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Faculdade de Medicina da

Universidade de São Paulo


Departamento de Neurologia
Disciplina de Neurologia Infantil

Caso clínico

Identificação: Paciente do sexo feminino, 3 anos e 7 meses, natural e procedente de


Itajubá, mora com a mãe e as duas irmãs, não frequenta escola atualmente.

Queixa principal: “Paralisia do lado direito do corpo”

História da moléstia atual: paciente iniciou aos 2 meses de vida eventos


caracterizados por abalos em membro superior esquerdo e versão ocular para direita,
seguido de movimentos clônicos nos 4 membros, com duração superior a 10 minutos e
sem febre associada (VÍDEO 1). Após atendimento em serviço externo em Itajubá,
recebeu alta com fenobarbital (PB), mantendo tais eventos com frequência semanal.
Com 5 meses de vida, iniciou outros episódios de desvio ocular com aparente
perda de contato, 2-3 vezes por semana (VÍDEO 2). Mantido tratamento com PB e
acrescentada oxcarbazepina (OXC).
Com 7 meses, por não controle dos eventos, realizada troca de medicações e
mantida com ácido valproico (VPA), OXC e levetiracetam (LEV), com redução de crises
para 2-3 vezes por mês, obtendo controle total dos eventos por cerca de 4 meses.
Aos 18 meses, pais notaram ocorrência de movimentos mastigatórios com
duração de minutos, não se associando a movimentos oculares ou manuais, de
frequência semanal. Nesta época, notaram também aparecimento de manchas na pele,
principalmente ao acordar, com melhora ao longo do dia, o que se manteve
ocasionalmente (FOTO 1).
Com 2 anos e 6 meses, tentado desmame do VPA, com aumento importante dos
episódios caracterizados por intensa irritabilidade, perda do contato, manchas na pele,
e movimentos erráticos de membros, com duração de cerca de 10 minutos. Sendo
assim, mãe recebera orientação de realizar Diazepam (DZP) via retal conforme
necessidade, o que fazia diariamente. Criança evoluiu com regressão do DNPM,
perdendo inclusive sustento cefálico (nesta idade já permanecia em pé com apoio), e
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quadro de disfagia importante. Tentada troca de OXC por clonazepam (CZP) e mantidos
LEV + VPA. Devido à irritabilidade, iniciada risperidona, sem melhora do quadro.
Paciente foi encaminhada ao HC-FMUSP em maio de 2019 (aos 3 anos), quando
foi realizado Vídeo-EEG. Nesse exame, foi percebida a ausência de correlato
eletrográfico durante episódios de maior agitação e movimentação (VÍDEO “VEEG
05.2019 evento sem correlato”), como os considerados crises pela mãe, porém
evidenciada alteração eletrográfica em episódio de supraversão ocular (VÍDEO “VEEG
05.2019 evento com correlato”, traçados 1-3), além de crises eletrográficas focais
sem associação clínica (traçados 4-10). Vídeo-EEG foi novamente realizado em junho
de 2019 evidenciando padrão semelhante. Mantidos VPA e LEV, sendo suspenso DZP
retal, com melhora dos eventos (1-2 vezes por mês) e do desenvolvimento
neuropsicomotor – passou a sentar e ficar de pé com apoio.
Em retorno ambulatorial em setembro de 2019 (aos 3 anos e 5 meses), mãe
descreveu novos eventos, caracterizados ora por estrabismo convergente, ora por
exotropia de olho direito, 1-2 vezes ao dia (FOTO 2), com duração de poucos segundos
a minutos. Além disso, percebeu movimentos orolinguais e mastigatórios frequentes,
sem aparente perda do contato.
Em 09/11/2019 (aos 3 anos e 7 meses) apresentou episódio prolongado de
parada comportamental associado a movimento ocular por 15 minutos (VÍDEO 3),
evoluindo com movimentos erráticos dos membros por 30 min (VÍDEO 4). Em 24/11/19,
pais notaram redução súbita da movimentação do hemicorpo direito principalmente em
membro superior direito (VÍDEO 5), com melhora após algumas horas e retorno da
paresia no dia seguinte. Internada em nossa enfermaria nesta ocasião para
investigação.

Antecedentes gestacionais: Mãe G3 P3 A0. G1: Irmã de 18 anos, G2: Irmã de 14


anos, G3: Paciente.
Infecção urinária no sexto mês de gestação, com necessidade de internação para
tratamento.

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Antecedentes perinatais: nascida de parto cesárea por apresentação pélvica, a termo


(IG 39 sem). Boa vitalidade, chorou ao nascer, escore de Apgar 9-10. Peso: 3100 g,
Comprimento: 44 cm. Teve alta com a mãe com 3 dias de vida, sem intercorrências.

Antecedentes pessoais: aleitamento materno exclusivo por 4 meses. Bronquiolite com


2 meses.

Vacinação: carteira de vacinação atualizada.

DNPM:
Sustento cefálico – 3 meses.
Sentou sem apoio – 12 meses.
De pé com apoio – 18 meses.
Andou sem apoio – 2 anos.
Lalação – 2 anos.
Com 2 anos e 6 meses perde gradualmente marcos, mantendo dificuldade inclusive de
sustento cervical.
Retorno gradual dos marcos a partir dos 3 anos e 2 meses.

Antecedentes familiares:
Pais não consanguíneos. Mãe, 40 anos, hígida; pai, 42 anos, hígido. Irmãs de 18 anos
e 14 anos hígidas. Não refere outros antecedentes relevantes.

Exame físico geral (Novembro/19)


● Peso: 15 kg (p50)
● Altura: 100 cm (p50)
● Perímetro cefálico: 50 cm (p50)
● Exame físico geral sem alterações.

Exame Neurológico - (Novembro/19)


● Fácies: FOTOS 3 E 4
● Atitude: vigil, pouco contactuante, irritada, porém acalma com vídeo.
● Linguagem: somente sons guturais e choro.

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● Motricidade: hemiparesia direita, de predomínio braquial – força grau III em


membro superior direito e IV- em membro inferior direito. Restante dos grupos
musculares com força grau IV+. Reflexos normoativos bilaterais e simétricos.
Hipotonia global, de predomínio axial. Reflexo cutâneo plantar em flexão
bilateralmente. Presença de movimentos erráticos de mãos e pés, de pequena
amplitude e predomínio em extremidades.
● Sensibilidade: reage pouco aos estímulos dolorosos, porém retira os 4 membros.
● Coordenação e equilíbrio: Senta sem apoio. Dismetria e Tremor de intenção em
membros superiores.
● Pares cranianos:
o II: FO sem alterações. Fixação preservada. AV não testada. Ausência de
defeito aferente pupilar.
o III, IV e VI: Pupilas isocóricas normorreativas; reflexo fotomotor direto e
consensual presentes; assume as 9 posições do olhar, segue 180°,
ausência de movimentos oculares anormais.
o V: ausência de desvio mandibular, motricidade mastigatória
aparentemente preservada. Sensibilidade não testada. Reflexo
corneopalpebral presente bilateralmente.
o VII: mímica facial pobre, porém sem assimetrias.
o VIII: reflexo cocleopalpebral presente bilateralmente. VOR normal.
o IX, X, XII: úvula central, reflexo nauseoso presente, ausência de
fasciculações ou desvio de língua.
o XI: não testado.

Exame Neurológico (Julho/20)


● Motricidade: lentificação de movimentos; força grau IV+ em 4 membros,
simétrica. Hipotonia global, de predomínio axial. Reflexos normoativos bilaterais
e simétricos. Reflexo cutâneo plantar em flexão bilateral. Movimentação de
membros conforme visto em VÍDEO 6.
● Coordenação: VÍDEOS 7 E 8.
● Equilíbrio e marcha: VÍDEOS 9 E 10.
● Restante do exame sem alterações em relação a novembro de 2019.

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Exames complementares:
RM (15/05/19): Imagem enviada em anexo.

AngioTC (29/11/19): Imagem enviada em anexo.

VEEG (17/10/2016): anormal - Externo (Imagem do laudo completo em anexo)


1. No período interictal:
- atividade elétrica cerebral de base adequada para a faixa etária.
- elementos próprios do sono presentes e simétricos.
- ausência de paroxismos de natureza epileptiforme.
2. Registro de 2 eventos clínicos um dois quais com correlato eletroencefalográfico de
projeção na região central mediana.

EEG (02/04/2019) - Externo


Ritmo de base: evidencia importante ritmo beta (medicamentoso?).
Ausência de assimetria de base. Não foi observada atividade irritativa. A fotoestimulação
intermitente não forneceu novos dados. Conclusão: EEG evidencia ritmo beta
medicamentoso.

EEG (07/05/19): 1. Atividade de base difusamente desorganizada, com predomínio no


hemisfério esquerdo, com excesso de ondas lentas irregulares teta e delta (até 2 Hz).
Observa-se excesso de atividade rápida (possivelmente medicamentosa). 2.Não foram
observados paroxismos epileptiformes.

VEEG (11/05/19):
Monitorização prolongada (3 dias) por vídeo EEG evidenciou:
-No período interictal:
o Desorganização difusa e discreta da atividade de base, caracterizada por maior teor
de ondas lentas irregulares. Durante o sono foram registrados elementos próprios desse
estado, com padrão pouco organizado.
o Surtos de ondas lentas irregulares teta e delta, de projeção ora difusa, ora restrita num
ou em outro hemisfério.

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o Surtos de ondas lentas irregulares teta e principalmente delta, de elevada amplitude,


com duração variável de projeção no hemisfério ora esquerdo, ora direito.
o Atividade epileptiforme frustra de projeção ora difusa, ora centrotemporal esquerda.
-No período ictal:
o Registro de um evento clínico-eletrográfico, caracterizado por parada comportamental
e supraversão ocular. Eletrograficamente, redução difusa da amplitude e maior
alentecimento dos ritmos.
o Registro de aproximadamente 20 eventos, constituídos por ondas lentas, ritmadas e
com evolução eletrográfica, sem correlato clínico, iniciados na região temporal
esquerda, podendo corresponder a crises eletrográficas focais.
Obs.: Apresentou eventos reconhecidos pela mãe como crises, com semiologia não
estereotipada, sem características clínicas ou eletrográficas de eventos ictais,
correspondendo à movimentação ativa da paciente (observa-se ataxia e tremores).

VEEG (24/06/19):
Monitorização prolongada (2 dias) por vídeo EEG evidenciou:
- No período interictal:
o Desorganizada difusa e discreta da atividade de base, caracterizada por maior teor de
ondas lentas irregulares. Durante o sono foram registrados elementos próprios desse
estado, com padrão pouco organizado.
o Surtos de ondas lentas irregulares teta e delta, de projeção ora difusa, ora restrita num
ou em outro hemisfério.
o Atividade epileptiforme frustra de projeção ora difusa, ora centrotemporal esquerda.
- No período ictal:
o Registro de 23 eventos, constituídos por ondas lentas, ritmadas e com evolução
eletrográfica, sem correlato clínico, iniciados na região temporal esquerda,
correspondendo a crises eletrográficas focais.

EEG (27/11/2019):
Desorganização difusa da atividade de base, caracterizada por ter ondas lentas e
irregulares teta e delta. Paroxismos epileptiformes ocasionais de espículas de baixa
amplitude de ocorrência independente nas regiões centro-parietal esquerda e direita,

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temporo-occipital direita, sendo mais frequente nessa última topografia, e mais


raramente com projeção difusa.

Exames laboratoriais (08/05/19): Hb: 12,8 /Ht: 38,2 / Leuco: 16,48 mil / Neut: 59,2% /
Plaq: 388 mil / Ur:23 / Cr: 0,39 / Na: 138 / K: 4 / CaT: 8,8 / Mg: 1,88 / P: 2,2 / Cl: 104 /
Gasometria venosa pH: 7,337 /pO2: 59,8 / pCO2: 33,9 / HCO3: 17,7 / BE:-6,8 / SO2: 88
/ TGO: 44 / TGP: 31 / CPK: 45 / TSH: 0,55 / T4L: 1,31/ Amônia 53/ Nível sérico Ácido
Valproico 149.

Exames laboratoriais (09/05/19): ácido valproico 50.

LCR (15/05/19): cel 0 / hem 112 / prot 14 / glic 53 / lactato 14,4.

Perguntas:

1) Qual a hipótese diagnóstica?


2) Como proceder a investigação?

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