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10.34140/bjbv2n2-017
RESUMO
O presente trabalho apresenta como objetivo primordial o estabelecimento de uma análise sistemática
entre a doutrina teológica do direito natural e os pressupostos do pensamento econômico de livre-
mercado. A defesa de que o homem, sendo criado à imagem e semelhança de Deus, apresenta
dignidade intrínseca e traz consigo direitos invioláveis contribuiu imensamente para a estruturação
da ética da liberdade econômica, fundada na crença do respeito à vontade autônoma e no
autodesenvolvimento individual. Quatro grandes pensadores são indispensáveis no estudo do
jusnaturalismo teológico e suas implicações na filosofia política; são eles: Santo Agostinho (354-
430), São Tomás de Aquino (1225-1274), Johannes Althusius (1563-1638) e João Calvino (1509-
1564). A síntese da teoria teológica do Direito natural com a cosmovisão da livre-iniciativa encontra-
se explícita na obra do jurista Frédéric Bastiat (1801-1850), cujo pensamento reflete os pilares do
pensamento econômico de livre-mercado.
ABSTRACT
the following work has the prime objective of establishing a systematic analysis between the
theological doctrine of natural rights and the principles of free market capitalism. The idea that
mankind, by being created in the image of God, possesses inherent dignity and inviolable rights
immensely contributed to the development of the ethics of economic freedom, founded on respecting
the autonomous will and the personal development of individuals. Four great thinkers are essential
in the study of the natural law and its implications in political philosophy, they are: Saint Augustine
(354-430), Saint Thomas Aquinas (1225-1274), Johannes Althusius (1563-1638), and John Calvin
(1509-1564). The synthesis of the theological theory of natural law along with the worldview of free
enterprise is explicitly found in the work of the jurist Frédéric Bastiat (1801-1850), whose thinking
reflects the foundations of free market capitalism.
Keywords: social entrepreneurship, social technology, social innovation, public policy, university.
1 INTRODUÇÃO
O PENSAMENTO ECONÔMICO DE LIVRE MERCADO
O sistema de livre-mercado é aquele que se fundamenta nas trocas voluntárias entre os
indivíduos, ou seja, não há intervenção do Estado na ordem econômica e nas atividades negociais
contratuais entre particulares. Segundo Wayne Grudem (2016, p.140), “Sistema de livre mercado é
aquele em que a produção e o consumo econômicos são determinados pela livre escolha dos
indivíduos, e não pelo governo, e esse processo se fundamenta na propriedade privada dos meios de
produção”.
A propriedade privada dos meios de produção é uma das características mais marcantes do
sistema de livre-mercado, uma vez que as empresas apresentam como proprietários os próprios
indivíduos empreendedores, afastando no âmbito do Direito Privado a presença constante e
intervencionista do poder público na condução dos negócios e contratos bilaterais. Além da
propriedade privada, o livre mercado apresenta outras características marcantes, tais como: o Estado
liberal de Direito, o livre comércio, a liberdade econômica e a existência de Direitos Fundamentais.
É importante frisar que o Estado apresenta poderes limitados bem definidos, sendo que a presença e
necessidade do governo na sociedade são, inclusive, questionadas e consideradas irrelevantes e até
mesmo ilegítimas para alguns teóricos e filósofos do pensamento econômico da livre-iniciativa,
dentre eles: Murray Rothbard (1929-1995) e Hans-Hermann Hoppe. Contudo, a maioria dos teóricos
liberais defende o fornecimento de serviços sociais por parte do Poder público, com o intuito de
assegurar o mínimo-existencial e a preservação de infraestrutura básica para o funcionamento da
economia.
No âmbito jurídico, o pensamento econômico de livre-mercado atribui grande ênfase ao
Direito privado e aos seus princípios, dentre eles: autonomia da vontade, liberdade de iniciativa,
liberdade de concorrência, garantia e defesa da propriedade privada, força obrigatória dos contratos
e a relatividade dos efeitos contratuais. Quanto ao princípio da autonomia da vontade ou autonomia
privada negocial, o civilista Paulo Lôbo comenta:
envolve três grandes liberdades: liberdade de escolher outro contratante, liberdade de escolher o tipo
de contrato e a liberdade de determinação do conteúdo.
O princípio da liberdade de iniciativa é a base do Direito Empresarial. Segundo Manoel
Afonso Vaz, a liberdade de iniciativa apresenta três grandes fundamentos e derivações: liberdade de
investimento, liberdade de organização e liberdade de contratação. A liberdade de iniciativa
encontra-se na Constituição Federal de 1988 enquanto um dos Fundamentos da República
Federativa Brasileira, contudo é certo que muitos autores e pensadores questionam a aplicabilidade
e importância desse respectivo princípio na ordem econômica nacional. A liberdade de iniciativa
destaca a importância da empresa e a relevância da iniciativa privada para que a sociedade disponha
de bens e serviços imprescindíveis para a sobrevivência; assim como gera o reconhecimento da
empresa privada como geradora de grande quantidade de riquezas e empregos.
A liberdade de concorrência decorre do princípio da liberdade de iniciativa e é considerada
um dos princípios da ordem econômica brasileira na Constituição de 1988. Sobre a livre
concorrência, Paulo Sandroni escreve: “situação do regime de iniciativa privada em que as empresas
competem entre si, sem que nenhuma delas goze da supremacia em virtude de privilégios jurídicos,
força econômica ou posse exclusiva de certos recursos” (SANDRONI,1999, p.61).
Quanto a validade e importância da livre concorrência no cenário do Brasil, diversos
pensadores e autores afirmam ser ela um princípio escasso e ameaçado pelo excesso de burocracia,
regulamentações e normas que coíbem a expansão das trocas voluntárias nos negócios jurídicos
bilaterais.
O princípio da força obrigatória dos contratos estabelece uma obrigação recíproca entre os
contratantes, ou seja, da afirmação de um negócio jurídico bilateral decorre uma responsabilidade
a ser cumprida pelos particulares como se fosse uma norma positiva instituída legalmente. Para
muitos juristas, do princípio da força obrigatórias surgem duas consequências valorativas:
estabilidade e previsibilidade.
É importante destacar que os contratos voluntários estabelecidos entre as partes não são
oponíveis a terceiros, como destaca Paulo Lôbo, uma vez que os negócios jurídicos bilaterais
estabelecem obrigações e responsabilidades apenas para os particulares contratantes. Trata-se do
chamado “Princípio da relatividade dos efeitos do contrato”, uma das características do sistema de
livre mercado. Enfim, no âmbito do Direito privado, a ordem capitalista se fundamente em princípios
que objetivam assegurar trocas negociais consensuais, o florescimento do empreendedorismo e a
dinamização das relações comerciais e empresariais.
No que concerne à teoria geral do Estado, diversos pensadores foram essenciais na
construção do pensamento econômico de livre mercado, dentre eles: John Locke (1623-1704), Adam
Smith (1723-1790), Alexis de Tocqueville (1805-1859), Edmund Burke (1729-1797), Friedrich
Hayek (1899-1992) e Ludwig Von Mises (1881-1973). Grande parte dos pensadores liberais
defendia a estruturação da sociedade política com base nos pressupostos constitucionalistas do
Estado liberal de Direito, ou seja, na limitação do poder político do Estado em face dos direitos
fundamentais dos seus cidadãos. O liberalismo econômico contribuiu imensamente para o
movimento jurídico denominado de “Constitucionalismo”. “Em sentido amplo, constitucionalismo
é o fenômeno relacionado ao fato de todo Estado possuir uma constituição em qualquer época da
humanidade, independentemente do regime político adotado”. (BULOS, 2017, p.11).
O Estado de Direito, enquanto criado e regido por uma norma jurídica hierarquicamente
superior, é moldado pelo constitucionalismo e apresenta como traços marcantes: supremacia da
Constituição, a separação de poderes, superioridade da lei e a garantia dos direitos individuais. No
pensamento econômico de livre mercado, o Estado apresenta como função primordial a defesa dos
Braz. J. of Bus., Curitiba, v. 2, n. 2, p.1043-1077, abr./jun. 2020. ISSN 2596-1934
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Brazilian Journals of Business
particular. Smith alega que o egoísmo inteligente no ramo comercial é elemento imprescindível para
a prosperidade particular e, consequentemente, para o bem público.
Quanto ao Estado, na concepção do liberalismo clássico, apresenta funções definidas e
limitadas, sendo elas: a promoção da defesa territorial através das forças armadas, a aplicação e
administração da justiça, prestação de determinados serviços coletivos e a defesa do mercado e da
livre concorrência. Para que o poder público possa efetivar tais funções, Smith propôs um sistema
tributário fundamentado na transparência, proporcionalidade e comodidade, sendo que uma
tributação excessiva apenas prejudicaria a liberdade econômica e afetaria o empreendedorismo.
A teoria política do liberalismo econômico foi muito influenciada pela filosofia política do
inglês John Locke (1632-1704), cuja cosmovisão de que os homens apresentam direitos naturais,
invioláveis e intrínsecos contribuiu no desenvolvimento da ideia de limitação do poder do Estado e
na elaboração de conceitos políticos fundamentais, tais como: legitimidade, legalidade e direito de
resistência.
de ambições, anseios e necessidades coletivas e individuais. Tal ideia rendeu grandes críticas por
parte do filósofo Thomas Paine (1737-1809).
Thomas Jefferson (1742-1826), pensador político e presidente norte-americano, foi um dos
grandes defensores da igualdade jurídica e do constitucionalismo, sendo considerado uma figura
eminente do clássico movimento iluminista. Jefferson teve um papel de destaque no processo de
independência dos Estados Unidos e na Revolução americana contra a coroa Britânica. Na
concepção jurídica desse pensador, os homens nascem com direitos naturais, inalienáveis e
invioláveis; sendo eles: vida, liberdade e a busca da felicidade. Thomas Jefferson elaborou a
Declaração de Independência (1776), um documento central na evolução histórica dos direitos
humanos e na cosmovisão liberal. A Declaração “Estabeleceu a separação entre as 13 colônias na
América do Norte e Reino Unido. Em seu texto determinou a representação do povo com a restrição
dos poderes do governo e a inalienabilidade dos direitos humanos” (MALHEIRO,2016, p.8).
As ideias de Jefferson representaram uma grande evolução para o pensamento econômico de
livre-mercado, uma vez que demonstraram uma preocupação imensa com a defesa da liberdade
individual e reconheciam a capacidade do ser humano de alcançar seus objetivos e promover a
satisfação de suas necessidades. Sendo assim, seguindo essa linha de raciocínio, não caberia ao poder
público dificultar ou intervir de forma arbitrária nos negócios particulares e no empreendedorismo.
Outro pensador essencial na construção da doutrina liberal foi o francês Alexis de Tocqueville (1805-
1859), cujas obras representavam uma crítica ética explícita ao sistema socialista que se mantinha
através do planejamento estatal.
A construção do pensamento econômico de livre mercado teve início na Idade moderna, com
o desenvolvimento do método racionalista, e se desenvolveu de forma mais complexa na Idade
contemporânea, nos períodos posteriores ao período revolucionário do século XIX. No século XX,
grandes contribuições foram feitas ao liberalismo, especialmente com os escritos de Ludwig Von
Mises (1881-1973) e Friedrich Hayek (1899-1992).
Friedrich Hayek criticou veementemente o intervencionismo estatal, considerado por ele
uma ameaça totalitária às liberdades e direitos fundamentais. Esse pensador acreditava que o livre
mercado é capaz de atende de forma mais eficaz às necessidades individuais, sendo que o governo
não deveria realizar regulamentações constantes na ordem espontânea da economia, entendida como
resultado da conjugação de diversas ações humanas contrapostas e descentralizadas, mas
harmonizáveis e até mesmo coordenadas.
No âmbito jurídico, Hayek defendeu a organização da sociedade política com base nos
pressupostos constitucionalistas do Estado Liberal de Direito, fundamentado em dois grandes
princípios: Justiça e Igualdade jurídica. Além disso, esse grande jurista estabeleceu diferenças entre
dois mecanismos de coesão social: as leis, compreendidas como normas observadas de forma
espontânea na vida social, e a legislação, caracterizada como um conjunto de mandamentos e regras
elaboradas pelo Poder Público e explícito no Direito Positivo. Em uma sociedade justa, haveria um
certo equilíbrio e conformidade entre lei e legislação.
Quanto à ética, o pensamento econômico de livre mercado percorre diversos princípios que
se encontram correlacionados; são eles: a doutrina do direito natural ou jusnaturalismo, a
deontologia de Kant, o princípio da auto-propriedade de Murray Rothbard e a ética argumentativa
de Hans-Hermann Hoppe.
O Jusnaturalismo é uma corrente jurídica que defende a ideia de que o ser humano apresenta
diretos naturais, invioláveis e intrínsecos, sendo eles: vida, liberdade e propriedade. Além disso, os
pensadores jusnaturalistas afirmam a existência de uma lei natural, universal e imutável, de caráter
prescritivo e sendo acessível e conhecida pela razão humana. A ideia da existência do Direito Natural
contribuiu de maneira considerável para a evolução da ética da liberdade econômica, sendo que a
relação entre essas duas cosmovisões será abordada posteriormente com maior profundidade.
Immanuel Kant (1724-1775) fundou uma teoria ética baseada na observância de um dever,
também denominado por ele de “imperativo categórico”, cujo caráter universal prescreve um
comando. “O imperativo categórico é, em verdade, um comando moral que relaciona um dever-ser
Para o filósofo Kant, o exercício da ética requer a autonomia da razão, sendo que a moral
pressupõe a liberdade de pensamento, diferentemente do Direito, compreendido como a esfera
externa do cumprimento do dever. Entretanto, é importante lembrar que, na concepção kantiana, as
leis jurídicas são derivadas das leis morais. Por este motivo, no campo político, essa ética
deontológica se aproxima de um Estado constitucional liberal de Direito, fundamentado no respeito
aos padrões da justiça e ao princípio da dignidade da pessoa humana. “Em Kant, o Estado é um meio
necessário para a garantia da liberdade das pessoas. A convivência entre estas pessoas é possibilitada
apenas pela promulgação das leis universais, papel desempenhado pelo Estado” (CASTILHO, 2017,
p.148).
A deontologia desse filósofo baseia-se no conceito de dignidade da pessoa humana, ou seja,
na máxima “o homem é um fim em si mesmo”. Segundo esse princípio, é ilegítima e imoral a
restrição aos direitos fundamentais do próximo. Dando continuidade aos desdobramentos da ética
kantiana no campo jurídico, o Direito passa a ser compreendido como um conjunto de condições
que possibilita a coexistência das vontades segundo uma lei universal da liberdade. Caberia ao
Estado, portanto, a administração da justiça e preservação da legalidade, por meio da manutenção
da juridicidade das relações intersubjetivas. Essa filosofia moral influenciou imensamente na
construção da cosmovisão libertária, doutrina segundo a qual a legitimidade de um Estado depende
da limitação máxima de suas atribuições.
Posteriormente, na contemporaneidade, o economista norte-americano Murray Rothbard
(1926-1995) estabeleceu sua teoria ética com base em dois princípios: Princípio da não-agressão e
o princípio da auto-propriedade, segundo o qual o indivíduo é dono legítimo de seu próprio corpo e,
consequentemente, dos bens e propriedades conquistadas e desenvolvidas através dos esforços
particulares e pessoais. O fundamento do princípio da auto-propriedade encontra-se na lei natural.
Em sua obra A ética da liberdade, Rothbard escreve:
Toda pessoa é a proprietária de seu próprio corpo físico assim como todos os
recursos naturais que ela coloca em uso através de seu corpo antes que
qualquer um faça; esta propriedade implica o seu direito de empregar estes
recursos como lhe convém até o ponto que isto afete a integridade física da
propriedade de outro ou delimite o controle da propriedade de outro sem seu
consentimento.
Rothbard defende que os princípios fundamentais para estruturação de uma sociedade livre
e justa (Princípio da não-agressão e princípio da auto-propriedade) apresentam uma relação
particular com a existência de uma lei natural acessível pela razão humana e que prescreve o respeito
aos direitos humanos legítimos, assim como estabelece ao homem os caminhos para realização de
sua felicidade. O economista austríaco também enxerga na lei natural uma potencial ameaça ao
Estado e seu Direito positivo coercitivo.
Se, então, a lei natural é descoberta pela razão a partir das “inclinações
fundamentais da natureza humana... absolutas, imutáveis e de validade
universal para todos os tempos e lugares”, segue-se que a lei natural fornece
um conjunto objetivo de normas éticas que guiam as ações humanas em
Portanto, para uma melhor compreensão dos pressupostos do pensamento econômico de livre
mercado se faz imprescindível o conhecimento da doutrina do direito natural e de sua evolução,
frisando que o jusnaturalismo foi, em sua grande parte, defendido com base na cosmovisão cristã.
A doutrina do Direito Natural caracteriza-se pela defesa de uma lei natural, eterna, imutável
e prescritiva, de caráter universal, sendo conhecida pela razão humana. O jusnaturalismo pode ser
observado no pensamento da Antiguidade, sendo presente na obra jurídica do filósofo Aristóteles,
que em sua teoria ética, desenvolve o conceito de justiça política, sendo compreendida como o
exercício das virtudes e da cidadania no ambienta comunitário. A justiça política, na concepção
aristotélica, apresenta uma parte legal (prescrições normativas fundamentadas na vontade humana)
e outra parte natural, que regula condutas objetivamente boas ou más por si mesmas, não dependendo
do Direito Positivo ou da convenção social. Embora esse filósofo acreditava na natureza mutável da
parte natural da justiça política, uma vez que a Natureza encontra-se em constante transformação,
Aristóteles foi essencial no desenvolvimento da cosmo visão jusnaturalista.
Ainda na Idade Antiga, o filósofo estoico Marcos Tullius Cícero (106-43 a.C) realizou
grandes contribuições para a estruturação sistemática dos pressupostos do Direito Natural e de suas
relações com a Ética do Dever. Na concepção estoica, o homem moral é aquele que age em
conformidade com as regras da Razão Universal, ou seja, das leis cósmicas.
Portanto, na concepção estoica de Cícero, a vida ética consiste na adequação das ações com
os princípios da racionalidade. O Direito natural se equivale à razão universal, que impõe
imperativos prescritivos e regras gerais de conduta. Logo, é possível afirmar que na cosmovisão do
estoicismo há uma profunda negação do relativismo cultural e do subjetivismo particular, defendidos
por filósofos anteriores, como Epicuro.
próprio Deus feito carne”28, sendo que pela sua morte e por sua ressureição, a salvação tornou-se
possível aos homens, através da graça santificante do Espírito Santo concedida por Deus. Portanto,
na doutrina cristã, a busca pelo Reino de Deus e o exercício da vida espiritual em união com Cristo
são virtudes teologais essenciais. Em relação a vida eterna e a salvação, Augustus Nicodemus
escreve:
Os pagãos, que não tem a lei, fazendo naturalmente as coisas que são da lei,
embora não tenham a lei, a si mesmos servem da lei; eles mostram que o objeto
da lei está gravado nos seus corações, dando-lhes testemunho a sua
consciência, bem como os seus raciocínios, com os quais se acusam ou se
escusam mutuamente.
Não pode haver dúvida de que as palavras de São Paulo implicam uma
concepção análoga à “lei natural” de Cícero, uma lei escrita no coração dos
homens, reconhecida pela razão do homem, um direito distinto do direito
positivo de qualquer Estado, ou o que São Paulo reconhece que é a lei revelada
de Deus. É neste sentido que as palavras de São Paulo são tomadas pelos
Padres dos séculos IV e V, como Santo Hilário de Poitiers, Santo Ambrósio e
Santo Agostinho, e parece não haver razões para duvidar da veracidade de sua
interpretação.
Durante a Idade Média, a doutrina do Direito Natural passou por uma grande evolução e
desenvolveu-se atrelada ao cristianismo, sendo que Deus representava a ordem universal, expressa
pela lei eterna, cuja derivação racional resulta na lei natural. O jusnaturalismo teológico e suas
contribuições para o pensamento econômico de livre mercado serão abordados de forma sistemática
nos capítulos posteriores. Entretanto, se faz necessário o entendimento de que na cultura medieval e
nas obras de alguns pensadores modernos, o direito natural estava intrinsecamente relacionado com
a ética bíblica.
Na Idade moderna, desenvolveu-se a concepção da “Hipótese Ímpia”, que procurava
desvincular Deus da existência e legitimidade do Direito Natural. Essa ideia foi descrita pelo filósofo
Holandês Hugo Grócio (1583-1645). “Não é mais Deus ou a ordem divina o substrato do Direito,
mas a natureza humana e a natureza das coisas” (BITTAR, 2015, p.309). Portanto, o fundamento do
jusnaturalismo encontra-se na racionalidade, sendo que o conhecimento da lei natural depende do
método dedutivo e do raciocínio matemático.
Samuel Von Pufendorf (1632-1694) foi um eminente jurista alemão e grande discípulo de
Hugo Grócio. Em sua teoria acerca do Jusnaturalismo, foi fortemente influenciado pelo racionalismo
de Descartes. A concepção que os métodos matemáticos seriam capazes de alcançar o entendimento
de um princípio jurídico universal estava presente de forma marcante no pensamento de Pufendorf.
Além disso, o pensador alemão estabelece uma clara distinção entre a lei natural, responsável pela
organização da vida em sociedade, e a lei divina, fundamentada na Revelação de Deus ao Homem.
As Leis naturais são aquelas que estão de acordo com a natureza sociável do
homem, que uma sociedade honesta e pacífica não poderia se manter entre a
humanidade sem elas, donde que isto pode ser buscado, e seu conhecimento
adquirido pela luz daquela razão, que nasce com todos os homens, e por uma
consideração da natureza humana em geral.
Portanto, na concepção de Pufendorf, a lei natural apresenta como função essencial o bem-
estar da humanidade, assim como sua preservação integral. Sendo assim, o direito natural apresenta
uma abordagem prescritiva, na medida em estabelece obrigações para os homens: deveres para
consigo mesmo e deveres para com o próximo.
As ideias de que o direito natural se encontra presente na Natureza e apresenta um caráter
imutável influenciaram fortemente a filosofia jurídica do pensador inglês John Locke (1632-1704),
cuja teoria do conhecimento foi imprescindível no desenvolvimento do empirismo. Pode-se dizer que
Locke contribuiu para grandes correntes do pensamento político, dentre elas: Constitucionalismo,
jusnaturalismo, contratualismo, liberalismo político e liberalismo econômico. Diferentemente dos
racionalistas, o filósofo inglês negava fortemente a existência de ideias e leis inatas. Contrariando aos
ideais de Thomas Hobbes (1588-16790, Locke não apresentava uma visão pessimista do estado de
natureza, contudo afirma que um dos motivos para a elaboração do contrato social e posterior
surgimento da sociedade civil se deve ao fato da inexistência de um juiz imparcial na regulação de
conflitos.
A existência do Governo Civil, para Locke, decorre da necessidade de assegurar maior
proteção aos direitos fundamentais derivados da lei natural, sendo eles: Vida, liberdade e propriedade.
Portanto, todo Estado que se torna tirano e viola os direitos essenciais de seus cidadãos é ilegítimo e
deve sofrer resistência por parte da população. Portanto, as leis positivas deveriam fundamentar seu
conteúdo nos ditames e preceitos da lei natural.
Na Idade Contemporânea, o jusnaturalismo foi enfraquecido por diversos fatores, dentre eles:
secularização, sistematização, positivação e historicização do Direito. A ascensão do Positivismo
Jurídico, corrente de pensamento desenvolvida por Hans Kelsen (1881-1973), revelou a descrença na
existência de uma lei natural, denominada por muitos teóricos de uma “mera abstração”. Sendo assim,
o Direito é compreendido como um complexo orgânico hierarquizado de normas, um sistema
escalonado, ou seja, uma pirâmide normativa, cuja validade deriva da compatibilidade e coerência
sistemática entre suas normas jurídicas. A unidade do ordenamento jurídico deriva da chamada
Com isso, conclui-se que o Libertarianismo é uma corrente filosófica de desprezo às correntes
jurídicas contemporâneas positivistas e pós-positivistas, pois na concepção libertária a justiça é um
princípio universal e atemporal e encontra-se relacionada com a Ética, deontológica e prescritiva.
O cristianismo preza pelo cumprimento dos deveres estabelecidos pela Lei Natural e pela Lei
Eterna, as quais apresentam três usos: teológico, moral e civil. Sendo assim, a ética cristã apresenta
alguns pontos essenciais: Soberania de Deus (aspecto teológico), dignidade da pessoa humana
(aspecto civil, critério de legitimidade do Direito Positivo), Graça irresistível e santificante do Espírito
Santo (aspecto teológico da Lei), Piedade prática (aspecto moral), caridade para com Deus (aspecto
teológico), justiça (aspecto civil), temor do Senhor (aspecto teológico da Lei) e a prática de virtudes
teologias e cardeais (aspecto moral da lei).
Portanto, a ética cristã não se manifesta somente na espiritualidade individual, como também
nas relações intersubjetivas e políticas do homem em sociedade. Como destaca Augustus Nicodemus
Lopes:
A primeira é que o cristianismo bíblico abrange todas as áreas da vida. Ele não
se limita apenas às questões espirituais referentes ao além. Ao contrário, tem
implicações que vão desde a escolha do cônjuge até a maneira como as
autoridades devem governar este mundo. Não há uma única área da existência
humana sobre a qual o cristianismo não tenha algo a dizer. Da criação dos
filhos até a maneira como devo me divertir e gastar meu dinheiro, da política
O cristianismo se relaciona com áreas eminentes da vida social. Importante ressaltar que a
cosmovisão cristã, enquanto adepta do monoteísmo ético, se fundamenta na centralidade de Cristo;
portanto no que concerne aos aspectos políticos, não há a adoção integral de ideologias e utopias
partidárias e políticas.
A ética cristã não despreza a política, mas nunca se desvia de seus reais objetivos enquanto
baseados na Revelação de Deus. Alguns pontos centrais da doutrina social da filosofia política cristã
são: a prática da justiça pelas autoridades (Romanos 13.1-7, Daniel 4.27), o constitucionalismo e o
respeito às liberdades individuais (1 Pedro 2.13-14, Epístola aos Gálatas 5.1), a garantia da
propriedade privada (Êxodo 20.15, 1 Reis 21.1-29, Levíticos 25.10), a separação entre Igreja e o
Estado (Mateus 22.20,21) e o respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana.
Os cristãos devem prestar obediência, por dever de consciência, às autoridades legitimas, ou
seja, àquelas que cumprem os propósitos de Deus (Justiça e o respeito ao princípio da dignidade da
pessoa humana) no mundo terreno e material. Logo, as autoridades legítimas são instituídas e
estabelecidas por Deus com o propósito de assegurar a coexistência dos indivíduos e refrear a ação
do pecado.
Como saber, então, se uma autoridade é legítima, à luz de Romanos 13? Nessa
passagem, Paulo estabelece e define a autoridade legítima ideal: ela é serva de
Deus para o bem dos súditos; recompensa o bem que é feito pelos súditos; é
agente de punição contra o mal- e, por cumprir tais prerrogativas, os súditos
cristãos se sujeitam à autoridade e pagam tributos e impostos.
Essa autoridade é legítima, então, quando afirma e recompensa aqueles que
fazem o bem, servindo-os e protegendo-os contra os maus. Portanto, como
sabemos se um governo ou autoridade é legítima? Será legítima se premia
aquele que faz o bem e, em contrapartida, pune os facínoras criminosos.
desrespeitou uma imposição do Império persa para garantir a preservação e sobrevivência de seu
Povo.
[...] por isso, desde o princípio, foi uma entidade política opondo-se ao
nazismo. Com base no estudo das Escrituras, ele entendeu que, diante da
opressão secular. A igreja necessita estar presente no mundo, sendo obediente
em circunstâncias difíceis- como ele disse o cristão precisa viver a “graça
dispendiosa” e não a “graça barata”. Ele também ressaltou a necessidade da
confissão, da meditação, da intercessão na vida em comunidade. Para esta, ele
enfatizou a liturgia e os símbolos cristãos como substitutos e corretivos dos
símbolos e rituais nazistas [...].
mais associado aos pressupostos deontológicos da ética bíblica e da caridade voluntária, pois favorece
a prática de virtudes socias e interpessoais. Tal pensamento encontra muita proximidade com a obra
“Da Democracia na América” do pensador Alexis de Tocqueville.
No âmbito jurídico, a doutrina que mais se aproxima do cristianismo é o jusnaturalismo
teológico e sua defesa da dignidade do ser humano, uma vez sendo ele criado à imagem e semelhança
de Deus. Importante ressaltar os impactos que os pensadores cristãos provocaram no desenvolvimento
de uma nova perspectiva para a Ciência do Direito e suas ramificações, sendo elas, principalmente:
Direito Constitucional, Direito Civil, Direito Penal e Direito Processual Penal.
Deus na salvação dos homens. Deus é perfeito, enquanto os homens- herdeiros do pecado original de
Adão (teoria da imputação imediata) - são apenas cópias imperfeitas e incapazes de alcançar a verdade
absoluta apenas pelo uso de suas faculdades mentais e intelectuais. Sendo assim, os indivíduos
necessitam da misericórdia divina. O homem recebe de Deus o conhecimento acerca das verdades
eternas, pois a razão encontra-se limitada diante da fé. A teologia desenvolvida por Agostinho fazia
oposição direta ao pensamento de um monge da região da Bretanha, chamado Pelágio., cujas ideias
negavam o pecado original.
Quando se diz que Pelágio negava o pecado original, ele fazia questão de
negar a culpabilidade herdada. Isso quer dizer que o mal não nasce com os
homens, e estes são gerados sem culpa, no entanto, ao entrarem em contato
com o mundo corrompido pelo pecado, tendem a pecar porque seguem os
maus exemplos de outras pessoas. O pecado, portanto, pode ser definido como
estrutural. Os homens decidem, pelo livre-arbítrio que possuem, pecar, mas
isso se deve ao modelo incubador do pecado original que está presente na
organização social dos homens. O pecado original não é herdado
biologicamente por meio da perpetuação jurídica da culpa, da mancha do erro,
em função da primeira transgressão cometida por Adão, como pensava
Agostinho. O mal, para Pelágio, é social, e não genético.
[...] Agostinho quer mesmo salvaguardar a noção de que o Direito só possa ser
dito Direito, quando seus mandamentos coincidirem com mandamento de
Agostinho afirma que o Governo legítimo é aquele que se pauta pela virtude da justiça
(derivada da lei natural ou eterna), a qual estabelece a prescrição e o compromisso de dar a cada um
o que é seu. Portanto, a justiça e o direito natural correspondem a uma graça comum de Deus para
humanidade com o intuito de evitar a desordem pública. “A justiça. Portanto, tem a ver com ordem,
da razão sobre as paixões, das virtudes sobre os vícios, de Deus sobre o homem”. O Estado é
instrumento de realização da lei natural através do Direito positivo. As ideias de Agostinho
influenciaram pensadores constitucionalistas e liberais posteriores, principalmente no que concerne a
identificação e correspondência do Direito com a justiça. Friedrich Hayek (1899-1992) retoma esse
pensamento em sua obra “Direito, Legislação e Liberdade”.
Murray Rothbard destaca três pensadores cristãos escolásticos do período medieval que são
essenciais na compreensão dos pressupostos do livre-mercado; são eles: São Tomás de Aquino,
Francisco Suárez e Francisco de Vitória. Começando por Aquino, é importante frisar sua eminência,
não só para teologia e filosofia, mas para diversas áreas do conhecimento, tais como: Ciência política,
Direito e Economia. No campo político, Tomás de Aquino considerava a monarquia como a melhor
forma para realização do bem comum, contudo não se tratava da defesa de uma espécie de
Absolutismo ou tirania pessoal. Como bem destaca Cláudio de Cicco:
Quanto ao seu pensamento jurídico, Aquino foi o maior expoente do jusnaturalismo teológico
da Idade Média. Classificou as leis em três tipos: lei eterna, lei natural e a lei humana. O primeiro
tipo corresponde a suprema ordem do Universo, ou seja, a providência divina. A lei natural retrata
uma relação de participação, ou seja, reflete a participação da lei eterna pela criatura racional, uma
vez que a Revelação Geral de Deus (fenômenos naturais) possibilita ao homem uma compreensão,
através da razão, do caráter normativo de seu regimento e totalidade. Entretanto, “tendo em vista que
a natureza humana é mutável, a apreensão do que é natural, por vezes, admite Aquino, pode falhar”.
Logo, o jusnaturalismo tomista não enxerga na natureza um código normativo não suscetível
de falhas e variações.
A lei humana, na concepção tomista, é a derivação racional de lei natural por determinação
ou conclusão. Trata-se, portanto, de uma espécie de concretização da lei que se revela na Natureza.
“Em outras palavras, a lei humana deve retratar o que a lei natural preceitua; deve o legislador
positivar o que é dado pela natureza, o que da natureza decorre, e não o contrário [...]”. Portanto,
conclui-se que o critério de legitimidade do Direito positivo é o seu cumprimento com a efetivação
dos preceitos normativos da lei natural.
A Justiça Legal, enquanto a correspondência do Direito Positivo com o Direito Natural,
classifica-se em Justiça Distributiva e Justiça Comutativa. A primeira refere-se à análise dos méritos
de cada parte na sociedade, ou seja, trata de relações públicas da parte com o todo de acordo com o
grau de participação e produtividade. A segunda espécie encontre-se presente nas relações privadas
contratuais, ou seja, no âmbito da autonomia negocial privada. Portanto, na concepção tomista, a
justiça, enquanto virtude, está sempre pautada pelo equilíbrio nas interações, com o intuito de
estabelecer a igualdade entre os que se relacionam.
As ideias de Aquino foram essenciais na construção do constitucionalismo, da teoria dos
direitos humanos e fundamentais e dos pressupostos do pensamento de livre mercado, especialmente
no que concerne na sua defesa da limitação do Estado em face da autonomia dos indivíduos enquanto
seres racionais e das liberdades das instituições privadas. Sendo assim, cabia ao Estado capacitar o
povo, por meio do exercício da justiça, a promover sua dignidade. Importante ressaltar que a
escolástica de Aquino influenciou outros pensadores medievais, cujas obras são consideradas por
muitos de precursoras da escola austríaca de economia e da defesa do liberalismo econômico.
Suárez foi um severo defensor das limitações do Estado em face dos direitos naturais e da
autonomia da vontade dos indivíduos. Tal concepção influenciou na elaboração de sua teoria
econômica, cujos pressupostos eram semelhantes ao pensamento de Juan de Mariana (1536-1624)),
um padre e historiador espanhol.
Juan de Mariana foi claramente o escritor escolástico que influenciou explicitamente as teorias
políticas e éticas da Liberdade econômica. Em seus escritos destacou a importância da propriedade
privada (condição indispensável para o desenvolvimento econômico e social), a necessidade de
redução da carga tributária, pois empobrece a população; afirmou também a eminência de garantir o
equilíbrio do orçamento público (déficits orçamentários acarretam no aumento dos tributos e na
emissão de moeda, resultando na inflação). Além desses pontos, Juan de Mariana criticou o
monopólio do Estado na emissão e adulteração de moeda, se opôs as regulamentações e o
intervencionismo do poder público, pois representariam uma séria violação dos preceitos da lei
natural. Influenciou o pensador Hayek em sua visão sobre a “ordem espontânea”, ou seja, na ideia de
que as informações, enquanto subjetivas, encontram- se dispersas no ambiente social e que, portanto,
não cabe ao Estado estabelecer uma centralização em torno delas, pois cada indivíduo reconhece suas
necessidades e o local para encontrar informações úteis para suprir seus desejos, ou seja, o livre
comércio representa a melhor forma para a preservação da coesão social.
Juan De Mariana foi um forte crítico da criação dos monopólios estatais e do planejamento do
poder público no âmbito econômico. Ele se opôs às políticas absolutistas nos países europeus e à
crescente tirania dos governos. Portanto, concluindo; diversas são as ideias defendidas pelos autores
da Escolástica tardia que se relacionam com pressupostos e princípios da Liberdade econômica e
ideais da eminente escola austríaca, tais como: a teoria do valor com base no subjetivismo, defesa das
liberdades individuais, inflação como fenômeno provocado por distúrbios monetários, garantia da
propriedade privada, compreensão dos mercados enquanto processos, princípio da ação humana;
vínculo entre Ética, política e economia (interdisciplinaridade), reconhecimento da ordem
espontânea, a eminência do livre comércio, a liberdade de preços e concepção de que as informações
necessárias para a ordem social são dispersas.
Assim como os escolásticos, os pensadores protestantes também foram essenciais na
construção do pensamento econômico de livre mercado. Embora apresentavam divergências
teológicas e doutrinárias em relação aos adeptos do tomismo e da filosofia escolástica, os pensadores
da Reforma Protestante possuíam pontos políticos similares com alguns padres da Idade Média
João Calvino atribuiu grande importância às leis, ao Estado, governo e aos magistrados. Sua
reflexão política girava em torno de sua concepção acerca da Soberania de Deus. A autoridade de um
governo decorre da providência divina. “Em última análise, em Calvino, a esfera do Estado está
segundo Kuyper, sob a majestade do Senhor e a autoridade que o homem detém, na gestão do governo
desse Estado, é dada por Deus” (SCALQUETTE, 2013, p.95).
Calvino destacou a necessidade de que cada organização política representasse uma sociedade
cristã que seguisse e obedecesse aos preceitos gerais da Bíblia e aos padrões da lei natural. Contudo,
importante frisar que na concepção de João Calvino existe uma separação básica entre igreja e Estado,
pois a Igreja deve apresentar autonomia em relação ao poder político centralizado. O governo é
compreendido como uma benção ou dádiva benevolente de Deus ao Homem, sendo a função do
governante e dos magistrados essencialmente sagrada, pois eles devem proteger o serviço externo de
Deus, fomentar o ensino da piedade, moldar a moral dos cidadãos para a justiça civil, promover o
bem comum e a ordem pública, defender a condição social da Igreja e garantir a aplicação concreta
da lei.
Calvino não se preocupou com a definição das melhores formas de governo, pois ele se
concentrou em definir e estabelecer os limites e deveres da atuação dos governantes e magistrados.
Contudo, pode-se dizer que ele se aproximava da defesa da associação ou combinação entre
democracia e aristocracia. No âmbito jurídico, João Calvino é adepto da doutrina do Direito natural
e compreendia a lei natural como uma série de mandamentos e obrigações, inserida na consciência,
retomada nas Sagradas Escrituras e resumida no Decálogo. A lei Natural, enquanto uma graça comum
de Deus, seria usada em três diferentes funções: determinação teológica, utilização civil e no aspecto
moral-educacional. A função teológica é entendida como a capacidade que o Direito Natural possui
de repreender as pessoas na própria interioridade e fazer com que reconheçam a necessidade de uma
relação pessoal com o Criador. A ocupação civil decorre da necessidade de reprimir os efeitos da má-
fé e maldade dos pecadores no âmbito social. A utilização moral-educacional da lei natural por Deus
implica em apresentar aos convertidos na graça libertadora do Salvador os caminhos para
santificação. Enfim, a lei natural acaba por produzir a justiça civil e justiça espiritual, originando
normas que regulam a convivência dos indivíduos e garantem o predomínio da boa-fé objetiva nas
relações intersubjetivas.
Na concepção calvinista, os governantes não devem se desviar dos preceitos da legalidade, da
legitimidade e dos imperativos da lei natural. Entretanto, caso o Estado se torne tirânico e abusivo,
não é da responsabilidade dos cidadãos a organização de uma rebelião contra o respectivo poder
político. As obrigações de respeito e subordinação não são quebradas, mesmo quando as autoridades
se desviam da justiça. Contudo, Calvino reconhecia uma hipótese de necessidade do direito de
resistência. Trata-se da conjuntura em que a obediência ao Estado se torna um desrespeito ao
monoteísmo ético e ao amor incondicional a Deus. Nesse caso, caberia aos magistrados inferiores,
representantes populares, o dever de organizar uma resistência ordenada contra a tirania
governamental.
No aspecto econômico, Calvino é alvo de muitos questionamentos e debates controversos.
Primeiramente, antes do estabelecimento de qualquer tentativa de categorizar João Calvino; se
demonstra necessário estabelecer os fundamentos e desdobramentos de suas ideias no campo
socioeconômico. Em suas pregações, o reformador francês sempre se baseou na dignidade da pessoa
humana, já que o indivíduo foi criado à imagem e semelhança de Deus. Portanto, era imprescindível
a existência de uma sociedade fundada na solidariedade cristã. Ele também frisou a responsabilidade
social da Igreja, cujas obras deveriam favorecer uma conjuntura de trabalho digno para todos os
cidadãos.
Calvino realizou inúmeras reformas no âmbito econômico com base em alguns princípios
como: liberdade contratual, autonomia negocial privada, defesa dos direitos de propriedade, estímulo
Em relação aos direitos de propriedade, Calvino escreve em oposição aos anabatistas de seu
tempo, que apoiavam a abolição da propriedade privada.
Calvino [...] nos lembra de que a caridade não dispensa a justiça. Seu propósito
é condenar juízes que querem “afastar-se da equidade em favor dos pobres”,
em nome do evangelho, e “seguir uma ideia tola de misericórdia” favorecendo
os pobres. Em nome da justiça, não deve haver qualquer questão sobre prover
as necessidades dos destituídos causando danos aos ricos. O reformador
concorda com Paulo: enquanto os ricos têm o dever de dar esmolas, não se
deve obrigá-los a compartilhar suas posses. Qualquer que seja o mérito de
caridade e a preocupação de libertar os pobres da tirania, ninguém deve se
desviar da justiça, nem um fio de cabelo sequer.
Calvino defendia e valorizava o trabalho livre, compreendido como um dever que Deus
ordenou aos homens. Através dele, o indivíduo é capaz de evitar o desenvolvimento de vícios e
combater o ócio. Os frutos do trabalho devem favorecer uma vida confortável e digna. A partir das
ideias sociais e econômicas desenvolvidas pelo calvinismo, o sociólogo Max Weber, em sua obra “A
ética protestante e o espírito do capitalismo”, estabelece uma relação de afinidade eletiva entre o
crescimento do protestantismo e o desenvolvimento do sistema capitalista.
Entretanto seria equivocado determinar João Calvino como um libertário autêntico, pois ao
mesmo tempo em que estimulou o livre comércio e o crescimento de atividades empresariais e
contratuais, o reformador francês também estimulou serviços públicos sociais, através da fundação
de hospitais e escolas supervisionadas pelo governo municipal. Contudo, importante ressaltar que a
defesa da participação do Estado em alguns setores não exclui automaticamente a qualidade de
Liberal, uma vez que até mesmo os liberais clássicos eram defensores da intervenção do poder público
na disponibilidade de alguns serviços. Adam Smith, David Hume, David Ricardo, Jean Baptiste Say
e até mesmo pensadores liberais contemporâneos como Ludwig Von Mises e Milton Friedman
apoiavam a atuação do governo em algumas situações, tais como a criação de infraestrutura e a
garantia do chamado “mínimo-existencial” (condições mínimas de dignidade, também defendidas
por João Calvino). Sobre esse assunto, Ludwig Von Mises, um dos pensadores liberais mais
marcantes da Idade Contemporânea, escreve:
Portanto, seria errôneo caracterizar Calvino como um libertário (corrente política que procura
restringir a esfera de atuação do Estado somente ao âmbito da justiça), mas não seria um erro grave
denominá-lo de Liberal no quesito econômico, considerando os devidos aspectos históricos e sociais.
O calvinismo, enquanto uma cosmovisão, zelava imensamente pela caridade voluntária no âmbito
socioeconômico, ou seja, procurava restringir a intervenção constante e exagerada do Poder Público.
Sendo assim, a perspectiva política de Calvino apresenta afinidades com a concepção libertária, mas
encontra-se mais próxima do liberalismo econômico.
Após Calvino, outros pensadores protestantes contribuíram para o pensamento de livre
mercado, dentre eles Philippe DuPlessis Mornay e Johannes Althusius. O primeiro foi um árduo
Braz. J. of Bus., Curitiba, v. 2, n. 2, p.1043-1077, abr./jun. 2020. ISSN 2596-1934
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defensor dos direitos naturais dos indivíduos e da limitação do Estado em face da legalidade e dos
critérios de legitimidade.
Johannes Althusius foi um teólogo e pensador calvinista que viveu durante a Revolta
Holandesa contra as medidas absolutistas e tirânicas da Espanha, que se encontrava sob o domínio
do Rei Filipe II. Althusius, como grande defensor dos direitos naturais, defendeu o direito de
resistência contra autoridades autoritárias, pois a tirania governamental representava a quebra da
aliança entre o Estado e o povo.
Esse pensador formulou duas teorias muito recorridas no âmbito da ciência política: teoria
simbiótica e a teoria da aliança entre a sociedade e a política. Em sua concepção, os homens são
inclinados por natureza a estabelecerem associações- casamentos, famílias, cidades, províncias e
Estados. Cada um desses agrupamentos é formado por um contrato ou aliança entre os seus membros
perante Deus e diante dos outros. “Cada associação é um lugar de autoridade e liberdade que liga
tanto governantes quanto súditos aos termos do seu contrato de fundação e aos mandamentos das leis
fundamentais de Deus e da natureza[...]” (HALL, 2017, p.50).
Althusius foi um dos mais célebres nomes da filosofia política cristã e contribuiu imensamente
para ideias essenciais no mundo contemporâneo, tais como: Constitucionalismo, teoria dos direitos
fundamentais, desobediência civil, governo representativo, Federalismo, livre comércio, autonomia
negocial privada e as garantias processuais no âmbito jurídico.
Já na Idade Contemporânea, Frédéric Bastiat (1801-1850) foi um dos maiores expoentes do
Jusnaturalismo teológico e contribui para sistematização das relações da doutrina do direito natural
com o livre mercado. Em sua obra “A lei”, o respectivo filósofo condena as regulamentações
excessivas, o planejamento estatal, o coletivismo e as tendências absolutistas centralizadoras. Na
concepção de Bastiat, o conceito de lei encontra-se intrinsecamente relacionado com o direito natural.
4 CONCLUSÃO
A ética da liberdade econômica apresenta em perspectiva geral alguns princípios
fundamentais, tais como: jusnaturalismo, a deontologia de Immanuel Kant, autonomia da vontade,
princípio da auto-propriedade e o princípio da não-agressão. Quanto ao jusnaturalismo, a ideia da
existência de uma Lei Natural normativa, prescritiva (Princípio do Dever), anterior e
hierarquicamente superior ao Direito positivo e que garante ao homem faculdades e garantias
mínimas foi imprescindível na posterior sistematização do pensamento econômico de livre mercado.
Grande parte dos pensadores liberais, clássicos ou contemporâneos, sustentava suas teorias com base
na existência de uma lei natural, cujos imperativos fundamentavam a propriedade privada, liberdade
contratual e autonomia negocial. Também se faz importante ressaltar que ao longo da história a
doutrina do direito natural caminhou ao lado da ética cristã, compreendida como deontológica e
prescritiva. Autores cristãos como São Tomás de Aquino, Santo Agostinho, Juan de Mariana,
Francisco de Suárez, Francisco de Vitória, João Calvino e Johannes Althusius foram precursores e
defensores de particularidades do livre comércio, sendo que alguns se declaravam explicitamente
contra o planejamento estatal no âmbito econômico. Portanto, conclui-se que a cosmovisão cristã não
se encontra defasada no que concerne aos aspectos e ideais econômicos contemporâneos e que ainda
tem muito a oferecer nos estudos e reflexões acerca do livre mercado, empreendedorismo,
constitucionalismo, livre concorrência, coletivismo, totalitarismo, direitos fundamentais e
desobediência civil.
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