar o corpo humano
como máquina, secundarizando aspectos da subjetividade humana.

A figura a seguir ilustra pessoas importantes para a racionalização científica.

Figura 1. Personalidades científicas ou papas da ciência moderna?

Fonte: Imagem - Shutterstock©

No campo da saúde, o paradigma científico dominante atual se chama Biomédico,


onde a doença pode ser vista como algo independente da pessoa adoecida ou do seu
contexto social. As doenças mentais e físicas podem ser consideradas separadamente.
Cada uma tem um agente causal específico. A principal tarefa do médico é diagnosticar a
doença da pessoa e prescrever o remédio específico para remover o sintoma2.

Algumas anomalias do paradigma Biomédico se referem à sua insuficiência para


explicar certos fatos, como as cefaleias e dores torácicas sem etiologia claramente definida,
principalmente as que aliviam sem medicação ou exames prescritos. Onde ele falha,
emerge um novo paradigma, chamado Biopsicossocial, conectando sistemicamente os
adoecimentos com fenômenos psicológicos e sociais. Assim, os agentes causais dos
diagnósticos biomédicos cefaleia e dor torácica podem estar relacionados com questões
psicológicas e sociais.

Veja o exemplo da Figura 2 (na próxima página).

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Projeto Cuida APS

Figura 2. Representação das doenças e suas correlações psicossociais

Depressão Câncer
Hipertensão arterial Diabetes

Sedentarismo
Maus hábitos alimentares

Obesidade Tabagismo
Alcoolismo

Desemprego Fatores de risco


Baixa autoestima
Angústias
Exploração Desafetos
Impotência Mágoas
Abusos Desesperança

Competitividade Traições
Desvalias Lutos Perdas
Valores sociais Violência
Problemas familiares
Poluição Maus-tratos
Falta de lazer Não pertencimento

Destruição do meio ambiente Falta de cultura Excesso de trabalho

Fonte: Anderson, Rodrigues (p.312)3.

O ápice do iceberg representa as doenças diagnosticadas pelo paradigma


Biomédico, o qual as descreve em termos de processos biológicos. Em contraposição, o
paradigma Biopsicossocial relaciona as condições de vida expressas na base do iceberg
com as mesmas doenças do ápice.

Outra concepção diferente entre estes dois paradigmas está na consulta do


profissional de saúde, que no modelo Biopsicossocial ganha um caráter de um encontro
emocional, onde os sentimentos de ambas as partes envolvidas são importantes para
compreensão e apoio ao cuidado em saúde. Estas e outras hipóteses começam a surgir na
defesa do paradigma Biopsicossocial.

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Projeto Cuida APS

Com base nesses conceitos, podemos nos orientar sobre qual paradigma mais se
encaixa em nossa prática diária de trabalho. O paradigma Biomédico é dominante e
transitar pelo Biopsicossocial pode ser difícil, mas não impossível, sobretudo se
reconhecemos sua importância. A fim de entender como a Abordagem Familiar se
explica, é necessário aceitar pelo menos dois novos paradigmas, o Biopsicossocial e o
Sistêmico.

Nesses casos, entendemos que no adoecimento das pessoas, as relações familiares


exercem influência sobre os sintomas. A doença não mais reside nos órgãos, como espera o
paradigma Biomédico, mas se manifesta de acordo com os comportamentos diante do
adoecimento. O mesmo diagnóstico Biomédico é vivido de maneiras diferentes pelas
pessoas e famílias. A expressão do paciente passa a ter importância e não mais apenas o
diagnóstico profissional, que monopolizava toda forma de responder às doenças.

Seguramente, a Abordagem Familiar não é em si um remédio, como são as drogas


que se buscam na farmácia, mas produz efeitos significativos para a saúde. Ao mesmo
tempo, não se trata de comparar qual paradigma é melhor, nem imputar ao profissional da
saúde a obrigação da cura com a Abordagem Familiar, e sim reconhecer em qualquer que
seja o paradigma, subsídios para cuidar das pessoas de forma integral.

Já sabemos bastante sobre o paradigma Biomédico, agora vamos nos capacitar no


paradigma Sistêmico!

Família

Vamos visitar nossas famílias? Antes de dar continuidade à leitura, poderia parar por
dois minutos e citar, pelo menos, duas características importantes para caracterização do
termo Família?

Pronto? Podemos lhe mostrar uma possível definição em seguida?

Conceito-chave
Família pode ser definida como um grupo social que
influencia os seus membros por meio de crenças,
valores e comportamentos vivenciados em seu seio de
convivência. A família carrega um patrimônio afetivo e
cultural, com o qual participa na construção da cultura
e sociedade em que se insere, o que configura uma
realidade social complexa.

Aula 07 – Abordagem Familiar 11


Projeto Cuida APS

O que acharam dessa definição? Concordam? Pode ser que vocês tenham pensado
na própria família ou em outra que conhece bem, sobre como os integrantes da casa têm
características comuns, exercem influência sobre você e outras pessoas de um modo
peculiar. De repente, surgiram em sua memória as figuras mitológicas, as ovelhas negras,
as histórias de orgulho, as festas tradicionais, as brigas que não escaparam às fofocas da
vizinhança, a família que lhe parece modelo, os problemas ditos insolúveis etc.

A Figura 3 ilustra uma possível conformação familiar.

Fonte: Imagem - Shutterstock©

Focando nas memórias positivas

Em todas as famílias há narrativas boas e ruins. Vamos começar pelas lembranças


boas, que nos ajudam a contar histórias esperançosas, a ter olhar apreciativo, sem esquecer
as grandes vantagens de pertencer à nossa família. Se há lembranças memoráveis, essa
convivência deve ter sido bastante significativa. Quão importante pode ser a família na
constituição do sujeito?

O Quadro 1 apresenta papéis importantes desempenhados pela família.

Aula 07 – Abordagem Familiar 12


Projeto Cuida APS

Quadro 1. Importância da família

Prover afeto Ensinar hábitos de higiene

Segurança Sociabilidade

Alimentação, educação, bens Disciplina

Liberdade para diferenciar-se Tolerância à frustração

Fonte: elaboração própria.

É nas relações familiares que vamos nos percebendo, a partir dos olhares e do que
dizem sobre nós no primeiro grupo social de convivência intensa e longa. Nesse lugar, há
formação de vínculo, geração de identidade e autoestima. Uma pessoa investida de amor e
afeto, vivendo com segurança, torna-se capaz de alcançar suas necessidades materiais
básicas, através de recursos econômicos suficientes. Na família, aprende-se regras gerais
para convivência em sociedade, desenvolve-se uma forma de comunicação, reconhecendo
os próprios limites e sendo respeitado em suas individualidades. Essas são algumas das
funções e das importâncias da família para o amadurecimento de um indivíduo saudável.

A Figura 4 pode ilustrar o vínculo afetivo entre mãe e filhas que se educam (na
próxima página).

Aula 07 – Abordagem Familiar 13


Projeto Cuida APS

Figura 4. Mãe e filhas

Fonte: Imagem - Shutterstock©

Saiba Mais
Assista o trecho de uma entrevista com dois estudiosos
de famílias, Humberto Maturana e Ximena Davila, que
ressaltam a importância do afeto para com as crianças
em um ambiente familiar e comunitário. Para assistir a
entrevista, clique aqui.

A família é também importante para satisfazer algumas necessidades humanas,


com base nas relações que estabelecemos dentro de casa e em sociedade. Young, Klosko e
Weishaar, em trabalho descrito no livro Terapia do esquema4, destacam cinco
necessidades básicas comumente trazidas aos consultórios e que, ao serem abordadas,
repercutem positivamente nos desfechos da terapia. São elas, seguidas de possíveis
caminhos de trabalho para terapeutas (Quadro 2).

Aula 07 – Abordagem Familiar 14


Projeto Cuida APS

Quadro 2. Necessidades básicas humanas

Necessidade Tarefa do terapeuta

Apoiar a individuação de seus membros, ao mesmo


Pertencimento
tempo que proporciona um sentimento de pertinência.

Autonomia Apoiar desenvolvimento de autonomia.

Sou importante, mas não devo pedir exclusividade. Devo


Limite realista
aprender a esperar, esforçar e aceitar regras.

Apoiar na escolha e garantia de espaços de lazer e ócio na


Lazer
agenda. Explorar a cultura familiar de lazer.

Ser legitimado Lembrar os momentos em que foi investido de amor.

Fonte: Young, Klosko e Weishaar4 (p.20).

No cenário da Abordagem Familiar, ferramenta utilizada pelo profissional de saúde,


poderíamos trabalhar essas necessidades de modo a rastrear problemas familiares ou
aprofundar uma suspeita de relações familiares disfuncionais. Vejam algumas das possíveis
perguntas disparadoras para esse contexto:

• Você tem se sentido pertencente e legitimado no seu núcleo familiar ou nos grupos
em que convive?

• Você gostaria de ter mais autonomia nos espaços que frequenta?

• Se você conseguisse priorizar mais horas de ócio e lazer, acha que sua saúde poderia
melhorar? Quem, na sua família, poderia te ajudar nesse projeto?

• Mãe, percebi que seu filho não obedece nem considera suas ordens, você tem tido
dificuldade de impor limites e autoridade aos seus filhos sem se tornar autoritária e
violenta? Os pais contribuem entre si para restabelecer autoridade com os filhos?

As perguntas são norteadoras, não devem vir soltas e descontextualizadas, mas


fazer sentido diante do diálogo narrativo que se vai construindo. Isso porque o paciente
não é um receptor passivo de informações, ele interpreta e pode tomar decisões distintas
das que informamos. As perguntas são reflexivas, os pacientes saberão o que fazer com
elas, empoderados em suas descobertas, nunca diminuídos ou julgados. Não se trata de
querer fazer diagnósticos ou encontrar culpados para qualquer problema. Além disso, o
enfoque nas relações familiares amplia as possibilidades terapêuticas, uma vez que boas
relações favorecem hábitos de vida saudáveis.

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Projeto Cuida APS

Conceito-chave
Segundo As cartas de promoção de saúde5, elaboradas
em conferências promovidas pela Organização Mundial
de Saúde (OMS) desde a década de 1980, a saúde é
também determinada por fatores sociais como um meio
físico limpo e seguro, que possibilite o lazer e o
desenvolvimento de personalidade e de habilidades
pessoais para atuar em comunidade forte, integrada,
sem exploração e que celebre tradições culturais.

Trabalhando os aspectos negativos das histórias

Uma vez convencidos da importância da família, se até então focamos nas


memórias boas, agora nos ateremos ao “outro lado da moeda”. Em uma casa em que as
necessidades básicas não são atendidas satisfatoriamente, as lembranças resistem a ser
ruins. Estas memórias podem nos provocar mal-estar, vontade de esquecê-las logo,
mesmo que nosso cérebro insista em despertar flashes intrusivos, como nos traumas. Essa
é a realidade de muitas pessoas que atendemos, as quais estão vivendo situações
dramáticas em casa, no trabalho e nas suas relações interpessoais.

Refiro-me a mulheres de classe média que sofrem violências domésticas silenciadas


e ainda não reúnem condições psicológicas e financeiras para se tornarem independentes.
Famílias que sobrevivem em situação de miséria econômica e social, luto de mortes
trágicas e violentas, violência estrutural cotidiana aos moradores de favela, discriminações
diversas. Vidas solitárias em dificuldade de ampliar rede de apoio etc. Quanto mais curiosos
perguntarmos aos pacientes, mais constataremos que há sintomas variados
acompanhando as misérias emocionais vivenciadas por muitos.

O quadro situacional descrito no parágrafo anterior, que relata uma situação


familiar momentaneamente disfuncional, não torna a família menos importante. Os
desafios e dificuldades impostas podem ser necessários, como estímulos, para a família
superar desequilíbrios e se reestruturar, procurando uma maneira mais equilibrada de
sobreviver. As famílias continuam desempenhando papel essencial e muitas vezes são
exemplos de superação e resistência, embora possam não conseguir se reconhecer nem se
valorizar.

O pensamento negativo persistente nessas famílias sobre a própria vida pode nos
gerar tristeza, um dos sentimentos mais capazes de conectar seres humanos. Em muitas
ocasiões, a empatia com o paciente permite entender o drama familiar, ou a necessidade
de controlar os resultados de exames, de perder peso etc. Por esse encontro ser emocional,
cuidamos também do nosso próprio sentimento, quando determinada história familiar
repercute nas nossas, evitando se misturar ao relato do paciente.

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Projeto Cuida APS

Pensando Fora da Caixa


Pode parecer óbvio, mas não devemos subestimar os
riscos de “colar” no negativismo das famílias, nem de
sentir “fadiga de compaixão”. O problema é do paciente.
Por isso, tentamos compreendê-lo, reconhecer as
dificuldades, facilitar soluções e emprestá-lo otimismo.

Certa vez, durante uma roda de terapia comunitária integrativa (TCI), uma paciente
emocionou a todos contando a própria história marcada por maus tratos da sua mãe,
abuso sexual pelo seu pai e trabalhando desde os 9 anos. “Eu nunca pude brincar na
minha vida!” Atualmente, aos 40 anos, tudo o que mais desejava era receber carinho da
própria filha, mas também se sentia rejeitada por ela. Embora a narrativa seja marcada
pela rejeição, o grupo ofereceu a esta mulher a devolutiva de que ela era carinhosa na
maneira de falar com as pessoas. Essa paciente aprendeu a dar afeto através da carência
deste sentimento em sua vida. A família não foi capaz de ofertar necessidades básicas,
possivelmente por viver desafios além do que podiam superar. Ainda assim, a criança
desenvolve competências que a fizeram sobreviver. A paciente relatou ao final da roda que
nunca tinha se sentido tão importante, com tanta gente escutando o que ela falava,
observando sua forma carinhosa de falar. O grupo (Figura 5, a seguir) formado pela TCI se
tornou a família que ela sonhou, mesmo que por alguns minutos.

Figura 5. Rede de apoio

Fonte: Imagem - Shutterstock©.

Aula 07 – Abordagem Familiar 17


Projeto Cuida APS

Um antídoto para o veneno do negativismo autossabotador é o olhar apreciativo


constante. Uma orientação comum na Abordagem Familiar é validar as narrativas positivas
e procurar recontar as negativas que, ao serem vistas de outra maneira possível, podem
suavizar a emoção que contribui para o adoecimento. Para isso, é necessário ter
curiosidade e olhar humanizado, conforme previsto no paradigma Biopsicossocial e que
podemos observar no relato acima.

No paradigma Sistêmico, as relações familiares são tão importantes que a formação


em Abordagem Familiar pode ser considerada iniciada no seio da nossa própria família.
Dentro dela, você está agindo consciente ou não, ainda que esteja distante, pirraçando,
resiliente, oprimindo, unindo etc. Que tipo de sentimento é mobilizado em nós quando
lembramos das relações familiares que temos estabelecido? O que é bom para ser
guardado e o que é ruim e deve ser devolvido ao passado? Os aprendizados da criança
que fomos ressoam uma vida inteira. Carregamos essas histórias e reflexões, o que
influencia a ser quem somos, como agimos, inclusive como profissionais.

Quando passamos a frequentar outros microssistemas da sociedade, a exemplo de


outras famílias, faculdade e ambiente profissional, esses padrões podem ser revistos e
modificados. Assim, enquanto profissionais, diante das histórias dos pacientes, passamos a
fazer parte de outro sistema familiar, afetando e sendo afetados, com base no arcabouço
experimental que nossa própria história permitiu aprender.

A narrativa familiar revela tipos familiares e


desafios do ciclo de vida
Neste tópico, vamos aprender um pouco sobre a importância da narrativa dos
pacientes e como utilizá-las na Abordagem Familiar para compreensão do momento
adaptativo que determinado tipo familiar está vivenciando.

A partir de agora, quando eu disser terapeuta, no texto, estarei me referindo a vocês


também, que no final desta aula estarão percebendo como seus encontros com os
pacientes são emocionais, narrativos e potencialmente terapêuticos. Faltava apenas se
reconhecer como tal e considerar o aprimoramento.

Aula 07 – Abordagem Familiar 18


Projeto Cuida APS

A terapia narrativa

Podemos perceber, pelo que discutimos até agora, a importância das narrativas de
nossas famílias e dos pacientes que atendemos. Esse recurso é central na Abordagem
Familiar, na medida em que procuramos modificar relações familiares conflituosas e que
trazem sofrimento. O profissional escuta de modo ativo e qualificado, faz perguntas
terapêuticas, tem olhar apreciativo sobre a narrativa carente de pontos positivos, facilita a
resiliência de uma história difícil, conforme a situação. Para a Abordagem Familiar
acontecer, não precisamos aplicar todas as técnicas de uma vez, porém a técnica narrativa
sempre estará presente, auxiliando na obtenção de informações sobre os tipos familiares,
Ciclos de Vida e outros detalhes importantes para esse recurso.

Saiba Mais
Veja este vídeo detalhando o processo de escuta ativa,
clicando aqui.

Uma vez cientes da importância da escuta qualificada na narrativa dos pacientes,


ouçamos a história de Antônia, que é apresentada paulatinamente em podcasts e na
videoaula, disponíveis no ambiente virtual do curso.

Podcast
Neste momento da aula, acessem o Podcast 1 - Caso
Complexo da Família de Antônia pelo QR Code ao lado
(aponte a câmera do celular para visualizar) ou clique aqui.
Este podcast é apresentado em formato de vídeo legendado,
oferecendo acessibilidade a todas as pessoas!

Aula 07 – Abordagem Familiar 19


Projeto Cuida APS

Na história contada anteriormente, repare como a tensão diminui quando a


paciente “vira a chave” e passa a enxergar seus problemas sob uma ótica diferente, apoiada
pela escuta qualificada de Márcia. A profissional reforça a identidade de Antônia,
oferecendo-a outro espelho para enxergar a própria história. Em seguida, é observada a
redução dos sintomas que configuram o quadro psiquiátrico depressivo dela, o qual
coincidiu com o momento de crise adaptativa ao luto da mãe.

Ligando Pontos
A Abordagem Familiar, para facilitar a modificação de um
contexto familiar inadequado ou disfuncional, focaliza
também nas pessoas dessas famílias, como vimos no
estudo do Método Clínico Centrado na Pessoa (MCCP), na
Aula 1 deste Módulo 4. O interesse pela história do
paciente não é para conhecer bastidores e fofocas, nem
deve ser realizado com perguntas aleatórias. No entanto,
queremos facilitar a compreensão da experiência do
adoecimento para cada pessoa, conferindo autonomia no
processo decisório dos cuidados e fortalecendo a relação
entre elas e o profissional.

As pessoas nos narram as experiências e tentam nos dizer as expectativas sobre um


sintoma, doença ou vivência específica. Elas querem uma opinião do especialista em
saúde, mas também querem ter validadas suas próprias concepções. Uma tensão
constante, sem momentos de alívio, combina com o surgimento de sintomas relacionados
àquela inquietação. Durante a fala, as experiências podem se transformar pela diversidade
de pontos de vista capazes de inaugurar contextos diferentes, por meio do diálogo.

Como facilitar este processo? Vejam no Quadro 3 as ações sugeridas ao


profissional e paciente para este fim:

(Veja o quadro na próxima página)

Aula 07 – Abordagem Familiar 20


Projeto Cuida APS

Quadro 3. Compilação de tarefas do profissional e do paciente

Profissional Paciente

Escutar ativamente Narrar as histórias

Preencher lacunas nas histórias Confirmar expectativas e ideias

Ampliar o contexto Estar aberto para novas possibilidades

Buscar significados nas contradições Realizar elaborações sobre a própria vida

Contradizer histórias dominantes Desenvolver consciência crítica

Separar o problema da pessoa Corresponsabilização ao autocuidado

Olhar apreciativo, empoderamento

Fomentar cultura de paz e diversidade

Utilizar metáforas enriquecendo histórias

Fonte: elaboração própria

Parece que
você está
carregando
uma mochila Doutor, o meu
de pedras. pensamento é
um rio
subterrâneo.

O doutor falou
dois quilos
sem eu
entender uma
grama.

Aula 07 – Abordagem Familiar 21


Projeto Cuida APS

A terapia narrativa salienta que as pessoas têm muitas histórias, algumas delas
recebem maior importância, ganhando caráter épico, de tragédia. Outras se tornam
esquecidas, a depender dos diferentes pontos de vista familiares. Em algumas situações, as
histórias elegem protagonistas “problemáticos”, que, se encarnados pelo personagem,
terão dificuldades de se livrar dessa alcunha, fazendo-os sofrer. Como diz Michael White6:
“[…] as pessoas acabam por acreditar que os problemas são internos aos seus ‘selves’, ou ao
de outros – que elas ou os outros são, na verdade, o problema” (p.19).

Esses problemas não estão nas pessoas, mas nas histórias que reproduzimos.
São criados socialmente, nas relações, e podem ser decifrados a partir da interpretação
narrativa da consulta. Assim como foi criado o problema, ele pode ser desconstruído e
esta é a finalidade terapêutica: aliviar o sofrimento do paciente diante de uma história
impossível. Há problemas que têm soluções a curto, médio e longo prazo, outros são
insolúveis, a menos que uma nova narrativa focalize em outra maneira de viver,
independente da questão. Como na fala da paciente: “Hoje, passado tanto tempo, já nem
me preocupo mais com isso!”.

A terapia narrativa assume também que as pessoas têm muitas habilidades e


competências adquiridas ao longo da vida, que vão ajudá-las a reduzir a influência dos
problemas nas suas vivências. O fato de estar vivo já é um sinal de resistência, resiliência e
inteligência para sobreviver em situações catastróficas, e isso deve ser ressaltado. Nessa
perspectiva, o terapeuta procura resgatar essas competências, convidando o paciente a se
corresponsabilizar, praticando autocuidado, lembrando-o de que a insistência em uma
história danosa pode ser uma escolha de cada um.

Ao mesmo tempo, é importante aliviar esta responsabilização para pacientes muito


vulneráveis, aos quais devemos emprestar primeiro acolhimento, otimismo, falas
cuidadosas e amorosas, autênticas e sinceras, evitando julgamentos.

As pessoas gostam de lentes atualizadas sobre as próprias vidas e esse ponto de


vista renovado pode significar motivação para novos hábitos e sentimentos diante da vida.
Segundo Michael White6, a Terapia Narrativa acredita na mudança dos sintomas conforme
muda o vocabulário e as descrições durante as sessões. Assim, a Abordagem Familiar
investiga como tornar mais equilibrada a narrativa, sem julgamentos, com a intenção de
oferecer outras leituras que amenizam e encorajam o destino das famílias: superar os
desafios dos ciclos de vida, da melhor forma que puderem, como veremos adiante.

Aula 07 – Abordagem Familiar 22


Projeto Cuida APS

Tipos familiares e ciclos de vida

As formas de enxergar as famílias são múltiplas, porque elas são dinâmicas, as


pessoas mudam e os pontos de vista sobre os fatos podem ser diferentes. Diversos tipos
familiares podem se formar no processo evolutivo familiar. Vejam no Quadro 4 a descrição
de alguns tipos familiares possíveis.

Quadro 4 Tipologia Familiar

Família reconstruída
Família nuclear
A família reconstruída é
A família nuclear é formada
composta por membros de
pelos familiares consanguíneos
uma família que em um dado
da pessoa referência, ou seja,
momento teve outra
um núcleo. Um exemplo é o
configuração, sofreu uma
casal e seus filhos.
ruptura e passou a ter um
novo formato. Por exemplo,
um casal que é constituído por
dois pais separados.

Família institucional
Família extensiva
A família institucional tem a
A família extensiva é
função de criar e desenvolver
constituída por mais de uma
afetivamente a criança, o
geração, podendo ter também
adolescente ou grupos afins.
vínculos colaterais, como tios,
Podemos citar como exemplo
primos e padrinhos.
um convento ou um abrigo.

Família unitária Família homossexual

A família unitária é formada A família homossexual é


por uma só pessoa, como é o constituída pela união de
caso de uma viúva sem filhos. pessoas do mesmo sexo, que
constituem um casal, podendo
adotar filhos.

Família monoparental Família funcional


A família monoparental é A família com constituição
constituída por um dos pais funcional é formada por
biológicos e o filho, ou filhos, pessoas que moram juntas e
independente de vínculos desempenham papéis
externos ao núcleo. parentais em relação a uma
criança ou um adolescente.

Fonte: Ministério da Saúde (p. 36-37)7.

Aula 07 – Abordagem Familiar 23


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O terapeuta é um observador experiente desses sistemas familiares e consegue


prever desafios adaptativos para o desenvolvimento das famílias. Considerando que: “A
família é um sistema em constante transformação e se adapta durante seu ciclo de
desenvolvimento com o objetivo de assegurar continuidade e crescimento psicossocial de
seus membros” (p. 54)8, no decorrer das consultas e entrevistas podemos identificar ciclos
pelos quais passam as famílias desses pacientes. Esses períodos evolutivos podem ser ou
não caracterizados por crises familiares e costumam repetir alguns padrões, segundo
estudiosos dos ciclos de vida. Em cada ciclo algumas tarefas comuns desafiam as famílias,
embora não haja um roteiro obrigatório. Entre essas fases da vida é mais comum haver
eventos estressores, os quais preveem estágios de desenvolvimento familiar. Os desafios
evolutivos das famílias, quando são esperados para determinado ciclo, podem gerar crises
familiares chamadas, normativas.

Saiba Mais
Uma crise normativa comum é a chamada “síndrome do
ninho vazio”. Vejam o vídeo disponível a seguir que
explica essa situação familiar, para assistir clique aqui.

Vejamos no Quadro 5 alguns desafios esperados para as famílias em momentos


distintos.

Quadro 5. Ciclos de Vida familiares e seus principais desafios

Estágio de Ciclo de Vida Processo emocional de Mudanças necessárias para


familiar transição o desenvolvimento

a) diferenciação do eu em
relação à família de origem;
Aceitar a responsabilidade
Jovens solteiros saindo de casa b) desenvolvimento do
emocional e financeira.
relacionamento íntimo com
adultos iguais.

a) formação do sistema
marital;
Um novo casal: a união de Comprometimento com um b) realinhamento dos
família no casamento. novo sistema. relacionamentos com a
família ampliada e amigos do
cônjuge.

a) criar espaço dos filhos;


Aceitar novos membros no b) unir-se nas tarefas de
Famílias com filhos pequenos.
sistema. educação dos filhos;
c) incluir papéis de avós.

Aula 07 – Abordagem Familiar 24


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Continuação.

Estágio de Ciclo de Vida Processo emocional de Mudanças necessárias para


familiar transição o desenvolvimento

a) permitir ao adolescente
movimentar-se para dentro e
Aumentar a flexibilidade das
para fora do sistema familiar;
Famílias com filhos fronteiras para incluir
b) novo foco nas questões
adolescentes. independência dos filhos e
conjugais e profissionais;
fragilidade dos avós.
c) cuidar da geração mais
velha.

a) renegociar o sistema
conjugal;
b) relação entre adultos com
Lançando os filhos e seguindo Aceitar as várias entradas e
os filhos;
em frente. saídas no sistema familiar.
c) incluir netos;
d) lidar com a incapacidade e
com a morte.

a) manter interesses do casal


em face ao declínio
fisiológico;
b) apoiar central da geração
do meio;
Aceitar mudanças dos papéis c) abrir espaço para
Estágios tardio de vida.
geracionais. sabedoria dos idosos;
d) lidar com as perdas de
cônjuge, irmãos, preparar-se
para a própria morte;
e) revisão e integração da
vida.

Fonte: adaptado de Carter e McGoldrick (p. 17)9.

Aula 07 – Abordagem Familiar 25


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Nem sempre as famílias entram em crise, pois podem superar os desafios sem
necessariamente deflagrar conflitos ou comportamentos momentaneamente
disfuncionais. No entanto, a família em crise tem dificuldade de se adaptar às novas
circunstâncias, sejam impostas por realidades socioeconômicas perversas, psicológicas
diversas, ou pela própria rigidez do núcleo familiar em questão. Pode haver padrões
transgeracionais que se destacam por evitar a exploração de alternativas que visem a
superação de problemas. Esse comportamento pessimista pode ser transmitido de
geração em geração10.

Como se não bastasse um evento estressor inesperado, como morte de uma pessoa
jovem, violências, tabus podem deflagrar contendas ainda mais graves, ao que chamamos
crise paranormativa, por não ser prevista no ciclo de vida. As histórias de superação para
problemas assim costumam refletir o futuro dessas famílias.

A enfermeira Carla fez o acolhimento de uma adolescente e sua mãe, que estava
preocupada vendo a filha cheia de escoriações por automutilações, justificadas como
modo de alívio do sofrimento. A adolescente concordou que não queria acabar com a
própria vida, mas com a angústia que não sabia nomear. Carla se lembrou que no ciclo da
adolescência o desafio era desenvolver paulatinamente autonomia e identidade com
aprovação dos pais, e fez perguntas sobre isso. Quem era aquela garota? Como ela se
descrevia? Como a família enxergava a adolescente e como ela gostaria de ser vista? Que
tarefas a adolescente realizava em casa colaborativamente? Mãe e filha concordaram que
a mãe não reconhecia a filha em suas individualidades e que a filha não assumia sequer
pequenas tarefas da casa de maneira colaborativa.
Após interconsulta com o médico de família e comunidade, Carla deu a tarefa para as duas
mulheres continuarem a negociação de mudanças no sistema familiar e foi agendado
retorno, além de consulta com o psicólogo da equipe multiprofissional. Se a adolescente
persistir com a angústia, avançamos em outras hipóteses clínicas e da Abordagem
Familiar. O objetivo deste enfoque foi favorecer a readaptação pós-estressores do Ciclo de
Vida de uma família com filhos adolescentes.

No caso acima, a ação terapêutica consiste em apoiar uma transformação de uma


consciência ingênua em consciência crítica a respeito do ciclo de vida familiar e os
respectivos desafios esperados, empoderada à mudança da própria realidade e ao
autocuidado em saúde. Para um adolescente, pode ser prioridade ter reconhecida sua
identidade ao cuidado com a própria saúde mental.

Aula 07 – Abordagem Familiar 26


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Conclusão de uma ideia


O sistema familiar tende a resistir às mudanças, na
tentativa de garantir a manutenção das suas
características11. Esta resistência é inerente a ele, que
busca a homeostase12. A homeostase é um equilíbrio
interno, que pode parecer estático, mas não impossibilita
mudanças. Isso porque o instaurar de uma crise também
avisa que o sistema precisa se reajustar. Uma crise familiar
pode ser um sintoma manifesto de uma resistência a
mudanças iminentes. Os terapeutas exercem a função de
ajudar as famílias a superar a crise e se reformular o
quanto for necessário, evitando fazer julgamentos, que já
existem aos montes, mas oferecendo outros olhares e
estímulos persuasivos e otimistas.

As ferramentas genograma e círculo


familiar apoiando o entendimento do
contexto familiar
As ferramentas da Abordagem Familiar genograma e círculo familiar podem
facilitar as narrativas e a maior compreensão dos contextos familiares na medida em que
são feitas perguntas reflexivas para compor uma representação gráfica da dinâmica
familiar, desenvolvendo o processo terapêutico.

O genograma e o círculo familiar

O genograma é um instrumento que desenha pelo menos três gerações da família


durante a entrevista de um ou mais personagens. O retrato da família fica registrado por
meio de símbolos que representam os integrantes familiares, as suas relações, a situação
de saúde, onde moram, ou quaisquer outros dados que possam destacar sobre a família
naquele dado instante. Como tal, também chamado Familiograma, representa uma fonte
de ideias sobre como o problema se desenvolveu no decurso do tempo, de forma
resumida e imediato reconhecimento. Dessa maneira, espera-se facilitar o pensamento
sistêmico para os participantes diretos e indiretos13, uma vez que reflexos da Abordagem
Familiar ressoam continuamente inclusive no familiar ausente, que pode perceber a
mudança nas relações e reagir.

Vejam na Figura 6 alguns símbolos preestabelecidos para facilitar a leitura universal


desse esquema. (veja a figura na próxima página)

Aula 07 – Abordagem Familiar 27


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Figura 6. Elementos do genograma

Fonte: Dias (p. 870)14.

Aula 07 – Abordagem Familiar 28


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Podcast
Ouçam agora, no Podcast 2, a continuação do Caso Complexo
da Família de Antônia. Você pode acessar o Podcast 2 pelo QR
Code ao lado (aponte a câmera do celular para visualizar) ou
clique aqui. Este podcast é apresentado em formato de vídeo
legendado, oferecendo acessibilidade a todas as pessoas!

Videoaula

Agora, assistam à Videoaula em que vamos montar juntos o


genograma dessa família. Para isso, utilizem o QR Code ao lado
ou cliquem aqui!

A Figura 7 ilustra o genograma rascunhado pela médica de família e comunidade


Giovanna durante visita domiciliar a Antônia. (veja a figura na próxima página)

Aula 07 – Abordagem Familiar 29


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Figura 7. Rascunho do genograma de Antônia

Familiograma Família de Minas Gerais


Família de Herança dos chefes culinários
Antônia e do apego à família
Julho/22

Fonte: elaboração própria.

Aula 07 – Abordagem Familiar 30


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À medida que transcorre a entrevista, os desenhos dos símbolos são completados e,


a cada pergunta, várias reflexões são possíveis, resgatando sentimentos antigos,
atualizando ressentimentos, dissabores que ainda não receberam o remédio do perdão, ao
sabor das danças familiares, conforme já vimos alguns exemplos nesta aula.

Giovanna, desejando se aprofundar nas relações que Antônia construiu ao longo da


vida, que pareciam muito conflituosas no genograma, optou por construir também o
círculo familiar, quando ficou ainda mais surpresa com o histórico de violência na família.

A Figura 8 ilustra o círculo familiar rascunhado pela médica de família e


comunidade Giovanna durante visita domiciliar a Antônia.

Figura 8. Rascunho do círculo familiar de Antônia

Círculo familiar
de Antônia
Julho/22

Fonte: elaboração própria.

Aula 07 – Abordagem Familiar 31


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O círculo familiar consiste na representação gráfica das relações com os familiares e


outras pessoas do entorno do paciente. No centro do círculo, é desenhado o próprio
paciente. O tamanho do círculo maior se refere a pessoas que o paciente tem mais apreço,
o que pode ser justificado ainda na consulta, bem como o motivo do círculo pequeno.
Além disso, os círculos mais distantes revelam distanciamento ou proximidade dos
familiares. Aqui não há julgamento ou necessidade de diagnóstico ao longo da sua
resposta. É o próprio paciente que deve procurar entender por que cada círculo está com
um diâmetro ou forma específicos.

Embora pareça muito simples, o círculo familiar frequentemente revela relações


que ainda não haviam sido abordadas. Antônia, por exemplo, colocou Francisco afastado,
porque, embora goste dele, ele tem ficado muito agressivo e intolerante ultimamente. O
ex-marido, nem foi representado, por ser uma pessoa pela qual Antônia relatou ter ódio,
por causa das inúmeras situações de abuso a qual foi submetida quando estava casada. O
círculo pode servir como um desabafo, a expressão de uma raiva no papel que não pode
ser expressa de outras formas.

Tanto o genograma quanto o círculo familiar são fáceis e rápidos de serem


realizados com os pacientes e ajudam a conectar problemas com pessoas do presente ou
passado, adicionando nova dimensão à compreensão dos contextos de vida. Família,
amigos, interesses, paixões não revelados no genograma podem surgir no círculo familiar.
Não é necessário um inquérito extenso, pois algumas reflexões por dia de consulta, são tão
intensas e emocionais que precisam de tempo para serem trabalhadas pelo próprio
paciente. Deixe para continuar na próxima consulta, se necessário, porque a vida se
ajeita independente da atuação do profissional de saúde!

A importância do contexto

Na terapia familiar, a maioria dos estudos se referem à experiência de autores que


trabalham com lares de classe média norte-americana. No entanto, se consideramos uma
família de classe pobre, moradora de favela no Brasil, podemos imaginar outros desafios
possíveis. No caso de Antônia, é comum avós que assumem o cuidado parental e o papel
de educar as crianças, com pessoas vivendo juntas em muitas gerações, mães muito jovens
com pais privados de liberdade, que assistem seus filhos morrerem assassinados ainda
adolescentes. Como elas conseguem se estruturar para manter uma vida saudável diante
de iniquidades sociais que convivem no seu dia a dia? Ou seja, o contexto em que estão
inseridas diferencia os desafios e a forma como as famílias os enfrentam.

Aula 07 – Abordagem Familiar 32


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Saiba Mais
Vejam no vídeo a seguir como o contexto pode mudar
nosso entendimento. Para assistir, clique aqui.

Os contextos são desenhados em função de múltiplos fatores sociais, econômicos e


familiares. Os modelos que seguimos de exemplo criam contextos que nos influenciam,
prescrevendo comportamentos. Destacamos na Figura 9 dois desses em momentos
históricos distintos.

Figura 9. Modelos familiares

Modelos de Famílias

Patriarcal
Pai: papel de provedor, protetor e
investido de uma autoridade “natural”
sobre os filhos e a mulher.
Mãe: papel de procriadora, cuidadora,
amorosa, nutridora e dependente.
Filhos: vistos como propriedade privada
dos pais, deveriam obedecer.

Contemporânea

1950: a família se apropriando de sua


diversidade, torna-se mais horizontal,
onde o poder é distribuído entre:
homem e mulher, entre pais e filhos.

A emancipação feminina, o
anticoncepcional, o divórcio, o aumento
da longevidade, o teste de DNA,
trouxeram novos padrões de
convivência familiar.

Fonte: elaboração própria.

Aula 07 – Abordagem Familiar 33


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A primeira família reflete a formação familiar típica de uma época, centrada na


figura do pai. A segunda, contemporânea, inova ao distribuir os papéis e funções dos seus
integrantes. As famílias mais flexíveis têm vantagens nessas tarefas sobre aquelas muito
rígidas, independente da classe social, ainda que regras sejam bem-vindas e devam ser
bem comunicadas. Da mesma maneira, um ambiente que permite expressar emoções,
tolera erros e apoia o contorno das adversidades, tende a superar mais facilmente cada
tarefa imposta pelo Ciclo de Vida. Nos casos complexos que atendemos e está indicado a
Abordagem Familiar, ampliar o olhar sobre o contexto, o que pode ser realizado também
por meio do genograma e do círculo familiar, apoia os participantes na elaboração de
estratégias para um novo modo de interpretar e reagir diante das adversidades.

A teoria sistêmica e a entrevista


familiar circular

A família pode ser entendida como um sistema dinâmico que busca o equilíbrio.
Segundo Minuchin15, a organização, a estrutura e os padrões de interação de uma família
são responsáveis por selecionar e qualificar as experiências de seus membros. Assumindo
este caráter de equilíbrio dinâmico, o sistema familiar pode se deslocar para relações
saudáveis ou disfuncionais, sendo nosso objetivo facilitar o primeiro tipo. Assim como um
ecologista observa os sistemas ecológicos (figuras 10 e 11), podemos observar as famílias e
ampliar a forma de observá-las, sob novas perspectivas.

Figura 10. Ecossistema Figura 11. Lente zoom sobre o sistema

Fonte: Imagem – Shutterstock©. Fonte: Imagem – Shutterstock©.

Aula 07 – Abordagem Familiar 34


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O sistema familiar tem características próprias, algumas já abordadas nessa aula,


sendo formado por elementos interdependentes que se comportam de forma coesa
dentro de um contexto específico e se autorregulam na intenção de manter um equilíbrio
interno.

Saiba Mais
Acessem a videoaula disponível no link a seguir, que
explica as origens da Teoria Sistêmica. Para assistir,
clique aqui.

A coesão e a funcionalidade desse sistema depende da relação que se estabelece


entre os familiares, as quais podem se fortalecer e enfraquecer. As fronteiras entre pais e
filhos, quando mal definidas, por exemplo, podem revelar pouca autoridade dos pais,
cabendo a geração parental se apoiar no posicionamento diante dos filhos, que por sua
vez, devem respeitar as regras da casa. Em algumas ocasiões em que os familiares não
percebem este contexto sozinhos, eles podem ser alertados por um profissional de Saúde
que reconhece tal desafio.

Para Minuchin: “Às vezes o terapeuta deve agir como um tradutor, interpretando o
mundo dos filhos para os pais e vice-versa. Pode também ter de ajudar o subsistema a
negociar fronteiras nítidas, mas viáveis de serem cruzadas.” (p. 64)15.

Observem a Figura 12 que ilustra um ciclo vicioso, alvo de intervenção para um


profissional da saúde.

Figura 12. Comportamento familiar circular.

Sequência de Comportamento

I. Criança comporta-se mal

II. Pai grita


Tempo

III. Criança chora/mãe intervém

IV. Mãe e pai discutem/criança sai

V. Pai retoma a disciplina

VI. Mãe se afasta

Fonte: Shazer (p. 71)16.

Aula 07 – Abordagem Familiar 35


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Essa reflexão pode ser moderada pelo profissional, na função de mediador,


fomentando equilíbrio, desarticulando relações disfuncionais e empoderando a família a
resolver por si. Por participar das mudanças familiares, o terapeuta passa a fazer parte do
sistema, ainda que temporariamente.

A circularidade na entrevista

As mudanças no sistema familiar não são em razão de causas lineares, com um


único motivo causal, mas circulares, em que vários fatores e atores agem continuamente e
reciprocamente. Nesses círculos, há múltiplas possíveis interações entre familiares, amigos,
terapeutas etc (Figura 13). Utilizar a circularidade comunicacional aumenta a possibilidade
da formação de rede de apoio e releituras terapêuticas.

Figura 13. Causalidade circular

Fonte: Imagem – Shutterstock©.

A circularidade de ideias e tensões torna a comunicação tema central para


Abordagem Familiar, pois acontece por intermédio de uma entrevista, com objetivos
específicos de provocar mudanças no sistema em questão. O profissional demonstra
curiosidade para entender o contexto, é afetado, conhece características do sistema
familiar, elabora questões capazes de promover reflexões transformadoras, superando
preconceitos por meio do efeito de feedbacks oferecidos. Ou seja, os terapeutas buscam
ser bons comunicadores.

Aula 07 – Abordagem Familiar 36


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No decorrer do texto, já ressaltamos outras qualidades necessárias ao andamento


da entrevista familiar. Agora, vamos nos orientar pelas etapas dessa entrevista, conforme
ilustra a Figura 14.

Figura 14. Etapas da entrevista familiar

Fonte: Ministério da Saúde (p. 42)7.

Aula 07 – Abordagem Familiar 37


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Fases da entrevista familiar:

• Fase 1: permissão para entrar na casa e nos assuntos íntimos.

• Fase 2: explorar o contexto, centrado no paciente.

• Fase 3: promover a discussão com perguntas reflexivas e inserindo pontos de vista


diferentes.

• Fase 4: identificar recursos, utilizando olhar apreciativo.

• Fase 5: ajudar a elaborar planos com criatividade e autonomia para a família.

O terapeuta pode encarar o silêncio inicial da entrevista, mesmo que pareça


constrangedor, pois não necessariamente é uma negativa da família à Abordagem
Familiar, podendo ser apenas um momento em que todos estão refletindo sobre como
desejam expor seus sentimentos e ideias. Além disso, quanto mais conseguir incluir os
envolvidos, sem obrigatoriedade, maior as possibilidades de mudança de ponto de vista.
Facilite aos envolvidos se expressarem, são poderosos consultores!

Vejam no Quadro 6 algumas sugestões de perguntas que podem auxiliar nesse


processo.

Quadro 6. Abordagem familiar

Pergunta para Abordagem Familiar

As pessoas se gostam ou se Existe muita briga, muita Quem quer controlar a


detestam? discussão, muitos conflitos? situação?

Existe alguém que queira Quem contribui ou não com


Há respeito entre elas ou não?
ser o melhor? as despesas?

Todos colaboram nas tarefas Como cada um expressa


Quem não quer fazer nada?
de casa? aquilo que é?

Fonte: adaptado de Barreto (p. 200)17.

Aula 07 – Abordagem Familiar 38


Projeto Cuida APS

As perguntas são reflexivas e circulares, podendo ser dirigidas a qualquer presente,


como previsto pelo paradigma Sistêmico. O próprio terapeuta pode também responder
algo sobre a própria família ou como se sente ao ouvir determinada resposta.

Como lidar com o conflito?

As famílias normalmente estão em dificuldade, resistentes a mudanças e armadas


até os dentes para obstruir qualquer tentativa de melhoria. Os pacientes podem acusar os
seus familiares, os profissionais, digladiarem-se entre vizinhos, ou se manterem calados
demonstrando indiferença, cabendo ao terapeuta mediar o possível conflito.

A abordagem dos conflitos não tem modelo, lidamos com surpresas. No entanto,
existem algumas sugestões para lidar com esses problemas, como evitar sustentar o papel
de juiz, defendendo alguém, escutando argumentos das pessoas que tentam provar para o
profissional de saúde que estão com a razão. A todos é dado direito de se manifestar, mas
também o dever de escutar o ponto de vista do outro familiar, o que pode provocar
desconforto. Afinal, ninguém disse que seria confortável! O foco é mudar a situação e
pensá-la diferente! Escutar a mesma história, sem perguntas que suscitam modos
diferentes de pensar, não será proveitoso. Como gostaríamos de dispensar o nosso
tempo hoje, repetindo as mesmas reclamações ou pensando em como ficar livres
delas?

No decorrer das consultas, os terapeutas podem assumir um papel semelhante ao


de um gestor, ao se deparar com acontecimentos trágicos, situações constrangedoras,
histórias tristes, conflitos de todos os tipos. Afinal, há um empecilho que limita a
capacidade da pessoa em cuidar da própria saúde. Em função disso, frequentemente,
desempenha-se o papel de mediador de conflitos, não apenas durante a Abordagem
Familiar, mas cotidianamente no cenário da APS. Olhar o conflito por outro ponto de vista e
como uma oportunidade de novos encaminhamentos a respeito dos assuntos que
suscitam a Abordagem Familiar pode ser uma alternativa interessante de
encaminhamento de situações que parecem impossíveis.

Segundo Pessôa: “Os conflitos fazem parte das interações sociais. A palavra conflito
geralmente é vista como uma discordância, desentendimento ou mesmo luta. Contudo é
possível entender um conflito de modo mais construtivo, como parte da evolução e
transformação social” (p. 46 )18.

Aula 07 – Abordagem Familiar 39


Projeto Cuida APS

Lembro-me da enfermeira, desolada, procurando apoio do médico para uma receita de


medicamentos para tratamento de dermatite atópica em uma adolescente. A jovem
respondeu gritando à uma pergunta da enfermeira, que sugeriu que a pele da adolescente
estaria avisando sobre um excesso de trabalho e sono ruim. Realmente a paciente
queixou-se de insônia, relacionada à atitude de assédio do chefe e ao excesso de horas
extras, porém, ela reagiu com raiva de forma desproporcional, sentindo-se julgada da
mesma maneira que o chefe fazia. Foi grosseira com a enfermeira e chegou já mais calma
ao consultório médico. O médico optou por acolher a dor emocional da paciente e, ao
mesmo tempo, validar a pergunta da enfermeira, refazendo o elo entre elas e favorecendo
que se desculpasse. Nesse caso, a raiva, sentimento muito importante, foi extravasada e
aliviou parte do seu estresse. Ela pediu desculpas e foi embora com as medicações e a
confirmação de que o trabalho estava interferindo em suas relações pessoais.

O conflito pode ser negado, sobretudo quando a família não reúne condições para
dissolvê-lo sozinha. Veja adiante as possíveis causas para os conflitos relacionais:

• Experiência de frustração;

• Diferenças atribuídas a personalidade;

• Diferentes percepções e objetivos;

• Insegurança na tomada de decisões;

• Expectativa de reconhecimento diante de exigências familiares.

A entrevista familiar utiliza algumas técnicas durante o encontro com intenção de


tornar o conflito menos danoso, considerando a oportunidade da discussão coletiva,
fomentando a emergência de soluções pelos próprios familiares. Vejam a seguir possíveis
formas de mediações:

A. Chuva de ideias: geração e aprimoramento de ideias sobre a situação atual e o conflito,


favorecendo que os pontos de vista diferentes apareçam de forma equânime, cuidando
para que todos se sintam contemplados. Esta fase pode ser sucedida por uma voltada
para elaboração de planos realistas, que contemple que todos os envolvidos possam
dar e receber a fim de colaborar para uma vivência familiar mais saudável.

Aula 07 – Abordagem Familiar 40


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B. Matriz de análise: utilização de um documento diagnóstico que descreve o conflito,


com percepção e atitude dos atores e do coletivo, seguida de novas possibilidades para
lidar com o conflito. Esse documento tem o valor de registro da reunião familiar, e pode
ser recuperado no futuro para reavaliação dos envolvidos. Mais utilizado pelas equipes
de saúde que elaboram projetos terapêuticos complexos (PTS).

C. Modelo circular-narrativo19: utiliza o pensamento sistêmico, a teoria narrativa e o


fortalecimento de redes de apoio como principais recursos. A tarefa do mediador
consiste em desestabilizar as histórias e possibilitar que as partes se reinventem por
meio do diálogo ao analisar o conflito de pontos de vista diferentes.

A partir das narrativas de cada familiar podemos entender as ideias sobre o conflito,
os papéis desempenhados por cada familiar que contribuem para manutenção ou
dissolução do conflito. Quais afetos seriam mobilizados nestas relações e como ocorre esta
troca comunicacional? Até mesmo a indiferença e o silêncio comunicam desprezo ou
desesperança, por exemplo. As palavras têm poder! O silêncio também! O paciente que
acredita estar isento pode não perceber que seu silêncio pode ser um grande fator
contribuinte para o conflito. Isto dependerá do contexto onde o conflito se instaura.

O foco da Abordagem Familiar está nas interações entre as pessoas e como este
fenômeno dinâmico pode interferir na vida das pessoas. As pessoas estão em constante
transformação, que pode ser facilitado se ampliando as visões sobre o contexto. Como
salienta Cecching20, deve-se evitar a utilização do verbo “ser” e priorizar o verbo “estar”,
considerando que estamos sempre em equilíbrio dinâmico e passíveis de mudanças.

Minha Prática
No cotidiano de trabalho da APS e na assistência a pessoas
com condições crônicas, você observa a força da família e
a considera na análise sistêmica sobre o sintoma/queixa?
Na aula você conseguiu reconhecer ferramentas possíveis
para auxiliar na abordagem aos pacientes e famílias? Você
imagina que terá desafios neste trabalho? Quais seriam?
Quais estratégias e caminhos são possíveis dentro do
cotidiano de trabalho da APS?

Aula 07 – Abordagem Familiar 41


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Considerações Finais

As famílias possuem uma série de recursos para perpetuar os equilíbrios, sejam eles
saudáveis ou não. Ao procurar alterar a lente que vemos esses conjuntos sociais,
procurando novos pontos de vista e uma noção contextual mais ampla nos permitirá ser
mais capazes de propor mudanças naqueles contextos desfavoráveis. E esses inputs
podem ser gerados por qualquer pessoa, dentro ou fora da família. O que a abordagem
sistêmica deseja salientar é que para cada história que uma família trouxer é essencial
desestabilizar os contextos disfuncionais, estimulando um novo equilíbrio mais saudável.

Quando utilizamos o termo disfuncional, queremos indicar um desequilíbrio no


sistema o qual a família decidiu conversar a respeito. Este estado, dito disfuncional, não é
estático nem necessariamente ruim, eles estão apenas funcionando de modo diferente.
Esse contexto pode ser primordial para a família superar um conflito, um desafio do ciclo
de vida. Neste momento é essencial reconhecermos a importância da crise para superação
de desafios e não cairmos na armadilha de aplicar rótulos pejorativos, carregados no termo
disfuncional. Aproveite as oportunidades que a crise gera e dê tempo a todos para
evoluírem.

Façamos uma pequena recapitulação dos conceitos aprendidos e de como nossa


caixa de ferramentas foi atualizada:

• O que fazer: Abordagem Familiar.

• Com quem: hiperfrequentadores, problemas em saúde mental, álcool e drogas, final


de vida, imigrantes em vulnerabilidade, comportamento autodestrutivo, pacientes
com pouca consciência da morbidade, crises paranormativas e a critério da equipe.

• Quando/onde: acolhimentos, consultas agendadas e visitas domiciliares.

• Como: utilizando paradigmas Biopsicossocial e Sistêmico, fio narrativo, ciclos de


vida, genograma, círculo familiar, entrevista familiar, mediação de conflitos, terapia
breve na APS.

Assim vamos finalizando este encontro, na expectativa de que vocês estejam mais
atentos ao poder das relações familiares e como elas estão relacionadas com sintomas.
Esperamos também que se sintam mais confortáveis para utilizar intervenções em
Abordagem Familiar, sejam breves ou mais longas, como nas visitas domiciliares com a
rede intersetorial para casos extremamente complexos, cientes do quanto pode ser
satisfatório o resultado dessa atitude em saúde, fruto de muito estudo e experiências
exitosas mundo afora.

Até a próxima!

Aula 07 – Abordagem Familiar 42


Projeto Cuida APS

Referências

1. Kuhn TS. A estrutura das revoluções científicas. 5ª ed. São Paulo: Perspectiva; 1998.

2. McWhinney IR, Freeman T. Fundamentos filosóficos e científicos da Medicina de


Família e Comunidade. In: Freeman T. Manual de medicina de família e comunidade
de McWhinney. 3ª ed. Porto Alegre: Artmed; 2010. p. 68-103.

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de Medicina de Família e Comunidade: princípios, formação e prática. 2ª ed. Porto
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4. Young JE, Klosko JS, Weishaar ME. Terapia do esquema: guia de técnicas cognitivo-
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5. Conferência Internacional sobre Promoção de Saúde, 1986, Ottawa. Carta de Otawa. In:
Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Políticas de Saúde. Projeto Promoção da
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Aula 07 – Abordagem Familiar 44


Projeto Cuida APS

O Autor

Daniel Trindade Araujo do Espirito Santo

Sou Daniel, de uma amada família mineira, casado com Bruna,


médico graduado pela Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG), especialista em Medicina de Família e Comunidade (MFC)
pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e pela
Comunidade do Morro do Salgueiro, onde me formei MFC e a
quem devo o crédito da contribuição notável para minha formação
pessoal e comunitária. Atualmente, sou professor da graduação e
pós-graduação em Medicina de Família e Comunidade do Hospital
Albert Einstein. Formado como Terapeuta Familiar pelo Instituto
de Terapia Familiar de São Paulo.

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