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Uma escola diferente

Edição 143 - Out/05

Não há salas de aula, turmas ou séries. O conteúdo e a ordem de


estudo são decididos pelos alunos, sob a orientação dos educadores.
Esse lugar existe? Sim. Há 30 anos em Portugal, na chamada Escola
da Ponte. Idealizada pelo educador José Pacheco, a nova forma de
educar nasceu para dar às crianças mais sabor ao aprender. No
Brasil, a Escola Municipal Desembargador Amorim Lima constrói uma
versão brasileira, inspirada no projeto português. Localizada no
Butantã, bairro da Zona Oeste de São Paulo, ela - a escola mesmo -
conta como vem assistindo à revolução em seus muros. Acompanhe.
As paredes foram derrubadas e
quatro salas se tornaram uma "O pessoal que trabalha aqui vive Para mudar temos de refazer
falando de mágica. Dizem que, conceitos e desfazer certezas
por mais que tenha formação acadêmica ou técnica, só com ela a
educação acontece por completo. Eu, como sou uma escola, feita de
tijolo, tinta, madeira, areia e cimento, fico um pouco confusa com assuntos não-concretos. Mas estou
aprendendo. Aprender, aliás, é um verbo que ganhou outra cor por aqui. Essas pessoas que acreditam em
mágica estão mudando minha concepção sobre vários assuntos. Elas dizem que, para construir, precisamos
desconstruir primeiro. Que, para mudar, temos de refazer conceitos e desfazer certezas. E isso soa para
mim muito natural. Como se eu sempre soubesse que é assim que se faz.

Outro dia, naquelas conversas maravilhosas entre professor e criança,


um aluno se deu conta de que professor é aquele que - de repente -
aprende. Igualzinho falou há muitos anos o escritor João Guimarães
Rosa, e que o meu querido amigo, o educador português José
Pacheco, aquele que criou a Escola da Ponte, vive repetindo para a
gente não esquecer nunca. O melhor é que esse aluno se deu conta
disso sozinho. Aqui, os alunos são consultados até sobre o que e como
querem estudar. Todo mundo aprende junto e sozinho. Cada um no
seu tempo, no seu ritmo. Mas nem sempre foi assim. Houve um tempo
em que tudo era cinza: as paredes, os uniformes e o humor de
professores e alunos.

Até que um dia, há nove anos, passei a receber a visita de uma Em educação, quando
pedagoga engraçada, que gesticulava muito. Quando Ana Elisa Siqueira
pensamos que está tudo feito, há
passou no concurso e assumiu a direção da escola, percebi nela um
muito o que fazer
brilho diferente. Era uma mulher muito esperta e logo descobriu o que
estava embaixo do cinza. Viu que os pais das crianças reclamavam das
constantes faltas dos professores e da indisciplina na sala de aula. Estava na hora de partir para as
soluções. Começaram as rodas de conversa. Alguns não entendiam o que tanto a Ana queria mudar. Mas
essa Ana era cheia de querer e foi, aos poucos, seduzindo a todos.

Primeiro, tirou as grades que reduziam meu enorme pátio e cercavam


as crianças. Depois, tratou de pintar de laranja minhas portas. Mais
algum tempo e as paredes também estavam coloridas. Era a tal
mágica começando a acontecer.

O que mais ajudou a Ana foi que, em trabalhos anteriores com


pedagogia, ela conheceu bem a comunidade que vivia por aqui. Ela
sacou, por exemplo, como era bom ter crianças, filhas de pais que
fazem doutorado na Universidade de São Paulo, aqui ao lado,
misturadas a crianças com pais analfabetos. A diversidade propiciava
uma palavra que adoro ouvir: democracia. Sob o comando da Ana, alguns funcionários, pais, especialistas e
parceiros das mais variadas áreas foram se envolvendo com os meus muros, sugerindo idéias e projetos.

Um dia marcante foi quando ouvi o som do primeiro berimbau. Era


música no meu coração. Se escola tem coração? Claro, eu tenho
centenas deles. Tratava-se do projeto de cultura brasileira. Com circo,
teatro, capoeira e danças brasileiras e muitas crianças. Alguns pais se
animaram tanto que não saíam mais daqui. Até nos recreios, eles
vieram ajudar. Foi então que a direção da escola decidiu contratar
uma consultoria pedagógica, da renomada psicóloga Rosely Sayão.
Numa das reuniões com os especialistas, ela exibiu um vídeo sobre a
portuguesa Escola da Ponte. Quando os pais ouviram as palavras
'autonomia' e 'solidariedade', tiveram a grande certeza: 'Essa é a
escola que queremos para os nossos filhos'.

Fiquei ansiosa. Afinal, como seria? Qual era a fórmula do José


Pacheco? Poderíamos repetir aqui? Um pai muito corajoso, Gilberto
Frachetta, venceu as dúvidas, colocou debaixo do braço um projeto
redigido por psicólogos, educadores, mais o consenso dos outros pais No pátio interno, uma das muitas
e, no final de 2003, foi bater à porta da Secretaria Municipal de exposições dos alunos, promovida
Educação de São Paulo. A tal secretária não teve como recusar. pela escola

Janeiro de 2004 chegou e a Ana veio com outra idéia maluca. As


paredes das salas deveriam ser derrubadas. Isso mesmo. Quatro salas
se tornaram uma! Duas lousas, uma de cada lado, crianças reunidas
em grupos de cinco e três educadores por sala. Não há mais aulas
únicas, preparadas para todos os alunos. A professora Cleide Portis
ficou assustada. Nova na casa, imagine, ela entrou bem no meio da
revolução. Outro dia, contou o que sentiu na época: 'Dos 20 anos que
tenho de escola pública, a docência era algo solitário, eram os meus
alunos, meu espaço, meu pensar. Aprendi a compartilhar. Dividimos
as idéias e o material e agora as crianças aprendem juntas, com os
colegas, no seu ritmo'. Notei que mudar de rotina é muito difícil para o adulto. Eles têm receio de
experimentar e não dar certo. O que adianta derrubar as minhas paredes se não derrubarem as paredes
deles mesmos? Mas, as crianças, ah, elas tiram de letra. Aqui, como na Ponte, seguem um roteiro de
estudo sugerido pelos educadores e decidido por elas. Não há desordem ou espaço para indisciplina: elas
têm liberdade para andar pela sala, mas, para chamar o professor, cada uma espera sua vez. No salão
maior, por exemplo, estão as crianças correspondentes à primeira e segunda séries do ensino fundamental.
Misturam-se as que já sabem ler e as que ainda não aprenderam. Para Amanda, que está na segunda série
e já lê muito bem, não há o menor problema. 'Ficamos juntos para um ensinar ao outro o que sabe..' Outro
dia, uma mãe contou que seu filho deixou de ser tímido, agora conversa mais em casa. Com a liberdade, as
crianças ganham conhecimento. Com conhecimento, adquirem autonomia. Com autonomia, exercem a
solidariedade.

Hoje olho para mim e parece que todo mundo anda sorrindo. Ainda
noto olhares de dúvida. Houve professor que preferiu sair e pai que
optou por uma outra escola. Eu acho ótimo. Porque o importante é ter
a chance de fazer escolhas, coisa rara na rede de ensino público do
Brasil. Esqueci de contar que nem toda a escola entrou no novo
projeto pedagógico de uma vez. Não havia como, era muita novidade
e pouca experiência. Mas, agora já temos 10, 20, 30, 50, 60 e 70
anos no projeto. Foi uma forma de, em 2006, colocarmos todas as
crianças falando a mesma língua.

Dos tijolos derrubados, o pessoal daqui construiu um forno. Daqueles para fazer pão e pizza em dias de
festa. O amigo Pacheco anda apreensivo. Disse que caminhamos em um ano o que a Ponte andou em 30.
Outro dia, poetizou: 'É preciso cuidado, pois o importante não é velocidade, mas direção'. Por isso que,
como ele diz, em educação, quando pensamos que está tudo feito, há muito o que fazer. É essa a vida que
corre entre as minhas paredes: muitos caminhos a serem percorridos, muita coisa para consertar. Mas, se
para a pequena Amanda o melhor lugar do mundo é aqui e agora, é porque já temos uma direção."

Amanda, 8 anos, tem orgulho de


estudar na Amorim Lima. Acima, a
sala grande não é desculpa para
bagunça
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