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10 A DIMENSÃO ÉTICA

DA ENFERVAGEM

P
ara sermos capazes de ajudar os outros, é
precisa, em primeiro lugar, aprendermos
a aiudar-nos a nós próprios.

Ous-pensky

Pelo exposto nos capítulos anteriores, pode inferir-se que a enfermagem é


uma área de conhecimentos que possui, intrinsecamente, uma dimensão ética
muito forte. Mas qual a razão se, hoje, tudo parece ter uma dimensão ética?
O vocábulo não é estranho a outras disciplinas, artes ou profissões. Fala-se
de ética ou de comportamento ético, por exemplo, quer a propósito da gestão
de urna empresa', como do exercício da medicina, da informática ou da ética
militar. Ao afirmar que a enfermagem tem urna dimensão ética, será esta simi-
lar a qualquer outra ética ou apresenta contornos diferentes?
Pode dizer-se que, em toda a situação em que intervenha o homem, existe
um paradigma ético, uma vez que a sua acção responsável e consciente implica.
um juízo crítico e a tomada de decisões. A decisão em si é sempre ética, podendo
ou não observar os princípios éticos subjacentes e o fim bom, ou seja, o
verdadeiro bem. Pode conhecer-se o fim bom, mas agir-se mal. Nesta perspec-
tiva, é pertinente falar-se de ética em qualquer domínio do conhecimento.
Contudo, há decisões que, apesar de pouco correctas, não envolvem ou deter-
minam prejuízo acentuado para outros, nem tão-pouco acorrentam o seu agente.
Cada situação é, à luz dos princípios ético-morais, passível de avaliação por si
mesma. Por exemplo, uma empresa produtora de automóveis, tendo em vista

' Entende-se a empresa no sentido restrito, isto é, como organização que visa produzir bens
maximizando os lucros.
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a maximização dos lucros, pode tomar a decisão de utilizar materiais mais todos, pelas implicações na consciência do enfermeiro, no conflito de valores
baratos, mas de inferior qualidade, menosprezando assim a segurança dos veí- subjacentes e em aspectos jurídico-legais.
culos, aumentando o risco para o utilizador. Porque envolve o comportamento Por exemplo, qual a atitude a tomar pelo enfermeiro perante a ordem de
e a acção de uma ou mais pessoas', ocorre no âmbito de uma instituição e familiares para que o seu familiar doente, de idade avançada, não receba qual-
pode trazer prejuízo para outras pessoas, trata-se de uma situação ético-moral. quer terapêutica, sobretudo soluções por via endovenosa'. A prescrição clínica
Nesta perspectiva, não há éticas diferentes, mas simplesmente algo que é era clara, deveria respeitar-se?
mais visível e que se impõe à consciência do agente individual da acção, corno
Pode o enfermeiro tomar alguma decisão? Quais os princípios e valores
de outros indivíduos ou mesmo à própria sociedade. Por outro lado, o produto
questionados? A vontade da família (filhos) sobrepõe-se à vontade do doente e
da acção, quer seja hom ou mau, determina de imediato os seus efeitos ou
aos deveres deontológicos do enfermeiro? À maneira de Kant, o enfermeiro
repercussões, quer no sujeito que realiza a acção quer no outro que sofre o
pergunta: O que devo fazer?
efeito da mesma.
São situações similares que, se usarmos a razão, verificamos que não são
Este facto acontece no exercício da enfermagem, pois os actos de enferma- trivialidades e exigem uma resposta reflectida e consistente, fundamentada
gem decorrem numa dimensão intersubjectiva, muitas vezes fragilizada pela nos princípios éticos universais.
pessoa doente. Na sua acção, o enfermeiro é com frequência confrontado com Não é de estranhar que, talvez por falta de preparação no domínio da
perspectivas ambivalentes da própria instituição de saúde, da equipa médica, ética, o enfermeiro ignore simplesmente estes dilemas ou os encaminhe para
do doente, da família e dos próprios colegas. As dúvidas e os dilemas emergem outros profissionais'. Esta postura é um erro. A enfermagem não se pode consi-
à consciência individual e a tomada de decisões pode ser problemática. De derar autónoma e independente se não puder resolver conflitos éticos. O corpo
igual forma pode ser impossível a confrontação do problema -tom outros cole- de conhecimentos da enfermagem deve ter princípios éticos e regras para apli-
gas e a própria equipa. cação a situações reais. Não é a ética uma ciência prática? Exactamente por
Mesmo assim, inexorável, a decisão impõe-se; o chamamento do outro é isso, esses princípios orientam a decisão, mas não a sancionam irremediavel-
apelativo e exige atitudes e decisões que observem a vontade da pessoa huma- mente.
na. É aí, às vezes, numa aparente solidão, que o enfermeiro decide, aconselha Na mesma perspectiva, é pertinente que os professores de Enfermagem
ou orienta. As contradições, as dúvidas, podem tornar-se evidentes. Para desenvolvam competências éticas e morais, quer em si próprios quer nos seus
discernir com clareza e tomar a decisão ajustada a cada situação é preciso a alunos. É necessário mostrar aos alunos a forma de resolver os conflitos éticos.
observância de princípios sólidos e de urna reflexão cuidada. E, como já referi, a situação concreta, a análise de caso com roda a sua abran-
Por outro lado, a prática da enfermagem decorre no mundo das pessoas, gência, parece ser uma estratégia adequada.
sendo os cuidados de enfermagem exactamente dirigidos a cada pessoa. Ao Quais são então os princípios orientadores? Podem ser, por uru lado, de
considerar a pessoa em toda a sua dignidade no âmbito de uma perspectiva ordem individual e, por outro, de ordem profissional ou institucional.
holística, a enfermagem moderna não se assume como o anjo da guarda da No âmbito da perspectiva ética, sendo respeitado o mundo da peSoa,
pessoa doente. Quer dizer, o enfermeiro não substitui a pessoa carenciada, a sua humanidade, os dilemas esbatem-se e são mais facilmente resolvidos.
não decide por ela, mas decide com ela numa espécie de cumplicidade
Na sua relação profissional com os outros o enfermeiro deve observar,
intersubjectiva. Isto é, torna-se o advogado do doente. Ao estabelecer uma o mais possível, os princípios e valores que são intrínsecos e indissociáveis da
relação de ajuda, respeita a pessoa, toma atitudes congruentes e procura que a enfermagem'. No fundo eles emergem naturalmente da investigação realizada
pessoa seja o mais possível autónoma. E isso só acontece se o doente tiver a
até ao momento. No entanto, é preciso como que um movimento circular,
informação necessária e suficiente, por forma a desenvolver capacidades e com-
petências, decidindo conforme a sua vontade, a sua consciência esclarecida.
Como já referi, a enfermagem é uma área interdisciplinar, mas possui o seu 1
Trata-se de urna situação real que me foi relatada por um colega, em estrita confidencialidade.
corpo específico. Com alguma frequência os alunos, os enfermeiros e os pro- Não me refiro a pareceres de Comissões de Ética, mas a decisões que devem ser tomadas em curto
espaço de tempo. Quando o horizonte temporal o permite a situação dilemática pode ser enviada
fessores de enfermagem enfrentam dilemas éticos. Isto é, situações geralmente para a Comissão de Ética da instituição ou, se não existir, para as Comissões Nacionais ou
Internacionais de Ética ou Bioética, para produzirem um parecer.
De outra forma a ciência não seria de «enfermagem», mas tratar-se-ia de uma outra qualquer
Por vezes, em situações similares, a decisão última é tomada por uma pessoa, mas é uma decisão profissão tecnocrara.
«partilhada», pois um conjunto maior ou menor de pessoas teve conhecimento. da esfera do
doente ou família que não são passíveis de urna resolução satisfatória para
r.

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do outro. É um eu como um outro, esse outro que permite o acesso ao mistério
voltar a reflectir no sentido hermenêutico. Assim, vou enunciar alguns que me de si para assim me revelar a mim mesmo. A relação mútua é um compromisso
parecem mais significativos'. diário concreto.
Esta dinâmica interior, quando sentida verdadeiramente, leva também ao
agradecimento. Agradecer é um passo para a deseentração de cada um e reco-
Respeito pelo outro nhecer nas coisas e no outro uma maravilha. 1-Já, decerto, alguma passividade,
mas pode dar lugar a uma dinâmica interior no sentido de facilitar aos outros
É uma forma de restituir o outro a si mesmo, acreditar que o ser humano é o que lhes dá alegria. Jesus viveu essa dinâmica, pois «na véspera da sua pai-
único'. Trata-se de um principio do domínio da vida social ou vida pública. xão e morte deu graças a Deus, seu Pai •
Naturalmente que o respeito se enquadra num sistema de valores sociais. Estas dimensões, em conjunto, são o prelúdio de um profundo silêncio.
«O sistema de valores tem de dar sentido e orientação prática num mundo que Quantas vezes a relação entre o enfermeiro e o doente é uma relação de silên-
está longe do ideal. »3 cio e de silêncios. Este silêncio partilhado é uma questão de interioridade, que,
O respeito revela-se como um princípio moral básico e é a expressão de um ao permitir a solidão de si para consigo, permite a presença do sujeito ao
sistema de valores, sobretudo da cultura ocidental. Alguns autores entendem o outro, o estar mais próximo finalmente das palavras. O silêncio é de ouro e,
respeito como princípio ético da enfermagem 4. De facto, como é entendido no dizer de Santo Agostinho, é a escuta do coração.
neste estudo, o respeito é essencialmente do domínio moral, logo da esfera Para Guardini, citado por Dupre-Cardoenz, trata-se de um intuitiva act,
social. Realmente pode respeitar-se o outro, não como autonomia da minha essa disposição do sujeito para ver as coisas na sua mais profunda identidade.
vontade, mas como constrangimento normativo da colectividade. Assim, o De facto, não sou propriamente eu que estou no centro, mas sobretudo o
respeito é antes a expressão de princípios éticos fundamentais. Quando alguém outro. E essa atitude de silêncio, como no filme Filhos de Um Deus Menor,
diz que respeita o outro, pode sempre perguntar-se porque é que o faz. Será acontece quando a jovem surda-muda diz para o seu professor através de lin-
que tem consciência individual do que fundamenta essa conduta? Se não guagem gestual: «Se tu não me deixas ser como sou, tu não podes entrar no
tem, a sua acção não é reflectida, por isso tem omissão ética. meu silêncio e não podemos estar em comunicação.» Trata se de urna atitude
-

de passividade e ao mesmo tempo de abertura ao outro.


É necessário recuperar o sentido do respeito. A admiração pelo outro e o
reconhecimento estão muito próximos do respeito. Este, por sua vez, leva à Também o enfermeiro deve exactamente permitir que o outro seja o que é.
contemplação. Mas a modernidade, em muitos aspectos, esquece-se de olhar, Por isso o outro, o doente, não pode ser descaracterizado num estereótipo
de contemplar as coisas. O homem, talvez pela celeridade da vida, não con- qualquer, mas viver um compromisso ético de solidariedade cristalizada em
templa, tende a agarrar, a prender, a manipular as coisas. E, o que me parece palavras, gestos, sons ou imagens.
mais grave, também a manipular as pessoas'. Apesar de tudo, não se pode cair E, em nenhuma circunstância, apesar da pressão social ou institucional, o
na indiferença, na vertigem quotidiana ou na agressão. enfermeiro se pode escudar atrás de uma neutralidade indiferente ou confortá-
vel. É necessário então que a dinâmica do respeito brote da própria pessoa
O respeito transporta consigo comportamentos de atenção e cortesia.
para que a relação intersubjectiva seja vivida com verdade e congruência ).
A cultura brota desse relacionamento cuidado que integra a pessoa humana.
Esta ideia não pode ser estranha aos educadores e aos alunos'. «O respeito
está próximo de uma atitude de reserva. Uma atitude reservada é uma atitude de Dignidade
presença intensa, de proximidade e, todavia, de distância. Uma distância justa,
suficiente para guardar um espaço no qual é possível acontecer um encontro. »7 Em qualquer instituição todos têm a mesma dignidade, enquanto utentes
Esse encontro jamais pode ser uma manipulação, dominação ou instrumentalização ou como profissionais. Estes prestam um serviço que é devido aos outros. Há
grande interdependência. Por outro lado, todos são iguais na diferença de cada
um, isto é, da sua individualidade e singularidade. A dignidade da pessoa exi-
Cf. O. Serrão, Profissionais de Saúde e Paciente, pp. 57-69.
Cf. H. Lazure, Viver a Relação de Ajuda, pp. 51-53. ge o respeito pelos seus direitos, bem como pelo seu projecto de vida.
J. Catarina e col., O Respeito corno Princípio Moral Básico e Principal Princípio em Enfer-
magem, p. 21.
Ibid., pp. 21-23. t Cf. ibid., Fp. 10.
Cf. E. Dupre-Cardoen, VIteita a la interioridud, p. 10. Ibid., p.10.
° CL ibid., p. 10. Cf. 1-1. Lazure, Viver a Relação de Ajuda, pp. 63-66.
' Ibid., p. 10.
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Estima de si A autonomia do doente tem relação mais directa naquilo que concerne à
sua saúde, e é um preceito ético por excelência. Daí poder aceitar ou recusar
É o esforço que a pessoa faz para encontrar o caminho, o seu próprio um tratamento. Exerce a sua liberdade. No entanto, a liberdade e o livre -
caminho_ É a prática de actos bons que gera a estima de si e permite o seu arbítrio são exactamente a mesma coisa. A liberdade autêntica é a que se rege
desenvolvimento no sujeito. É pela estima de si que o sujeito adquire solici- por imperativos morais e critérios humanistas, de sabedoria e bom senso'.
tude, uma forma de se desprender de si e projectar-se no outro'. Não se pode
confundir solicitude com falsa caridade ou negação (apagamento) de si pró-
prio. A estima de si, e a solicitude, porque movimentam o sujeito para o outro, Consentimento informado
revelam-se como aspectos essenciais na prática de actos de enfermagem.
A solicitude, essa disponibilidade humana que descentra o sujeito de si na
Até há bem pouco tempo não havia tradição cm solicitar o consentimento
direcção do outro possibilita ainda o encontro com o outro, rosto a rosto'. do doente para a realização de qualquer acto relacionado com a sua saúde.
O homem é a medida dos seus actos. Só adquire estima de si quem pratica Não se tinha era conta a vontade do doente, a sua autonomia. O médico deter-
actos bons, quem é verdadeiramente livre, e decide em conformidade com a minava o que era bom para o doente, com a frase célebre para o seu próprio
clarividência da sabedoria. bem. Tratava-se de urna atitude paternalista.
O princípio do consentimento informado surgiu pela primeira vez no Tri-
bunal de Nuremberga (19-08-47). A decisão do tribunal continha os princí-
Verdade pios que mais tarde se denominaram por Código de Nuremberga. A essência
do código era a de que ninguém podia ser objecto de investigação sem dar o
De acordo com o pensamento de Santo Agostinho e S. Tomás de Aquino, seu consentimento.
sempre se defendeu a obrigação de dizer a verdade c não mentir'. O consentimento informado tem elementos essenciais como: a capacidade
Kant também rejeitou a mentira, por ser imoral em qualquer circunstância de o doente decidir, a liberdade na decisão e informação adequada.
e qualquer que fosse o motivo. Se fosse correcto mentir nalgumas ocasiões, Nesta perspectiva, a Associação Americana de Enfermeiros (ANA)3 refere
isso abalaria a confiança moral e a credibilidade humana (. que o doente tem o direito de escolher alternativas para o seu tratamento. Só
Contudo, nem sempre é fácil dizer a verdade. Do ponto de vista médico, assim se respeita a sua autonomia.
até há hem pouco tempo a verdade era vedada ao doente. Na actualidade, em O consentimento não deve ser uma imposição para o doente nem uma
geral, o doente é informados. decisão precipitada. Por vezes o doente é confrontado com a imperatividade
Numa visão antropológica, é lícito dizer a verdade, pois permite ao homem da frase: «Assine aqui». Neste caso, sem mais explicações, não se trata de
enfrentar em plena consciência os acontecimentos da sua vida. Só assim o consentimento informado, pois a sua finalidade é facilitar ao doente toda a
homem exerce a sua liberdade e domina a própria existência. Além disso, a informação necessária que lhe permita formar uma opinião clarificada, optan-
dúvida causa angústia e impossibilita o doente de assumir a própria vontade. do por um exame diagnóstico ou por um tratamento adequado ao seu estado
A relação intersubjectiva é artificiai e falseada, não há diálogo congruente de saúde, o que não se verifica neste caso.
perante a situação se ela não for autêntica 6. Este consentimento só é possível se o doente possuir as faculdades mentais
De acordo com aspectos sociais, familiares e culturais, é importante har- necessárias para compreender a informação, e esta terá de ser facilitada de
monizar o respeito pela autonomia do doente e o seu direito à informação. forma adequada às competências do doente. Por outro lado, o doente deve
compreender claramente o processo da doença, o tratamento recomendado e
alternativo, bem como o seu efeito e o prognóstico.
' Cf. P. Rice2ur, O Si-Mesmo como Um Outro. Em síntese, a obtenção do consentimento informado envolve: informação
I Refira-se, a propósito, a parábola do bom samaritano: a solicitude e a proximidade do outro adequada, capacidade de decisão do doente, compreensão da informação,
são explícitas. E porque tinha estima de si, o bom samaritano fez o que a sua consciência lhe voluntariedade, consentimento explicito do doente.
ordenava ILucas, 10, 25-37).
Cf. F. Elizari, Questões de Bioética — Vida em Qualidade, pp. 231-232.
Cf. ibid., p. 232. Cf, ibid., p. 254.
Nos EUA, a perspectiva é muito aberta, enquanto na Europa há mais descrição. P. Kokkonen, Consentimento informado, p. 147.
Cf. F. Elizari, Questões de Bioérica -- Vida em Qualidade, p. 234. American Nurses Association.
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Na posse destes elementos, o doente decide em liberdade. Não pode haver As excepções são:
coerção física, psíquica ou moral. Por outro lado, a decisão do doente também
pode coli-dir com a consciência do profissional de saúde, levando a conflitos.  Testemunho em tribunal.
 Doença de declaração obrigatória.
O pedido do doente, por exemplo, não pode ultrapassar a disponibilidade de
recursos nem sobrepor-se aos limites da solidariedade'.  Abuso de crianças, cônjuge ou velhos.
O enfermeiro deve implementar uma atitude comunicativa facilitadora,  Situações ocorridas por arma de fogo ou suspeita de feridas como resul-
optando pelo melhor enquadramento ambiental, privacidade e desejos do doente. tado de um crime.

Estes princípios são geralmente conotados com o exercício da medicina.


Confidencialidade (segredo profissional) Esta é uma linha de pensamento tradicionalista que esquece o estar aqui da
enfermagem. É verdade que, em termos institucionais, a medicina adquiriu
uma prática e um conhecimento decisivo nesta matéria. Goza, por isso, de
A confidencialidade assume-se como um princípio essencial da prática de
visibilidade e credibilidade sociais. Ninguém pode negar este facto.
actos de enfermagem. Trata-se do denominado segredo confiado porque im-
Em termos éticos, os princípios enunciados não são de ninguém. Ou melhor,
, plica que não pode ser revelada a informação recebida. Este tipo de segredo
são de todos. Nenhuma profissão ou grupo social pode encapsular para si a
advém de 3 situações: amizade, aconselhamento e exercício profissional.
práxis humana, a experiência da vida e do agir, a vivência intersubjectiva e a
O enfermeiro assume o compromisso implícito ou não de revelar informa- própria decisão. Logo, falar em práxis humana é falar da minha autonomia,
ções obtidas no seu exercício. Os motivos são diversos, entre os quais se salien- da autonomia do outro, da vontade do outro, da vontade do doente. E não é
tam a intimidade da pessoa, privacidade, autonomia, veracidade, vontade e estranho que o enfermeiro, antes de realizar qualquer acto de enfermagem,
liberdade. solicite o consentimento do doente e lhe dê explicações sobre as razões e a
O doente, na globalidade, revela-se e expõe as diferentes facetas da sua natureza do procedimento.
vida, dos seus desejos, do seu corpo. A perspectiva ética, antes mesmo de qual-
Assim, pelas possibilidades do uso de conhecimentos científicos para o bem
quer norma profissional ou sociocultural, impõe à consciência do enfermeiro
ou para o mal, o homem, desde a Antiguidade, criou leis ou códigos, sobre-
a observância absoluta e incondicional deste princípio. É aqui que principia,
tudo ligados ao exercício das artes médicas ou referentes à saúde em geral.
que o enfermeiro assume a função de advogado do doente. Isso não invalida
A preocupação mais evidente tem a ver com o princípio de não prejudicar
que o segredo não seja revelado em situações em que o doente dá o seu consen-
(primai»: non nocere) e prevenir a instrumentalização da pessoa humana.
timento ou em que há risco ou prejuízo para terceiros. A esfera da vida pri-
É nesta perspectiva que surgem as declarações de princípios éticos universais.
vada é preservada, mas não se pode omitir algo que tem um interesse público
considerável'. O exemplo mais remoto de que há registo refere-se ao código de Flamtirábil.
Trata-se de um código babilónico que remonta ao século xvii a. C. Nos seus
Em certas situações a observância do segredo protege a intimidade da pes-
282 artigos, para além de regular diferentes actividades da vida social (direito
soa, evita a estigmatização social, a discriminação, a marginalização e, por
familiar, administração de terras, comércio) contempla também o exercício da
outro lado, incute no doente maior tranquilidade, melhora as relações doente/
medicina, prevendo pesadas penas para o médico que provoque dano ou que
/enfermeiro.
aja com negligência'.
Em síntese pode dizer-se que as bases do principio da confidencialidade são:
Na Grécia Clássica (século v a. C.), Hipôcrates, o pai da Medicina, cria o
 Respeito incondicional pela privacidade e autonomia individuais. famoso juramento que tem o seu nome'. Marcado por profundo humanismo
 Confiança especial entre o enfermeiro e o doente. assumiu-se, ao longo dos séculos, como referencial axiológico dos médicos'.
 Elemento do juramento ele enfermagem (e hipocrático). Mais tarde surge o Direito Romano, o Código de Maimónides e, no ano de
 Necessário para o bem da sociedade.
 Necessário para evitar dano no doente. Fiamurábi foi um rei da Babilónia que levou a cabo a elaboração de um código legal muito
avançado para a sua época. Foi encontrada uma cópia em 1902.
Lexkoteca, vol. X, pp. 7-8.
Cf. F. Elizari, Questões de Bioética — Vida em Qualidade, p. 247, 3
Ainda hoje, o juramento de I-lipócrares, embora modificado, é feito pelos médicos no terrnirius
Além de todas as reflexões de ordem ética, ver também legislação própria que já existe sobre esta do curso de Medicina.
quest'ão.
J. Pinto, Apêndice: Alguns Textos e Documemos de Particular Relevo Bioética, pp. 393-394.
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1825, em França, a propósito da assistência desastrosa a um parto, a jurispru- A enfermagem entende o utente como pessoa única e irrepetível. Todos os
dência moderna contempla os aspectos médico-legais. modelos teóricos sublinham esta visão holística e integradora do homem. Não
No século xix, Florence Nightingale cria o juramento que tem o seu nome se trata de agir sobre uma parte, mas percepcionar o todo para, ern certas
e que os enfermeiros fazem quando terminam o curso de enfermagem'. circunstâncias, cuidar mais de uma necessidade para promover o equilíbrio
A preocupação com esta matéria levou a Associação Médica Mundial a geral do corpo.
debater e aceitar diversas declarações de índole ética. A acção de enfermagem não se orienta para a doença enquanto entidade
O Código de Nuremberga' surge em 1946, seguido de várias revisões: clínica, mas para a pessoa. É esta pessoa singular, saudável ou doente, que se
Código de Helsínquia (1964), Código de Tóquio (1975), Código de Veneza impõe à consciência do enfermeiro como inadiável, como ser em projecto,
(1983) e Código de Hong Kong (1989).3. logo em dimensão de futuro. E é preciso cuidar do caminho do futuro, mesmo
Dado o grande desenvolvimento biotecnológico, a formação e o interesse quando aparentemente não há obstáculos visíveis.
das pessoas por questões éticas e bioéticas, surgiram as comissões éticas Todos sabemos que a moral contém algum constrangimento e pode levar a
multidisciplinares. Uma vez que são constituídas por pessoas de diferentes áreas impasses práticos. Nesta perspectiva, o cuidar em enfermagem obriga-se a urna
do saber, trouxeram credibilidade junto da opinião pública. Os seus pareceres reflexão ética. O óbvio, o demasiado normativo, é sempre passível de questão'.
ou recomendações são observados, quer pelas instituições de saúde, investiga- Assim, não surpreende que, desde o século xix, a enfermagem procurasse
ção e pelos próprios governos. alguma uniformização e algumas regras para orientação da sua prática. Tem
Estas comissões começaram a surgir na década de 60, na Europa, Canadá sido um percurso nada fácil, por alguma obstaculação dos próprios Governos
e EUA. Portugal não é indiferente a estes problemas e a Assembleia da Repú- e também por alguns sectores profissionais, Esta norma de conduta deno-
blica cria, em 1990, o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida mina-se por Código Deontológicos. Trata-se de um conjunto de princípios e
(CNECV)4. deveres que orientam aacção do enfermeiro, sob uma perspectiva ética e legal.
No contexto do Serviço Nacional de Saúde, em 1995, o Governo regula- Não deixa de possuir uma orientação normativa, mas assume-se como perti-
menta as Comissões de Ética para a Saúde (CES), a serem institucionalizadas nente e importante por ser um factor abrangente da profissão de enfermagem
nos estabelecimentos de saúde públicos e privados. Um objectivo primordial e da sua visibilidade social. Isto é, também os utentes podem conhecer mais ern
destas comissões é «[...j zelar pela observância de padrões de ética no exercício concreto a fundamentação dos actos de enfermagem. Por outras palavras,
das ciências médicas, por forma a proteger e garantir a dignidade e integridade o Código Deontológico contribui para manter junto do público o nível ele-
humana (..._1»5• Na medida em que as questões de ética se estendem a todos es vado da credibilidade e responsabilidade da enfermagem.
domínios do conhecimento, a composição destas comissões é multidisciplinar. É lícito pensar que o Código Deontológico é imprescindível para os enfer-
Importa salientar que os pareceres do CNECV e das CES não têm carácter meiros. Contudo, efectivamente, em Portugal, não existe qualquer código afe-
vinculativo. rido legalmente. A excepção, embora tímida, do Decreto-Lei ta° 161196', de
4 de Setembro (REPE) que, nos seus artigos 11.° e 12.6, contempla respectiva-
mente os direitos e os deveres do enfermeiro. O artigo 12..°, para além de
Compromisso juramento em pra-rica na Escola Superior de Enfermagem da Guarda (F.SEnfG):
«Eu enfermeiro: estarei sempre empenhado e disponível para ser um membro activo da profissão outros deveres contempla, no seu n.° 2, que é um dever dos enfermeiros «Res-
de enfermagem; não permitirei que considerações de ordem religiosa, nacional, racial, partidarismo peitar a decisão do utente de receber ou recusar a prestação de cuidados que
político ou categoria social se interponham na minha relação com o paciente; farei com que os lhe foi proposta, salvo disposição especial da lei; no n.° 3, Respeitar e possibi-
meus colegas se sintam meus irmãos, e assim os tratarei; empenhar -me-ei solenemente em
consagrar a minha vida ao serviço da humanidade; respeitarei todos os segredos que me forem litar ao utente a liberdade de opção em ser cuidado por outro enfermeiro, caso
confiados; manterei o máximo respeito pela vida humana, ainda mesmo sob ameaça não farei da tal opção seja viável e não ponha em risco a sua saúde e, no n.° 4, Esclarecer o
ciência uso contrário às leis da humanidade; a saúde e o bem-estar biopsicossocial e espiritual do
paciente será o meu objectivo principal, e não farei qualquer discriminação; guiarei os meus utente e os seus familiares, sempre que estes o solicitem, sobre os cuidados
passos, com consciência e maturidade, sabendo reconhecer as angústias do paciente; exercerei a que lhe prestam». Apesar de tudo não é por isso que não se praticam actos
minha profissão com inteira consciência, respeito e dignidade; manterei tudo isto sob promessa
sokne, com inteira liberdade e contando com o auxílio de Deus. de
Entretanto, em 1948, as Nações Unidas aprovam a Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Todas as decisões seguintes têm origem nesta declaração (cf. P. Kokkorien, Consentimento
Informado, p. 147). Cf. M. Heidegger, Sobre a Essência da Verdade, p. 15.
R. Solá, M. Arrigas, Enfermeria era los comités éticos de inuestigación clínica, p. 23. z Nalguns países, sobretudo anglo-saxónicos, utiliza-se mais o termo Código ético.
Lei n.° 14/90, pp. 2516-2517.
Esta situação modificou-se de forma significativa, como já referi, com a criação da Ordem
Decreto-Lei n.' 97195, pp. 2645-2647.
dos Enfermeiros. O Estatuto integra o Código Deontológico e é visível a sua elevada qualidade
(cf. Decreto-Lei ri.° 104198, de 21 de Abril, artigos 78.° a 92.°).
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....T1CA E FORMAÇÃO EM ENFERMAGEM

enfermagem com absoluta qualidade. A razão é simples: a enfermagem vale Cf. 1. Thompson, K. Meia, K. Boyd, Nursing Ethics, p. 56. de
enfermeiros, por toda a
por si'. parte, se inspirem nos diferentes princípios e elementos deste código.
Nesta matéria, o maior desenvolvimento acontece nos EUA, Canadá e nal- O Code for Nurses tem 11 pontos e diversos subpontos. Em síntese, con-
guns países europeus2. Em Espanha, por exemplo, desde 1973 que a Organiza- tém os seguintes princípios essenciais:
ção Colegial de Enfermagem' recomenda o Código Deontológico, «[...] como
guia para resolver os problemas éticos colocados pelo exercício da 1. O enfermeiro proporciona serviços com respeito pela dignidade huma-
profissão de enfermagem, como elemento contributivo para a [..] na e individualidade do utente sem qualquer restrição pela sua condi-
manutenção de um nível profissional e um status social digno [...) da profissão ção social ou estatuto económico, atributos sociais, ou de natureza da
de enfermagem »4 . sua saúde.
Entretanto a Resolução n.° 32/89, aprova o referido código, cujo cumpri- 2. O enfermeiro protege o direito do utente à privacidade mantendo em
mento é de ale.] carácter obrigatório para todos os profissionais de segredo as informações de natureza confidencial.
enfermagem do Estado [espanhol]. Contempla 3 grandes vertentes: o 3. O acto do enfermeiro protege o utente e o público quando os cuidados
enfermeiro e o ser humano, o enfermeiro e a sociedade, o enfermeiro e o de saúde e segurança são afectados pela incompetência, pela não obser-
exercício profissional'. vância ética, ou prática ilegal de qualquer pessoa.
Em Maio de 1997, no Canadá, os enfermeiros adoptam um novo Código -ep O enfermeiro assume a responsabilidade dos seus julgamentos e acções.
de Ética', que é a actualização do código de 1991. Segundo a Associação de O enfermeiro tem competências em enfermagem.
Enfermeiros do Canadá (CNA) 7 a revisão do código obrigou a uma consulta 6.1 O enfermeiro no seu exercício serve-se de um julgamento informado e
de enfermeiros, educadores e eticistas. A causa próxima da revisão teve em usa as competências e qualificações individuais como critério na pro-
conta a reestruturação em matéria de saúde, o constrangimento económico, o cura, aceitando responsabilidades e delegando actividades de enferma-
uso acelerado da tecnologia e a mudança na prestação de cuidados de enfer- gem a outros.
magem. Estas relações e as necessidades aumentadas da comunidade em maté- 7. O enfermeiro participa em actividades que contribuem para o desen-
ria de saúde contribuíram para uma complexidade ética mais evidente. O Códi- volvimento do corpo de conhecimentos da profissão.
go de Ética proporciona uma orientação para a tomada de decisões éticas na 8. O enfermeiro participa no esforço profissional para implementar e
prática diária e em qualquer situação. melhorar os padrões da enfermagem.
A CNA refere ainda que o Código de Ética auto-regula a profissão de en- 9. O enfermeiro participa no esforço profissional para estabelecer e man-
fermagem e assume-se como o mais importante documento profissional. Por ter condições de emprego conducentes a uma elevada qualidade nos
outro lado, «1_1 é importante para o público, pois revela para o exterior os cuidados de enfermagem.
valores centrais da orientação ética do exercício da enfermagem — o nosso 10. O enfermeiro participa no esforço profissional no sentido de proteger
o público de informação errada e falsificação, mantendo a integridade
compromisso moral para com a comunidade». Contudo, o Código de Ética
da enfermagem.
não é uma prescrição, mas permite uma orientação do comportamento e pen-
11. O enfermeiro colabora com outros profissionais de saúde e cidadãos
samento em matéria ética, de acordo com valores tais como: a saúde e bem- na promoção da comunidade e no esforço nacional para satisfazer as
estar, a livre escolha, a dignidade, a confidencialidade, a justiça e a responsa- necessidades de saúde da população.
bilidade.
A Associação Americana de Enfermeiros tem, desde 1950, o Code for Nurses Estes são os princípios gerais que, por sua vez, contêm aspectos específi-
que tem sido objecto dc revisões sucessivasg. É talvez um dos mais conseguidos cos como sejam: a autonomia do doente, o consentimento informado, a não
códigos para enfermeiros. Não é dc surpreender, por isso, que outras associações discriminação em matéria social, económica, étnica, religiosa, idade, sexo, raça
ou cor. Contempla a observância da dignidade humana e os direitos do
Cuidar, como fulcro da enfermagem, é extensivo também a toda a pessoa humana. A mãe cuida doente, a confidencialidade, aspectos legais, o enfermeiro como advogado do
de seu bebé, cada um cuida-se a si próprio e é sensibilizado para cuidar dos outros lacro individual
e de reciprocidade). É comum dizer-se Não te cuides, ou Cuida te bem.
-
doente, aspectos inerentes à investigação em enfermagem e protecção dos
Cf. 1. Thompson, K. Meia, K. Boyd, Nursing Ethics, pp. 54-58. direitos humanos.
Organización Colegial de Enfermería. Em Portugal, antes da publicação do REPE, foi elaborado um projecto de có-
Código deontológico de la enferrneria espaiiola, Jntroducdón, p. 7.
Cf. ibid., pp. 6, 12. digo deontológico por representantes das Associações Profissionais e
Cede of Ethics for Registered Nurses. Sindicatos,
Canadian Nurses Association.
130 ÉTICA E FORMAÇÃO EM ENFERMAGEM A DIMENSA0 ÉTICA DA ENFt RMAGEM 131

tendo sido apresentado em Lisboa no Encontro Nacional de Enfermagem, simultânea de normas de conduta próprias da actividade de grupos
em Novembro de 1990'. Corno se verifica passou muito tempo até que o profissionais específicas'.
documento, ou pelo menos o seu espírito e filosofia, tivesse base legal. Pela exposição breve sobre diferentes códigos de ética (ou deontológicos),
O projecto considera a dignidade humana como o valor fundamental a verifica-se que, apesar das diferenças sociais e culturais, todos observam prin-
promover e donde derivam outros valores inerentes à pessoa humana. Explicita cípios invioláveis e universais no que respeita à pessoa humana. Talvez não se
um conceito abrangente de pessoa e sublinha que os princípios orientadores cometa um erro substancial se se inferir daqui que, na realidade, os valores
da enfermagem são o respeito pelos direitos humanos e a qualidade do exercí- éticos valem por si e há algo que trespassa todas as sociedades e todas as
cio profissional'. culturas.
No capítulo I trata da relação com o utente (direitos humanos) e contempla É importante salientar que o ponto de vista deontológico não se mostra
10 artigos: «Direito à vida», Direito à individualidade», «Direito à igual- como a solução de todos os problemas éticos. De algum modo a abordagem
dade/Direito à diferença», «Direito à qualidade de vida», «Direito à assistên- deontológica separa o agente do acto, como se este fosse independente do
cia na saúde e na doença», «Direito à segurança da sua pessoa e bens», «Direito agente que o pratica'.
à liberdade informada», «Direito ao segredo profissional», «Direito à privaci-
Na perspectiva de Kant, cada sujeito deve agir da mesma forma como agi-
dade», «Direito de morrer com dignidade».
riam todos os outros em situações similares. Deste modo, a acção universal,
No capítulo II trata da profissão em geral. São 5 artigos: «Excelência do porque escolhida por todos, afirma-se como correcta.
exercício», «Dignidade profissional», «Solidariedade profissional», «Arti -
A moral do dever põe em evidência a responsabilidade pelo acto praticado
culação com outros profissionais» e «Objecção de consciência».
e a dignidade do ser humano. Mas não diz como cada um sabe o que os outros
Este documento revelou-se pertinente e necessário para a clarificação de
fariam numa dada situação. O conflito ético continua latente.
alguns problemas que se foram colocando aos enfermeiros, servindo de orien-
tação geral para a tomada de decisões de conteúdo ético em relação ao utente, Sob este prisma, a acção é algo desenraizada da vontade e autonomia do
família, outros grupos profissionais e instituições. sujeito. Isto é, o enfermeiro, ao agir simplesmente por dever, está a esvaziar o
relacionamento intersubjectivo com o outro. Parece impossível a afectividade
A clarificação jurídico-legal, como sabemos, nem sempre é tão célere como
de qualquer acto, porque a resposta está condicionada à partida. Todos são
os novos contextos e os problemas do quotidiano profissional. Esta situação
iguais, todos se sentem carenciados, devo fazer-lhes o bem.
de vazio contribuiu para alguma ambivalência e indefinição no desempenho
da função social dos enfermeiros: por um lado são absolutamente imprescin- Ao longo desta investigação, foi minha intenção promover um equilíbrio
díveis, por outro lado os instrumentos jurídico-legais necessários para a pro- entre a perspectiva ética e a moral do dever. Naturalmente que a questão
fissão tardavam. Contudo, é importante salientar que legislação de qualidade não é fácil. O formalismo kantiano pode ser extremo, apesar de reconhecer o
tem sido produzida sobre a Carreira de Enfermagem e o seu enquadramento sujeito como uma pessoa autónoma. Mas não é menos verdade que é necessário
jurídico-legal, embora haja aspectos carentes de revisão. que o sujeito disponha, por assim dizer, de alguns princípios operacionalizados
em regras de conduta. Em muitas situações a decisão torna-se mais fácil. No
Para além das determinações da Carreira de Enfermagem e do REPE 3 ,
entanto, o saber corno fazer (to know how) não responde à pergunta ética que se
o enfermeiro, como funcionário público, rege-se pelo Estatuto Disciplinar dos
situa no fim último e não nos meios.
Funcionários e Agentes da Administração Central, Regional e Local (Decreto-
-Lei n.° 24184) e pela Carta Deontológica do Serviço Público (Resolução Por outro lado, a decisão na enfermagem, embora observe algumas regras
n.° 18/93, pp. 1272-1273). Esta carta contempla os valores fundamentais, ou normas, é sempre uma decisão assumida pelo enfermeiro. O código
deveres para com os cidadãos, deveres para com a Administração e deveres deontológico é exactamente essa orientação facilitadora. Se o código se funda-
para com os órgãos de soberania. menta em princípios válidos e universais, não será em absoluto prescritivo,
Trata-se de considerações gerais, comuns a todos os funcionários e agen- permitindo a reflexão individual, a liberdade e o exercício da vontade própria
tes, que revelam sobretudo um conjunto relativamente rígido de normas e do enfermeiro. Um código determinista e demasiado prescritivo retira a dimen-
regras por vezes algo desfasadas do exercício da enfermagem, assim como de são plenamente humana do acto de cuidar. Como já referi, os outr os, em

M. Carvalho, A Enfermagem e o Humanismo, p. 33. CL Resolução c.° 18/93, p. 1273.


'Cf. Servir, pp. I-N. M. Vieira, Para Uma Ética de Enfermagem, p. 323.
outros profissionais.
E, desde Abril de 1998, peto Estatuto da Ordem dos Enfermeiros.
No entanto, prevêem a subsidariedade, pois não impedem a aplicação
132 ÉTICA E FORMAÇÃO EM ENFERMAGEM

PLANO DE ESTUDOS
11
sentido lato, mesmo pela pressão social, necessitam percepcionar alguma uni-
formização como garantia de segurança, equidade e justiça dos actos de enfer-
magem.
Assim, como refere Vieira, a ética da enfermagem observa a dimensão rela- E A FORMAÇÃO É I CA
cional de toda a intervenção cuidativa; a decisão do enfermeiro é contextuai e
há preocupação ao desenvolvimento pessoal do outro'.
No entanto, pelo comentário já feito a propósito do espírito da enferma-
gem e da sua evolução, verifica-se que a enfermagem é marcada pelas vivên-
cias sociais e culturais dos indivíduos, famílias e comunidades. Logo, torna-se
necessário observar os padrões organizacionais de uma determinada cultura,
no âmbito de uma perspectiva ética. O cuidar e o ensino de enfermagem não
podem omitir estas perspectivas.
Em matéria ética do cuidar, estas influências têm uma acção importante na
regulação de algumas práticas e determinam o que se pode considerar ou não
um problema ético. Não deixa de ser importante e útil a componente relacio-
nal que os enfermeiros estabelecem entre o hospital e a comunidade ou O bom não é nascer feito; é fazer-se.
vice-versa. O estar junto das pessoas, das suas crenças, dos seus valores, das Miguel Torga
suas expectativas, em suma, da sua existência e temporalidade, traz vantagens
para examinar e equacionar decisões éticas. Os problemas podem ser vistos
sob o prisma da comunidade e não apenas sob a perspectiva tradicional (ou
A Portaria n.° 195/90, de 17 de Março, regulamenta o Curso Superior de
formal) da instituição. Trata-se, em primeiro lugar, de respeitar os direitos
Enfermagem, de acordo com o preconizado no Decreto-Lei n.° 480/88, de
humanos fundamentais.
23 de Dezembro. O conteúdo desta portaria considerou as propostas das
Em síntese, a dimensão ética da enfermagem torna-se clara ie evidente, na escolas superiores de enfermagem'.
medida em que os actos de enfermagem decorrem numa perspectiva intersub- No seu artigo 3.° fixa a duração do curso em três anos, 36 semanas por ano
lectiva e no âmago da individualidade e singularidade da pessoa humana. Tra- lectivo e a carga horária de 3300 a 3600 horas.
ta-se, pois, do entendimento das diferenças culturais, étnicas e ideológicas da No seu artigo 4.° faz referência à componente teórica e prática (ensino
pessoa que fazem aumentar a possibilidade de diálogo, sinceridade e solida- clínico).
riedade. No seu artigo S.° refere-se ao ensino teórico e às matérias mínimas do
curso. No âmbito deste estudo, importa referir que, para além das disciplinas
habituais de índole biomédica e social, explicita a «Orientação e ética da pro-
fissão», «Legislação social e sanitária» e «Aspectos jurídicos da profissão».
Isto é, a portaria apresenta directrizes implícitas de matéria ética, jurídica e
bioética para inserção no plano de esnidos. Por sua vez, de acordo com o
artigo 7.°, cabe às escolas superiores de enfermagem elaborar e submeter o
plano de estudos a aprovação ao Ministério da Educação e da Saúde.
Decorrente da legislação atrás referida, as escolas superiores de enferma-
gem elaboram os seus planos de estudos do curso superior de enfermagem.

Como já referi, a publicação do Decreto-Lei n.° 353/99, de 3 de Setembro, ao criar o curso de


Licenciatura em enfermagem, com a duração de quatro anos lectivos, vem alterar a situação, o
mais não seja, a nível estrutural. A análise em curso, e toda a investigação, parte da legislação em
' pp. 326-327. vigor no momento (cf. nota 3, capítulo 9, p. 114).

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