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Resumo
O presente relato de experiência procurou mostrar o desenvolvimento de um projeto de
xadrez realizado em uma escola de ensino fundamental na cidade de São Lourenço do
Sul/RS, em parceria com o Centro de Atenção Psicossocial Infantil. Teve como objetivo
proporcionar uma atividade lúdica, de lazer, que servisse como meio de proteção da
saúde mental dos alunos e que pudesse ajudá-los a compreenderem melhor sua realidade
de vida. Como método aplicado, procurou-se trabalhar os fundamentos do jogo de
xadrez, dentro da ótica de transpor o conhecimento ensinado pelo jogo comparando-os
com os acontecimentos do cotidiano do aluno. Como resultado os alunos puderam, por
meio dos ensinamentos do jogo de xadrez, dialogar, expor seus sentimentos, entender
melhor suas realidades de vida. Utilizando o método de transposição de conhecimento,
foi possível dar condições para que o próprio aluno pudesse refletir e procurar resolver
seus problemas mais imediatos. Portanto, o projeto mesmo tendo pouco tempo de
vigência, atingiu os objetivos propostos.
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Mestrando em Educação pelo Programa de Pós-graduação em Educação (PPGEDU) da
Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e da Missões URI-Campus de
Frederico Westphalen-RS. Especialista em Educação Física Escola pela Universidade
Federal de Santa Maria (UFSM). Especialista em Saúde Mental Coletiva pela Escola de
Saúde Pública de Porto Alegre-RS. E-mail: eribeiroalbuquerque@gmail.com.
Contextualizações iniciais
O presente relato visa elucidar o desenvolvimento e implicações de um projeto
de xadrez realizado em uma escola de ensino fundamental situada em um bairro
populoso, com aproximadamente cinco mil habitantes, na cidade de São Lourenço do
Sul/RS. Esse projeto foi proposto pelo residente multiprofissional de Educação Física,
em conjunto com o Centro de Atenção Psicossocial Infantil (CAPSi), e foi uma das
atividades obrigatórias para obtenção do título de Especialista em Saúde Mental
Coletiva pela Escola de Saúde Pública de Porto Alegre.
Durante a jornada percorrida como residente multiprofissional em saúde mental
coletiva, entre março de 2108 até fevereiro de 2020, pude aprender muito com os
professores, tutores, preceptores, colegas de residência, médicos, gestores públicos e
equipe multiprofissional. Cito todos esses profissionais, pois durante todo o período da
residência, na forma de rodízio, passei por todos os serviços de saúde mental no
município e conheci por dentro como funciona a dinâmica e o fluxo de trabalho de cada
um deles. Não esquecendo de citar, e dando destaque primordial, aprendi muito com os
usuários dos serviços por onde passei, aprendi com essas pessoas, principalmente, a
despir-me de preconceitos que trazia arraigados comigo.
Ao chegar à cidade de São Lourenço do Sul, eu profissional de educação física e
mais quatro residentes multiprofissionais (enfermeira, psicóloga, assistente social e
terapeuta ocupacional), fomos divididos em dois grupos, sendo o primeiro grupo
composto pelo profissional de educação física, enfermeira e assistente social e o
segundo grupo pela terapeuta ocupacional e psicóloga. Fomos lotados em nosso
primeiro ano em um Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Outras Drogas (CAPS-
AD) e no CAPS Nossa Casa (CAPS tipo I). Durante um dos turnos uma das equipes
ficava em um dos CAPS e a outra equipe ficava no outro, havendo alternância das
equipes entre os turnos. No segundo ano de residência fomos lotados em um turno no
CAPSi e no outro turno passamos por setores como: Hospital Municipal, Setor de
Geração de Rendas, Unidades Básicas de Saúde (UBS) e Secretaria Municipal de
Saúde.
Logo que cheguei ao CAPS-AD e CAPS Nossa Casa uma de minhas ideias foi
montar um grupo de xadrez com os usuários, com a intenção de replicar o êxito que tive
em outrora em trabalhar com o xadrez na escola, com povos originários, jovens em
vulnerabilidade social e jovens com Transtorno do Espectro Autista (TEA). A ideia foi
muito bem-vinda por todos que compunham a equipe de trabalho, porém o público-alvo
era totalmente diferente dos quais já havia trabalhado. Foi detectado, mediante reunião
de equipe multidisciplinar e leitura de laudos médicos, que devido ao comprometimento
cognitivo, altos índices de intolerância a frustrações, enfermidades, transtornos, vícios
entre outras questões, trabalhar o xadrez da maneira que costumava a trabalhar seria
algo muito distante de ser alcançado. Assim, foi organizado uma proposta na
perspectiva lúdica, com regras flexibilizadas e minijogos, buscando oportunizar uma
nova experiência aos usuários. Dessa forma, se procurou ao menos, possibilitar uma
nova vivência aos usuários, levando sempre em consideração a sua condição e
necessidades.
Início do projeto
Após muito dialogar acerca da importância de fazer um trabalho preventivo fora
dos muros do CAPSi, foi permitido que o projeto fosse realizado. Durante o mesmo
período que atuava no CAPSi, no turno inverso atuava na Unidade Básica de Saúde no
mesmo bairro que pretenderia realizar o projeto. Alguns familiares dos alunos da escola
costumavam procurar atendimento na UBS, outros eram usuários de um dos CAPS da
cidade, dessa maneira foi mais fácil estabelecer um vínculo, tanto com os pais, quanto
com as crianças.
Ao chegar à escola escolhida para realização do projeto, fui muito bem
recepcionado pela diretora e equipe pedagógica. Após apresentar a proposta de realizar
um projeto de xadrez na escola, antes mesmo de terminar minha explanação as
professoras aderiram à ideia e deram todo suporte necessário para que o trabalho fosse
realizado. As informações sobre o projeto foram explicadas em sala de aula para os
alunos, foi colocado cartazes informativos na escola e disponibilizado número do
telefone e e-mail para contato. Foi entregue para os alunos que tinham o interesse de
participar do projeto de xadrez, um termo de autorização e compromisso, que os
responsáveis e o aluno deveriam assinar e entregar na coordenação da escola. As aulas
aconteciam duas vezes por semana nas segundas e quartas-feiras no turno oposto das
aulas, cada encontro tinha aproximadamente duas horas.
Quando o projeto começou a procura foi pequena. Na primeira semana de aula
apenas três alunos apareceram, dois meninos e uma menina, porém a cada encontro o
número aumentava. No segundo encontro cinco alunos compareceram, três meninos e
duas meninas, na segunda semana no terceiro encontro, compareceram nove alunos,
sendo cinco meninas e quatro meninos. Ao término do primeiro mês, o grupo era
composto por aproximadamente trinta alunos/alunas. Para que todos pudessem ter as
mesmas condições de aprendizado, sempre que chegava um aluno novo o conteúdo
anterior era retomado, dessa maneira, os alunos mais antigos tinham a oportunidade de
massificar o conhecimento e/ou tirar dúvidas a respeito de assuntos que não tivessem
entendido. Também era permitido e incentivado que os alunos mais antigos auxiliassem
os alunos mais novos, dessa forma, ambos aprenderiam juntos.
Desenvolvimento do projeto
Após o primeiro mês de projeto os alunos já eram detentores de certo
conhecimento enxadrístico, os alunos sabiam o nome das peças, distribuição de origem
no tabuleiro, movimentos e objetivo do jogo. A partir desse momento, e sempre levando
em consideração o entendimento de cada aluno, começou-se a transmitir conhecimentos
mais complexos em relação à troca peças (valores das peças), vantagem posicional e
dinâmica de jogo. Para facilitar o aprendizado, na maioria das vezes, procurava-se
comparar a intenção de jogada, ou a jogada propriamente dita com algo do cotidiano
dos alunos. Algo como superioridade e inferioridade numérica, vista nos esportes
coletivos, oposição ao rei, era comparado com a marcação individual do handebol, o
“roque” (movimento especial do rei e torre) era comparado ao castelo do rei ou ao muro
ou cerca da casa dos alunos. Dessa maneira, procurava-se transpor o conhecimento
enxadrístico para outras atividades do cotidiano deles, assim o aprendizado, além de ser
facilitado se tornava algo mais palpável, significativo para o aluno. Em estudos
realizados por Bransford, Brown e Cocking (2000), que versam sobre a ciência da
aprendizagem, salientam, que para o aluno possa desenvolver uma competência em
qualquer área de investigação, ele deve ter:
Resultados e potencialidades
- Como resultados alcançados com o desenvolvimento do projeto de xadrez na
escola, pôde-se constatar alguns aspectos positivos dessa iniciativa. Houve interesse e
apoio dos profissionais da escola em aceitar a aplicação do projeto, percebendo a
importância para o desenvolvimento de capacidades cognitivo-emocionais e como
elemento de proteção para saúde mental das crianças.
- Os alunos gostaram de aprender o jogo, procuram por meios próprios, no
celular, notebook, baixar aplicativos de xadrez para jogarem nas horas de lazer.
Também, procuraram livros, literaturas e sites na internet para aprimorar seu jogo, além
de agirem como difusores do jogo de xadrez no seu meio social (comunidade)
ensinando irmãos, pais, primos e amigos.
- Gestores do CAPSi e alguns colegas de trabalho, que em um primeiro
momento, estavam resistentes com a ideia da realização de um trabalho de prevenção
fora da instituição do CAPS, perceberam e reconheceram a importância da iniciativa da
realização de trabalhos de cunho preventivo e não somente de recuperação e/ou redução
de danos.
- No final de três meses de projeto, um torneio de xadrez foi realizado com os
alunos da escola. Participaram do torneio 40 crianças com idades entre 8 e 12 anos.
Todos receberam premiações de participação, alguns brindes e um certificado de
participação do evento, assinado pela Secretária Municipal de Saúde.
Limitações encontradas
Mesmo com os pontos positivos exaltados por todos os agentes públicos
envolvidos, não houve empenho para que o projeto tivesse continuidade. Dessa maneira,
pode-se concluir, que há certa incoerência a respeito sobre que é dito, quando
comparado os resultados apresentados e com aquilo que é realizado por parte dos
gestores públicos. É difícil entender o motivo de não dar continuidade a um projeto que
apresentou vários resultados positivos e que não teve custo para o erário público. Tal
situação leva a crer, que, independentemente do resultado ou do objetivo alcançado,
determinadas ações que são de interesse público, não são de interesse político, e tanto
faz se elas existirem der certo ou fracassarem.
Sugestões
Projetos de educação/saúde na escola ou comunidade que se tenha a certificação
de resultados positivos é imprescindível que alguém faça registros das ações, métodos e
resultados do projeto. Dessa maneira, é possível apresentar o resultado das ações que
vinham sendo realizadas e solicitar a gestores públicos, condições suficientes para dar
continuidade ao trabalho que vinha dando bons resultados. A participação da
comunidade é fundamental tanto na hora de fazer as reivindicações junto aos órgãos
públicos, quanto na construção, desenvolvimento e execução do projeto. Pais, alunos,
professores têm muito mais chances de terem suas solicitações atendidas se dialogarem
e caminharem juntos pelo mesmo propósito.
Conclusão
O presente relato mostrou o motivo, elaboração, desenvolvimento, resultados,
potencialidades e limitações de um projeto de xadrez, desenvolvido em uma escola de
ensino fundamental de um bairro pobre e populoso da cidade de São Lourenço do Sul.
Para a elaboração e desenvolvimento do projeto muitas foram as dificuldades,
principalmente, a pressão para que o projeto fosse realizado dentro do CAPS. Porém,
em nenhum momento surgiu o pensamento de desistir, ou de que o projeto não daria
certo. O sentimento que o projeto teria êxito, logo na primeira semana começou a ser
percebido por cada aluno, professor e colaborador envolvidos, todos começaram a
acreditar na potencialidade do projeto. Mesmo diante das dificuldades trazidas pelos
alunos, foi possível construir um ambiente harmonioso, de aprendizado e de muitas
trocas de experiências. O projeto teve apenas a duração de três meses, mas foi o
suficiente para passar uma mensagem que, com certeza, os alunos e as pessoas que
presenciaram esses momentos a entenderam. “Apesar das dificuldades, se não nos
isentarmos de nossas responsabilidades e não desistirmos, coisas boas virão”.
Entretanto, o relato também mostra, que cada pessoa e/ou ente e/ou órgão público deve
fazer o que lhe compete, caso uma das partes não cumpra com o seu papel, as ideias se
tornam muito difíceis de serem desenvolvidas na prática.
É com imensa satisfação que concluo esse relato e posso compartilhar com
vocês um pouco da experiência que vivi em ter participado deste projeto de xadrez.
Aprendi muito com cada aluno que tive a felicidade de conhecer e me sinto honrado de
ter contribuído no processo evolutivo destas crianças.
Abstract
The present experience report sought to show the development of a chess project carried
out in an elementary school in the city of São Lourenço do Sul/RS. This project was
carried out in partnership with the Child Psychosocial Care Center. It aimed to provide a
healthy, leisure activity that could serve as a means of protecting the students' mental
health and that could help them to better understand their reality of life. As an applied
method, we tried to work on the fundamentals of the game of chess, from the
perspective of transposing the knowledge taught by the game, comparing them with the
events of the student's daily life. As a result, students were able, through the teachings
of the game of chess, to dialogue, expose their feelings, better understand their reality of
life. Using the knowledge transfer method, it was possible to provide conditions for the
student himself to reflect and seek to solve his most immediate problems. Therefore, the
project, even with a short period of validity, fulfilled what was proposed.
BRASIL. Lei nº 10.216, de 6 de abril de 2001. Dispõe sobre a proteção e os direitos das
pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde
mental.
BRASIL. Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011. Regula o acesso a informação.
TESSARO, M.; BERNARDI, L.S. O futuro pode ter muitos nomes: significando o
foreground. Revista Práxis Educacional, Vitória da Conquista – Bahia – Brasil, v. 15,
n. 36, p. 415-432, 2019.