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Saúde Mental
aqui adotada, não é a de mero detalhamento metodológico que antecede a teoria, mas sim um
(PEIRANO, 2014).
O objetivo deste ensaio é refletir sobre a cidadania enquanto acesso a política pública
Lucas, paciente CAPS. Sob a ótica das teorias antropológicas, a teoria da dádiva em Marcel
Mauss e a cidadania como aspecto relacional em Roberto da Matta, refleti sobre a insistência
A discussão sobre a cidadania é elemento central neste ensaio, foi importante abstraí-
la, passando para o campo da teoria, o que realmente é cidadania na prática, na minha
experiência como profissional, no dia-a-dia das relações sociais. A cidadania tem sido
especial, entre a desarticulação entre a esfera pública e o espaço público (OLIVEIRA, 2015).
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CAPS é o principal equipamento da rede de atenção psicossocial. São centros que atendem pessoas com
transtornos mentais graves, persistentes e/ou em decorrência do uso de substâncias psicoativas. Tem diversas
modalidades, entre elas o CAPS AD, que atende adultos ou crianças, considerando as normativas do Estatuto da
Criança e do adolescente, com necessidades decorrentes do uso de álcool ou outras drogas. (BRASIL, 2001) 2 A
boa Etnografia segundo Mariza Peirano exige três condições: I) que haja a consideração da comunicação no
contexto da situação; II) que se possa transformar o que foi vivido pelo pesquisador em campo em escrita,
transformando a experiência em texto; e III) que se possa detectar a eficácia social das ações de forma analítica
(PEIRANO, 2014).
ENSAIO ETNOGRÁFICO: TEMA 8 - IDENTIDADES, CIDADANIA E GÊNERO
Para analisa-la, portanto, foi necessário averiguar como as maneiras práticas e formas de
tratamento têm sido respaldadas pelas concepções locais do que seria correto, adequado ou
justo (Ibdem, 2015). Assim, foi importante levar em consideração as tensões entre a norma,
lei, e a regulação e as características das relações sociais que darão contorno ao mundo cívico.
Contexto e Situação
de 2022 e abril de 2023. Vivi esta experiência por meio de um programa de Residência
Multiprofissional em Saúde Mental e pude ter contato com a Política Nacional de Saúde
mental em nível nacional sofreu inflexões severas nos últimos anos, e no Distrito Federal este
O CAPS funciona como porta aberta, ou seja, não é necessário realizar agendamento
ou encaminhamento para acessa-lo. No CAPS AD em que trabalhei não era diferente, para
participava da escala desta atividade. Um dia estava na escala e sr. Lucas comparece à
unidade com sua esposa, e eu fiz seu acolhimento. Durante o atendimento sr. Lucas comentou
que tinha 56 anos, autodeclarava-se negro, nunca tinha buscado um serviço de saúde mental,
havia passado cerca de 12 anos em cumprimento de pena privativa de liberdade, era natural de
Minas Gerais, viera para Brasília em busca de uma vida melhor. Sr. Lucas relatou ser HIV
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A raps é a rede de cuja finalidade é criação, ampliação e articulação dos pontos de serviços de saúde no
atendimento a pessoas com sofrimento ou transtorno mental. (BRASIL, 2001)
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positivo, e havia sofrido um acidente de motocicleta que o deixou com uma lesão na coluna,
sentia fortes dores e caminhava com dificuldades. Disse também que havia usado múltiplas
substâncias psicoativas e teve o tráfico de drogas durante muito tempo como sua fonte de
articulação com as políticas intersetoriais para acesso à serviços e benefícios. Ele queria saber
se sua lesão na coluna ou o fator HIV positivo poderia concedê-lo o Benefício de Prestação
Continuada4. Diante disso, inclui sr. Lucas aos paciente que eu atendia regularmente.
partir deste estudo averiguei que haveria possibilidade de solicitação do benefício, visto que,
o paciente atendia aos dois critérios exigidos pelo INSS, incapacidade para o trabalho a longo
prazo e hipossuficiência5. Expliquei que este seria um processo a longo prazo, e também era
médica e sócio assistencial. Ao fim do primeiro atendimento o paciente disse não ter mais
dúvidas, estava animado e confiante, me agradeceu diversas vezes e disse que traria, no
próximo atendimento, a documentação exigida para fazermos o cadastro no portal meu INSS6.
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O Benefício de Prestação Continuada está presente na Lei Orgânica da Assistência Social, Lei n°8.742/1993,
como a garantia de um salário mínimo mensal a idosos e pessoas com deficiência que não tenham condições
de prover sua própria subsistência e nem de tê-la provida por sua família.
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Renda familiar per capita inferio a ¼ do salário mínimo.
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Portal na internet do Instituto Nacional de Seguridade Social por meio do qual são feitas as solicitações de
programas, serviços e benefícios do INSS.
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avaliaria a falta de condição para o trabalho e a avaliação social, que seria feita com o
Assistente Social do INSS. Ao final do atendimento Sr. Lucas disse estar ciente, não tinha
nenhuma dúvida sobre o processo. Ele agradeceu-me e disse que no próximo atendimento
traria-me um presente, que ele mesmo faria para mim. Em seguida, puxou do bolso seu
celular e mostrou-me seu hobbie favorito, bordar. Bordava de tudo, toalha de mesa, cachecol,
roupa, sapatinho de bebê, eram trabalhos lindos, coloridos e com desenhos. Perguntou-me o
que eu gostaria que ele bordasse para mim, falei que não era necessário, que aquele serviço,
aquelas orientações eram meu trabalho, porém ele insistiu. Ao final, eu disse que não
escolheria nada, então, ele mesmo decidiu que escolheria e seria uma surpresa. Assim,
uma toalha de mesa bordada. Era grande, branca com linhas vermelhas nas laterais e desenhos
de flores roxas nos cantos. Sr. Lucas chegou sorrindo, com a sacola na mão, alegre e risonho,
antes de ser perguntado já foi dizendo como havia sido a perícia médica, a qual havia sido
rápida, no horário marcado, e o médico “nem olhou em sua cara”, apenas o fez algumas
perguntas e deu o laudo confirmando a situação de saúde alegada. Então, ele colocou a sacola
sobre a mesa, e falou “olha, fiz pra você!”. Ele sorria e olhava-me esperando minha reação, e
eu, antes mesmo de abrir, falei que não poderia aceitar. Ele ficou em silêncio por alguns
instantes e logo em seguida lançou sua ofensiva insistência, dizendo que eu iria gostar.
Foi difícil não aceitar naquele primeiro momento, mas conforme ele foi insistindo eu
percebi que aquilo me tocava de alguma forma a me fazer aceitar. Não era pela qualidade do
material, ou pela utilidade do presente, mas simplesmente pelo ato de me presentear, pela
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insistência em me fazer aceitar. Até que aceitei, agradeci, expliquei que aceitaria pela
políticas públicas fui presenteado com uma linda toalha de mesa bordada à mão. Mas o que
isso significa? É difícil perceber todas as nuances do cotidiano, por si só ele confunde-se com
(GUERRA, 2013), e por isso foi necessário abstraí-lo, e refletir sobre para melhor apreender
as determinações do fenômeno aparente. Dessa forma, busquei utilizar esta situação a qual me
para todos, não há critérios renda, faixa etária, contribuição ou nenhum outro. Dessa maneira,
acessá-la é direito do usuário, no caso, paciente. Ser Assistente Social é ter uma atuação ético-
política, na defesa dos direitos da população usuária das políticas públicas. Sendo assim, me
pergunto, porque fui coagido a receber um presente pela prestação do meu trabalho? Isso me
levou a duas reflexões, a primeira sobre a cidadania a partir de uma perspectiva relacional, ou
seja, das relações sociais e a outra como uma dádiva recebida em função de uma dádiva dada.
exercício do direito cívico, o acesso aos direitos constitucionais, entre eles: os direitos sociais.
Mas ela não é apenas isso, a cidadania tem história e ela é um papel social, apesar de ter sido
sempre levado em consideração mais seu caráter jurídico-político-moral do que sua dimensão
social básica, ou seja, o fato da cidadania ser algo que se aprende (MATTA, 1997). O cidadão
é o indivíduo, igual, genérico, que não tem características próprias que passa a ser universal e
abstrato. Mas, no Brasil, a cidadania apresenta desvios nos contextos relacionais que a
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desarticulação entre a esfera pública e o espaço público, onde a esfera pública são as normas e
o espaço público é o campo das relações situadas fora do contexto doméstico, repercute na
desrespeito na vida cotidiana (OLIVEIRA, 2015). A questão a que nos cabe analisar, em
nosso contexto, é como se deram essas contradições? Para nós, no contexto brasileiro
apresentado, vivemos no embate entre das leis universais e o universo privado da família, dos
compadres, parentes e amigos, que apesar da revolução ocidental ter eliminado estas
estruturas de segmentação, para nós, na sociedade brasileira, elas continuam operando social e
No caso apresentado, sugere-se que sr. Lucas estava tentando romper os contornos da
regulações dos serviços de saúde. O objetivo dele poderia era a passagem do lugar de cidadão,
do anonimato, da igualdade entre os demais pacientes, para o lugar de pessoa, posição bem
definida e conhecida que indica hierarquia e pessoalização (MATTA, 1979), buscando, desta
forma, não uma cidadania universalista, construída a partir dos papeis modernos da burocracia
(Ibdem, 1997), mas sim de ser diferenciado, de estabelecer comigo uma relação pessoal, de
prestígio da minha parte e não ser tratado como cidadão sujeito às regulações impostas pelo
sistema de normativas.
neoliberal não é uma tarefa fácil, pois elas vivem sob o tripé da focalização, descentralização
e privatização. A redução do Estado é unidirecional, ela incide sobre a esfera dos serviços
pelo ideário neoliberal no aparelho do Estado que acaba por retomar traços culturais
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cidadão (IAMAMOTO, 2009). Portanto, pode-se levar em consideração que Sr. Lucas usou-
se desta estratégia para buscar acessar seus direitos dentro das novas formas das políticas
Sugere-se também, que o fato de eu receber um presente pelo meu trabalho realizado
remonta a lógica da teoria da dádiva de Marcel Mauss. Esta teoria tem como tem como
argumento central do assunto uma tríade da obrigação de dar, receber e retribuir no sentido
em que a troca confere sentido às relações sociais, ao passo que, as coisas possuem substância
moral própria, de alma ligada à matéria espiritual do doador que ao doá-la, também se doa
(LANNA, 2000). Esta é uma teoria que remonta o sistema de trocas entre alguns povos
tradicionais analisados pelo autor, estas trocas diferem-se das trocas comerciais, no sentido de
comercialização de mercadorias. A coisa dada tem uma força poderosa, pois “Tudo se passa
como se houvesse troca constante de uma matéria espiritual compreendendo coisas e homens,
entre clãs e os indivíduos, repartidos entre as classes, os sexos e as gerações (MAUSS, p.71,
2008)”. E esta mistura de deveres simétricos (dar, receber e retribuir) passa a fazer sentido
A teoria da dádiva presume que a retribuição é explicada pela força presente na coisa
dada, no laço espiritual. Desta maneira penso que Sr. Lucas não compreendeu o real sentido
do meu trabalho, ou da instituição CAPS, em que eu trabalhava. Ele pensou que o serviço
ofertado era uma dádiva, uma prestação, que havia de ser retribuída dentro da nossa relação
entre homens. O meu trabalho é a oferta da orientação, tem um valor de uso, isto é, tem
utilidade, muitas vezes valiosa para os usuários que não tem sua acessibilidades facilitada às
uma forma ainda maior que a dádiva prestada, com o trabalho manual, dando-me uma toalha
de mesa.
Considerações Finais
pelo contrário, trazem olhares diferentes para a mesma situação. O empreendimento teórico, a
correspondentes à realidade. E todas elas, no meu caso, aconteceram no escopo das relações
sociais.
esta relação profissional de prestação de serviço foi percebida pelo sr. Lucas enquanto
paciente. Apesar de Mauss ter proposto a teoria da dádiva na análise de povos tradicionais
nos dias atuais porque parte da nossa moral e das nossas vidas mantiveram a atmosfera da
dádiva, da obrigação e da liberdade de dar e receber, e felizmente, nem tudo está classificado
em termos de compra e venda (MAUSS, 2008). Penso que o presente do sr. Lucas, ter feito o
seletivas, implicam aos seus usuários estratégias para acessar seus direitos. Em uma política
focalizada, não me surpreende que diante as condições de vida, a população usuária busque
formas alternativas de serem atendidas. No caso do sr. Lucas, que ele passasse de cidadão e
Talvez houvesse sido diferente se sr. Lucas soubesse, desde o início, que é seu
direito ser atendido no CAPS, ou em qualquer outro serviço público que buscasse. Pois, o
CAPS AD, o meu trabalho, o INSS, e o BPC são financiado com recursos da seguridade
social, avindos dos impostos pagos, de forma regressiva, por ele. Assim, não seria
necessário restitui o serviço prestado, muito menos sentir-se obrigado a fazer isso, que não
é necessário tornar-se amigo dos profissionais para ser atendido, que ser cidadão é ser
indivíduo, mas que ser indivíduo é ter direitos dentro do Estado democrático de direito. A
cidadania é algo a ser exercitado de forma que as normas, de fato, possam respaldar as
práticas sociais e o conflito entre espaço público e norma jurídica sejam mínimos nos
Referências:
BEHRING, Elaine Rossetti e BOSCHETTI, Ivanete. Política Social: fundamentos
In: A casa e a Rua. Espaço, Cidadania, Mulher e Morte no Brasil. Rio de Janeiro,
Guanabara. 1991.
Serviço Social: desafios contemporâneos. 2. ed. Juiz de Fora: UFJF, 2013a. p. 45-74.
LANNA, Marcos. Nota sobre Marcel Mauss e o Ensaio sobre a dádiva. Rev.
MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a Dádiva. Editora Edições 70, 1° edição, Lisboa,
Portugal, 2008.
SERTÃ, Ana Luísa & Almeida Sabrina. “Ensaio sobre a dádiva”. In: Enciclopédia