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O PAPEL DOS AFETOS NO COTIDIANO ESCOLAR

CASO
Em uma das cidades mais populosas do Brasil, uma escola da
periferia atendia em média 700 estudantes do 1º ao 9º ano em turnos
parciais. A partir das 7 horas, o movimento aumentava e logo se
escutava o sinal. A inspetora abria o portão e aos poucos o pátio ficava
repleto de crianças e adolescentes. O segundo sinal soava e cada
professor organizava seus alunos em fila para se encaminharem para
as salas.
Na classe do 8º ano, o professor Paulo entrou largando sobre a
mesa sua pasta preta, que bem poderia ser usada em um consultório.
Alto, loiro e muito elegante, tinha 30 anos. Seu sonho era ser médico,
mas as circunstâncias o levaram a escolher o curso de biologia.
Esperou um minuto até todos se organizarem e perguntou:
– Lembraram que hoje é a data final para a entrega da pesquisa? Alguns
olhos se arregalaram; outros se voltaram para o chão.
Por um momento, pareceu que o tempo tinha parado.
– Como eu já disse – continuou o professor –, a nota máxima para esse
trabalho é 8.
– Então, sentou-se à mesa para realizar a chamada.
Apreensivos, os estudantes sentiram o coração acelerar. Um dos
garotos, indignado, pensou: “É injusto! É injusto! Não posso nem reivindicar
meus direitos!”. Uma das meninas abaixou a cabeça e sussurrou à colega
mais próxima:
– Isso é bom para eu aprender; deveria ter ficado calada.

ALUNOS EM BUSCA DE MUDANÇA

Fábio, aluno dedicado e comprometido com suas


responsabilidades, apoiou o queixo sobre as mãos, fixou o olhar sobre
seu livro e começou a recordar um fato vivenciado na semana anterior,
quando ele e alguns colegas foram pedir ajuda à diretora da escola,
Vilma.
Quando entraram na sala da direção, Vilma lhes deu boas-
vindas e perguntou o que os trazia ali. Um colega, Theo, tomou a
iniciativa:
– Estamos aqui para dizer que nossas aulas de ciências estão
complicadas. Não conseguimos entender as explicações do professor,
e, quando levantamos alguma dúvida, ele fala para não interrompê-lo.
– Na última aula – emendou Alice, com voz trêmula –, pedi ao professor
que me explicasse um conceito, e ele me disse que eu deveria reler o
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texto, porque era bem fácil de entender e de nada me custava estudar
um pouco em casa.
Vilma ouviu as queixas de outros estudantes, olhou firmemente para o
grupo e afirmou:
– Muito bem, sempre é bom ouvir vocês. Agora, voltem para a sala de
aula. Vou relatar o caso para a coordenadora da escola e veremos o
que está acontecendo. – Dizendo isso, levantou-se, abriu a porta e
acompanhou os estudantes com o olhar enquanto se afastavam.
Fábio tinha viva a lembrança de que chegaram à classe
desapontados. A professora de inglês nem questionou onde estavam;
apenas lhes disse que copiassem no caderno as anotações da lousa. O
que Fábio não sabia era que a diretora, por algum tempo, refletiu sobre
o episódio que acabara de presenciar. “Esses alunos gostam de
reclamar. Não tenho certeza, mas me parece que já se queixaram de
outros professores. Assim que der, vou chamar Paulo para saber melhor
o que está acontecendo.” Gestora da escola havia dez anos, Vilma
procurava resolver os conflitos ouvindo todos os envolvidos. Isso,
porém, nem sempre era possível, por causa dos compromissos
burocráticos e da falta de alguns profissionais na equipe.
Algumas semanas mais tarde, recordou Fábio, ele e os colegas
tiveram a impressão de que a diretora e a coordenadora haviam
conversado com Paulo, mas não da maneira que esperavam. Em uma
das aulas, o professor, mais reservado, retomou brevemente o
conteúdo e solicitou a realização de uma pesquisa sobre o tema
abordado. Comentou que alguns estudantes da turma, que todos
sabiam quem eram, teriam de apresentar um ótimo trabalho,
fundamentado e bem elaborado, já que gostavam de fazer exigências.
Então, disse com voz pausada:
- Temos no grupo algumas pessoas que acham que o professor deve
ser mais dedicado em sua função. Portanto, mostrem-me quão bons
vocês são. Quero ver se alguém aqui vai superar a média. Precisam
aprender a buscar seus direitos e não seus interesses.
Como se tudo acontecesse em segundos, Fábio parou de divagar.
Era o dia da entrega do trabalho. Dera o melhor de si, e alguns colegas
também pareciam ter se empenhado, mas alcançariam a nota máxima?
Que critérios o professor utilizaria na avaliação? O garoto só pensava
nisso...

A RELAÇÃO DO PROFESSOR COM OS ALUNOS

Depois que os alunos colocaram os trabalhos sobre a mesa, o


professor guardou-os na pasta preta. Em seguida, iniciou outro assunto,
e os 50 minutos de aula transcorreram sem problema.
Nesse dia, ele encerrou seu expediente mais cedo e, assim que
saiu da classe, dirigiu-se ao estacionamento para ir para casa. Queria
descansar um pouco, pois lecionava em duas escolas e atendia várias
turmas, cada qual com seus desafios: algumas mais calmas, outras
mais petulantes.
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Paulo procurava exercer seu papel de promover o conhecimento
e cumprir o currículo proposto. Sempre acreditou que a escola é o lugar
do saber, o espaço de aprendizagens científicas, porém tinha cada vez
mais a impressão de que os estudantes queriam apenas ser favorecidos
e agradados. Percebia que, para algumas pessoas, o bom professor era
aquele que, mesmo no horário de aula, ouvia os alunos e tentava
entender e relevar certas situações. O jovem docente considerava isso
perda de tempo. Para ele, o importante era transmitir conhecimento,
deixando claro que os problemas familiares, pessoais ou entre colegas
de classe deveriam ser resolvidos fora da escola. Perdido nesses
pensamentos, chegou em casa.

A CRISE

Enfim, a sexta-feira chegou. Paulo daria dez aulas seguidas, a


primeira das quais para a turma do 8º ano, aquela que andava falando
pelos corredores que ele, além de não ensinar bem, dizia que os
estudantes não sabiam lidar com os próprios sentimentos. Até a
professora da sala de leitura, Maria, ouviu o desabafo de alguns alunos,
que afirmaram ter muita dificuldade de compreender as aulas de
ciências e sentir-se discriminados pelo professor, pois sempre parecia
ironizá-los. Maria, então, comentou que eles deveriam entender a
individualidade dos professores, respeitando seus diferentes métodos
de ensino, porque, afinal, eram estudantes do 8º ano e não mais da
Educação Infantil.

A RECLAMAÇÃO

Nesse dia, depois das aulas da manhã, Paulo almoçou na escola,


como de costume, e retomou o trabalho. No meio da tarde, exatamente
no intervalo para o lanche, o professor passava pela sala da direção,
cuja porta estava aberta, quando a diretora o chamou:
– Por gentileza, podemos conversar?
Paulo entrou na sala e lá encontrou Carla, uma das alunas do 8º ano,
líder no grupo, que sempre expunha suas opiniões e argumentava
bastante. Estava com a expressão séria, sentada ao lado de sua mãe,
que parecia ansiosa.
A diretora iniciou a conversa, com voz calma:
– Professor, Carla veio me procurar dizendo que há algum tempo se
sente discriminada em suas aulas. Descreveu o relacionamento de
vocês em sala e disse ter percebido que você não gosta dela, o que
está prejudicando sua aprendizagem. Aliás, as notas desse trimestre
abaixaram.
Paulo, que segurava uma garrafa de água nas mãos, colocou-a sobre a
mesa, encarou a garota e falou com firmeza:
– Não gosto de você, Carla? E daí? Tenho de gostar de você para que
aprenda? Nunca imaginei que, para meus alunos aprenderem, preciso
gostar deles! As notas abaixaram por causa de sua falta de interesse
pelos estudos.
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Ao ouvir isso, Carla, tomada de fúria, exclamou, com voz trêmula:
– Professor, faz dois anos que aguento esse seu pouco-caso comigo e
com meus colegas! Sempre nos trata com indiferença e arrogância!
Sabe o que eu acho? Que você jamais poderia ser professor! Quero um
professor que me respeite e não me aponte o dedo no nariz, dizendo
que não vou ser nada na vida. – Em meio a essas palavras, a garota
desatou a chorar.
– Não gosto de você mesmo! Quem disse que tenho de gostar de
aluno? Estou aqui para ensinar! E está chorando por quê? Se é para
chorar, eu também choro…
A mãe, até então calada, levantou-se da cadeira e, bastante nervosa,
afirmou, com voz alterada:
– Minha filha sempre gostou de vir à escola, nunca teve problemas,
mas neste ano está sendo rejeitada, sim! Essa situação não pode
continuar.
A diretora tentou acalmar a mãe; o professor, virando as costas para a
cena, proferiu:
– Vou é cuidar da minha vida, da minha saúde! Se for acatar tudo o
que escuto desses estudantes, em breve serei afastado do trabalho por
estresse. – Retirou-se da sala e foi até a sala dos professores, onde
seus colegas lanchavam.

A OPINIÃO DOS PROFESSORES

– Essa foi para perder a fome! – Assim Paulo entrou na sala, e todos se
voltaram para ele.
– O que houve? – questionou o professor Jackson, em tom des
contraído.
– Acabei de ouvir uns absurdos na sala da direção. Uma aluna,
acompanhada da mãe, reclamou que não gosto dela e desatou a chorar,
fazendo cena. Falei que não gosto dela mesmo… Garota inconveniente!
Agora as notas baixas são culpa do professor!
Paulo estava transtornado com a situação, e em segundos a sala foi
tomada por grande alvoroço.
– Isso é ridículo! – exclamou a professora de geografia. – Onde já se viu
vir com a mãe para dizer que o professor não gosta dela?
A aluna que estude!
– E que dê graças a Deus por ter professor para dar aula – completou a
professora de língua portuguesa –, porque, do jeito como as coisas
andam, daqui a um tempo ninguém mais vai querer sa ber de
Educação.
– É bem assim: quando chamamos os pais para falar de seus filhos,
eles não aparecem porque trabalham; agora, para vir reclamar do
professor, têm tempo de sobra – argumentou a professora de
matemática.
– Gente, a coisa está feia mesmo – manifestou-se o professor de
ensino religioso, para surpresa dos colegas, pois era muito reservado. –
Hoje também discuti com uns garotos do 7º ano. E o que mais me
chateia é nada ser feito. A coordenação vive tentando entender os alunos.
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Paulo, agora em tom mais brando, relatava para os presentes detalhes
do que aconteceu, quando uma professora dos anos ini ciais o
interrompeu:
– Paulo, quem é a garota?
– Carla – respondeu ele, em tom irônico.
– Carla?! Não é possível… Ela foi minha aluna no 2º ano, era excelente…
– Sabe o que acontece? Eles crescem e mudam – argumentou a
professora de matemática. – Essa menina já foi ótima aluna, mas anda
bem desinteressada. Soube que os pais dela se separaram e o irmão,
que também estudou aqui, está envolvido com drogas!
– Ah... e a culpa é da escola? – exclamou Paulo, com voz grave.
– Gente, está tudo errado! Temos de valorizar os bons alunos.
Soou o sinal. Todos deveriam retornar às salas para ministrar as duas
últimas aulas daquela sexta-feira. No entanto, o clima estava tenso, e
muitos continuaram a debater. Diante da colocação de Paulo, uma
professora sentiu o coração doer e murmurou para as colegas próximas,
que permaneciam caladas:
– Nosso papel é promover a igualdade, acolher os menos favorecidos.
Conhecimento se encontra em qualquer lugar, mas não amor e carinho.
A escola deve ter esse olhar, sim!
Paulo, ao ouvir o comentário, interveio:
– Faça isso, então! Quero ver você achar tempo para ensinar.
Amar e dar carinho é papel de pai e mãe. Se não fazem isso em
casa, o problema não é meu!
Outra professora continuou:
– Concordo em parte. Se continuar assim, daqui a alguns anos a
escola assumirá todo o papel da família. E onde ficará a função de
ensinar?
Inconformado, Paulo rebateu:
– Até os professores acreditam nisso, e o resultado é termos tantas
famílias que pensam assim. Esse tipo de professor fortalece o
pensamento equivocado das famílias de que temos que gostar de seus
filhos.
Toda aquela conversa gerou um turbilhão de pensamentos. Os
professores caminharam até as salas de aula a passos lentos,
questionando-se: “O que está acontecendo?”, “A cada ano o perfil dos
alunos muda, e as famílias?”, “Será que devo trocar de profissão?”.

O DILEMA DA DIRETORA

Na sala da diretora Vilma, o clima estava mais tranquilo do que na


dos professores. Carla não chorava mais e a mãe voltou a sentar-se.
Suspirando, em busca do equilíbrio da situação, Vilma disse:
– Carla, o professor Paulo é um excelente profissional, e, como todos
nós, sempre há algo a melhorar. Às vezes, é necessário relevar algumas
coisas, ignorar…
A mãe, no entanto, a interrompeu:
– Dona Vilma, não seria possível trocar minha filha de sala?
– sugeriu, um pouco acanhada. – Assim, ela não precisaria mais
conviver com essa pessoa.
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– Bem, analisarei com a equipe se isso é possível e na próxima semana
voltaremos a conversar.
Carla, ainda abatida, acenou com a cabeça, concordando com a
diretora, mas a mãe reagiu, decidida:
– Caso não seja possível, irei até a Secretaria da Educação, por que
assim não pode ficar.
Vilma garantiu que logo lhe daria uma posição. Com isso, mãe e filha
despediram-se e retornaram para casa, na esperança de que dias
melhores viessem. A diretora rapidamente registrou em sua agenda,
para segunda-feira: “Reunião com a coordenadora e a orientadora da
escola para discutir que decisões tomar sobre a situação de Carla”.
Enquanto anotava, pensava: “Apenas trocar a aluna de sala
resolverá o problema? Paulo tem essas atitudes desde que começou a
trabalhar aqui, e percebo que a cada ano piora”. Lembrou, então, que dias
atrás o ouvira comentar com um colega: “Meu papel aqui é ensinar.
Aprendeu, aprendeu… Gostou, gostou... Não estou nem aí para esses
adolescentes malandros”. Também recordou o que ele dissera havia
pouco: “Nunca imaginei que, para meus alunos aprenderem, preciso
gostar deles!”
Por fim, questionou-se: “Será que Paulo tem razão? Como
profissionais, nosso dever é ensinar os alunos! Não precisamos gostar
deles para que aprendam, porém devemos respeitá-los. Paulo faltou
com o respeito em toda essa situação? Ele me parece muito centrado
em si mesmo...”.
A diretora decidiu: chamaria o professor para uma conversa o
quanto antes. Já eram quase 17 horas, e ela não havia lanchado. Sua
vida de gestora era muito corrida, a ponto de em vários dias passar 12
horas na escola, e ultimamente sentia-se muito cansada. Fechou a
agenda, levantou-se e foi tomar um café.

QUESTÕES

1. O professor pode priorizar a aprendizagem dos alunos sem levar em


consideração o relacionamento afetivo com eles? Que argumentos
sustentam sua opinião?
2. A direção da escola deve intervir nesse tipo de situação? De que modo:
chamando o professor para refletir com ele sobre suas atitudes ou
reunindo-se com todos os professores para tratar do assunto
coletivamente? Que encaminhamentos tomar?
3. O relacionamento entre professor e aluno afeta a aprendizagem? O
que fazer quando esse relacionamento não é agradável?
4. Como deve ser a relação professor-alunos para que a aprendizagem
seja significativa? A afetividade é importante para a aprendizagem?
5. Trocar a aluna de sala ajudaria a resolver o problema? Por quê?
6. A escola deve tratar das relações afetivas ou concentrar as atenções
no ensino de conteúdos? Como isso deve acontecer?

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