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De como fazex Hosofia

sem set grego,


estai morto ou set geŃ o .
GONÇALO RMIJOS PALÁCIOS

De como fazer filosofia


UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁ S
sem sei eieeo.
U
J\4ilce Severino Fereiza
• Rzilara
estar morto ou sez gênio
FG.

Lázaro Eurípedes Xavier


Coleção Filosofia, 1
Sétie Ensaios

Adão José Peixoto


Editora
• Diretor-Geral t Eú/«r

Alejandro Luquetti Ostermayer, Á lvaro de Almeida


Caparica, Eduardo Meírinhos, Marcus Fraga Vieira,
Edkora
Rogério Santana dos Santos, Nílzio Antonio da Silva,
Orlinda de Fatima Cartijo Melo
• C‹uvlhe Editiuial GOIÂNIA
2004
O 2004 by Gonçalo Armijos Palacios

Direitos reservados para esta edição:


Editora da UFG
Campus Sarnambaia, Cai.da Postal 131
Fone: (52) 521-1t07 - Fax: (62) 521-\814
E-mail: editora@cegraf.ufg.br — Home page: http://www.cegraf.ufg.br
74001-970 - Goiâ nia - Goiá s - Brasd

Proibida a reproduçao total Oh parcial


(sançõ es previstas na Lei 9.610, de 19 de fevereiro de 1998)

Projeto gtú fico e capa: Imidio Alves Vilela


Editomçã o eletrô nica: Diva Ribeiro Guimarã es
Revisã o: Sueli Dunck

Coleçã o Quíron, publicaçõ es em 1997, 1998, 2000, 2002.


Coleçã o Filosofia - Sé rie Ensaios

Catalogação na fonte*

P 153d A Jos Palacios, Gonçalo


De como fazer filosofia sem ser grego, estar morto ou ser
gênio / Gonçalo Armijos Pa)icios. - Goiâ nia: Editora da UFG,
2004,
120p. - (Coleção Fdosofia, t - Série Ensaios)

ISBN: 85-7274-235-2

CDU:1

Aos meus colegas, pelo ambiente


estimulante para o exercício livre das
idéias.
Sumà xio Prefácio à segunda edição

M primeira ediçao desta pequena obra foi, na verdade, a


edição de uma obra inacabada. À medida que as reimpressõ es
se sucediam, novas reflexõ es acrescentavam-se às que nela
O começo do fdosofar ............. ------ -- -......................»... 30 foram publicadas. Foi pelo convite do diretor da
A escrita filosó fica como có digo cifrado ......-.......
Editora, doutor Adão Peixoto, que resolvi pô r todas elas
juntas e
Épocas e indivíduos ............ --- --- ........... .50 ofereci-las ao pú blico que tà o bem recebera a põ meira ediçà o.
O dito pelo não Naquela, eu procurei limitar minhas reflexõ es ao espaço
Os exemplos de Cone Lima e Einildo Stein.......................62 destinado a coleçã o erri que a pequena obra seria publicada,
w signiÕcacio cio i }y .,..,........................w ‹i CulcçAu Quírun.
Os gêuios ... ............... .70 Uma vez que se propõ e uma nova coleção, destinada
Signi6cados exclusivamente à filosofia, reuni omatefial fruto de reflexõ es
O início do filosofar............................................................................... 75 sobre o mesmo assunto e as apresento aqui para que apareçam
Vocês, bló ofos! ,.............................................. 80 de uma forma mais completa e acabada — apesar de que
A filosofia como dissidência ..............-- -----...............................86 nunca, talvez, um assunto possa ser realmente acabado.
A fdosofia em Xenó fanes: uma aflxlã COfltEil ã tfà Õ ÍÇã O....90 A presente edição é, aproximadamente, o dobro da
primeira e, pelo volume do material que fora acrescentado, é
FJ • e u de , , , , ,
...... .. , , ...• • • • • • • • • •t • • • • •

100 +aw o mÍw€o Ã4rm€mm€m rv erin.tin nmszmemÜ +‹ o mmo mm woo


Filosofia, por onde começar? .... ......,..............................105 trílhas, tratei sobre outros assuntos e aprofundei alguns ja
FllOSOfia II História da Filosofia? .........--- ........,...........110 tratados. Por tudo isso, penso que o leitor vai encontrar um
Histófia da arte e história da filosofia.................................113 texto entiquecido, aprofundado e melhor.
O valor da arte e da fdosofia................-. --.......................1t6 Agradeço aos leitores a recepção caõ nhosa dap meira
De como fazer filosofia sem ser grego, estar morto ou ser gê nio • 7
edição assim como o interesse do diretor da Editora por Piefá cio à primeira ediçã o
publicar meu trabalho. O apoio do pú blico e dos editores é
o estímulo que todo autot ambicioflâ.
Nã o posso deixar de agradecer, também, aos
funcionários da grafica e da editora da Universidade
Federal
õe Goias que com tanto Caririli‹r c *OÚ3S*OUi *iizw • •••
Os considerações aqui contidas são fruto de reflexões
tratado, e continuam a tratar, os textos que, nos quinze anos
feitas em, aproximadamente, dez anos de convivência nos
de convivência na instituição, apresentei parapublicação. meios acadêmicos brasileiros. O pretexto éa leitura de Rr rs
irá aleitura mJózo@, do colegaJoelPimentel de Ulhôa,' assim
Goiânia, outubro de 2004
como o convite a colaborar nesta coleção feito pela diretora-
geral do Cegiaf, professora Ione Maõa Vdadares de Oliveira
Valadares, e pela chefe da Divisão de Editoraçao, MaõaJosé
ür n•es s. o•aem. awracieer:. ê -.:tvion ris•. irist••. rei* firio•r. cel
ensaio há muito aguardavam sua publicação.
Meu texto, portanto, não deve ser lido como uma
“crítica a”, e sim como um conjunto de consideraçõ es “a
partir” ou “a propó sito” do que li, escutei e conversei, ao
longo desses anos, com professores de fdosofia das mais
variadas regiõ es do país. Meus pronunciamentos sobre os
especialistas em filosofia, quero destacar, não fazem alusão a
eventuais teses manti&s por meus coleeas do Departamento
de Filosofia, aos que, pelo contrário, fico agradecido pelo
estímulo à divulgação das minhas. O especialista que tenho

1, ULHÓ A, Joel Pimentel de. Refíexôes sobre a leitura em filosofia.


Goiâ nia: Editora da UFG, 1997. (Coleçã o Quíron, 1).

8 • GonçüOAmQosPdadO
. . -
em mente é o erudito europeu que disseminou urna praga '’ A Cai ça aos gz egos
-
o
no Brasil, a de confundir comentar com filosofar, que poderia
muito bem ser chamada de “ peste do comentados”.
O leitor pode flcar sossegado, pode ler estas páginas Quando o academicisrno bajulador se entrona no
ambiente filosófico, a filosofia nir o pode,
comodamente sentado, nào precisara ir a um diCiOnáEiO dTã
simplesmente, ser feita, deve ser perpetiada.
procurar o significado de palavras esquisitas, neologismos
desnecessários, nem consultar uma enciclopédia ou um gordo
volume de histó ria da filosofia para entender o que aqui está Os gregos nos legararn a fdosofia e nos ensinaram a
escrito. Nà o vou aborrecê-lo com pedantismos, citaçõ es fdosofar, fomos nó s que não aprendemos — ou assim parece.
interminaveis em português ou em línguas estrangeiras — Não fdosofamos como eles o faziam porque, lamentar
certamente nada de grego ou latim.
velmente, queremos, sempre, fdosofar a partir deles ou a
Interessa-me que o leitor entenda o que digo, nã o que
partir de outros. Pararmos de um respeito mal entendido, ou
necessariamente concorde comigo — pois, discoidando,
mal concebido, da grandiosidade daqueles pensadores. Eles
poderá criticar-me e, se o faz publicamente ou eu chego a
no sao grandes porsereminatingíveis.rriaspor, simplesmente.
me lnteirar da cridca, ganharei corri isso.
terem sido eles mesmos. A enormidade deles se deve, em
Todavia, vou dizer o que penso; não o que a academia
muito, ao nosso pró prio apoucamento.
espera que diga.
O carater fruó fero do pensamento dos antigos filó sofos
decone, em grande parte, do seu antitradicionalisrrio teó fico.
Resulta de eles terem rompido com uma dadição histó rica
muito forte. O que os levou, inclusive, a serem perseguidos.
Lamentavelmente, eles se tornaram, para nó s, uma tradiçã o a
ser reverenciada. E nó s os assumimos como uma tradição
insupeiável. Obstinamo-nos em não filosofar a pntir de nó s,
mas a partir deles. E chegamos, inclusive, a afirmar que não
podemos filosofar a não ser debatendo os problemas que
eles debatiam.

De como fazer filosofia sem ser grego, estar morto ou ser genio • 11
10 • Gonçalo Arrnijos Palacios
Por isso, a falta de uma fílOSofia clara, transparente, acharmos que nao podemos fazê-lo por conta pró priã
objetiva — pú blica, numa palaVra —, a atribuímos às causas certamente nã o o faremos, falando grego, latim ou sans crito.
mais diversas. Sem dívida, a filosofia tornou-se, desde a Filosofamos na medida em que, tetido uma certa atitude' ,
época medieval, um assunto pfivado, reservado a centros pensamos como rrieros seres humanos, não por falarmos
inacessíVeiS e a pessoas afastadas do povo, verdadeiros esta ou aquela língua.
santOS. A filosofia Oua1 seria a atitude dos gregos oque lhes perr›n q
con••erteu se em. assunto ^** **, hot*. ° fi*ee*' e • filosofar? Confiar em si mesmos e valorizar-se a si mesm 5
afastado dos assuntos que interessam a fnaiO fiã, ÍflhtÍfl IVe l valorizando seus problemas e preocupaçõ es. Eles mesrnO S
pelocomumdos ITIOf taÍS. eram sua principal preocupaçao.
Desse modo, uma daquelas causas que nos impedem Tirihammitologia,e nà o histó ria. Isto parecerá , ao1eitu
de filosofar seria a superioridade da língua grega. Como se a uma afirmação esquisita. Quero dizer com isso qu ê OS
fosse por causa da língua que podemos ou não filOSofar. filó sofos gregos não tinham uma histó õ a que deviam zespei
Dado estranhíssimo. Heideggeraíirma tal supetioó dade. Mas e a que deviam necessariamente se submeter. Eles fl aO
será que uma língua é inferior ou superior a outra? Se em formaram parte de uma histó ria mundial. Hoj e Ij ó
uma finja conseguimos dizer o que queremos comunicar, formamos parte de histó rias e processos. Fomos subjugad 3
nã o é só de que éadequada? Que outro ctiténo qodeÔ amos por outras culturas. Osgregos nào. Hles nào eramumapequ
u s o? Dizer que a língua grega Á superior as nO5SílS líflg tãs
parte do mundo. Eram o mundo. Estavam no top C do
porque nas nossas não conseguimos dizer as coisas que os mundo. Ela assim que se pensavam, assim se concebi .
gre gos diziam, ou como os gregos as dizÍam, é pô r o carro Não tinham, num sentido, um interesse nostálgico pe }O
na frente dos bois. Se fosse a língua que determinasse a passado ou por outros povos. De qualquer modo, não
possibilidad e ou impossibilid ade de refletiimos interesse pelo queoutros povos nào helênicos pensSavam U S
filosoficamente, por que então os gregos contemporâneos
não filosofam? Sera porque o grego classico é superior, deles. Eles não se interessavam por fazer um mapeame nto
também, ao grego moderno — enriquecido, este, por intelectual de tradiçoes ou culturas pre-helenicas. Em g
influências lingü ísticas, histó ricas e de todo tipo, em mais palavra, eles eram eles. (E por“eles” me refiro, nattlfàlmente,
de aos filó sofos.) Por que, entào, faziam tanta filosofia e tão bon?
dois mil anos de crescimento cultural? Porque se sentiam capazes de pensar por si só s. Os báfbaeos
Afirmo queé a atitude perante as coisas que nos permite eram os outros.
ou não filosofn Sem essa atitude jamais iremos filosofar. Se
De como fazer filosofia sem ser grego, estar morto ou ser gé nio • J3
i2 • Gonçalo Armijos Palacios
Nó s, como poderíamos fazer fdosofia, se partimos Em suma, é o complexo de inferioridade de muitos
do pressuposto contrário, de que os bárbatos somos nó s? Se professores de filosofia que nã o querem ou nGo podem
nao fazemos filosofia nao é, penso, por uma inferioridade filosofar, e se limitam a C e om , qtleimpede o livre exercício
metafisica da nossa língua em relação à dos gregos clássicos, do fílosofar. A Capes, o CNPq, o Ministé rio da Educação,
mas devido a nossa escassa auto-estima fdosó fica — auto- ou quem quer que detenha a competência, deveriam proibir,
estima inexistente em muitos casos. Se não nos pensamos na fílosofla, os Kabalhos cuja intenção seja explicar para o
capazes õe ôiosoíar, comi certeza mas w ia*iiiiiO*-
mundo os SignifiCados de “o conceito de xxx em ZZ Z”. As
Se é verdade que os gregos eram fiéis a sua realidade
prateleiras de todas as bibliotecas uriiversitárias estão lotadas
política concreta, também os modernos, por exemplo, o
com esses trabalhos. Eu queria ver se alguém podia receber
foram, e o sao os contemporâneos. Na filosofia ocorre da
um doutorado em biologiã COfri um trabalho cu’o tema fosse
mesma maneira. Há filó sofos modernos que pensam por si
“O conceito de dor em Galeno” ou “A noçà o de diarréia
só s, sem fazer alusõ es aos gregos — a não ser para critiCá-los
emHipó crates . Talvez isto tenha interesse histó fico. Um texto
—, assim cÔ mo ha filó sofos conterriporaneos que fazem
de histó ria da medicina pode ter semelhante tema. E até seita
filosofla sem se incomodam cora épocas pretéritas.
hfas tai..berri e *Ü D de c¡rie hs lugares onde ns
interessante. Mas não um trabalho de biologia, isto é, um
estudantes sà o forçados a admirar excessivamente a tradiçã o rraÔ alno em que se discutam assuntos presentes para os
e não se lhes permite ousar afastar-se dela. Esse lugar é a bió logos contemporâneos e, em decorrência disso, para os
academia. Vejamos só os ó tulos das dissertaçõ es de graduaçã o seres humanos. Devemos, portanto, redefiriir o espírito dos
e pó s graduaçã o: “O conceito de xxx em ', “A riOÇílO D epartamentos de Filosofia. Ou fazemos histó ria da filosofia,
de www em ZZZ”, “A categoria de uuu era VVV” etc. E o ou fdosofia. Devemos ter a coragem de mudar o nome do
mesmo ocorre com os artigos e publicaçõ es acadêmicos. departamento para o de “histó ria” se nos sentimos incapazes
de filosofar por conta pró pria e se achamos que nossos
Oessa forma, é o sentimento de inferioridade em relaçao a
RUMOS
também o sào — e sempre se pensa que eles são. Ou, entà o, se
filó sofos gregos: merlievais, modernos ou contemporâneos
que impede as novas geraçõ es de filosofar, nã o ainferioridade vamos nomear os d >»o iiistuÓ aoores das iéiéias, entao

da língua em que falam. (Língua que, pelo pró prio desenvol- epartamentos de D epartamentos de
vimento liistó fico, émais tica conceituaknente do que alguma C omentatiologia, se a ú nica que fazemos, ou nos achamos
vez imaginou-se que a ííngua grega classica poderia ser.) em condiçõ es de fazer, é comentar textos filosó ficos. E como
para isso alguns se acham bons, entào nasce a terrível
14 • Gonçalo Armijos Palá cios
figura
De como fazer filosofia ser er grego, estar morto ou ser genio • 15
do especialista, o carrasCO da iniciativa e do avanço
enterrados no esquecN en to, só poderemos fazê-lo com o
filosó ficos. O especialista é o dono das opiniõ es sobre as idéias
vocabulário adequad o a tais assuntos, para o qual
de outros. Aí é que o aluno se perde deflnitivament e, e
a fdosofla deveremos
ressuscitar liu âS frtortas e terminologia alheia. Neste ú ltimo
esmorece. eles especialistas? caso estamos condenados à escuridao, ao pedantísmo do
Essa é a traição aos gregos. Eram ]@ • GO:nçAO A )OS kBdOOS

L oiiientadores ?• arame acaõ ênú cos mente > » >‹ ”>> •


pergunta que deve ser respondid a. Ou eram simples mortais
que se sentiam em condições de pensar sera ter de se deslocar
dois mil anos no tempo. A questão é estn: os grandes filósofos,
gregos, modernos ou con tempora neos, foram e sào
especialistas? Foram e sao comentadores? São seus textos
cheios de referências, citaçõ es ou análises conceituais de
conceitos alheios, ou simples reflexões próprias? Esses

pelo contrário, para refletir?


Nós, portanto, não somos nem piores nem melhores
do que os gregos. Podemos, sim, ter uma atitude que
nos condene a fazer coisas ruins: o enésimo comentário de
um conceito pelo qual, por exemplo, só os especialistas
se interessam. Se temos saudades dos gregos, faÇainos
COfRO eles, vamos direto ao assunto: filosofemos! E se
queremos oque nossa língua iguale a transparência da língua
grega, é só falar de assuntos que nos interessam: os da
nossa pró pria culta, os assuntos atuais. (A não ser em casos
excepcionais, que há.) É muito simples, pois se fóssemos
falar de assuntos atuais, o faríamos com o vocabuláno em
voga, o que é de uso corrente; pelo contrário, ao falar de
assuntos há muito
especialista, e ao desdém do homem comum.
@*dlÇÂO COfisi ste em esconder- nos por
trás de vocabulários ernprestados para tratar de
assuntos que nao são problemas para flinguém nem
nos dizem respeito. Além de traidores da inteligência,
nos convertemos era intrometidos esclarecidos.
Esta verdade é dificÍl de ocultar, mas poucos
querem vê-lil' ãSSÍtT1 COIflO O crítico de arte nao é
StOõador da ciência cientista, o mero
artista, nem o
comentador de textos
min é niósofio — dura verdade para se engolir.
Responsabili zar a língua pelo uso que dela se
faz é, portanto, tirar a responsabilidade de quem
verdadeúa mente a tem, seu usuário. Se achamos que
nossa língua não presta, então caímos no absurdo de
ter de inventar urna que preste. O carater ridículo do
projeto mostra por si só o absurdo da tese da qual
se parte. Encaremos o problema e admitamos que
não fílosofamos não porque nossa língua não
preste,
Se a língua grega tinha algo de privilegiado
era o fato de ela ser usada de maneira autêntica, para
comunicar, e de não ser usada da maneira pedante
dos especialistas que mal conseguem se
comunicar, tal é a “profundidades de seus
discursos. É o uso da língua grega que deu aos
primeiros
De como fazer filosofia sem ser grego, estar morto ou ser gênio • 17
filó sofos uma perspectiva pfivilegiada em relaçao aqueles que
se arrogam o direito exclusivo de “interpreta-los”. Sào os
acadêmicos posteriores que, colocando-se numa situação de
inferioridade com relação aos fdó sofos clássicos ruas de
superioridade com relação a seus contemporâneos, que
torn«rri seus discursos escuros, inautênticos e de conteú do
fdosó fico nulo. Nào que sejam discursos necessariamente
falsos e, sim, necessariamente, não-filosó ficos. Nunca tive
problemas coma minha língua ou com o português ou com
o inglês para dizer o que penso. É sugestivo que, no fundo,
os especialistas tampouco, pois, caso contrário, como é que fdosofia como existe mú sica, arte e até ciência e tecnologla
eles conseguem “explicar” em português ou que nà o se pode brasileims.
“dizer” em português? Mais ainda, como é possível “ensinar” tradiçao cartesiana — diz o colegaJoel— nos tornou
em português o que não se pode “pensar” em português? cegos. Eu acrescentaàa: e, os especialistas. mudos.
Numa palavra, como éque eles conseguem ensinar filosoha
numa língua que, segundo alguns, não tem aquele acesso
privilegiado que o grego (ou o alemào) tem?
Por que nã o se faz filosofia como se fazia na
--- ,
antiga Grécia? Porque entre os filó sofos e seus problemas ,.› L#g#/, mente, coosciencia
ninguém se interpunha. Hoje, em muitos lugares, parece que é
proibido ter problemas fdosó ficos pró prios. Entre o
aprendiz de filó sofo ea filosofia se interpõ e um nú mero Com a invenção da mente, aquela entidade diferente da
interminavel de matéria, Descartes afastou o simples mortal do saber. Assim
leituras secunéiárias, Qte especialistas, de coiiieniauuxcs, ‹ic afastadas, mente e matéria tinham de ser reunidas ou ligadas
dissertaçõ es sobre o conceito de xm emYYY Não é possível uma a outra. O pró prio Descartes resolveu o problema que
fazer um texto filosó fico sera ter de citar uns vinte ou trinta ele introduziuinventando toda uma área da filosofia moderna,
especialistas, eruditos, comentadores, numa palavra, sem tef a do método, a ponte que devia reuni-las.
de fazêr vênia aos atravessadores do pensamento. Nã o Quando os especialistas se interpusei am como

18 • Gonçalo Amigos Pal5cios De como fazer filosofia sem ser grego, estar morto ou ser gé nio • 19
intermediários privilegiados entre o simples mortal e a
a filosofia husserliana, querendo ou não, ressuscita.
grandiosa sabedoria, afastaia m a filosofia. Descartes fez algo Isso nos leva ao nosso problema inicial e é mais um
mais profundo: propó s a tese de um afastamento essencial argumento que refuta a idéia da inferioridade fdosó fica das
entre mundo e pensame nto. Alguns filó sofos línguas. O ser humano tem, naturalmente, a tendência a
contemporâ neos, no entanto, reagiram contra aquele filosofar. Isso está baseado na sua pró pria curiosidade natural,
afastamento entre homem e mundo. H usserl, por exemplo, naquele afà por saber que se mostra nas pessoas desde muito
quer que o filó sofo volte à s coisas mesmas. ESSE VOlta cedo. Há razõ es culturais, religiosas, ideoló gicas, histó ricas,
husserliana, diz o colega Joel, é feita com esforço, o que não que impedem que essa curiosidade seja orientada para a
acontecia na visã o grega do que, hoje, chamamos pensamento produção de filosofla e ciencia. Ou uma sociedade possui as
ou consciência. Hussed quer essa volta, introduzind o sua tese instituiçõ es que estimulam a produção de cultura, como a
da intencionalidade da consciência, o que quer dizer que a dos mecenas da Renascença, ou as que a coíbem, como a
consciência é, sempre, “consciência de”.
intolerância religiosa eo autoritarismo acadêmico.
Dita assim, essa tese é incompleta. Se vamos tratar do O ser humano nasce naturalmente para a filosofia, sã o
il ccxtas insdmiçõ es que deia o afastem. O espírito humano é
' devem s d en E’melhor, que “a consciência é, sempre, rico era intuiçõ es profundas, é o meio que o empobrece ou
consciência de algo somente porque ela ja é, penso, estimula. Assim, ternos culturas ricas em produçã o espiritual,
consciência por” e “consciência para”. Quando se fala de e épocas inteiras de escuridã o e tagarelice. Nã o atribuamos
“consciência de”, se cai, de novo, no mito caitesiano da às línguas contempoiane as o que é produto da tirania dos
separaçã o entre pensamento e realidade. Na verdade, a incompetentes. Se não, vejamos a literatura ocidental nos
consciência é produto da natureza, ela é resultado de formas ííltimos séculos. Para citar um caso, cada vez que leio Borges
concretas de organizaçã o da w té õ a. Ela é, em conseqü ência, me espanto com a dimensão fdosó flca de suas idéias. Há,
ii..resx›t»ú •, • ' nrodiitn da pró pria realidade. Ainda mais,
se vamos resgatar resultados adquiridos na pró pria fí1osof1a, prenhes de conteú do filosó fico. Por que, por exemplo, o
diremos, como se diz na filosofla dialética contemporânea, castelhano serve para fazer excelente literatura e nã o serviria
que a consciencia, ou pensamento, é a pró pria realidade para fazer filosofia? AcaSo não são filosó ficos os escritos de
pensando-se a si mesma. Nã o ha razõ es, entà o, para postular Ortega e Gasset, tido na pró pria Europa nà o latina como
esse afastamento cartesiano entre pensamento e realidade que filó sofo?
20 • GonÇalo A Jos Palácios De como fazer filosofia sem ser grego, estar tnoito ou ser gênio • 2i
Na verdade, se faz filosofia, hoje, em todas as línguas, à língua que falava? Claro que não. E quando tinha razão,
e temos filó sofos das mais divefsas nacionalidades que, devia-se isso são à língua, ao contrário dos casos em que se
escrevendo na sua língua materna ou numa outra qualquer, equivocava? Postas as coisas desta maneira, vemos que o
nã o encontram dificuldades para produzir filosofia e fazê-la problema é um ó pico pseudoproblem a, e qualquer um está
avançar. É tnvial que nã o fazemos ííloSOfia como os gregos, em condiçõ es de entender que Aristó teles se equivocou ou
mas deveríamos fazê-lo? Isso sim seria estranho. A filosofia acertou poro,ue usou rrial ou bem sua inteligenrin, nerqiie
nà o só nã o se faz com os conceitos de uma língua condiçõ es histó ricas lhe empurravam a erros etc., nà o porque
pretensamente privileglada como encontra seus pró prios falava esta ou aquela língua.
meios para renovar-se, enriquecendo-se com os termos que A linguagem é artesã do real, tenho dito em outro lugar
se usam ora aqui nesta área, neste país, ora acolá, naquela e não pode ser concebida como um baú em que o real põ e
outra area, naquele outro país. Essa nostalgia a respeito do conceitos como se fossem obJetos. A filosofia é um fazer, nao
grego classico parece-me um problema tipicamente um contemplar. Se fosse um contemplar — e um exprimir
acadêmico. De fato, a filosofia continuou o século XX e, através de certos conceitos — a essência das coisas, aí sim
certamente, continuada, desde que haja alguém que se espante poderíamos aceitar que uma Erigua serve para exprimir melhor
— fale a ííngua que.for — e saia de seu espanto fílosofando. o contemplado. Mas isso pressupõ e que a essência do real seja
Se o grego clá ssico tivesse esse estatuto fdosó flco uma essência lingü ística inerte a ser contemplada. Em outras
privilegiado seria difícil entender como foi possível os seus palavras, dizer que a agrega tema pfivilégio metallsico
melhores representantes se equivocarem. A verdade é que pressupõ e que a realidademetafisicamesma seja—surpreenda-
Platão e Aristó teles se equivocaram, e muito, muitas vezes. se leitor — grega! Por que a essência do real é lotes e nào
Ninguém parece lembrar-se disso. (Altas, ja causei espanto “saudade”? “Saudade” nã o podeõ a ser a essência metafisica
dizendo isto.) É por causa do grego clássico que alguém disse do real? Se fosse, aí sim o português seria a língua filosó fica
que o ser é? Entã o deve ser também por causa do grego por excelência. Portanto, seHeidegger diz que alíngua grega é
classico que alguém disse que há pessoas riasciílas para privilegiada porque possui o conceito hai e nao por causa da
maria e outras para obedecer,isto é, que umas nascemlivres e essência “saudade” isso se explica porque ele gosta mais do
outras escravas. Desde que nào há seres que nasçamlivres ou
grego que do português, ou, entào, porque desconhecia o
escravos, por serem estas duas condiçõ es fruto de fatores
português e ignorava o termo. Quem sabe se, conhecendo o
sociais, não naturais, Aristó teles, entã o, se enganou, e muito.
Brasil ou Portugal, tivesse chegado a gostar mais do termo
Devia-se isso
De como fazer filosofia sem ser grego, estar morto ou ser gênio • 23
22 • Gonçalo Armijos Palá cios
“saudade” e tivesse dito que a fdosoflanunca existiu porque graduaçã o no Brasil COfrl uma dissertaçã o cujo ó tulo seja A
ninguém chegou à essência mesma de toda realidade humana: saudar coca essenÚa do horas. Veja, 1eitor, qual é a sua reaçào a
a da saudade! estes dois exemplos: “ninguém tratou a angú stia comoJean-
Vemos, com este exemplo, que a questã o de pfivilegiar
Paul Sartre”, e: “ninguém tratou a saudade comoJoã o da Silva”.
esta ou aquela língua tem a ver com privilegiar esta ou aquela
Se você achou descabida a segunda afirmação e identifica
cultura, nem mais nem menos, e nada tem a ver com questoes
“tratamento da saudade” com a bossa nova, entà o ja esta
metafisicas ou lingü ísticas. No fundo, entà o, é uma questã o de
contaminado disso que estou falando: nào é filó sofo quem
gostos e preferências pessoais deste ou daquele filó sofo que
acha que nã o pode ser — e muitos pensam que por nã o
esta ou esteve na moda e que disse tal ou qual novidade,
conhecerem grego ou uma língua saxó nica, por nào serem
espalhada pelos seus acó litos, que leva as pessoas a acreditar
europeus ou, pior ainda, por serem brasileiros, estã o
acfiticamente nesse tipo de tese. Conseqü entemente,destas duas
essencialmente fadados a ser comentaristas.
teses — “o hJdi como a essência do homem” e “a saudade
Se colocamos o grego clá ssico num pedestal e o
como a essência do homem” —, as duas témigual direito de se
rodeamos de um halo místico, certamente deveremos concluir
<< < 1@t4agcni ÊÊoH 2ÜLc‹t pusrerior aos gregos consntui mci
pattii de umavisão acadêmica de filosofia que ptivilegia certas
empobrecimento. “Se colocamos”, mas por que deveríamos
culturas em detrimento de outras. A prova de que somos
fazê-lo?
forçados a engolir o eurocentrismo é esta. Ninguém vai rir,
Em certos ambientes acadêmicos — aqui no Brasil, por
como seguramente o fez com o exemplo anterior, se eu
exemplo — ocorre algo que nã o consigo entender. Nas
afirmasse que há uma tese filosó fica que diz: “a liberdade é a
matemá ticas, a ninguém ocorreria dizer que as matemá ticas
essência do homem”. Você riu, leitor? Estou seguro de que
pó s-gregas constituem um empobrecirriento da pró pria
não, porque “liberdade” é um conceito que também herdamos
matematica, ou que a física newtoniana é pobre em relaçã o à
Ô e A mGtmtn)ec mil ruiva o lÚ rvien erxm€nmw m«ánmon ‹om+ian A N
recentemente. E o mesmo acontece com os termos Aristó teles. O mesmo acontece com todas as ciências
“igualdade” ou, o mais recente ainda, “angú stia”. H engú iú n qafticulares: a ninguém ocorre negar seu avanço. Isso, porém,
como eszcri:ra do ó umrm poderia, perfeitamente, ser o ó tulo de
não ocorre com a filosofia. Por que só a filosofia ter-se-ia
uma dissertaçã o ou texto filosó fico, eninguém tiã a disso. Mas
empobzecido com respeito a filosofia grega? Só se, para dizê-
gostaria de ver se alguém é aprovado em um curso de pó s-
lo de uma maneira mais direta, a essência do real “falasse”
24 • Gonçalo Armijos Palá cios
De como fazer filosofia sem ser grego, estar morto ou ser gênio • 2S
grego ou, parafraseando Galileu, se a essência do real estivesse mais e mais jovens, mais e mais ignorantes, íílosoficamente
escrita em caracteres gregos (classicos). falando. E muitos tmtam nossa cultura como se fosse formada
Assim como as disciplinas particulares, a filosofia por crianças, impossibilitadas pela sua incompetência para
! moderna e contemporanea é muito mais rica em temas, filosofar.
problemas, conceitos e recursos do que a grega. Só podemos Vejo — e admiro— os gregos como seres humanos que
negar essa tese negando o processo da humanidade em todos
ousaram pensar bor si só s e defender suas teses, Veio-os —e os
os aspectos. Se sabemos infinitamente mais do que os gregos,
admiro— porteremsido grandes argumentadores. Assim como
além de termos certeza incontestavel do que sabemos, por
a ciência nasce quando a alguém oconeu dizer “calculemos , a
que nossa riiosofia deveria ser inferior ou mais pobre que a
filosofia nasce quando a alguém ocorreu dizer
dos gregos? Sei que Heidegger fala contra a ciência e a
“argumentemos”. A filosofia nada tem a ver com a posse
tecnologia. Os gregos, Platào e Aristó teles, privilegiavam o
lingü ísàca deste ou daquele conceito, mas com a busca de
saber cienó fico. Conta-se de Platã o que exigia que os
soluçõ es para problemas e corri a defesa raclonal de soluçõ es
membros da academia soubessem geometria.Justamente por
e posicionamentos teó ricos. Não há filó sofo que não tenha
isso, hoje, porque sabemos mais geometria, mais astronomia,
dito o que pensa, fornecendo as razõ es que tinha para sustentar
física, geografia, além das ciências sobre as quais eles nao
oque sustentava. O ó pico de uma parte importante do trabalho
tinham a mais remota idéia, assim como porque sabemos de
filosó fico é argumentar, nã o simplesmente comeria
suas aplicaçó es eresultados terríveis, estamos eminfinitamente
Vejamos, por exemplo, os textos de Platão. Eram
melhores condiçõ es epistêmicas para fazer filosofia. Mas, e
comentarios? Eram exegeses de textos alheios ou eram
aí voltarmos às dif1culdades, estamos, talvez, em piores
discussõ es vivas e até acaloradas? Os textos de Aristó teles
condiçõ es acadêmicas, pois, enquanto eles não tinham
sà o comentá rios ou argumentos? A NNfirn & ração para, de
filó sofos clássicos para citar feito papagaios, nossos alunos
Kant, é comentaiio? Os discursos de Rousseau sã o
têm. Isso sim é um retrocesso. E, aliás, isso nos distingue das
comentários? O Hú n/ó , de Hobbes, é comentario? São eles
t iitxas ‹_tis‹_ipiinax, puls riingcuciii oungauw, ciii more t, a touus nió soEosr raiani ioaos eies gtegor de sao todos
conhecer física aristotélica para fazer física ou formar-se como filó sofos, mesnio apesar de alguns deles não falarem grego,
físico. O que nà o é o caso na filosofia. Estranhamente,muitos entao a filosofia não tem a ver nem com falar grego, nem
imaginar que os gregos ja nasceram velhos, e os povos que com falar esta ou aquela língua e nem com comentar textos
vieram depois deles foram ficando mais e mais inexperientes, alheios. Queremos ser Õ ló sofos? Entào façamos como eles:
25 • GonÇalo Anjos Palacios De como fazer filosofta sem ser grego, estar morto ou ser genio • 27
pensemos, problematizemo-nos, busquemos as soluçõ es e, nada escreveu — ou pelo menos acreditamos — sobre /oJoi,
caso as encontremos, proponhamo-las e discutarnos. Numa entao nao é filó sofo! AssilT1 flCa tudo muito facil: é filó sofo
frase: argumentemos com as coisas, com nó s mesmos e com quero fale sobre o letal. Se não fala é porque ou nao é filó sofo
os que não concordam conosco. Se isso não é fazer filosofia, ou nào é grego classiCo. Para ser realmente fdó sofo tem de
gostaÓ a que me dissessem o que é, mostrando-me, no entanto, falar sobre o fogos e tem de falar em grego clá ssico. Se nà o é
que os ô íosotos que citei hzerani o que eventualmente veníiaiii grego un nã o fala eiIi grego cÍassico, ou nao e lilosofo ou seu
a aÕ rrnar o que seja fazer filosofia. discurso é pobre.
A negaçã o —suspeita— do cará ter filosó fico de alguns Há uma palavra para descrever esse tipo de argumento:
autores, e que mostra que resgatamos os gregos nã o por círCulO vicioso. Mais uma vez: nào é por falar ou nào falar
causa de sua língua mas porque gostarnos de alguns de seus grego que fazemos fdosofia, é por pensar de uma maneira
problemas, mostra que não é por falar grego que os gregos ou de outra, é por usar a linguagem num sentido ou noutro:
foram filó sofos. Um ngumento ja foi fornecido, aquele que argumentativo e inquisifivo, se queremos fazer fdosofla,
mostra que, se fosse pelo grego, os gregos contemporaneos interpretativo ou comentarístico, se nã o ousamos filosofar.
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para afirmar que o grego é uma língua privilegiada? Só se
tendenciosidade da tese que [›rivi1egia a língua grega como tivesse conhecido TODAS as línguas faladas no mundo. Mas
essencialmente filosó fica. A prova consiste em mostrar que não conhecia. Pois se eu digo que a torre de Pisa é a ú nica
nem todos os gregos, que pensavam e falavam grego e torre inclinada do planeta, é porque sei que em outros lugares
discutiam os problemas filosó ficos da época, sào tidos como
não ha uma torre semelhante. Desde que Heidgger não
fdó sofos. Falo dos sofistas. Por que os soflstas não são
conhecia TODAS as línguas faladas no mundo, é
considerados filó sofos pela hiernquia acadêmica oficial? Não,
absolutamente infundada a sua tese sobre o grego classico.
certamente, por não falarem grego, que falavam, mas por
Mostra isto que é uma mera opiniã o da sua parte, a one foi
não falarem o grego do jeito oque uma certa tradição gostaria levado por suas inclinaçõ es intelectuais. Heidegger foi, sem
que tivessem falado. Dois casos notáveis: Protágoras e dú vida, um grande filó sofo. Eis outro grande filó sofo
Trasímaco. O interessante é que este ííltimo defende uma tese
cotnetendo outro grande erro. Podemos desculpar Heidegger
que é o fundamento da teoria política moderna: a de que a
pois, em ííltima instâ ncia, a tese é sua e esta mOtiTâ da por sua
justiça é o interesse dos poderosos. Esta tese se encontra em
vivência filosó fica. Ora, repeti-la acriticamente é o que nos
Maquiavel, Hobbes, Rousseau e vai até Marx. Mas como
De como fazer filosofia sem ser grego, estar morto ou ser genio • 29
28 • Gonçalo Armijos Palacios
torna não-fdósofos. Nào vejo como desculpar quem se diga
da possibilidade de fazer. Por quê? Primeiro, porque não se
filóso fo e a aceite, sem mais, como uma verdade repassar, em filosofia, conheõm entos. No máximo,
inquestionável. Nào hà nada indiscutível em filosofia, e é isso
repassar- se informaçõ es. Segundo, explicam essas
que a torna tà o rica, cada vez mais rica — e nã o mais pobre,
informaçõ es a genese dos problemas que motivaram as
como se segue de colocar o grego clá ssico num pedestal diversas teoõ as filosó ficas? Na maioria dos CaSOS, HÃ O. Ent re
privilegiado e rodeá-lo de um halo míStiCO. outras razõ es, pela crença generalizada de que há “questÕ es
essenciais” de oque os filó sofos sempre tratam, assÍm como
pelo preconceito de que haveria certas noçõ es pró põ as para
tratá-las: as da filosofia tradicional e, de novo, as da filosoÕ a
grega. E se, por ventura, o aluno— o que é muito provável —
O começo do filosofai não se interessa pela problemática grega nem está disposto
a aprender grego? Vai abandonar seu desejo de ser flló sofo
‹: por causa disso? Muitô s, lamentavelmente, o fazem.
O meu colega Adriano Naves de Brito afirma que não Ora, se os alunos vissem o seu professor filosofando seria
precisamos aprender Fdosona cionoíugicaiiici L tc p< muitodiferem Mas,como íilosofando?Muitosimples:avaliando
aprendemos a filosofar. Concordo plenamente com esta a solução dos diferentes problemas que enfrentaram os diversos
afirmação. Isto significa que podemos aprender fdosofia ô ló sofos, avaliando e discutindo corri os textos como quem
através da leitura de qualquer texto filosófico. Eu acrescento
discute com umintetiocutorqualquer, numa palavra: tomando
a essa afirmação esta outra: esperar ler todos os filósofos,
o texto umintetíocutor. Discutindo suas propostas, propondo
cronologicamente ou não, tende mais a impedir do que a
objeções eímagínando possíveis zépfÍCas. udo possíveis
estimular o trabalho filosófico.
A questão que cada um de nós deve pór para si mesmo respostas do filósofo seo filósofoestivermorto. Mas há filósofos
que estão vivos, e são amaiotia, e com eles podemos discutir.)
81n•nG*JAfl rnnoue
” Fazendo, entào, o que os próprios blosofos gregos hzeram e
não há melhor forma de saber que através do fazer ou,
entao, CflO€XfIM lorião sesegue jantando elevantandohipóteses.

observando como se faz. A grande oportunidade perdida na Ou, e.RÚ O,i nostmndocomoos filó sofos & nossa épocareagiram
academia é justamente esta: por pretender “repassar” às teses eargumentos apresentados por este ou aquele filó sofo.
conhecimentos filosóficos aos alunos, acaba-se porafastá-los Ora, lamentavelmente, não é isso que se faz. Há um pavor

30 • G on do A ’os 2:üaCiOS De como fazer filosofia sem ser grego, estar morto ou ser gênio • 31
generalizado de dizer quePlatào se equivocouaqui,que Aristó teles -. .-
errou acolá etc. E esse pavor generalizado se deve a que eles
pró pfios, os professores, nao foram preparados por seus mestres
para discutir com os textos nem com seus professores, e sim a
decoro complicadíssimos métodos de “leitura” de textos,
«métodos “nernicnéuiicus”,
aprendendo como secita, comose“babalhainterpretntivamente”
um texto, como se faz uma leitura “esmitural” etc Mas
ninguém pareceimportar-se como ú nico“método” que existe
na prá dca filosó fica: Concordo com isto? Sim? Não?Por
quê?“O simples método das quatro perguntas ó bvias que
alguém faz quando escuta outra pessoa aÕ rmando isto ou
aquilo. Gostaria que os alunos perguntassem a seus
professores (quando esses entram
p{-} pp<•ijp’,tO -',+=fO O ¡Cjr lf•1t31l^ '’ ‘ f ofÚ ‹tf@ PA l4P Ü ID UN fe'Z

fichamento? SabiaAõ stó telesoqueetaahermenêutica?Fomeceu


Kant referências bibliograficas quando escreveu a CUtica? Fez
Heidegger uma leitura estruturalista à francesa dos textos que
leu. '
E se o aluno não vai com a cara de tais métodos? Se
simplesmente o deixam aboriecido? Que deve fazer?
Abandonar a carreira? Não tem o direito de fazer as coisas
do seu;leito?
E esta pergunta e mais grave ainda: e se nenhum dos
problemas filosó ficos da tradição o interessam, deve desis
de querer filosofar? É preciso que pra filosofaralguém tenha
necessariamente de interessar-se por pelo menos um dos
assuntos da filosofia desde os gregos até hoje? A simples
52 • GonçdoA josP óos
verdade é que nao, que para fazer filosofia o aluno não precisa
interessar-se necessariamente por nada que tenha sido dito ou feito
nem concordar com a maneira como foi feito. É por isso que a
tese de Heidegger do estatuto pfivilegiado do grego classico é
teoficamente infundada e historicamente falsa. A verõ aõ e é que ha
Rlosotos que Jamais se ocuparam com essências metafisicas, com
as qualidades do grego antigo, com os problemas tratados pela
tradição, por fdologia, pelo pró prio Heidegger e, mesmo assim,
foram e sào filó sofos.
Como explicar isso desde uma perspectiva que privilegia, como
ú nica, esta ou aquela posiçao filosó fica, este ou aquele linguajar
filosó fico?
Só faz filosofia quem tem algum problema filosó fico

faz filosofia quem, quando lê um filó sofo, entra no mérito da


questã o. Ou seja, quem se pergunta a si mesmo: “Concordo ou
não com esta afirmação?” Esse é o primeiro passo. O momento em
que busca sua resposta, isto é, quando, por exemplo, discorda e diz
“por que?” procurando uma soluçã o, é esse oinstante que passa de
mero leitor a filó sofo. Este passo não ocorre — nem deve ocorrer
— na mesma hora. F. verdade oque achnr soluçõ es leva lemon, às
ve.res nnn« Mais tarde ou mais cedo, porém, as encontramos.
Mas a atitude, a teimosia, a coragem e até o drama de procurar o
que não se tem certeza de encontrar é que define o filó sofo.
Concordar, é cleo, resulta mais facil e é muito cô modo. Mas se eu
concordo com a argumentaçao do filó sofo e fico

Oe como fazer filosofia sem ser grego, estar tnorto ou ser gênio • 33
convencido por ela, nesse caso continuo sendo um leitor. inteira, basta uma linha só : ha antagoriismos filosó ficos, logo
Entendei filosofia não é um grande mérito — a não ser a de ha teoõ as filosó ficas falsas.
contados fdó sofos. Isso tampouco é fazer filosofia. Eu A prova é muito simples. Se ha antagonismos
entendo a teoria da relatividade. Não acho mérito nisso. E filosó ficos, entào há posiçõ es filosó ficas que a£irrnam teses
tampouco isso me faz fisico. Alguém podefia explica-la para contratias ou, ainda, contradÎtó iias. Ora, as duas não podem
mim, e isso näo lhe torna fisico. Concordar com uma teofia ser verdadeiras, uma ou outra é falsa (ou até as dnas). Veİamos
é, para quem quer fazer filosofia, Quinn. Pois só filosofamos um exemplo: o dogmatÎsmo e o agnosticisrno fdosó ficos.
quando propomos teses difeientes das ja propostas, e só o Umafirma que é possívelconhecer a essência da iealidade, o
fazemos quando discoidamos, quando nos incomoda agnosticiSfRO O flega. Os dois não podem estar certos, o que
profundamente essa ou aquela afirmação. Por exemplo, se significa que ha pelo menos uma teorİa filosó fiCa falsa, Se a
concordo com a explicação Atistotélica da desigualdade social teoÖ a falsa, no entanto, continua sendo considerada filosó fica,
segundo ‘a qual uns nascem para mandar e outros para entäo hź teofias que, mesmo sendo falsas, săo filosó ficas. E
obedecer, nada acontece de importante denœo de mim. Tudo, este mesmo argumento o fazemos extensivo a todas as
na minha cabeça, fica como está . Mas se a tese me revolta, se
diferenças filosó ficas: idealismo emateõ alismoem metafisica,
me produz alguma reaçao mesmo que visceral, é aí que vou
i acionalismo e empirismCi em epistemologia, formalismCi,
tentar fundamental minha posição. Aí serei filó sofo. Poderei,
intuicionismo ou utilitatismo em ética e assim por diante. A
todavia, estar equivocado e Aăstó teles certo, e,mesmo assim,
lista é interminźvel. Logo, nã o sã o só dois os casos de
facet filosofia. Isto ate surpieenderå , mas en posso estar
ã ntagonismos filosó ficoss São inú me ros, o que piova
rotundamente enganado e, ainda assim, sec filó sofo. que hź
Gostatia que o leitoi avaliasse quanto serta preciso muitas posiçõ es filosó ficas que devem ser falsas ja que Terri
(quartos volumes, capítulos ou pźginas) para provar que todas podem ser verdadeiras. Isso demonstra que talacesso
filosofia näo tern qualquer acesso privilegiado à verdade. ptivilegiado é outro dos mitos que sobre a filosofia se tecem
constantemente e que deve ser denunciado.
tit termite, e mars ii_tia vez, a ñ iosofia nein consiste
outra, ainda mais, de que a ßlosofia é a ciência daverdade por em ter um acesso ptivilegiado a verdade, nem Qrecisa
excelência. Mas năo é preciso nem devátios volumes, nem
de uma pfivİlegÍada pam fazé-lo—sejavivaou esteja morta.
de capítulos inteiros, nem demuitas páginas paraprovar que Há outras condiçõ es para fazermos fÎlosofia: ter espírito
essa tese é falsa. Com efeito, não precisamos nem de uma CfltÎCO, İmagÍnaçå o e poder argumentativo. Espírito cÒ tÎco
página
De como fazer filosofia sem ser grego, estar morto on ser gênio • 35
34 • Gonçalo Armijos Palacios
para nã o aceitar passivamente tudo o que se nos diz ou tudo a criatividade eà hberdade de pensamento,
que lemos; imaginação, para estar em condiçõ es de achar Dessa maneira, e para responder à questão desta seção,
soluçõ es e saídas do labitinto em que nos encontramos; poderíamos dizer que, como os bons e os maus costumes, a
Qoder
argumentativo para fundamentar nacionalmente nossas filosofia começa na infancia, se houver um ambiente propício
O S na filosofia
intuiçõ es. Em outras Qa1aV j"ilS, nOS COITI O .tB- fTl para o normal e sadio desenvolvimen to espiritual e
o que
como o fazemos como seres normais: avaliarmos intelectual ÔaS CfÍanÇas. Os crianças, alias, mOStfam uma
ncordaf TlOS,
escutamos, vemos ou lemos, pensarmos se co curiosidade filosó fica e científica surpreendentes. É pena que
nó s
avaliacmos, refletirmos e decidimos aS Coisas por a família, ou a escola, as frustrern.
ser
mesmos, como pessoas adultos que nã o precisam Disto resulta algo que, para muitos leitores, será um
co nduzidas pelas mãos de outros adultOS. alívio. Na verdade não é por termos lido que podemos ser
Podemos, portanto, estar em condiçõ es de filosofar filó sofos, mas por estarmos acostumados a pensar
mesmo antes de saber que o fazemos. criticamente.
@uã do tínhauns l4acos comeceiapensarna egtst Có d

Deus, a existência do mal etc. Cheguei a uma determinada


conclusão e, anos depois, quando estudava filOSOfiil, Um
professor nos passou umas gá girlas esC titas por Cícero sobre
o mesmo assunto. Para minha grande surpresa, oargumento
que ele tecia eta exatamenteo mesmo que eu tinha construído
anOS
ahh» Nuncame passoupelacabeça,quando adolescente, Os ú ltimas linhas da seçao anterior nos levam a outro assunto,
quetal problema eia um problema filosó fico que tinha dado
a saber, odarelaçào entre escrita eleitura dos textos filosó ficos.
muita
»itri«, nfr , perdr•ram a r O

sua pol tel proposto cettas so1uçõ e5. Isso mostrou para mim
de fazer fdosofia. Quemlê filosofia faz tanta filosofia como
que a filosofia esta sempre mais perto das pessoas do que elas quemlê literatura faz literatura. O leitor de poesia, por mais
imaginar. FilosofamOS espontaneamente porque o assíduo que seja, nao é, por isso, um poeta; o leitor de filosofia,
questionamento é natural ao ser humano, a nào ser que
36 • GOflçitlO A ifJOS PalÉ CÍOS

espontaneidade seja esmagada poi ambientes pouco piopicios


por mais erudito que seja, não é, por isso, filó sofo.
Ultimamente se usa muito a expressão “a leitura xxx
De como fazer filosofia sem ser grego, estar morto ou ser genio • 37
de ZZZ”. Por exemQlO, a leitura heideggetiana dos gregos”, hipó tese menos estapafú rdia. Em terceiro lugar, e o mais
a leitura nietzscheana dos gregos”. E se fala tanto em importante, aquilo que os filó sofos escreveram devia ter sido
“leituras”, nesse sentido sofisticado, que se passa aimpressão escuto com a Intenção de afirmar uma coisas • ão duas
— equivocada — de que se faz filosofia fazendo esta ou aquela
nem
leitura” ou, então, entendendo a diferença entre a “leitura três. Desse modo, não vejo como alguém poderia fazer uma
heideggeriana dos gregos” da leitura “nietzschiana” ou a outra leitura do fragmento deTales diferente da que Aristó teles
e eu fizermos — e oque fazem tiessr›n* •ior)o nsa »r« i d«
’foucaultiana’. pelos vícios acadêmicos (meus alunos dos primeiros anos de
Eu sinto uma profunda estranheza com estas filosofia, pol exemplo) quando leio o fragmento e peço que
expressõ es. Vejamos por qué. Leio em Tales, por exemplo, o expliquem. Se Xenó fanes diz que não podemos conhecer
que o põ ncípio de todas as coisas é a água. O que eu faço? Se as verdades essenciais sobre as coisas, nã o veJo como alguém
não há algum outro fragmento de Tales que explique por poderia fazer uma “leitura” que conclua outra coisa e que a
que propó s esta tese, paro para pensar e me pergunto: por attibua a Xenó fanes. Se Marx disse que o proletatiado devia
que seta que afirmou aquilo? Em pouco tempo chego a fazer a revoluçã o, eu nã o vejo como poderia ler as inú meras
conclusão, por demais ó bvia, de que o fato de a água ser o passagens em que diz isso e interpretá -lo de ‹uma maneira
elemento que permite a vida aparecer e se manter deve ter diferente. Por isso, incomoda-me muito esta nova moda de
levado Tales a tal afirmaÇao. Imediatamente procuro alguma falar de “leituras”. Nietzsche diz que os gregos inventaram a
confirmação dessa hipó tese. Procuro nos fragmentos dos verdade e os valores. Pois bem, disse ou nã o disse? Será que
outros filó sofos pré-Socráticos, mas nãO Acho nada que me alguém pode fazer uma “leitura” segundo a qual Nietzsche
auxilie. Por acaso chego a A ristó teles,que, na F orm, e diz outra coisa? Outra coisa, aliá s, que nã o está publicada em
refeõ ndo- se a Tales, diz que, seguramente, ele afirmou esta lugar nenhum? Nesse caso deve-se dizer: “A partir do que
tese porque sempre que encontramos seres vivos ha Nietzsche escreveu proponho esta tese que não coincide com
umidade. Isso me a de Nietzsche, que nem a pensou. É da minha colheita”. Aí,
ensinaváá as Coisas interessantes. põ meira,que me pareceu
ó bvio postulai, tambem o pareceu a uiii dos granéics tuó o bem. Mas fica claro que Nietzsche ficou de lado e —
filó sofos da histó ria da filosofia que viveu numa é OCIt eventualmente —surge uma nova posição filosó fica. Dessa
pró xima a Tales, que também fazia parte de sua cultura e maneira a filosofia até ganha.
também falava a mesma língua. A segunda, que não devemos Para não ir mais longe, eu digo que a filosofia não
proCurar cinco pés no gato. Devemos, pois, fOCUfãf à pode ser definida. Alguém poderia fazer uma “leitura” da
38 • Gonçalo ArrrtfJos Palacios
De como fnzei filosofia sem ser grego, estar morto ou sei gênio • 39
«-

qualse depreenda que eu digo outra coisa? Aflrmo que fazer? Parece-me que tudo aponta no sentido contráiio. Isto
quem se limita a comentar não faz íílOSofla. Alguém
40 • GonÇalo ArmfJos Palá cios
poderia let essa minha afìrmaçä o senao no sentÎdo em que
eu a disse — com todas as letras, alias, e procurando ser
muito claro?
Quando as pesSOaS falam, o fazem para comunÎcai-
se. E cornunÎcar é passa para outros, de maneira clara, o que
SP pensa. Se isso vale para os seres humanos
comuns, por
que deveria ser diferente para os fìló sofos? Por que um
filó sofo, que disse que oprincípio de todas as coisas naoea
água e sim o ar, devetia set“lido” como dizendo outra
coisa?
Sem dú vida, as possibilidades de interpreter um tezto
sã o enotmes. Mas prova isso que o ííló sofo que escreveu
esse texto quis dizer, junto com o que disse, o que nao disse?
be outro ñ ió soío —n acon— escrcvcu que u> • * p•*g *
cram tagarelas e que sua filosofiaera farta em palavias e estéõ l
em obras, como poderia alguém fazer uma “leitura” que
algo diferente do que aquele filó sofo escreveu?
Seiá que os filó sofos escreveram mensagens cifiadas?
Có digos secretos para iniciados? Será que os giegos
escreveram para serem “inteipretadoi” ou “lidos” por
Heidegger ou Nietzsche ou pelos estrututalistasfranceses
mais

“explicado” pot Althusser? Será que alguém, na sua sã razãO,


escreve para serinterpietado por quem só riascerá num outro
século, arrogando-se o direito deinterpietá-lo a seubel-piazer
e atribuindo-llie aÕ rmaçõ es que nem fez rem ltte ocorreu
é, que os filó sofos — quase na sua totalidade — escievem
para seus contemporaneos, com a intençă o de serem
compreen- didos por meio de uma leitura normal e o
fazem da maneira mais clara que acham possível. Quando
Kant escreveu a Cn’tica da rațãopara e viu a reaçã o dos
que leram seu livro, percebeu que foi mat interpretado
ou ’simplesmente nem sequer entendido. Que fez?
Escreveu uma obra explicativa, para corrigir as
interpretaçõ es equivocadas. Isso mostra que nã o é
possível fazer infinitas “leituras” dos textos filosó ficos
se o que nos interessa é entertder oque os filó sofos
dissezam. Os filó sofos não estão interessados — ninguém
estå — em dizer mil COiSaS simultaneamente, e sim esta
ou aquela. Se digo que existem idéias inatas, é isso que
digo, não outra coisa. E se nego ta1 tese, nao vejo como
possa serinterpretado afirmando outra.
Não acredito, poroutro lado, que cada filosofia
expresse a consciência histó tica de sua época, porque,
assim, só havena um filó sofo em cada época. Qual é o
filó sofo que expiessa a consciência histó rica da
modernidade, por exemplo? Locke com seu
sensualismo antiinatista ou Descartes com seu
racionailsmoinatista? Hobbes e seuautofitarismo
ouRousseau
°>°*iã *orpumiicxyrcşaauuusoznuamsroncado
século XIX, Marx ou Corrite? Hegel ou Feuerbach?
Quem expressa a consciência histó rîca da época
contempozanea? Hussed ouWittgenstein?
QualWittgensteín,o pÕ meú o ou o S do?Russell
ouRorty? Habermas ou Foucault? Se háuma época e vátios
filó sofos que propõ em teses contrárias ou, de
De como Hazer fîlosofia sem ser grego, estar morto ou ser gênio • 4t
tào afastadas, incomparaveis, como determinar quem reflete Ufn filó sofo que certamente nã o está nem nunca
esteve
tal consciênciahistófica?E quem fornece os critérios para fazer flã moda deu nome a esse costume de querer
encontrar
aesco1ha?Teremos acaso de aceitar que só um filósofo, significados profundos nas gêneses dos
discursos: falacia
dentre todos os que viveram numa época, expressou a genética. Não precisamos da história de uma idéia
consciência histófica de seu tempo, ou que há váõas épocas embutida
numa afir maçaO para entendê-la. Pala avaliar
dentro de cada uma tese
fdosófica nào
psicológica ou ideológica do filósofo que a propós — a não
subépoca? Isto, nào obstante, é pouco ou nada intuitiVO.
O que é verdade, pelo contrário, é que, segundo ser em casos excepcionais, ou quando nos referimos
ao
suas
pe culiares orientações políticíls ou ideológicas, cada pensador contexto. Se o filó sofo achasse que isso é preciso,
se inclinará por um dentre os varios projetos políticos de publicaria
uma biografia junto com cada obra escrita. Mas
sua eu não acho necessário expor aos meus potenciais leitores a
época, e os seus leitores o aceitarão ou cejeitarão
segundo as suas inclinações. Dessa forma, +atuxa1mente, minha vida pessoal nem minhas idéiã s Olíticas ou
cada leitor religiosas para que entendam que, como penso, nao existem
receberá aquilo que lhe parece correto, ou rejeitará
o que não lhe aefada. Ocorre com o texto filosó fico o que verdades absolutas ersais. Posso estar enganado, pode ser uma
ocorre na sala de aula ou nas conferências. Cada um de nós tese fuma. Aliás.
eu já defendi teses que hoje considero falsas. Mas ninguém
— eu pelo me nos — se preocupa em sei o mais clafO precisa da minha trajetória intelectual, do meu currículo ou
possível e, pelas perguntas, vemos que as pessoas ou alunos ha biografia para entender tudo que digo neste ensaio.
podem fazer as mais sanadas interpretações, inclusive as mais Também nao considero que, afirmando esta tese filosófica
estapafíírdias. Mas também sabemos que, pelas tenha, eu, a pretensão ou a preocupação de “expressar no
intervenç ões do público e [meu] discurso as categorias de interpretação das categorias
de alunos, ha muitos que entenderam o que quetíamos
dizer.
E o dizemos quando respondemos: “sim, era exatamente históricas dã humanidade do {meu] tempo , como diz o
isso que queria dizer". E a intuição popular também capta colegaJoel (p. 22). Aliás, nunca me passou pela cabeça esta
isso ria pressão conhecida:"Nietzscheviratia no seu lÕela. sem a teve o adolescente-filósofo que fez o argumento
túmulo
se pudesse escutar a interpretação atribuída a ele pelo sobre a existencia de Deus, nem, cOm toda certeza, Cícero,
expositoi ”. Se nós reclamamosquando não se flOS entende, infinidade de interpretações?
por que é que os filósofos clássicos dariam lugar pala l3fRà 42 • Gonçalo Armijos PalacioS
quando fez o mesmo argumento. (Altas, naquele texto,
ele explica as razões por que estruturou talargumento;
nenhuma ddas temaver corri qualquer desejo de
expressar a consciência
De cOfTlO f&ter fdosofia sem ser grego, estar morto ou ser
gênio • 43
histórica de seu tempo — mesmo porque “consciência
onde estã o meus erros de leitura. Esse pequeno artifício tem-
histórica” é um conceito desconhecido naquela época).
me dado excelentes resultados . Prove o leitor isso com
Portanto, assim como Aristóteles sustentou a idéia algo
que ele pró prio escreveu ha algum tempo e notara que
filosófica, falsa, de que uns nascem para mandar e outros nem
de nó s ITICSITIOS SOmos bons leitores (ou melhor, nem
para obedecer, e Platào, a tese filosófica, falsa, de que o de nó s
ITICSITIOS SOmos bons “especialistas ).
filósofo
falsa, de que todo filó sofo expressa na sua filosofia aquela A questã o é que os filó sofos não escrevem para
consciência histó rica. O fato de que muitos filó sofos nã o se Complicar a Vida do leitor, o que seria uma atitude
interessam por essa temá tica é prova disso. (Ou será que por psicologica mente incomu m. É por iss o
que é possível, serri
não se interessarem deveÕ amos concluir que nào são filó sofos? fazer um esforço sobre-huma no, entendê-los. De qualquer
Se for este o caso, devefiamos expurgar da filosofia a maiofia modo, nao sei como algUém poderia ficar debruçado a vida
dos filó sofos). inteira sobre os textos de um mesmo autor. Se
lemos um
Isso me leva a sustentar esta outra tese filosó fica. Nã o texto vá rias vezes e nà o o entendemos, deveríamo seguir o
s
é tanto aleifiira q,ue interessa — ou que nos deveria interessar. COnSelho de Borges: feche o livto— diz ele — o autor
se queremos fazer filosofia. É a escrita, porque escrita é um fracassou, ele nã o escreveu para voce!
instrumento que ordena as nossas idéias. É escrevendo que Penso que a grande maioria de filó sofos, se nã o todos,
sistematizamos nosso pensamento, nã o lendo. Concordo com escrever para ser entendidos, nao para ser interpretados
de
a tese filosó fica, correta, do colega Joel, de que o filó sofo e uma maneiras diferentes. A verdade é que cada um
deve tentar sistematizar suas idéias. Mas nào é lendo que o pode ler um texto de eito ou de outro mas, certamente,
um
fara. Lendo, o filó sofo esta à mercê de idéias alheias. É 44 • Gonçalo Armijos Pallcios

escrevendo que se faz. É pondo no papel o que nó s pensamos.


E para provar meu ponto de vista peço que se faça essa
experiência. Sempre que eu não consigo entender o que um
outro filó sofo diz, quando o leio, torno lápis e papel e tento
reproduzir o que li, sem copiar. Leio uns quantos períodos
e
procuro transcrevé-los, letrapor letra, palavra por palavra,
HO ilpel do lado. Quando comparo os dois textos, percebo
contra as intençõ es oõ ginZ1S do autor—o que, iepito,
se mostra toda vez que um autor dá uma
conferência era muitos casos até
e, Õ rmemente (e
perdendo a paciência), insiste em que
que neve ser
entenõ iõ o. Desde Platão sabíamos que os textos
tinham — ou deviam ter — uma estrutura
argumentativa. Por isso Platão insistiil na
importância do estudo da geometria. Ela ensinava a
pensar cientificamente. E Platão estava coberto de
razão. OS avanços da lógica contemporânea
voltam a confirmá-lo.
De como fazer filosofia sem ser gre gO , estar morto ou ser j;éã
o • 45
Com respeito a isso, ha uma verdade incontestável: ha algo
Nã o podemos esquecer, se vamos ser coerentes corri
que o autor quer dizer, e é isso e não outra coisa, e o diz de
o que estamos sustentando, que nunca houve
tanta informação
urna maneira e ná o de outra, usando esses argumentos e nã o nem tão boa ou sobre tantos assun tos como agora.
outros. Se pode ser entendido de maneiras diferentes, o autor Dificilmente, quem estuda ÉllOSOfla moderna pela primeira
errou de maneiras diferentes; se pode ser interpretado de vez, nã o teve aulas sobre formações económica s pré-
Õ RitdS maneiras, o autor errou infinitamente e não merecetia Capitalistas ou sobre
ser lido. Ora, propriamente, nã o é que o autor eric tanto Francesa na escola ou no colégio.
assim, mas o leitor. (Os comentaristas recorrer a um Se essa informação nào basta, então vamos
subterfú gio muito usado nas palestras. Depois de falar, procurar
textos clássicos sobre a obra ou a vida dos autores que nos
advertem: “eu nã o me posicionar, eu nã o estou defendendo interessam. A biografla de Kant, escrita
por Cassirer, por
nenhuma tese, só estou destacando esses ou aqueles aspectos.” exemplo, é urna excelente introdução à sua
E falam muito e, quando deviam dizer o que pensam, de Ernildo Stein, é uma excelente introdução
escapolem por meio desse artifício). a Heidegger. Roberto Machad
* textos magriíficos sobre
Concordo plenamente coma afirmação de que o texto o Nietzsche.
w se nas ta a si iiiesinm Acre‹iito que o contexto o O fato de a sociedade grega antiga ter sido
complementa. E que contexto é esse? O das relaçõ es teó ricas
escravista, ãSSlfTl COmo Aàstóteles membro da aàstocracia,
do autor, até dados sobre sua vida particular e, se está a entender por que afirmava que uns nascem
podem aJlqda2
muito afastado no tempo, dados sobre a época na qual para mandar e outros para obedecer. Mas em nada a judam
viveu, o lugar que ocupou ria sociedade de seu tempo etc. para entender melhor a tese, na Núm a irfiwnra, de que uma
Ora, esses dados devíamos ter aprendido nas escolas ma dependendo da siRiação era que esteja
primária e secunda;ia. Pelo menos comigo foi assim. Nas ação é boa ou
inserida tese que, aJiírs, qualquerumpode
aulas de Histó fia Universal, Literatura, Geografia, entendersemdificuldade e sem precisar saber a vida de
Economia Política, Aüstóte/es).
Só podemos por tanta ênfase na leitura se deixamos a
importante que depois me ajudou a entender essa ou aquela escrita como secundária. Mas deveria ser o contrário. O ue
época. (Afortunadamente tive excelentes professores e devefia estar em primeiro plano é a escfita, a nossa escrita, e
cursei um bom colégio.) Com essa base sólida, o que me submeter a leitura a nossos interesses, porque a escrita é a
faltava saber, sabia como e onde procurar. conseqüencia direta de nossa reflexão íilosóflca. E não

46 • Gonçalo Armijos Palacios De como fazer fdosofia sem ser grego, estar morto ou’ ser gênio • 47
necessariamente escrevemos porque lemos, mas porque
pensamos, porque refletimos, porque noy problernatizamos,
Ora, para isso, primeiro o leitor terri de entender o que digo —
o que, aliás, nao acho difiCil,d O Cuidado, a preocupação e o
porque nos admiramos e espantamos. A leitura deve ser
compromisso que tenho coma clareza.
subserviente a escrita, e nao o contrá rio — o que significa, no
As revistas especializadas, aliás, têm, para orientar o
fundo, que a leitura deve ser subserviente à reflexã o. O mais
Lnportante, para caÕ a inn ‹ic nó s, assnii cmiiiu ÍoÍ c C para us
leitor e impedir 1e itu i il S” 2t e S mn o recurso rin re*
grandes fdó sofos, é o que esta dentro das nossas cabeças, •mr› r» abstract. “Este arÕ go pretende mostrar que ...”
nao o que esta fora delas. Se o que eu penso nao é importante Entã o, se pretende mostrar algo, é isso e nào outra coisa,
para mim, em primeú o lugar, para quem mais poderia ser? e o leitor, depois, vera se o escritor do artigo atingiu seu
Se um texto filosó fico pode ter mil significados, entao objetivo ou não, ou se o estimulou a levantar vôo agitando
nào tem nenhum. O escfitor não atingiu seu objetivo, o escfitor suas próprias
asas — o que eu, certamente, almejo.
kacassou. Fracasso quando ninguém o entende, fracassa quando O leitor eo escritor representamduas figutas diferentes.
cada leitor acha que pode fazer a leitura que haja por bem O leitor assíduo de filó sofos diflcilmente sera filó sofo. É o
Ffl 'Zf.P V€•fi R fq f'iCí é flF9 flÊ oq ú til lf. CllflTl f’fl Ufl S.9D t3fÚ Cr Ct
escritor que podera sê-lo. E quem escreve e publica sabe que

escritor, que fez o possível para ser claro, e sim o leitor que se 48 • Gonçalo AriniJos Palacios

deu o direito de interpretar como quis. Comisto destruímos a


filosofia, a tomamos um conjunto de caixas vazias erri que os
leitores poderei colocar dentro delas o que quiserem, a torto e
a direito. Eu, corno autor, nã o posso aceitar que cada leitor me
leia de uma maneira diferente. Se isso é possível, entà o
deverei admitir a minha incompetência. Que cada um possa
ler o que escrevo da maneira que quiserme resulta inadmissível,
porque estou taxativamente afirmando certas teses e não outms.
Outra coisa é que meu texto leve oleitor a achar significados
que sabe que não estào no meu texto, mas isso pode ser se,
tomara, estímulo o leitor a pensar por si, a argumentar sobre
meu texto eairadiante comsuas conclusõ es. Ficaria feliz seisso
acontecesse
deve evitar ambigü idades. Antes de publicar seu
livro, todo autor é chamado por membros da equipe
de revisão da casa editora para corrigir o texto,
alterando-o aqui para evitar trechos confusos que
dêem lugar a várias interpretaçõ es, corrigindo-o lá
para deixa-lo mais preciso. Os revisores
perguntem: “Ú isto que o senhor quer dizer ou é
aquilo?” E aí cabe ao autor fazer as alterações num
sentido ou nouno. Qualé, entào, o direito que tem o
leitor de interpretar o texto a seu Ôel-prazer e
“reiativiza-lo” como lhe convenha?’lodo o direito,
na verdade, se o que interessa é tudo, menos o que
o filósofo disse. Nesse caso, para que ler? Não seria melhor
pôr sobre o papel as própnas idéias?
Não é porque inventar teorias puras que os
filósofos publicar. Seus textos são fruto das
discussões teóncas com
De como fazer filosofia sem sei grego, estar morto ou ser gê nio • 49
seus colegas, com outros filó sofos etc. E xatamente como é a “É poCa é uma abstraçã o. Se todos somos filhos de uma
fdosoú a em Platão. De um ponto de vista, a filosofla é um época, o somos da mesma maneira que o somos dos
diálogo com a época. Por esta razão os diálogos de Platão nossos pais. Ora, cada filho é um ser ú nico, é um indivíduo
sefvem maravilhosamente para mostrar como se faz filosofia.
diferente dos seus ifmãos. Ha, portanto, algo pró prio que
Faz-se filosofiadescobrindo problemas, propondo soluçõ es
ele tem e flaO COITlQartilha nem com seus Amaos. O
e discutindo-a s. E com quem mais poderíamos fazê-lo se indivíduo é ele e a
situação em que se encontra, como diz Ortega y Gasset.
nao é com os nossos pares* Como disse antes, a fdosofla Por outro lado, o individuo produz idéias que, uma
avança quando duas pessoas sentam e dizem: argumentemos, vez criadas, tomam certa independência do seu autor. Se1
discutamos. Sem isso, os textos sã o palavras ao vento — e nã o pouco da vida de Marx, por exemplo, e fiquei sabendo que
pode haver nada mais triste para um autor do que a falta de teve um filho com a empregada, filho que nao quis reconhecer
retorno do que escreve. Os textos que produzimos não são e que ficou a cargo de Engels. Este fato concreto rrie ajuda
abortos, são filhos diletos e devem ser acolhidos, de uma ou a entender a lei da tendência da queda da taxa de lucro,
de outra maneira... mas acolhidos. Lidos e contestados, são ponto centtalda sua teoria? Igualmente, em que me ajuda
como cartas das quais logramos obter respostas. saber que ele se casou com Jenny von Westfallen? O que
ajuda, sem
duvida, e conhecer os debates com os seus coireligioná Ó os e
contemporâneos. E tudo isso está registrado em suas cotas.
Portanto, somente se a pessoa deixa algum escrito confiável e
ú til que possa trazer luz a sua teoria, devemos preocupar-nos
““ com sua vida privada. A época em que viveu Marx, todo
pesquisador bem informado sabe como foi. Seja corvo for,
o que interessa é que ele chegou a uma conclusão acerca do
l ndiscutivelmente, o filó sofo é filho de sua época, e conhecer sistema capitalista. Interessa-me saber se essa conclusão é
a época na o,ua1 ele escreveri r• He
verdadeira ou Faisa, se existe iiiesnio essa tendência eswutural
melhor o homem. Também seria interessante saber dados
do sistema capitalista que o levara à extinção.
sobre sua vida qardcular.
Wittgenstein diz que devíamos abandonar a metaô sica
A noção de época, nao obstante, não pode ser pensada
e que a filosofia é um conjunto de pseudoproblemas. Ele diz
como se fossealgo concreto, definido, cJafo para todo mundo.
isso, eu entendi e o confirmo com o que diz nas suas cartas
50’ • Gonçalo Aonijos Palácios e
De como fazer fdosofia sem sei grego, esrar morto ou ser gê nio • 51
no que seus correligionarios escreveram sobre ele, entre eles
ou Fellini nao precisa fazer, para entendi-los, um curso de
seu mestre Russell eo filó sofo Ayer. Ajuda-me, para entender Histó ria do Equador, nem ler as Cartas, inú meras, escritas a
sua posição fílosó flca, saber que seu irmào era pianista, que meu pai desde 1982, para ter uma idéia exata do que quero
perdeu a mao na guerra e que Ravel escreveu Concerto para dizer nesses artigos. E, cora certeza, nada ha nessas cartas que
piano e orquestra(conhecido como Concerto para amãa esquerda)
possa orientar alguém a me entender filosoflcamente. (Nem
para ele? Vera que isso e relevante? precisa, pois procuro ser o mais claro e direto possível.) Por
O que, entà o, é relevante e o que é irrelevante na
outro lado, escrevo sempre com a intençao de dizer
época de um autor? Quais sã o os critérios para determina-lo e uma coisa e nao outra.
quem fornece esses critérios?
Eu nã o me considero um sujeito. Isto é, nao constituo
Erri que época estamos? O que elejo como importante,
uma unidade espú itual ou intelectual.Já mudei vá rias vezes
interessan te, positivo ou negativo da época em que estou
de opiniã o, arnadureci. Hà preocupaçõ es que nao tenho mais.
vivendo? Que vivência tenho da minhã OCa? Pala dizer a
O que como filó sofo me interessa nào é que os leitores se
verdade, nerri eu mesmo sei. Há inú meros aspectos que me
preocupem com minha vida privada, mas com que publico,
J*éwcup•uii. ic cci in, dir1Jo miimha atençã o e iiieu interesse w i.}t.in ‹-tin-i. i-}uc c w p u uuzU nicho ‹iica OU ineicpcn‹icnic

humano para as coisas mais diversas e distantes umas das de rriirn que posso até nem me lembrar mais, nã o me
outras, dou tanta atenção a umas, como pouca ou nenhuma preocupar mais. De tã o independente já nã o me pertence. É
a outras. Afora isso, quando penso em alguns dos meus domínio pú blico. Entretanto, minha vida particular não é
problemas fdosó flcos, esqueço os jornais, os noticiarios, as pú blica nem me interessa que seja.
guerras, as doenças, até minha família. Se algo me chama a Da mesma maneira, os filó sofos que li sei que
atençao, escrevo sobre isso — como tenho feito sobre a mudaram, muitos de maneira radical, alguns nem publicaiam
questão do aborto e da clonagem de animais. Todavia, nada coisas que escreveram porque ja nà o lhes interessavam mais
ha. nos artimgos oaue acahn rIe- menrion«--,r ry-o ir =J+mw m too — é o caso de Marx e Fngels era A ideologia alega — ou nãc›
iiziUizL*aTa2 posiçõ es sobre conhecimento absoluto, sobre lhes atribuíam nenhuma importância.
certeza, sobre ideologia, assuntos que têm ocupado minha Não devemos, em conseqüência, superdimensionar
atenção em outros momentos. E nada nesses trabalhos se aspectos que os próprios autores não a deram nenhuma
relaciona com minhas re0exõ es sobre Fellini, Chaplin, impoitancia, ou que não são relevantes em sua obra. Muda
Picasso, Cezanne. Em outras palavras, quemlêmeus artigos meu parecer sobre Einstein o contrato estranhíssimo que fez
sobre Cezanne, Picasso
De como fazer filosofia sem ü ef grego, estar morto ou ser gênio • 53
52 ° GOFíÇalO Armijos Palâ cios
com sua mulher? Ajuda o tal contrato a entender melhor seu
pensamento? É rele vante? atrapalhando a cfiatividade. O erudito é descobridor de fatos
A resposta é “depende”. Depende de “o que seJamos: conhecidos —conánua —, O Sabio é aquele que inventa valores.
iRSiStência na importância da leitura, em prejuízo do
leitores, erudi tos, ou fdósofos. A é OCa, pensamento, sugere que o importante é mostrar grande
afortunadamente,
esta ou esteve ali. Se nào está mais, os livros de histó ria
nos erudiçã o. E os artigos de filosofia sã o prova disso. As listas
ajudam a revivê-la.
bibliográficas são
Quanto tempo levaram os fìlósofos para escrever seus
há mais citações e referências bibliOgf áficas que em obras
textos? Alguns o fizeram em questão de meses. Um
dos livros inteiras dos filósofos conheCidos — às vezes chegam a mais
que teve grandeinfluência em filosofia, o Tratar boa caiu
de setenta! Queminsiste na importância da leitura deve pensar
huzfana, de Hume foi publicado quando Hume tinha apenas
23 anos. E foi escrito, COmo o próprio autor em quantas vezes os clá ssicos fizeram citaçõ es nas suas obras.
confessa, por As Medita kes ilaO fazem uma só citaçao. Nem a Crítica da
desejo de fama. Apesar desses dois fatos, seu texto teve uma
grande influência em outro grande filósofo: IOnt. Será ração para. Nã o mostra isso de maneira clara que a ênfase
que deve ser posta não na leitura e sin em alguma outra coisa,
Kant leu Hume preocupado com a vida e com o contexto
como, por exemplo, na pró pria reflexão?
Hume, a cótica àidéia de u cerro é que resgata, de Há liVfOS inteiros com teoõ as sobre métodos deleitura.
cBUSâ. causa é essa e não é Ea cótica humiana à idéia de Setá que os autores escrever seus livros pensando nas técnicas
outra. E
e depois o texto de Kant, vi quando eu li a CfÍtiCil de Hume que deveriam ser usadas para lê-los? Será que os autores
escrevem seus livros para teó ricos de metodologias de leitura
imediatamente que eu entendi o
que Hume pro
pó s e que tal compreensã o coincidia Com a de que sirvam de mediadores entre seu texto e o pú blico? Sera,
Kant, assim COfnO a de outros que falavam sobre o em uma palavra, que o pú blico-alvo dos filó sofos sao os
mesmo
assunto. Qual, então, é o espaço para “leituras”
diversas? especialistas ou os metodó logos em leituras?
Francamente, nao SH . (Não SP , repito, pen SO como filós ofo,
Seria muito mais frutífero, do ponto de vista
nao como comentados ou eriiriifr› hstoria3or) pedagó gico, ensinar a escrever do que ensinar a ler. Mas o
Se VafflOS EÍVll e g Íar a leitura, Ce rtamente
v
que interessa mesmo é ensinar a pensar fílosoflcamente, e
amo s
prejudicar a escrita, se vamOS for leitores, não vamos isso só pode fazer quem fllosofa.
nd
fOf mar filósofos.
leitura após uma certa idade, diz Einstein, acaba 54 • Gonçalo Armijos Palâcios
De como fazer filosofia sem ser grego, estar morto ou ser gé nio • 55
O dito pelo nã o filosófico, comprometido com a verdade, é natural que o
à to façamos por meio do dito. Mediant e o dito em outras obras
do autor, de SUã COfr8S Ondência, via sua autobiografia
Num texto filosófico, em resumo, interessa o dito ou o nao intelectual ou uma biografia intelectu al confiavel.
dito? Podemos entender isso de varias maneiras. Para evitar NF fRÍfl ha E xperiencia filosó fica ocorreu algo de

Num textoideologicamente carregado, naturalmente, interessa «true iiiiportância. m trabalho sobre ideologia que acabei
mais o não dito do que o dito. O racismo de um discurso, de mencionar eia a minha monografia de graduação. Por
sem dúvida, se explica mais pelo não dito do que pelo dito. aquele tempo estava enormemente interessado em problemas
Assim, uma leitura de um texto ideológico deve pressupor de filosofia política, e o problema da ideologia era um deles.
uma metodologia que desvende o pano de fundo Naquela época já tinha feito uma leitura séria da fdosofia
ideológico moderna, especialmente do empirismo lnglés e o idealismo
do discurso. Um dos meus primeiros trabalhos fdosó ficos, alemào, e havia lido Marx. (Meu interesse se devia ao fato de
lá QOf 1978, tratou desse assunto; nele propus um método eu dar aula de Sociologia e Economia Política —| Of
que permitia desvendar a estrutu ra ideolúgirn ri‹n Hi q»
por meio da determinação do que chamei de funções retóficas. Contrariamente à maioria de meus colegas — e depois
Aquela pesquisa me Qermitiu distinguir trés tipos de vi, a maioria de marxistas que conhecí —, li Althusser de OiS
ursos políticos: o falso, o verdadeiro e o falaz. Os dois de lei Marx. Li Althusser porque, rodeado de’althusserianos,
primeiros nào representam grandes dificuldades de análise
discutia constantemente assuntos relativos à s teses de Marx e
ou de compreensão. E o terceúo que se converte em um me surpreendia a quantidade de coisas estranhas que eles
desafio, já que quem enuncia um discurso falaz está em posse
a mavam, especialmente no que dizia respeito à concepçã o
da verdade, mas não está no seu interesse exprimi-la. Daí
marxista de ideologia. Sabia que Marx não dizia o que,
que, nesse caso, seja mais importante o que diz o nã o dito, o
baseando-se em Althusser, dizia de oue a6rrnnvn Fi›i enf«p
que está entrelinhas, o oculto. ler Althusser. Fiquei atônito quando vi a quantidade de — o
Fora do escopo do discurso político, e voltando ao
discurso filosó fico, parece-me que a situaçao se invente, que
que me pareceu à época — equívocos. Marx dizia uma coisa e
o queinteressa é, empõmeiro lugar, entender o dito. É possível Althusseroutm.
Decidi, entà o, escreverminhamonografia de graduaçã o
que queiramos chegar ao não dito, mas, no caso do
sobre oassunto. PorisSO, ã põ lneiraparte da minha dissertaçã o
discurso
‘ bÓ
GOflÇàlO Armijos tar morto ou ser gênio • 57
I°alacios D


e

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foi uma crítica a Althusser. Meu orientador, um exilado descoberta sua ignorânCia das fontes, e, e claro, suas idéias
chileno, apesar de althusseriano — foi uma sorte — era muito polídcas e filosó ficos. Nesse livro Althusser reconhece que muitas
aberto. De minha parte, achava que Althusser era um picafeta:
das coisas que atribuííl a Marx eram, de fato, de sua pró pria
dizia que Marx afirmava coisas que nunca poderia ter dito.
safra. Que tinha lido pouco Marx e referido o resto, tal era sua
Mas sempre se cuidava —Althusser — para nào dizer em que
capacidade dedutiva. Isso provou, para mim, que aquele
lugares Marx afirmava o que ele dizia que afirmava, De
aprendiz de £dó sofo, em 1978, fez a leitura correta de seus
qualquer modo, me pareceu ó bvio que o que Althusser dizia
textos: Marx nem dizia nem poderia ter dito o que se lhe
era uma coisa e o que Marx dizia, outra bem diferente.
atãbuía. Atábuídas a Marx, as teses de Althusser eram falsas. O
Naquela parte da dissertação me limitei a fazer uma
problema era que nà o erarri de Marx, eram dele pró prio.
leitura do dito por Althussei. Na segunda, piopus uma
Ora, eu ou qualquer pessoa que nà o tivesse conhecido
definiçao de ideologia e uma metodologia para determinar a Althusser pessoal e até intimamente jus podeáa ter chegado
estrutura ideoló gica de discursos falazes. Na terceira parte ao dito pelo nào dito — pelo autor — nem ao nao dito pelo
aphquei o método a uma obra sobre o histoticismo, de Kad dito. O pró prio Althusser se empenhava em ocultar isso de
Popper, mostrando a estrutura ideoló gica do discurso por seus leitores — e com sucesso. Todas as coisas que apareciam
meio õ a iõ entincaçao daqueles recursos retó ricos. escritas sobre Althusser fazlam uma sérle de construçõ es
Passaram-se uns quinze anos, Althussermatoua mulher mirabolantes, achando significados profundos em lugares que
(em 1980) e veio a falecer (em 1990), nã o sem antes ter
Althusser nem dizia, nem queria dizer nada, como se
escrito (era 1985) uma autobiografia para sei
depreende do que ele pró prio confessa na autobiografia. Mas
publicada postumamente. Por coincidênCla, o colegaJoel
havia os críticos do seu pensamento, e neles Althussei
me contou que tinha sido publicada a tal autobiografia (O
reconhece méritos, mais méritos do que em seus leitores que
futuro dura muito /r «J, que comprei imediatamente e li cora o endeusavam. (Um desses críticos é Roland Barthes).
avidez. Como poderia — eu — ter percebido a incompa-
ȟ c a> ienes aiCnusserianas e as ne iviarx se minha
h« A i r° ’tal i°° * i uiro° om r “'ri •o% 'i
leitura nã o tivesse sido, como proponho que deve ser,
de homem de génio. o textopro adamente tocado
avaliativa, crítica e dirigida ao que se alma? Que a ideologia
pdo queAlthusser conta, sua histó õ a de desajustes emocionais, seja uma estrutura inconsciente, nao aparece em qualquer lugar
os meses internado em clínicas psiquiátãcas, suas depressõ es,
dos escritos de Marx. Que a questã o da ideologia seja
suas fobias, seu pavor de falar sobre Marx em pú blico e de ser
De como fazer filosofia sem ser grego, estar morto ou .ser gcnio SP
58 • GonÇWoAmQosPHado
importante e mereça um estudo, menos ainda. Nà o há nada
explícito ou implícito, na obra de Marx, que diga ou insinue nao cabe queremos entrar no mérito da questão.
que seria importante levar adiante uma teoria da ideologia, ja Se na filosofladesprezamos o lado semantÍco, fica o
que o pró prio projeto é inconsistente com o materialismo quê? Qual é a intenção do fdó sofo se não dizer o que é ou o
Stó rico de Marx. “Que teorias da ideologia sejam feitas que deve ser? COmo poderíamos renunciar a avaliar o que
pelox idealistas", teria Sino s nosiçno de Mu w, "e i « e
natural que o filó sofo queira em primeiro lugar estar
ocupo com idéias e sim com processos histó ricos, materiais certo. Nossa preocupaçã o como leitores, entà o, deve ser esta:
e a estrutura do real”. decidir se o que ele diz é verdadeiro ou nã o, se pode ser
De toda essa histó ria eu extraio uma conclusã o inferido ou nào do que foi dito antes.
importante, para a filosofia. O jovem, o aprendiz de filó sofo, Os filó sofos insistentemente têm reclamado da
deve confiar nas suas intuiçõ es e segui-las até exauri-las, como ambigü idade do discurso. Platà o, Descartes e Leibriiz
SOIlÍiaVdlTl COm um cálculo universal, uma linguagem objetiva,
eu Õ z com a minha intuiçã o de que Althusser estava enganado.
O tempo deu-me a razã o; o pró prio autor, sem sabê-lo, deu- direta, clara, unívoca. Para que teriam insistido nisso se não
me a razà o. Muitos dos meus colegas e os militantes de para barrar o subjetivismo, o discurso indireto, escuro,
esquerda, naquela ocasião, consideravam que eu estava uvj vwcw. Se wo íiiÔ suius i iH proposto métodos, iemÔ re-se,
equivocado duplamente: emcriticar a tese althussetiana e, mais nã o é para ler e sim para descobrir a verdade e para escrever
do que isso, em ousar cÓ ticar um filó sofo de renome mundial sobre ela, evitando os abusos da linguagem e dizendo as
coisas, como Descartes queria, de uma forma clara e distinta,
— aliá s "o” filó sofo marxista vivo e na moda naqueles anos.
Eu, um ilustre desconhecido, um jovem principiante! Pois é, irnitando a geometria (Platà o) e as matemá ticas (LeibnÍz). Eis
eu mesmo... que, no fim, estava certo. uma proposta filosó fica. É fácil entendi-la. Pensemos: esta
certa ou nao? Por quê? Está certa, penso, porque na filosofia
Penso que nã o podemos correr o fisco de transformar
a leitura filosó fica em uma leitura semelhante à que se faz de queremos dizer isto ou aquilo, não tudo; queremos que se
poesia. Meramente nao vou avaliar m»poeina, nã o vouentrar
em consideraçõ es acerca de suaveidade ou falsidade.A poesia significados que nemimaginavamos possíveis.
transcende o ambito da verdade e falsidade, transcende o
âmbito semâ ntico. E na poesia que há uma dimensã o subjetiva
inesgotá vel, uma dimensã o interpretativa enorme. Na poesia
60 • Gonçalo Armijo› PaJlcios
De como fazer filosofia sem ser grego, estar morto ou ser genio • 61
Os exemplos de uma filosofia “brasileira”. Só exijo que se faça ‘Qualquer
Cirne Lima e Eznildo Stein fiosoúama squese façaseproduza fosofla ”no”
Brasf Tarripouco e.stou insiflUando esquecer os gregos,
alemães, franceses, ingleses ou norte-ameacanos.
O Brasil nà o é ainda — lamentavelmente — uma cultura de enterrar os
Trabalhamos’! “com!” eles e “como” eles,
fdó sofos e sim uma cultura de cornentadores. Nào é urna
cultura de produtores de idéias filosó ficas, mas de especialistas amigavelmente, discutindo,
em idéias filosó ficas. Nà o é, enfim, uma cultura de escritores-
Fã ÇdII1OS Como o Cirne Lima e o Ernildo Stein — que fazem
fdó sofos nem de leitores de filó sofos e sim de leitores de
suas coisas, tranqü ila e seriamente, sem o aparelho
comentadores de filó sofos. A academia não produziu uma
propagandístico de um jornal de grande circulação nacional
cultura filosó flca brasileú a, mas uma subcultura dependente,
por trà s deles.
Condições para isso temos todas. (Veja-se o arügo do
quase que absolutamente, doque se faz em culturas estrangeiras Ernildo Stein, “Acerca do dito e do y T, n. 1,
dizer”
(à s custas do dinheiro pú blico, permita-se-me dizer.) Se até 1996). Nã o contém uma citaçã o e nenhuma referência
hoje nã o avaliamos o que se faz lá fora, nao nos posicionamos, bibliográfica. No entanto, outros aró gos que teriholído—mesmo
nao ousamos por pró pria conta, quanô o e que vamos faze-foi como editor de um veículo de divulgaçã o filosó fica —sã o muito
A grande maioria de professores de filosofia noBrasil somos bons.Pois, apesar de serem fundamentalmente comentáàos, seus
servidores pú blicos. Servimos o pú blico brasileiro? Produzimos autores, brasileiros, nã o deixam de emitir ctitéfios pessoais
idéias pró prias? Como nos engajamos na histó fia desse povo? valiosos; pena queo façam tã O timidaments Ctr l citaçàO e itaçà o
fomentando —timidamente, aliá s, — o que se faz lá fora? Eis a Quem dera se as citaçõ es ocupassem uns dez por cento e o
questã o! COrpo do textO, COfIlO posicionamento de seuautoç uns noventa
Antes de ser filó sofo, o filó sofo é ser humano. Vive por cento. Ou, entã o, que encham as pá ginas de citaçõ es, mas
no presente e tem um compromisso com o futuro. Qual é o que as discutem e avaliam, que seus autores se posicionempennte
elas. Ham aténa-pnmapanproduzir muita e boa filosofia “no”
passado? Qual é o compromisso do professor de fdosofia Brasil; precisamos deuma mudança de atitude a respeito de nó s
com o futuro do Brasil? Comentar e interpretar cornentadores mesmos edas nossas possibilidades filosó ficas. Nãoprecisamos
estrangeiros pela enésimavez, por mais geniais que eles sejam? pedir emprestado a ninguém. Tenho ouvido conferências elido
Não me passa pela cabeça dizer que se deve fazer artigos dos meus colegas que me deixaram muito motivado
62 • Gonçalo Armijos Palacios
De como fazer filosofia sem ser gtego, estar morto ou ser gênio • 63
pelo seu teor filosó fico. Gostaò a tanto que reduzissem
onú mero de seus comentários eaumentassem o das seas Procurei por mim mesmo, diz Heraclito. Pois façamos isto.
Procuremos pot nó s mesmos, escrevamos o que esta dentro
pió prias idéias. O Brasil ganhaäa com isso.
O que fazer, e como fazer? Tudo está para ser feito. de nó s, o que nó s mesmos pensamos. Essa, aliás, é nossa
Do jeito que cada um achar melhor. Nao se trata — nem obrigaçă o, para isso nos pagam. Temos as condiçò es
m"°tOiñ Ü ‘i3Ü @¡¿tj w — uc nc ar uu igiiurar u quc se raz em outras intelectuais para isso, nào as temos? Usemo-las e ousernos.
partes do mundo. Deveríamos fazer o que sempre se fez, Que diferente serta ir a um congresso de fdosofia no qual só
continual uma reflexäo partindo das pió prias reflexõ es ou, se falasse o que cada um pensa, que se expusesse o fruto das
entäo, das de outros filó sofos. pró prias pesquisas, do pró prio trabalho, sem comentźrios,
Podemos fazer como Cirne Lima e dizer: “até aqui é sem enésimas leituras; um congresso em que cada um tivesse
Hegel, a partir daqui, sou eu”. E dizer, de maneira análoga, a coragem de se expor e dizer quem estź certo e quem está
até aqui Foucault, daqui em diante, eu. Quine até aquí, eu a errado e por qué; dizer, também, por que o pró prio
paitir daqui. Ou fazer como Ernildo Stein e ter a coragem expositor estź certo. Como, repito, fazem Cirne Lima e
de abrir novas trilhas. Como o fun nr› set i excelr t+ Ğ m»‹ n• Ernildo Stein, verdadeiros mestres da filosofia no Brasil.
o/rQin e nos seus textos sobre ideologia e racionalidade. Há
umjovem colega, no meu departamento,que quer se aventurar
nas ciências cognitivas. Eu não vejo muita esperança nesse
projeto —pelo projeto, năo pelas condiçõ es do meu colega —
mas o estou apoiando constantemente, incentivando -o a
escrever sobre o assunto, a publicar etc. Pode nào me iiiteressar
o assunto, posso não ver peispectivas fdosó ficas nele, mas
quem sou eu, ou quem quer que seja, para impedi-lo de Propõ e-se que leiamos os fíló sofos procurando nã o os
procurar por si mesmo. O pior projeto é o qtle nã o se g••••• •• •- • o • o we in' za mumsimn, iiidb t-I zigli-tLtcAçjtj tjU

encaminha, a pior tentativa, a que nà o se tenta. significado. Se eu, como autor, quero dizer aiguma coisa, por
que escolho com tanto cuidado as palavras que mais
COmo podem ver, nå o se trata de negar nem o passado
nem o estrangeiro — eu mesmo sou estrangeiro. Trata-se, claramente refietem o que penso eé aminha intençåo dizet?
inclusive, deseguir os conselhos dos velhos e gtandes filó sofos. Aliás, fico com um pé atiás com todas aquelas pessoas que,
quando falam comigo, năo dizem o que realmente pensam e
64 • Gonçalo A Jos Palźcios
De como fazer filosofia sem ser grego, estar morto ou ser gênio • 65
entrcvcjo sigiú ficados ocultos nas suas palavras. Quando isso poderia ter outro significado que nà o esse? Em uma palavra,
ocorre, reclamo: “Diga clafamente o que realmente quer por que o pró prio Platão, quando argumento, fala das teses
dizer”. Por que ocultar-se falando em meias-palavras? de tal ou qual interlocutor, de tal ou qual filó sofo, por que faz
Se os fdó sofos escrever esperando — e esforçando- tanto esforço por deflnir os termos, isto é, por fornecer seu
se para — ser pontuais, objetijr s, claros e distintos como em significado essencial? Por que Aristó teles pó s tanta ênfase na
Descartes, por que deveríamos procurar sigriificados que nao deflniçao? Por que Platào nos diz 9ue dex°emos proceder
tiveram intençã o de transmitir? Que filosofo gostaria que se como na geometria, que passa de definiçõ es precisas a
lhe atribuisse o que nào disse? Como poderíamos avaliar verdades claras, por meio de argumentos só lidos? Que grande
fílosoflcamente uma tese se sempre houvesse o recurso — filó sofo admiária ser lido a partir do enfoque que cada um
retó õ co —de dizer: “Ah!, mas eu estou pensando no significado ache por bem dar a suas teses? Como poderemos responder
do significado”. Assim, alguém poderia emendar: “E eu, no as perguntas dos alunos se acreditamos que cada um pode
significado do significado do significado!” Esta posiçã o anula buscar significados de significados e que nà o interessa o que
a comunicação filosó fica ea transforma em um conjunto de o £dó sofo diz, mas o sentido que o significado tem para o
insinuaçõ es; nao de teses, mas de estrofes; nà o de argumentos,
leitor? Sendo assim, posso dizer: “O signif1cado de n§ú sú
mas de trovas.
em IOnt vejo o num sentido nietzschiano!” Ora, o que zen
Supondo que a fdosofia consista em significar o que, significa? Significa que meu aluno pode atribuir qualquer
em primeira instâ ncia, nà o significa como, entà o, podeõ amos sentido ao meu significado. Dessa maneira, acabamos não
sobre alguma base só lida avaliar ou entender uma tese dizendo absolutamente nada e destniímos a pró põ a filosofia,
filosó fica?A posiçã o que estou cfiticando leva-nos à afirmaçã o convertendo-a, como disse, em um conjunto de caixas vazias
de que a filosofia nà o diz algo, diz tudo, dizendo tudo, em que cada um põ e o que o bem quiser. (Por trá s desta e de
naturalmente, nã o diz nada. muitas das minhas argumentaçõ es esta o seguinte critério
Se nossa leitura fdosó fica pudesse assim ser levada a metodoló gico simples: se uma tese filosó fica me obriga a
aÔ anõ onai os usos norIildiS da língua, Impedindo-me a
teses platô nicas é afirmar omaterialismo. É o significado que normal comunicaçao com as pessoas, é a tese fi1osó fica que
nos leva ao idealismo, mas o significado do significado, ao devo abandonar, nào as pessoas).
matefialismo!” Como poderíamos reagir perante semelhante Ha um problema adicional. Os textos filosó ficos, na
atitude? Não é o platoriismo uma posição idealista? Como sua maioria, são do presente, nao do passado. Na verdade,
G6 • GonÇWoA )o1RüaGoC
De como fazer filosofia sem set grego, estar morto ou ser genio • 67
há mais fdó sofos vivos do que mortos. Quando Rorty, por partir daí querem abandona-las, tudo bem, se querem mudar
exemplo, veio a Sao Paulo — eu estive lá — discutiu suas idéias. ou enriquecer os sentidos originais, têm todo o direito. Mas
Como poderia alguém discutir com ele se já lhe atribui
isso só depois de entender o que realmente foi dito.
antecipadamente os significados que quer? Como podefiamos Se a filosofia fosse exclusivamente diálogo com os
discutir, se cada um tem o direito de atribuir ou procurar
mortos, poderíamos atribuir-lhes os signiflcados que
signiíícaéíos que não estao no texto, e o ííió sofo, presente,
quisessernos sem escutar reclamaçõ es. Mas a filosofia nã o é
reclama que nã o éisso que ele disse, que é outra coisa. A meu
exclusivamente diálogo com o passado nem com os mortos.
convite, o filó sofo da ciência Mario Bunge ficou uma semana
Aí está o problema.
lTlÍflÍStráflÕ O UfR Seminário no nosso curso de pó s-graduação,
Para que expressamos o que pensamos senão para
em 1950. Lembro-me de que ele flcava profundamente
transmitir que queremos dizer, e não outra coisa? Por que
incomodado se alguém lhe atribuía signiflcados que não se
escolhemos dizer isso e não aquilo? Qual o valor de escrever
inferiam das suas teses. Chegou até a discutir acaloradamente
o que pensamos se o leitor já é educado para não entender o
quando insistiam em atribuir-lhe coisas que não tinha dito,
que queremos que entenda?

era a correta: a de repioduzú seus significados. O mesmo


que pensamos? Se o que interessa não é o que dizemos mas
aconteceu com EmstTü gendliat, quando foi convidado pelo
aquilo que nem sabemos que dizemos, para que, entao,
curso de graduçã o. Tü gendhat nã o deixava passar uma
escrever o que pensamos? Se o leitor fará dos nossos
inconsistência, uma arnbigü idade, nem permitia que o
signiflcados o que ele quiser fazer, para que entao publicá-
interpietassem de qualquer maneira.
los? Por que não, melhor, poupar-nos do trabalho? Que
Muitos filó sofos abandonaram suas posiçõ es filosó ficas
sentido tem fazer o grande esforço que fazemos em ser claros
por causa das críticas de seus colegas. Um caso interessante é
o de Wittgenst«/n, que abandonou suas teses do trai:tate, em
e precisos? Para que consiste, em uma palavra, o rigor, a
seriedade e o rest›eitn r›elr› one pen*o• r›c7 fi. anne eer5 o
virtude das cáticas de Sraffa. Os filó sofos nao abandonariam
respeito pelo que os outros pensam, se vamos atribuir-lhes
suas posiçõ es, no entanto, se aqueles que os criticar nã o
significaçõ es que nã o lhes dizem respeito?
conseguissem entender os significados das teses propostas e
Afirma-se que o interesse pelo significado real do que
se, em conseqü ência disso, nào estivessem em condição de
o autor diz levaria a re0exão a se atomizat em filosofias, o
avaliar o que eles objetivamente mantém em suas teses. Se a
que impediria de se produzir um conceito abrangente de
68 • Gonçalo Armijos Palá cios
De como fazer filosofia sem ser grego, estar morto ou sei gê nio • 69
fdosofia. Ora, se Platào tem um conceito de filosofia e 70 • Gonçalo Armijos Paiacios

ittgenstein outro, e cada um deles tem cem leitores que


atribuem a significaçã o que quiserem aos seus conceitos de
£dosofia, terminamos na situaçã o paradoxal de queixar-nos
de que se atomize a significação de filosofia, por um lado,
enquanto estimulamos nossos leitores a atribuir os significados
que quiserem a seus conceitos, incluído, é claro, o de filosofia.
No caso citado pelo exemplo, começamos com dois
significados claros e precisos de filosofia e terminamos com
202! É isso que nã o só atomizaria a filosofia mas a destruiria
pela sua base. Por quê? Porque é a racionalidade do discurso
filosó fico que nos permite comunicar-nos, nã o a
arbitrariedade das interpretaçõ es voluntarísticas que cada um
desejar fazer.

.
Os gênios

tais uma vez quero referir-me a este assunto. Varias


vezes tenho visto insinuar que para fazer filosofla a
pessoa

classicos como gênios). Ha inclusive um certo pudor nos


que ostentam um diploma em filosofia de chamar-se a si
mesmos filósofos. “Não — dizem —, eu sou 'professor' de
filosofia.” É compreensível esta atitude num país que se nega
sis-
tematicamente a fdosofar. Se o diplornado em filosofia, o
professor de filosofla, nào se atrejre a exercer seu ofício de
fdó sofo, por temor, por sentimento de inferioridade, ou o
que for, é claro que se sabe nào-filó so fo e nao vai desejar ser
chamado desse modo. Com toda razã o. E a sua desculpa
pudorosa DressuDõ e este argumento Se r rJo 6lú ofo ó Unir›
“ “ “ *
e eu nao sou gênio, então nào sou fdó sofo”.
Se o estudante de fdosofia pagasse, ele pró prio, sua
educação, poderia fazer do diploma o que houver por bem
faxer. Mas se o Estado paga, da bolsas no exterior etc., para
formar fdósofos, a obrigação deles, gênios ou nào-gênios, é
voltar ao BraSil, voltar à sala de aula e exercer sua
profissao, neste caso, exercer filosofia. Seria inadmissível que
o Estado pague uma bolsa para alguém voltar da Europa
ou dos Estados UniÔos com um doutorado em medicina,
com uma
especialiZaçáo em neurocirurgia, e essa pessoa voltasse ao
Brasil e começasse a exclusivamente comentar que por lá
se faz e como se faz. Isto seria profissiona1 e eticamente
inadmissível. Como seria inadmissível que alguém voltasse
ao BraSil COfn um diploma de músico e nào tocasse um
instrumento e se limite a escrever artigos sobre como se faz
música no exterior.
O filosofo nao espera anuência de ninguém para
filosofac Aliás, nao pode deixar de faZê-lo. É este um
exercício vital, cotidianO. A partir do momento em que o
aluno é aprovado no vestibular de uma universidade
séria, ou em qualquer exame de ingresso de uma
universidade norte-
De como fazer filosofia sem veer grego, estar morto ou ser genio • 71
americana ou européia, se lhe reconhecem as condiçõ es
intelectuais para exercer uma profissão. Exerçarrios, entào, a
nossa, sem falsos pudores. Nem um eventual resultado
negativo nas nossas pesquisas e re0exõ es filosó ficas, nem o H› aspecto extremamente positivo na teoria de que o
desprezo que nossos escritos possam vir a receber serao um leitor tem o direito de atribuir signiflcados aleató rios aos
cntetio fundamentado sobre onosso fracasso como filó sofos. ú xigi ricaÔ os reais, pois a veiélade e que tem mesmo. Mas é
A sociedade inteira poderia rir de nó s e de nossas reflexõ es. precisamente nesse ponto que sua reflexã o se afasta do texto
E daí? Não foi isso que muitas vezes aconteceu? Qualquer e das teses contidas nele, e a fdosofia pode avançar — caso o
que seja o resultado, porém, e enquanto filó sofos, não leitor desenvolva suas intuiçõ es. Lendo um texto de Platào,
podemos esperar o aplauso fácil nem que se nos jogue um OSSo dar um signifiCado totalmente não platóriico a um
tapete aveludado para andar sobre ele, Essa nã o é a conceito. Nesse instante, porém, o centro da reflexão deixa
circunstância do filó sofo. O filó sofo filosofa apesar de tudo. de ser Platào e começa a ser onovo conceito e, põ ncipalmente,
Mas deve filosofar. a preo pação filo ofc volta senso e mim mesmogp

o que pensamos mesmo se formos presos, perseguidos ou outra, o que ele não diz nem poderia ter dito, fazendo-o
vilipendiados. Nã o é reconhecimento que queremos, é, passar por plató nico.
simplesmente, um espaço para filosofan No entanto, posso ler Popper e reformular seu
Por que só o filó sofo deveria submeter-se a um exame conceito de falsabilidade de uma maneira que termine com
de genialidade? Quem vai ministrar o exame de genialidade uma noção absolutamente nào popperiana. O que estou
para filó sofos? Um filó sofo europeu? Que critédos usaria: o fazendo, na verdade, é filosofia, na medida em que me afasto
conhecimento de uma língua européia, latim, grego, o da mera leitura opinativa e passo a criar. Isso só acontece,
coriherirriento da rrietrirlril‹n ri fennre<o qnm porem poro,ue assumir urna minirle rrírir
no seu são juízo, se submeteiia a tal exame? de Popper e comecei a pensar por mim mesmo. Numa
palavra, porque discoidei de Popper. Nesse caso posso
escrever um livro com o ó tulo de N ofaiibilismo, escrevendo,
com todo direito, meu nome (no espaço reservado ao nome
do autor). Todo mundo sabera de onde veio minha tese. E,
72 • Gonçalo Armijos Palacios De como fazer filosofia sem ser grego, estar morto ou ser génio • 73
assim, farei como Bacon, que escreveu o loims organiim,
Como foi feita urna catedral, a catedral kantÍana, por
contra o Orgmuiri aristotelico, ou como Feyerabend, que exem—
}31O, é o interesse de um arquiteto que, a
escreveu C0nlra o oé Of/r, contra a tradiç/ao iniciada pelo Dú r«rra partir daí, e com o
conhecimento suficiente de como foi feita
do metodo, de Descartcs. tal catedral, podera,
COfrl flOVaS Íntuiçõ es, fazer outra. Este é
Nà o obstante isso, nà o vamos esquecer que a fala o Õ ló sofo.
humana mao é um aglutinado de significados mas de
afirmaçõ es e negaçõ es entrelaçadas, isto é, de significados
enriquecidos por um sentido mais amplo. Dizer nà o é
simplesmente sigriificar, mas organizar tais significados numa
ordem coerente. Se nos fixamos nos significados
isoladamente, perdemos o sentido e a riqueza da mensagem,
O itÚ cio do fdosofar

do movimento diacró riico das idéias, dos juízos, das posiçõ es
‹““’“‘
filosó ficas. Entender o que I€ant quer dizer com Como e quã f }dC só começa a filosofar) Ora, há um c
“transcendente”,“transcendental”, “sintético apriori” etc., nã o omo e
Vtn quattdo certos para começar a fdosofar? Talvez as duas
e dió cil, o queinteressa e saber o que faz Kant com tais termos. pe rguntas estejam interligadas, e a solução de uma nos leve a
A riqueza da teoria de Ikant nào se esgota nos signiflcados
responder a outra.
isolados dos termos que usa, mas na visã o fdosó fica do O guardo, certamente, depende do r0oa. Tentemos,
mundo que organiza com eles. Devemos, portanto, saber pois, responder a esta questão.
distinguir entre o comentarista, que se interessa por conceitos O início do fdosofar, nesta ou em quaisquer épocas,
isolados, e o filó sofo, ue quer entender e construir visõ es de surge quando ha urrt certo fipo de problematização acerca
mundo; saber distin em suma, entre o interesse unilateral de algo. Isso, porém, •ao oos diZ fntlitO §oiS também na
do pedreiro e a visão ampla e de conjunto do arquiteto. ciência ocorre o mesmo. O problema fit »$ ico e a temada de
consciencia da pró pria ignorancia; surge quando percebemos
auibuii-lhes tal ou qual significado, separados do todo, é o que ha algo de impoftfincia que ignoramos. Mas
funddamen
interesse do pedreiro que retira um tijolo e o parte desta ou isso ainda nào distingue oproblema em filosofia do problema
daquela maneira para dar-lhe uma nova forma, a que na ciência. Nao se ttata, pois, de qualquer tipo de ignoiancia.
convenha a seu interesse específlco. O interesse por saber Eaquela ignoiaiicia que nao pode ser resolvida de maneira
74 • Gonçalo Armijos 1•alacios
De como faaer filosofia sem ser grego, estar morto ou ser gente • 75

satisfatória com o auxílio dos outros campos do saber vezes deixam seus pais e os adultos em maus lençóis. Eles
humano. E nisso, sim, há uma diferença com as ciências. Nelas, questionar com candor aquilo que os adultos não têm
podemos sair da ignorancia e resolver o problema, em coragem de fazê-lo. Quem sabe se ser filósofo não consista,
princípio, dentro da própria disciplina ou corri a ajuda de talvez, em ser um pouco criança ou em ter a coragem das
uma outra. Por exemplo, podemos resolver problemas na crianças.
Dioíogia comi o auxiuo de conheclnicin.ux int quinze. ou A curiosidade da criança e uma curiosidade autêntica
podemos resolver problemas na química com o auxilio de e despreocupada pois parte da convicção de que ela xls /#n
modelos fornecidos pela matemática. Isso diferencia as ciências & saber. Quando nó s achamos que /rmoi & i«ú rrdeixamos de
da filosofia. Na filosofia, em pÕ ncípio, não podemos resolver ser crianças e fechamos as portas para a filosofia. Se o adulto
os problemas com os conhecimentos adquiridos em outros continuasse a questionar as coisas como o fazem as crianças
campos de saber. Num sentido, os problemas filosó ficos se talvez haveria mais ciência e mais filosofia.
situar no limiar entre tudo o que é conhecido e o que não é Mais os adultos acham que sabem. E, entre eles, os
conhecido. chamados especialistas. Por isso, fujamos deles e voltemos à
mMm AW mo nm‹mmm mm+ ‘ ‘ ’ *
de fundamental importância jura rô i poderia produza uma 76 • Gonçalo A )os Palácios

reflexão filosó fica— sempre que nos achemos em condiçõ es


de levar adiante tal reflexão, sempre que superemos certos
complexos de inferioridade incutidos culturalmente.
O antefior pressupõ e que nossa incerteza bem podefia
chocar a certeza que a maioria poderia ter sobre o mesmo
assunto. Provavelmente nisso consista a incerteza filosó fica:
duvidar da credibilidade daquilo sobre o qual ninguém duvida.
Ou, melhor, ter a ousadia de duvidar sobre o que ninguém
duvida.
Para que isto ocorra devemos ter um cento grau
de
candidez e de coragem. É por isto que as crianças demons-
tramuma grande capacidade de questionamento e nã o
poucas
••^• * •••<^ ^^ > * H AO 0 t.lll2.1.J. III bb*t 1 Uf.z$Ilt.lCcL

começar nossa procura — talvez — filosófica.

A Atitude Soczática

Quando falamos sobre a atitude que uma


pessoa qualquer deve ter para poder fazer filosofia,
não podemos deixar de lembrar aquela frase, atribuída a
Sócrates, de “só sei oue nada sei”.
Isto, é claro, poderia significar muitas coisas.
Talvez seja uma conclusão: só posso concluir que
nada sei. Ou, melhor ainda: com certeza, só posso sãber
isto: nada sei.
Se ela foi umà conclusão, entào ela procede de
algumas premissas. Necessa amente, uma dessas
premissas sera uma
De como fazer fdosofia sem ser grego, estar morto ou ser gênio • 77
resposta a: quanto posso eu saber?* Ou, “seria que eu posso
à natureza.
saber, com certeza absoluta, alguma coisa?” Ou, ainda, “ser*
E chegamos, por outras vias, ao fuga i- o ride
que eu posso saber a solução deste problema?” começarmos. É a consciência de um problema o que nos leva
Para chegar a estas perguntas precisaríamos ter partido a filosofar. Mas é a certeza de que, mesmo assumindO nossa
de uma outra constatação, a de que temos um problema, fragilidade, temos a força suficiente para pensar que nos le a
isto é, chegar à certeza de que algo náo sabemos. Partimos, a continuar filosr›f ride Poi4 S• p•• ch.egnm.os
portanto, da consciência de nossa ignorâ ncia. descobrL•
Podemos levantar varias hipó teses sobre as possíveis problemas nas nossas conclusõ es. Sempre hajrerá alguém,
prerriissas que eventualmente teriam levado Só crates à ou algo, que nos faça notar que os nossos fundamentos nà o
conclusão de que só sabia que nada sabia. O que aqui me estao tà o fundamentados assim.
interessa, porém, é notar que a consciência da pró pria Cada certeza é uma porta fechada, e cada dogma
ignorância est* implícita tanto nas premissas quanto na é um tú mulo era que jaz o pensamento.
conclusã o. Precisamos de incertezas e dú vidas para continuar
E c justamente sobre isto que me parece importante procurando. Devemos ter presente que nossas certezas sà o
refletir. A condiçao Inicial para o lilosofar e a tomada de piecá rias. E ainda bem que é assim.
consciência da nossa ignorâ ncia, da nossa fragilidade humana. Mesmo que depois de uma vida de filosofar
É assim que se inicia o conhecimento científico e cheguemos a conclusõ es inamovíveis, nà o devemos esquecer
fdosó fico. É assim, altas, que se produz qualquer tipo que o que nos levou até lá foram dú vidas e incertezas. Os
de problemas que nossa fragilidade humana tinha de resolver.
conhecimento: quando devemos enfrentar um problema. Não podemos pretender, em conseqü ência, que
E, na fdosofla, uma das maiores diflculdades que começaremos a filosofai sem pó r nossas convicçõ es sob tela
devemos enfrentar é nossa pró pria tolice. Nào há pior tolo de dú vida. Mais tarde ou mais cedo. Para que filosofar se
que aquele que acha que sabe tudo e, por isso, nã o quer nao o fizermos? Se queremos ver nossos dogmas garantidos
«p.o<. » < . e longe de ameaça do pensamento, por que entrar num
Erro grave é confundirignorância com tolice. A tolice departamento de filosofla e não num seminário de teologia
contra a qual devemos lutar é outra, é a da nossa arrogância, ou, melhor, numa igreja?
da nossa pretensão de achar que ja sabemos, de imaginar Talvez depois de anos de filosofar nossas dú vidas sejam
que, corno diz FfanciS Bacon, nós impomos nossos conceitos resolvidas. Mas, pelo menos, tenhamos a coragem de pô r
78 • C›onçalo Armijo.e 1•alacios as
Dc como fazer filosofia sem ser grego, estar morto ou ser gênio • 79
coisas nas quais acreditamos sob questão. Caso contrario
Volta e meia me defronto com esta questã o.
não teremos interesse em procurar. Porque já começamos Especialmente quando, prestes a enfrentar uma nova turma
supondo que estamos em posse do saber. do curso de filosofla, devo dizer aos novos estudantes que
Dessas ceitezas antecipadas é intriga a filosofia. Pois me smo é a disciplina à qual eventualme nte, como eu fiz, vào
sã o essas certezas dogmá ticas que tomamimpossível o pensar. dedicar-se pelo resto das suas vidas. Com efeito, desde meus
19 anos — e depois de uma rápida passagem pela graduação
em Sociologia — tenho dedicado minhas energias intelectuais
a filosofia. Que podeia ter a filosofia que me fez abrir mão
de um futuro muito mais confortá vel e seguro financeú amente
Voces, fló sofos! caso tivesse escolhido uma profissã o mais rentá vel? Na
verdade, tem tudo.
A reflexã o filosó fica talvez esteja muito mais
pró xima e seja rriais íímiliar do que a maioria das Neste caso, e sem querer fazer um trocadilho,
pessoas imagina. esse “tudo”, acreditem, nã o é pouca coisa. Porque muita
coisa qocxia sauer c muitas éiú vicias invaõ iam meu espíÕ to
Uma das coisas que torna a filosofia tào apaixonante e que quanao era adolescente e muito jovem. Quis que a
mostra como ela é ú nica é o fato de nela podermos sempre filosofia me respondesse muitas coisas. E, sim, muitas foram
filosoficamentequestionar sobre sua pró pria natureza. Com respondidas satisfatoriamente e outras muitas dú vidas
efeito, a pergunta “o que é amatematica” não é urna pergunta apareceram. Comecemos por aquelas, as que foram
propriamente matemática nem “o que é a biologia” uma respondidas. O que me levou a estudar fílosofia foi uma
pergunta bioló gica. “O que é a filosofia”, no entanto, é uma pergunta que me fazia desde muito cedo, uma questão que
pergunta essencialmente filosó fica. E, paradoxalmente, tal continha outras e que posso pó -la assim: qual é a origem
pergunta pode receber diversas respostas sem que, por isso, da miséria, da pobreza,
alguma delas tenha necessaÓ amente de ser menos filosó fica
do que as outras. A verdade é que os grandes filó sofos tem por ter nascido num país latino-americano, com gente
dito o que é essencialmente a filosofia e eles nem sempre pobre, e muito pobre, mas, também, com gente rica e muito
concordaiam. rica. Quando meus pais me levavam a passear e saía da
redoma de felicidade que era minha casa, via muita pobreza
80 • Gonçalo rmijos PàiaCiOS em ruas, praças e avenidas. Mendigos, pedintes, pessoas
descalças de
De como fazer filosofia sem ser grego, estar morto ou ser génio • 81
todas as idades numa cidade, como Quito, que pode chegar que tem profundas conseqüências praticas na escolha do tipo
a ser muito fria depcndendo da hora do dia. Impressionava- de vida que uma pessoa pode levar. Tempos depois vi,
me particularmente ver crianças descalças pelas ruas dessa quando cursava a graduação em filosofia, um argumento sobre
minha cidade, sabendo que as pedras da calçada costumam a existência de Deus, num texto de um filósofo antigo, que
estar geladas quando o sol nà o bate nelas. Quando era criança,
claro, nà o sabia nada de filosofia nem podia suspeitar que tal
pergunta poderia ser filosó fica. Qual nào seõ a minha surpresa feitO des leituras, sem serem eruditas, têm questõ es teó ficas
quando, tempos depois, vi que um filó sofo tinha escrito, profundas. Com efeito, há muitos problemas que nos
alguns séculos atrá s, um livro com precisamente este ó tulo:
perseguem só por sermos seres humanos. Muitos desses
Discurso sobe a origem da desigualdade rflfr# os homens, respon-
problemas tentamos resolver nesse diálogo constante que
dendo ao chamado de uma academia que tinha aberto um
travamos com nó s mesmos, mesmo sem suspeitas que são
concurso com o desa£lo a responder precisamente essa
questõ es fdosó ficas que também preocupararn e exigú am o
questão. O fdó sofo era Jean-Jacques Rousseau. Posso dizer
esforço de grandes filó sofos. Quem não se perguntou, por
que talobra respondeu a essa minha antigapieocupaçãoquase
exemplo: “se Deus sabe tudo, minhas açõ es nã o està o
que completamente. Outras leituras de ouuos autores viviam
predeterminadas por esse conhecimento perfeito que Deus
para fechar essa questão.
tem das coisas? Posso agir de modo diferente ao que Deus,
Esse episó dio, visto a distancia, mostra algo muito
por ser onisciente, ja sabe como vou agir? Posso ser livre se
interessante. As dú vidas filosó ficas nà o surgem Deus tem consciência prévia dos meus atos?” Estas questõ es
necessariamente quando ja somos adultos. Muitas questõ es exigiram nã o pouco esforço de filó sofos clá ssicos que
que ninguém poderia negar serem fÍlosó flcas começam a escreveram textos procurando resolve-las.
aparecer bem mais cedo. Quando adolescente, por exemplo, Quantas pessoas não se questionaram sobre as causas
estava pensando nos atributos de Deus e surgiu um problema que nos levam a achar beleza em certas coisas e não em outras.
soÕ re uma aparente incompatibiiiaaõ e entre tais atributos e a Quantas não perguntaram, não só “por que acho isso belo”,
existência divina. Lembro que continuei o raciocínio e cheguei mas “o que é, no fundo, a beleza?” Qual, de fato, é a natureza
a uma conclusã o que inliuiu profundamente na minha da beleza e por que em todas as culturas existem critérios
concepção acerca de tudo — a vida, o mundo, outras pessoas, estéticos? Será que os diversos ctitétios estéticos respondem
o bem e o mal. Temos aqui o caso de uma questão filosó fica a um ú nico padrao de beleza, a uma espécie degene da beleza)
82 • Gon alo Armi’os Palacios
DC COmo fazer filosofia sem ser grego, estar morto ou sec genio • 83
Estamos programados natural e geneticamente a achar beleza 84 • Gonçalo Armijos Palá cios

nas coisas ou é algo que se origina socialmerite? E, será que


essas noçõ es de beleza estào relacionadas à natureza do amor?
Será que o sentimento estético e o eró ó co està o associados?
Sera que necessariamente devo amar o que acho belo? Será
que o que acho belo me força a, de alguma maneira, amá -io?*
A atraçã o, o amor, a beleza està o intimamente relacionados?
Devemos acrescentar à lista o desejo e o prazer? Ha alguma
relaçã o íntima entre atraçao, desejo, prazer, amor e beleza?
Talvez nossas preocupaçõ es sejam outras.
Provavelmente estamos cansados de tantaviolência,de tantos
cõ mes hediondos e tantos outros cometidos por causas fú teis
e sejamos levados a pensar: é correta, moralmente, a pena de
AâÃmWO&&bmW. A .W. WWm mW m.mW%W &bW%fl&fl Hm .TV%LR& mWmWIW
HmwYmOKmI,Õ OWmWAAfl A 11AWW&H&LHW, Ww•Wm111
o correto, o incorreto, o bem, o mal, a beleza, o amor nos
atinge e preocupa intimamente. Na verdade, é impossível
viver sem pensar, alguma vez, nisso tudo.
Caia leitora, caro leitor, a posiçao que você talvez já
tenha formado no seu espírito sobre tais assuntos pode ter
um fundamento filosó fico e você nã o saiba ou nã o tenha
consciência disso. É muito prová vel que você tenha feito uma
série de raciorínins tit›irnmente fílosó íiros sem saber Vejamos
Pense agora: você é a favor da eutanasia ou da morte
assistida? Essas questõ es não são resolvidas pela mera
leitura de um texto. Talleituraaté podeÕ a influenciar nossas
respostas, mas, em ííltima instancia, somos nó s que damos a
resposta que intimamente achamos mais convincente. E
somos
convincentes quando damos boas razõ es para chega a você como um ser humano normal, fazem toda a diferença
uma conclusão ou a outra. Mas também podemos não do mundo. Porque assim é a filosofia: ela afeta
chegar a nenhuma conclusão. Mais ainda, podemos chegar profundamente nossas vidas e
à conclusão de que toda conclusão definitiva vai contra
De como fczer Filosofia sem ser grego, estar morto ou ser genio • 85
a natureza das coisas. O interessante é que todas as
respostas, se foram arriparadas por um raciocínio e
fundadas por isso em argumentos, sao filosó ficas.
Mesmo essas respostas podendo se contradizer entre si.
Perceba-se, não interessa a conclusão a que cheguemos.
Se você chegou a ela por uma via puramente racional —
de um modo honesto e sincero —, o fez por um
raciocínio estÓ tamente filosó fico. Talvez nã o perceba que
fez um raciocínio filosó fico e que tentou resolver um
problema fdosó fico. O mais seguro é que você pense que
a filosofla é aigo tã o esquisiro e arasiaéio dias nossas
prcucupaçü cs tipicamente humanas que vocês
1eitoras,1eitoies, achando-se simples mortais, pensem que
não podeÕ am jamais estar tendo, dentro de vocês,
raciocínios filosó ficos. De uma coisa estou certo: se
você já pensou nessas questõ es e chegou a um ou a
outro resultado, ha nesses seus iaciocínios muito mais
filosofia doque se encontra emcentenas demaçantes,
opacos e eruditos artigos acadêmicos discutindo este ou
aquele conceito desse
JmãJnJyGmz3m m lAmJ.mA mmAm¥mWM MWmmA.DODmJmmm
%&r&WM..mmW&mMOWmmW&WmP ml W .GW. tW. W9P.M..
mais se interesse e cujos resultados seguramente a
ninguém importar, à diferença desses seus argumentos
sobre a vida, a morte, o correto, o incorreto, que, para
sem ela, realmente, nà o da para viver uma vida propriamente dos gregos classicos. De alguma maneira, nó s, ocidentais,
humana. fomos feitos à imagem e semelhança deles, dos gregos, e
nào dos povos orientais. Recebemos seus valores, sua cultura,
sua visà o do mundo e da vida e tudo isso se mostra da
maneira mais variada. Nà o é uma influência que tivemos no
” passado e ficou no passado. Nó s falamos, pensamos e
A fdosofia como Assidencia nos comportamos, ainda, em algum sentido muito
importante, seguindo padrõ es gregos. Para ver como fomos
Desde o início, a fdosofia mostra uma influenciados a pensar e dizer as coisas como os gregos,
característica: a de ser a prá tica e a efetivaçã o de
basta olhar o nosso vocabulário ever quantas palavras (e,
uma dis›idéncia intelectual.
portanto, valores), herdamos deles. Repito, nào é só pela
O contexto dos ííltimos artigos é o diálogo que estabeleço quantidade de palavras que herdamos, é pela bagagem de
com meus estudantes sobre a origem e a natureza da filosofia. valores e formas de ver o mundo que recebemos e nunca
abandonamos. Uma dessas formas de ver o mundo
discussõ es e me permitem ir formando aos poucos uma consiste na nossa tendência a racionalizar as coisas e
imagem cada vez mais exata do que foi a filosofia desde exigir exphcaçõ es ló gicas — o que fazemos desde que somos
suas origens. crianças. Isso, nao podemos negar, devemos em muito aos
Uma interessante pergunta, feita por uma aluna, era a gregos.
de se eles iõ am estudar, também, filosofia oriental. A pergunta As primeiras explicaçõ es que encontramos nos
é extremamente pertinente porque permite um esclarecimento primeiros filó sofos (sobre o princípio e a origem de todas as
coisas) secaracterizam por serem fundamentalmente racionais.
Os considerados primeú os filó sofos (Taies, Anaximandro e
que toda a influência que eYentualmente poderia ter sido Anaxímenes), entretanto, não foram os primeiros a querer
recebida da China, doJapào ou de algum povo asiadco. O explicar as coisas. ri mirologia grega é rica em explicaçõ es õ e
fato éque ha uma enorme diferença entre a influência que toda sorte. A diferença esta em que a explicação mitoló gica
as culturas orientais tiveram sobre oOcidente e a que nào é nem pretende ser puramente racional. Ela apela
recebemos continuamente ao irracional e nà o exige de si mesma
explicaçõ es coerentes — o que seria impossível para um
8ú • Gonçalo A )os Nzlacios
De como fazer filosofia ,sem ser grego, estar morto ou ser gê nio • 87
conjunto de lendas, estórias e explicações que foram fruto
explicação mitológica e sua imediata substituição pela
de tradições, constituídas ao longo do tempo e elaboradas filosófica. Estamos diante da coexistência (que nào foi
por inúmeras pessoas. O fdósofo, pelo contrário, é uma pacífica) de uma cultura mitológica, de um lado, e das
pessoa apenas e responsavel pela consistência do que diz propostas individuais de contestadores, de outro. Num
e pela veracidade do que propõe. No filósofo, sentido importante, a filosofia é uma espécie de contestação
poderíamos dizer, cultural provocada por livre-pensadoresque se negam a aceitar
>* o ü“iaÜoiiai c reinício as minério. mqucico que o que a tradição lhes impõe.
clii e difundem mitos nào têm essa responsabilidade Essa contestação deve ser entendida, também, como
nem esse interesse. Importa que os mitos sejam sendo de natureza política. Não é por acaso que os filósofos,
convincentes, nào fundamentados logicamente. Nos mitos, já desde aqueles tempos, foram perseguidos, processados,
as coisas ocorrem graças à açào de pessoas, animais e condenados, executados ou banidos. Em épocas mais propí-
objetos dotados de propriedades únicas, especiais, cias, no entanto, eles florescernm e suas teorias conviveram
sobrenaturais. Na filosofia, o pensador recorre a
princípios com os quais se procura
submeter o inexplicável. É parte do mito, pelo contráão, comp as expli aJoespmiJ ógi s ulturasp mo h e
que vd’ i
o racional se;la suhitimdo selo sobrenatriral
inexplicável como parte da explicação. O irracional, de algum 88 Gonçalo Anni}os PaJácios

modo, não é mais do que uma outra forma de racionalidade


que não obedece nem se reduz aos parametros lógicos
clássicos.
Membros de uma cultura que desejava entender e
explicar as coisas o mais satisfatoriamente possívei, os pÓmeiros
filósofos, influenciados pelas explicações mitológicas mas
insatisfeitos com elas, esforçararn-se Dor detiurar tais
explicações de todos os seus elementos irracionais.
Vemos, então, uma ruptura dentro de um tipo de
continuidade. É a continuidade de uma tradição explicativa
depurada de seus elementos irracionais. Essa ruptura, porém,
deve ser bem entendida. Não implica o abandono sú bito da
Evolução. Assim, a linguagem simbólica do mito
convivia, não sem sobressaltos, com a linguagem
lógica da fdosofia.
De qualquer forma, o longo processo que
levou à consolidação da tradição filosófica na antiga
Grécia não foi simples. Como dizem Kirk, Raven
eSchofield, no seu excelente e clássico The
parem:raticphilosopherx,

a transição dos mitos à filosofia [...] é muito mais


radical que aquela envolvida num simples
processo de de- peisonificação ou de-
mitologização [...] Ao contracio, ela compreende
eéo produto de uma mudança que épolítica, social
e religiosa mais do que meramente intelectual [...}'

Os filósofos gregos se opuseram a uma tradição da


De como fazer íiiosofia sem ser grego, estar morto ou ser génio • 89
qual eles faziam parte — cultura que também tinha recebido
caráter antropomó rfico das nossas explicaçõ es das coisas. Suas
influências de outras culturas, como a egípcia, a babiló riica e
conclusõ es sobre o conhecimento são, ao mesmo tempo,
a feriícia. Mas em nenhuma dessas culturas surgiu, como na
uma dura crítica à religiosidade da época. Vejamos alguns
gregz, uma atitude de contestnçào raclOnal que conseguiu, ao
fragmentos de seu pensamento:
longo de varios séculos, constituir uma nova tradição que
caracterizaria a atitude filosó fica: a tradição da cultura crítica,
Mas se mã os tivessem os bois r›s r«sol‹ne e o< l+r»<
do livre debate e da dissidência intelectual.
pudessem com as mã os desenhar e criar obxas como os

- Cambridge Cambridge Univcrsit)' Press, 1983, p. 73. homens, os cavalos semelhantes aos cavalos, os bois
semelhantes aos bois, desenhariam as formas de seus
deuses e os corpos fariam tais quais eles pró prios tê q2

Ou seja, os seres humanos projetar nos deuses suas


própõas caracteósticas físicas. Isso fica claro neste fragmento:
“Os egípcios dizernqueseus deuses têmnaõz chato e são negros,
Desde seu início, a íílosoria foi um debate que os ttácios, que eles têm olhos verdes e cabelos ruivos”.
nfio se realizou só entre pensadores, mas entre os Somos
fdó sofor e suas tradiçõ es. nós entãp, que fazemos os deusesà nossaimagemesemelhança,
N os artigos anteriores mencionei três pensadores gregos, e nào ao contráão. Mas nào só projetamos neles nossa imagem
Tales, Anaximandro e Anaxímenes, considerados os põ meiros dsica como nossas características espirituais. Por isso, os deuses
filó sofos ocidentais. Os três começaram uma atitude que gregos eram cheios de vícios, o que motivou a revolta
caracterizaria a filosofia: a do debate entre eles, por um lado demais de um grande filósofo grego — como Platão na sua
úúúrn, obra eiri que Homero é banido da cidade perfeita.
Xenófanes,
’ por sua parte, se queixa de que “tudo aos deuses atribuíram
< < *•• • .\< , W1 mktClU. comete em-tesiodq tudoquantoentreoshomens inerecerepulsa
›*^.•
A discordância das crenças tradicionais é muito clara 90 • ÚOflçãlO Aimijos l'al3CiOS

em Xenó fanes. Pelos dados que temos sobre os gregos


antigos, esse fdó sofo é o qrimeú o a se preocupar com o
conhecimento como problema e a chamar a atenção para o
e censura, roubo, adultério e fraudemú tua.'

Xenó fanes percebeu que esses deuses e divindades


não eram outra coisa que oresultado de nó s projetarmos
neles as

De como fazer filosofia sem ser grego, estar morto ou ser génio • 91
caracterís ticas da nos sa pró pria natureza. Assim, Deus supremo que, no entanto, é acompanhado de um séquito
audaciosamente, contra essa religiosidade na qual deuses e de anjos, arCdfiJos, querubins, serafins, santos e santas para toda
divindades inteiagiam com homens e mulheres, nem sempre
e qualquer ocasião, e cujas imagens e ícones têm poderes
fazendo o correto e louvá vel, Xenó fanes propõ e urna
sobrenatumls.
concepção monoteísta. Ele pensava que existia um só deus:
Quando um pastor de uma igreja — cuja
“Um ú nico deus, entre deuses e homens o maior, em nada
denominação nao lembro — chutou num programa de
no corpo semelhante aos mortais, nem no pensamento”.
televisã o a imagem de uma santa cató lica, afirmando que
Na seguinte descrição parecem estar juntas a onisciência e
aquele objeto nã o passava de um pedaço de pau pintado
onipresença que nó s mesmos atribuímos a Deus: “Todo de preto, despertou a reaçào compreensível de inú meras
inteiro vê, todo inteiro pensa, todo inteiro ouve”.
pessoas. Sua açao foi interpretada, nào sem razão, como
Pr entendermelhor o porquê do adjetivo “audacioso”,
um ato contra a crença e a veneraÇão cató licas da Virgem
énecessáÕ o dizer o seguinte. Fui citado na tradição cõ stá, como
Maria. Muitos, também, acreditavam que aquele homem
cató lico. Quando fui catequizado, ensinaram-me que o
estava chutando e desrespeitando nà o um mero
símbolo, mas um obJeto
cm,oaiucsiii num icugtãw >upcrio t woú «> p+< 3 ••er•Le pol >«g+adw. Eniuu lcinÕ ran‹io esse episó dio para mostrar que a
ir
ser monoteísta enão politeísta nemidó latra. A práticapopular menos politeísta eidó latra uma religião que afirma haver um
desse mesmo cristianismo —naversão cató lica, pelo menos —
92 • GonÇalo Armijos Pallcios
era e é, no entanto, completamente diferente do que me
ensinaram. Via isso, de maneira clara, na ieligiosidade dos
habitantes dos Andes e tenho visto isso aqui no Brasil. Não
se amautnú nico deus, amam-se, eido1atram-
se,inú merasimagens

monoteísta que nega a idolatria por simplesmente declarar que


não é nem uma coisa nem outra e por conceber um Deus
supremo? A hierarquia dos deuses gregos, com Zeus no topo,
não fazia dessa religiosidade menos politeísta. Como não é
reaçã o de indignaçã o provocada nessa ocasiã o particular, em
épocas passadas, nã o teria se limitado a isso, a uma
mera reaçã o. Antigamente, quem se afastava da
tradiçã o era perseguido, punido severamente e até morto,
como a histó ria da tristemente célebre “Santa” Inquisição nos
prova. Imagine- se, então, como devem ter sido recebidas
pelos antigos as manifestaçõ es pú blicas de repú dio contra
sua religiosidade

Não es ue amos ue Só crates foi p ocessado,condenado e


executado em decorrência de uma acusação de impiedade,
isto é, de irreligiosidade.
Nos artigos anteriores, vimos o debate entre Tales,
AnaximanÕ ro e Anaxímenes sobre a questã o do princípio
de
De como fazer filosofia sem ser grego, estar morto ou ser gênio • 93
todas as coisas. No caso de Xenó fanes, pelo que mostram os
seus fragmentos e as testemunhas de filó sofos e historiadores
antigos, vemos um debate com as tradiçõ es de sua cultura.
Umã das caraterísticas essenciais da
Isso tudo é um indício importante de que os filó sofos JOSOfia, O debate, se mo tra até na questã o de
nã o se ocupam, como costumeiramente se pensa, com que filosofia esmdar, a que nos ligaram os gregos
questõ es que ninguém entende e que a ninguém interessam. ou a que se fez e se faz no oriente7

Nunca foi assim. Qualquer crítica à s crenças, valores e à


religiosidade de uma comunidade, como prova o episó dio
Num artigo anterior fiz referência à pergunta de uma aluna
acima referido, tem ou pode ter profundas e radicais
que desejava saber se a filosofia que sería ensinada no curso
conseqü ências numa determinada cultura. Lembremos só as
seita só a ocidental ou também a oriental. Apesar de tudo o
críticas de Lutero à Igreja Cató lica, o cisma provocado no
que eu disse naquele artigo tentando explicar e justificar por
seio do cristianismo e as lutas armadas que a Reforma
Protestante provocou. q e •Iio eri OS filosofía ofiental, a aluria nto ficou satisfeita
e me entregou hoje um pequeno texto no qual desenvolve
No caso de Xenó fanes e de outros pensadores, essas
críticas sao teltas com o unico initrumento que o hlosofo as
razõ es de sua discordância.
possui: argumentos. Argumentos fazem parte de teoá as. Uma
No final da aula de hoje, a mesma estudante se me
vez ue as teorias ganham terreno, miriam-se os alicerces de
aproximou e disse que insistia na sua idéia de que a filosofia
instituições e tradições que podem ser milenares. É o poder
oriental devia ser ensinada no curso. A seguir, me entregou
do pensamento, o poder da razão que, como muitas vezes
aquele pequeno texto. Fiquei muito feliz pela atitude dela e
ocorreu, pode provocar revoluções. Quemacha quea filosofia
mais feliz quando, etn casa, li o conteúdo das suas reflexões.
é coisa dequemanda nas nuvens, desconheceapiópõahistóàa
É importante que, num curso de filosofla, e desde o início,
evive na pior das amnésias: a perda de sua memória cultural.
seja reconhecido aos alunos seu direito de pensar por si
2. Xenó fanes de Coloíão. In: Oi§rr-rom‹íJroi. São Paulo : Abril Cultural, mesmos e até de discordar do professor. Ela. simplesmente.
i973, p. 70. (Col. Os pensadores). não se conforma Com tudo o que tenho dito para justificar
3. Idem.
por que não ensinamos fdosofia oriental. Mas é importante
4. Xenó fones de Colofão. In: Os pré-socráticoi Sã o Paulo : Abril Cultural,
1973, p, 7t. (Col. Os pensadores).
que se mantenha firme na sua posição se tem argumentos
para sustentar sua posiçã o. E o texto que redigiu é uma prova
94 Gonçalo Armijos Palacios de que sabe argumentar e sabe afgumentar bem. Nào é a
De como fazer filosofia sem ser grego, estar morto ou ser genio • 95
primeira vez que uso este espaço para discutir com um aluno
cursos de fdosofla nos países ocidentais, na sua maioria, se
e espero que nã o seja a ííltima. Gostaria de que eles se
não todos, säo cursos de filosofla ocidental. Se um curso
manifestassem enviando cartas ou mensagens eletró nicas assim
quer fazer de um estudante um fdó sofo, seja nos Estados
como participam em sala de aula, principalmente quando
Uriidos, seja na Europa, mostra, em primeiro lugar, o que a
discordam. Nisso consiste a filosofia.
filosofia, nesta parte do hemisfério, tern de fato sido. Porque
Parece que, pelo menos, consegui mostrar a estudante
a filosoha, como é feita hoje, foi assist feita por Descartes na
que a influência que o ocidente iecebeu dos gregos é “bem moderriidade e pelos gregos na antigü idade. Esse, queiramos
maior e mais imediata” do que a que recebemos do oriente. ou nã o, é nosso legado. Esse é o plano do pensamento
Ela concede isso. E reconhece, também, que, se a filosofia “é filosó fico como realmente se deu no ocidente. Podefiamos,
o estudo do que influenciou nossa cultura”, o “completo sem dú vida, negando o pensamento fìlosó fico ocidental,
esquecimento” da filosofia oriental selia justificado. No propor outras formas do pensamento filosó fico, mas a partir
entanto, também ouviu de mim afiimar que a filosofia não do quê? Que a fìlosofia não tenha, ou năo possa ter uma
pode ser definida. E levanta aqui uma objeção pertinentíssima: definição, é uma coisa. Outra coisa é ter de responder a esta
se nã o poćie ser denriiua, per que Îiiniiar ecu c>tuü o >Ú << pcxgunia. coino ensinar a ñ iosoćar?• É oÔ vio que precisamos
que os ocldentais acham que é? Se ela, a filosofia, não term de alguma base para iniciar alguém na reflexão filosó fica. A
definição ou não pode ser definida, não serta ló gico, conclui partir de qué?A partir, evidentemente, do que existe ao nosso
a estudante, “que tenha uma limitaçäo täo estreita”! Muito alcance e émais pió ximo e compreensível a nó s, mesmo
bem. Agora estou obrigado a uma resposta. que consideremos que é possível pensar de outras maneiras.
A estudante e eu concordamos em que a filosofia nã o Mas como conhecer que há maneń as que sã o “outras”,
pode ser definida. Isso abre as possibilidades do seu estudo. diferentes isto ed se, desconhecendo a maneira ocidental, a
E, de fato, eu acho que a filosofia é uma atividade nossa, nao estamos em condiçõ es de fazer uma cornparação?
Sobre que
contradição daminha parte levantada pela aluna. Porque se é
tão abena assim, por que a fechamos, nos cursos de filosofia, pensamento íílosó fico se começamos por negar ou
limitando-a ao estudo da filosofia ocidental? desconhecer nosso pió prio legado filosó fico cultural? Posso
Temos aqui, mais uma vez, a tensão entre o ser e o achar que o português não é a melhoi língua do planeta, mas
dever-ser, entre o que é, e o que gostaríamos que fosse. Os como faço para ensinar a ler e escrever a uma cÕ ança nascida
96 • Gonçalo Armijos Palå cios no Brasil? Posso achar que as geometń as näo-euclidİanas sao
De como fazer fìlosofia sem ser grego, estar morto on ser gènio • 97
o supra-sumo da geometria. Mas, para chegar lá , preciso 98 • Gonçalo Armijos Palacios

começar ensinando geometria euclidiana, por estar mais


pró xima das intuiçõ es espaciais dos alunos. O espaço
euclidiano é mais pró ximo do espaço cotidiano. Posso achar
que a língua dos esquimó s é mais evoluída ou melhor do
que
o pomiguês, mas devo me valer deste para ensinar a escrever
a uma criança nascida no Brasil. Caso contrario, como
exemplifico para ela os inú meros significados que a palavra
“branco” tem na lingua esquimó , quase todos fazendo
referência à neve inexistente na maior parte do territó rio
brasileiro e alheia à experiência de quase todos nó s? Por
analogia, mesmo que os estudantes queiram fazer um tipo de
filosofia diferente, só podemos começar o ensino da reflexão
filosó fica pela que conhecemos e nos é mais pró xima: a que
nos legaram os gregos.
É justamente o conhecimento de nossa tradição
filosó fica que nos peimititia fazer o que aaluna sugere: “Além
do mais, é provável que sejam exatamente as tendências de
uma cultura completamente diferente o que nos ajude a
resolver os dilemas que até hoje não conseguimos resolver
com a nossa”. Concordo. Mas pala isso é necessá rio,
obviamente, saber, antes, quais são esses problemas e dilemas

filosó ficos com uma outra Õ losofia devemos, p metro, saber


quais são os nossos e, portanto, saber previamente qual
é nossa filosofia ou nosso estilo de filosofar. O mesmo
ocorre com o exemplo da estudante sobre amedicina: para
resolver
os problemas da medicina ocidental com conhecimentos da De como fazer filosofia sem ser grego, estar morto ou ser genio • 99

orientalé preciso conhecer urfra medicina ocidental. Também


concordo com que o conhecimento de outras culturas
amplia nosso conhecimento. Mas para algo ser ampliado,
esae algo precisa, antes, existir. Se minha cultura é
ampliada com a oriental, é porque antes tenho a minha
que só depois virá a ser ampliada. Nao nego, portanto,
que se estude filosofia oriental nem o benefício que
poderíamos ter de tal estudo. Mas chamo a atençã o sobre o
“quando”. A estudante também tem razã o quando põ e sob
suspeita ouso ocidental do termo “racional”. Ela está
certa: os europeus têm apresentado a razão ocidental
como padrão e como ponto de referência absolutos,
desconhecendo e desvalorizando outros tipos de
racionalidade. Mas, de novo, até para fazermos a crítica da
racionalidade ocidental devemos conhecê-la e, para
isso, estudá -la. Mesmo que depois, insatisfeitos,
pzocuremos nosso caminho trilhando outros rumos, que
poderiam muito bem ser os da filosofia oriental.
No entanto, fica uma questão em aberto:
supondo que nos nossos cursos de filosofia deva se
ensinar filosofia oriental e não ocidental... quem sefiam os
professores?
aprendemos a ser cidadãos brasileiros, ou uruguaios, ou
franceses ou ingleses. Portanto, além dos nú meros que serã o
O saber nào é o resultado de pensar as coisas
utilizados nas ciências exatas e nas ciências naturais e que são
sem mais; sabemos porque vivemo num tempo e
num espaço que nos forçam a pensar — porque, fundamentais para as profissó es de engenheiros, arquitetos,
geograficamente, condicionar nossos problemas médicos, químicos e bió logos, estào as disciplinas que fazem
e pesquisas. desses prohssionais brasileiros —arquitetos brasileiros, medicos
brasileiros etc. Essa será uma forma de contribuir corri a
pergunta “para que ensinar filosofia” pode receber sociedade, mas ha outras nao menos importantes, as que
inú meras respostas. Lamentavelmente, aqui no Brasil, a permitem a existência de mú sicos, pintoies e escritores que,
resposta que nà o costuma aparecer é: “para formar filó sofos”. entã o, e mais claramente, contÓ buirã o no desenvolvimento
Esta é uma questã o que merece ser debatida e discutida nos da mú sica braEleira, da arte br feira, do teatro brNleiro, do
centros de ensino supefioi e médio. Uma sociedade organiza cinema hmmm, da literatura br‹Mlrira etc. O país nã o é o que
a formação de seus cidadãos, obviamente, com a finalidade é simplesmente por termos cientistas brasileiros reconhecidos
de oque lee nnssnrri se incorporar produtivamente nela, iii uinaianncn ic — turim a‹jucics tjue iciii cjacione um
estejam em condiçõ es de contribuir para o seu mapeamento genético do homem. O Brasil já teve
desenvolvimento e para enfrentar seus desafios e seus compositores da estatura mundial de Heitor Villa-Lobos,
problemas. Assim, desde crianças, as pessoas aprendem tudo pintores como Di Cavalcanti e Poitinati, e são reconhecidos
aquilo que desenvolvera as habilidades que as toinarão mundialmente arquitetos corvo Oscar Niemeyer,
cidadãos ú teis pra si e para o resto. É com esse objetivo que antropó logos como Darcy Ribeiro e geó grafos como Milton
aprendem as letras e os nú meros. Mas, e antes de mais nada, Santos. O saber, mesmo nas ciências naturais, não é alheio às
supõ e-se que o ensino moderno forma cidadã os cÔ ticos, nã o nacionalidades. Porque só cientistas do Osvaldo Cruz
simplesmente autô matos que vã o at›licarrnecanicamente seus po3eÚ .am. ter Fntro as desrobe•t•s soh*^ • ç•* ** pt • *
conhecimentos nas suas diversas ocupaçõ es. E, dentre as vááas infectocontagiosas que podem ajuda ao seu tratamento, tanto
disciplinas que todos aprendemos na escola, estão aquelas de brasileiros como de qualquer ser humano. Vivemos num
que visam a formação de cidadãos preparados para os lugar do planeta e nào em todos. Assim, a geografia também
desafios dos novos tempos. faz parte da nossa cultura {tor afetar quem mora nela de
Não simplesmente aprendemos a sei cidadãos, mas maneiradecisiva. Por isso, a ciência é universal porque e apesn

100 • Gonçalo Armijos Palácios De como fazer filosofia sem ser grego, estar morto ou ser genio • 101
de ter um condicionamento local particularíssimo. Em muitos
casos, descobertas científicas fundamentais foram feitas não deixou de me causar profundo espanto. Sera que as bolsas
unicamente pelo fato de um determinad o cientista morar para o doutorado em filosofia no país ou no exterior podem
numa determinada regiào e ter de enfrentar determinados ser justificadas com a tese de que os novos doutores em
desaflos e problemas que cientistas de outras latitudes nào filosofia, e futuros professores da disciplina, recebem dinheiro
poderiam ter de enfrentar. para ensinar seus alunos a ler e comprar livros escritos por
ASsim, que fazer com o estudo da filosofia? Pode estrangeiros ComO |1UStificar a r›resenca de rim y›rofe«*rir ne
Compreender-se melhor, agora, o porquê dos problemas que filosofia nas salas de aula dos cursos de direito, comunicaçã o,
oensino da filosofia tem enfrentado tradicionalmente noBrasil. artes, arquitetura, geografia, por exemplo, se ele está aí para
É um estudo de fó rmulas alheias, distantes, que resolvem “ensinar os alunos a ler e comprar textos de filosofia” e não
problemas que nã o sà o os nossos e que, como cultura, só para mostrar quais sao os problemas filosó ficos que o homem
nos interessam de modo muito geral. É falso que todos os contemporaneo enfrenta e que ele mesmo, como professor,
problemas da filosoÕ a sejam eternos, universais e a-histó ricos. deveria tentar resolver? Se alguém recebe uma bolsa de
Desafio, quem afirmn isso, a debater o assunto publicamente. doutorado em biologia na Europa, será que o Brasil paga
zx iiiato xiciuaue é uma das caractensõ cas inerentes ao saber, e seus estudos para que volte depois de varios anos a “ensinar
os filó sofos só transcendei arn seu tempo porque souberam os brasileiros a ler e comprar livros de biologia” escritos na
S e inserir no St u monie• Europa? De um médico que foi pago pelo Estado para
2 W5to tiC o e entender sua época.
O ensino da JOSOÜil nO Brasil tem-se caracterizado aprender neurocirurgia num outro país se espera que volte
por limitar-se exclusivamentea Ktextos filosó ficos ea para exclusivamente ensinar como se opera nessas latitudes,
ensinar
métodos pala esse objetivo, como se fosse umgrande mérito sem ele pó r em pratica tais conhecimentos aqui? Podera ser
entenderurn texto que, obviamente, e na abrumadom maiona levantada a questã o: outra é a pratica filosó fica. Muito bem,
dos Casos, foi escrito para que as pessoas de cultura qualé então a especificidade da prática filosó fica se não fazer
mediana
* *°"'F'**"° ''- chã o foi, portanto, fllosofa? Como podemos exercer a tarefa do filó sofo se não
surpresa quando, num recente evento sobre o ensino da é sendo filó sofos assim como os médicos são médicos, os
pintores sã o pintores e, os escritores, escritores? Penseinos

de filosofia rofessor disse que seu objetivo como professor


era simplesmente motivar oS alunos “a ler textos num professor de filosofia que exerce sua profissão ha dez
anos. Não seja de esperar que nesse tempo todo tenha feito
e comprar livros”! Respeito o colega, mas tal
intervenção pesquisas pró pnas e produzido alguns resultados, sejam eles
102 • Gonçalo AmiiÍoS pd; ¡ S
De como fazer filosofia sem ser grego, estar morto ou sei gênio • i 03
quais forem, como para chegar num congresso de filosofia e nã o està o mais suportando essa lengalenga de ouvir histó rias
dizer “nestes dez anos enfrentei os seguintes problemas de problemas alheios, distantes no tempo e no espaço, e que
filosó ficos e cheguei aos seguintes resultados”? Não é, no não dizem respeito ao presente nero à realidade atual.
fundo, essa sua obrigação como intelectual“comprometido Porque, sejamos francos, da para aturar quatro anos de um
com a realidade”? Qual é, digam-me, o compromisso do curso qualquer ouvindo falar de problemas sobre os
professor de tiiosofia no Õ rasü enquanto intelectuais quais os professores nunca pensaram, nem tentaram
Convencer outros a ler pensadores estrangeiros e informá - resolver por si mesmos e nem poderiam sequer ter
los de métodos que os ajudem a entendi-los? Será que um pensado? Problemas que nunca surgiram como seus
professor de filosofia que passou uns dez anos ensinando a problemas? Onde estão os problemas &ori professores e as
disciplina não teria a obrigação de chegar num congresso e suas tentativas de soluçao provocados pela sua inserçã o na
ler umas vinte pá ginas de exclusivamente sua lavra? Todos histó ria presente, no momento atual, como cidadã os do
recebemos influências e nao estou sugerindo que devamos mundo que entra num novo século? Onde, numa palavra,
ser absolutamente originais. Todos nó s aprendemos a falar está i«n contribuição?

Fü osofia, por onde começar?


Como fazer para não formar eriiditos em
füosofia - mas incapazes de filosofar — e sim
filósofos2 Estniturar uma grade curricular que se
auaptc a• uiciui•içucs uu atum c u incentivo a
pensar o que realmente lhe interessa e para o qual
pode ter vocação.

É digno de nota que tudo que diz respeito à filosofia


104 • Gonçalo Armijos Pallcios
pode tornar-se um problema filosó fico. Até mesmo como

De como faner filosofia sem ser grego, estar morto ou ser gê nio • 105
fl

e por onde devemos começar. Isto é, como nos iniciarmos muitos devem se preocupar pelo problema que representa a
existência do mal na concepção de um Deus criador de tudo
nessa apaixonante aventura intelectual. À s vezes fico meio
e oriipresente. O utro é o da eventual incompatibilidade entre
preocupado, pois talvez a minha paixão pela filosofla me
leve a ver problemas interessantes por todos os lados. Mas a Sua OniSCÍênCia e a liberdade humana. Questõ es corno a
penso não estar enganado. Baseio-me para isso na enorme injusaça e a responsabilidade moral são problemas que podem
as pessoas a refletir e, eventualmente, a dar soluçÕ es. Se
quantidade de textos introdutó rios à filosofia e mesmo nas
mais variadas grades curficulares da á rea. suas ref sã o puramente racionais e chegam a
lexoes
A verdade é que a filosofia pode abranger todo tipo determinados resultados, é muito prová vel que tais pessoas,
de questõ es, tanto as que podem ser pensadas por quem nà o sabendo ou nà o, estejam desenvolvendo argumentos
tem formaçao acadêmica, como aquelas que só entenderia puramente filosó ficos. Mas assuntos como o mal, a
quem estiver num nível muito avançado dessa área ou de injustiça, a liberdade, a responsabilidade são questõ es que
alguma outra. Num sentido, a fdosofia não é para qualquer em geral preocupam pessoas com tendências a re0etir e
um, mas, noutro, qualquer pessoa que goste de refletir e se
procurar suas pró prias respostas. Sem dú vida, ha outros
aprofundar nos assuntos da vida ou da sua á rea, e fazê-lo de
problemas que só apareceriam em pessoas cOm muita
uma peculiar maneira, pode estar desenvolvendo raciocínios experiência em alguma
estritamente filosó ficos. De um lado, entã o, a pessoa poderia •• < uiiianu. corri ereito, questoes das rriatemaõcas,
precisar de grande experiência, de outro, só de capacidade da fiSiCa Ola da biOlO a têm levado matematicos, físicos e
intelectual e uma grande vocação. Isto é, a pessoa, sem ter bió logos a procurar soluçõ es fdosó ficas. O mesmo tem
formaçao acadêmica, poderia muito bem estar pensando acontecido na ló gica. Aliá s, uma das correntes de pensamento
filosoficamente, sem sabê-lo e sem necessariamente ter essa mais influentes na filosofia contemporanea surgiu de questõ es
ou aquela idade. ló gico-matemá ticas — cujos detalhes seria difícil explicar em
Digo isso até por experiência pró pria. Só quando poucas palavras a um leigo.
cursava meus estudos Fiiosó ncos íü i éÍescoõ rir que uiii Essas reflexõ es nos levam de volta ao assunto inicial:
problema sobre o que refieti aos quinze ou dezesseis anos de
idade tinha sido pensado por filó sofos clássicos. É oproblema de verbalizar a questão envolve dificuldades. O que, na
que — não tenho a menor dú vida — deve incomodam pessoas verdade, estou perguntado? Que se está interrogando: como
de todas as faixas etárias: o problema de Deus. Com efeito, deve ser ensinada a filosofia pra iniciantes ou — algo muito
diferente — como se começa a filosofar? Estas perguntas,
106 • Gonçalo Armijos Palícios
De como fazer fdosofia Sem ser grego, estar morto ou ser gê nio •
107
por sua vez, escondem outras. Pois que estou querendo dizer vera a luz no próximo ano. A minha proposta está intimamente
com a ííltima questão: como se começa ou como se deve relacionada com o que acabo de dizer: se começa a filosofar
começar? Tentarei respond er a esta última dizendo, de fifinitas maneiras. Se isso é assim individualmente, por
simplesmente, que é impossível estabelecer de antemao como que deveria ser diferente num curso de filosofia? Ou,
alguém poderia começar a filOsofar. Pois poderia ser como relacionar aquela tese com a necessidade de
por
estruturar um
L.1
r o
quinze ou dezesseis anos. Mas também é possível que um filosofia — como tem sido no que dou aulas —, o programa
físico quâ ntico, de sessenta anos, veja que nas suas pesquisas está baseado numa forte ênfase no estudo da histó ria da
ou resultados estão envolvidas questões filosóficas, e queira filosofia. Seo curso éanual, isso traz vários problemas. E possível
resolvê-las. Isso seca,então, que um estudante de filosofia, que um estudante chegue a interessar-se realmente por
ao entrar pela primeira vez no curso, e seja da idade que for, .problemas que só sã o discutidos na filosofia contemporâ nea.
de menos de 20 ou de mais de 50 anos, poderia estar Se esse for o caso, o estudante provavelmente devera esperar
ingressando no curso por já ter uma ou. várias questões quatro anos para poder se Enterrar de que, de fato, existem
filosóficas muito bem refletídas. No ano retrasado, por problemas que lhe interessam. I\finha proposta. em síntese, e
exemplo, tive uma turma que iniciou seus estudos filosóficos simples e, acho, inovadora: já no põ meiio semestre de aulas, o
em que dois estudantes se sobressaíram, uma aluna de 17 e novo estudante de filosofia — no meu departamento — terá
um de 57 anos. Cada um deles escreveu um trabalho de tal quatro matérias, cada uma delas dedicada a uma das quatro
qualidade que merecia ter sido lido publicamente— oque, no grandes épocas da filosofia: FilosofiaAntiga,Filosofia Medieval,
caso da aluna, ocorreu. Neste ano tive uma turma mais Filosofia Moderna eFilosofia Contemporanea. Em cada uma
' homogênea em que, novamente, óve adiniráveis resultados delas, os novos estudantes verão quais foram os problemas
tanto nas provas como nos trabalhos. O problema de “como
centrais discutidos e quais as soluçõ es dos põ ncipais filó sofos.
começar a filosofar” pode ter tantas respostas como manei£àS
Nos sete semestres restantes, eles terào a oportunidade de se
em que as pessoas, de fato, chegaram a filosofar. O que aprofundar apenas nos assuntos em que realmente querem se
devemos responder aqui é a outra questão: como estruturar aprofundar. Depois desses quatro anos, certamente nao sairão
uma grade curricular num curso de filosofia?
eniditos em histó õ a da filosofia, o que acho que a filosofia não
Aproximadamente há dez anos quis resolver essa
interessa, mas setào uma futura filó sofaou filó sofo, deinteresse
questão e propus uma mudança no meu departamento que
só tanto à filosofia quanto ao Brnsil.

De como fazer filosofia sem ser grego, estar morto ou ser gênio • 109
108 • Gonçalo Armijos Pdácios
‘F‘dosofia r/ Histó ià a da Fü osofia? presente. Eu mesmo não me canso de insistir nisto: a fílosofia
./ ’‘ se faz para os vivos, no Qresente e para presente e o futuro.
-"- A falsa oposiçâ o entre fazer íílosofia e
Nào se fílosofa para oS mortos. Larnentavelmente, muitos
sabcr histó ria da íílosofia sc dilui na tomada de
con,sciéncia dc que Quem negn ou desconhece o› cursos, ao que parece, se orientam para exclusivamente isso.
lcgados do passado jamais poderí en frentar os E, como tèm reconhecido importantes professores de
dcsafios do futuro.
filosofia de prestigiosas universidades, essa ènfase no passado
exerceu uma influência nefasta para a existência de uma
fdosofla feita aqui no Brasil. Com os mortos não hź nem
No ú ltimo artigo tratei sobre a questäo da grade
pode haver debate. Eles nåo podem reclamar pelas inflnitas
curricular de um curso de filosofia. Toquei, de passages,
interpretaçõ es e tergiversaçõ es que fazem de seus textos. Os
num conflito que pode parecer como um verdadeiro dilema:
vivos podem. Por isso, claro, é muito mais seguro e có modo
ensinara histó tia da filosofia ou ensinar a filosofar? Não posso
levantar hipó teses sobre o que pensadores mortos “realmente
deixar de lembrar a tào citada afirmaçäo de Ifant de que não
se ensina filosofia, mas a filosofw quiseram dizer. Os ú nicos que poderiam ieclamar são um ou
outro especialista. Mas quem realmente se importa com
fó rum regional sobre ensino de filosofia. No final do evento especialistas?• w resultado e que ninguém debate assuntos que
houve urn debate em que se levantou a questão do peso importam aos vivos. Aí está o problems e é nisso que os
excessivo que alguns cursos attibuemao ensino das disciplines estudantes tèm razão. Para fazer filosofia precisamos aprender
a ieconhecer e debates sobre os assuntos que nos interessam
de Histó ria da Filosofia — Histó ria da Filosofia Antiga,
como seres que vivem num determinado momento, em
Medieval, Modema e Contemporânea. Se mal não melembro
cîrcuns cias especi6cas e com acseios ptó pzios. ‘Ttó pü os”
- e para minha surpresa — houve intervençõ es apaixonadas
em vários sentidos: no sentido geogiåfico, temporal, cultural,
sobre a necessidade de eliminar tars disciplinas da grade połiò co, econô mico etc.
curricular desses cursos. Penso glue tars intervençõ es se Û È 'vñ Ü O Ions xs v t;;iu azc — c esrou convencido de que
explicariam pelo Peso excessivo que alguns cursos — talvez a seja —, não é menos verdade que um diálogo com o passado
õ em nessas disciplinas históficas. E é coinpreensível pode ser feito. E há vźrias razõ es para essa possibilidade.
que os estudantes reajam com toda sua energia contra a Problemas importantes da filosofia, hoJe, já foram discutidos
valorização excessiva no passado ao preço de ignorat o no passado. Desse modo, saber o que tnentes brilhantes do
110 • GonÇalo Aljos Palacios De como fazer fílosofia sem ser grego, estar mocto on ser gê nio • 1t1

“ *"“’""
passado disseram sobre esses assuntos nã o pode ser ó rUaos dos subsídios do passado.
ifrelevante. Muito pelo contrario, só teríamos a ganhar se
conseguíssemos entender a mOtiVação, a profundidade e o
alcance das soluçõ es que fl ó sofos anteriores deram a esses
problemas. Nã o pode haver dú vida de que é possível entender
muito melhor o presente conhecendo õ eni o passam. xc UJ íuU5UIlã
l s so vale pala a histó ria, nã o el i por que
nã o valeria para as
tCOEtAS. A beleza nos surpreende porque está escondida
O próprio pensamento humano não mudou nOS nos lugares e nas formas mais inusitadas. Uma

ííltimos milhares de anos a ponto de criar um tipo de


delas a encontramos na criação de argumentos em
que esta em jogo a beleza numa das nuas formas
processos mentais que os antigos filó sofos nã o tinham. Nã o; mais abstratas: a do racioónio puro.
que eu saiba, os processos ló gicos são os mesmos. Os ató Â ciOS
retó ricos usados pelos antigos gregos e os Nos ííltimos artigos tenho escrito sobre o estudo da
f lã Ci Ô ifiercrii. Fadaimo> ú <c<r» •ar - -”““
argumentos dos fló sofos antigos e modernos e podemos filosofia. Mantenho a tese de que se bem o estudo da
ver que não há diferenças de natureza. Eles não pensavam
como se fizessem parte de uma espécie diferente. No fundo, filosofia
são iguais a nó s. Os anseios são os mesmos, muitOS problemas nã o é — e nero pode ser — um fim em si mesmo, é um erro
sã o parecidos, as inclinaçõ es nã o mudaram e as soluçõ es para grave desconhecer sua importâ ncia para aprender a filosofar
alguns de nossos problemas, oferecidas hoje e que IIIUÊ tOS ou, entà o, para aprender a filosofar melhor.
poderiam pensar que sã o novas, sã o muito semelhantes à s ja Num período importante da minhavida tive um grupo
foc ••1 • r›nr filó sofos do passado. Muito, portanto, de mú sica, me apresentei e viajei por várias cidades do
podemos aprender com eles. Nem tudo, é verdade. É aí que meu país. Foram alguns anos de uma atividade que nunca
está o desafio de uma grade curricular: se queremos formar deixará de fazer parte do melhor da rriinha vida Mas ri ri
filó sofos e nào meros histoõ adores do pensamento, que fazer? rte representou para mim reais do que isso, e desde muito
Penso que a resposta não é muito complicada: preparar os antes. O pào que me alimentou, oabõ go que me cobfiue a
estudantes data os desafios com o presente sem deixá-los educação que recebi foram possíveis pela capacidade de
i 12 • Gonçalo Arrnijos Palacios meu pai para desenhar e pintar. Por isso, a arte não poderia
deixar de ser uma parte essencial na minha vida, Quando
meu pai, meu tio
De como fazer filosofia sem ser grego, estar morto ou ser gênio • 113
ou um primo mais velho pintavam costumavam sempre que criamos. E não temos mudado tanto nos ú ltimos milhares
conversar sobre técnicas usadas no passado por artistas de anos como para dizer que aqueles povos distantes no
europeus e por artistas da coló riia — assim como sobre as tempo não temiam, nao tinham fé, esperanças nero desejos...
concepçõ es artísticas a que tais técnicas estavarri atreladas. Não vejo por que a histó ria da filosofia deva ser vista
Artistas de outros países visitaram acasa dos meus pais quando de uma forma oposta à que vejo a histó ria da arte. Ou, dito
era criança e lembro que, entre outras coisas, falavam tanto de outro modo, não vejo por que a filosofia, na sua histó ria,
sobre tecnicas novas como antigas. A arte colonial se nao Eleva ser vista como veJo a arte na sua historia. Assim
desenvolveu rriuito nos países andinos, entre outras como o artista hoje pode querer estar resolvendo problemas
razõ es, pela grande capacidade de assimilação e enfrentados por artistas de outras épocas, o filó sofo, hoje,
transformação das técnicas e esá los europeus que os índios pode passar pela mesma situação. Pode estar querendo
demonstraram ter. Nada mais natural para mim, portanto, resolver um problema que, mesmo não sendo exatamente o
que o velho e o novo nà o tenham necessariamente de entrar mesmo, poderia ser muito semelhante a uma questão que já
em conflito. Todas as técnicas e conquistas nas artes do atormentava algum filó sofo do passado e sobre a qual se
passado sã o ou podem ser
incorporadas na arte do presente sem nenhum problema. debiu ou eJ talvez hegou aí d r ã o. Metas
M £CFl 16 6U Htm d-d-Cd ttUÍT.ó iJd.ll1W •ãI. Í-l8 Dt-1 t.iO lliGt t f s suiixs‘
meu tio e meu primo. atormenta. Dú vidas e angú stias que uma leitura de um filó sofo
Quando vejo peças de arte feitas no passado, não vejo medieval como Santo Agostinho poderia perfeitamente
nada que deva ser copiado, mas algo do qual há muito para resolver. E, se nào resolve, bem poderia abrir o caminho
se aprender. Os menos acadêmicos dos pintores modernos para sua solução. Nem todos os livros são ou foram escritos
não se cansaram de aconselhar aos jovens visita o museu de para nó s, disse Jorge Luis Borges. E eu diria, nem todos os
Louvre. Imitar e não sair da imitação é uma coisa, aprender filó sofos escrevem ou escreveram para nó s. Mas é muito
a partir do que ja foi feito, outra. provavel que encontremos alguém que pensou de alguma
Cruzrn h msi w ri r re o n Fl cru rn e etvn rn o si o pr ixrrnct

chamados primitivos, diz algo dos anseios, tristezas e estabelecer e aprofundar uma relação intelectual.
problemas dos aró fices e de sua comuriidade. A esperança, a Mas não só a literatura, a pintura, a mú sica, a escultura
fé, o temor, o desejo motivaram tanto a arte antiga como a ou a arquitetura são obras de arte. Um teorema matematico
de qualquer outra época. Projetamos o que somos naquilo ou ló gico-matematico pode, num sentido, ser uma obra de
114 • Gonçalo Arrrijos Pslacios
De como fazer filosofia sem ser grego, estar morto ou set gê nio • US
arte. Tern sua beleza. Assim como uma teoria fisica pode ser alunos que tinham escutado que nem uma nem outra
staples, elegante e, também, bela. Considero a teoria do
possuem qualquer utilidade. A afirmaçao, naturalmente,
conhecimento de Kant uma obra-pÖ ma, bela, uma conquista
surpreendeu- me. Mas, talvez, nã o deveria ter ficado surpreso,
do espírito humano. A refutaçäo que Platão fizera da teoria tale a notó õ a falta de conhecimento entre as pessoas sobre o
do ser de Parmériides é outro exemplo de beleza e finura que seja arte e o que seja filosofia. Esse desconhecimento,
teó ricas. îvÍuitas, inñ ndáveis, poàeiLi ser as fuxiinio cut ‹Inc w
por outro lado, nao é wears do que o sintoina de ui»a
ser humano produz beleza. As ciências e as artes podem
generalizada ausencla de interesse por refletir sobre a
coincidir nisso: ha beleza nas duas. Na filosofia nã o é pró pria natureza humana. Pela necessidade de saÒ sfazer
diferente. Podemos discordar do que uma teoria filosó fica suas necessidades imediatas,
defende, podemos nà o nos interessar muito pelo assunto, mas parece que as pessoas postergam para sempre a satisfaçäo
nä o podemos deixar de admirar a excelência do raciocínio, a daquela outra necessidade, riào menos fundamental: “conhece-
elegå ncia na argumentaçä o, a contundéncia da conclusä o, o te a ti pró prio”. Se o indivíduo negligencia essa questã o, nã o
pró prio entrelaçamento da solução. A histó ria da filosofia é surpiesa que nä o pense nesta outra: “conhece tua espécie”.
proxy*= ‹ipc pyțjJp p$ C • mom mf• Al JtPD 9 I'm FYPE mP IIf•P1f•)' •2
Po g conh endo Jg Jopri engender snap espécie, e,
algo do mais sutilmente belo que o set humano ja produziu:
a beleza na sua forma puramente intelectual. Dizer que a arte e a fìlosofia näo possuem nenhuma
utilidade, dém de mostrar desconhecimentodessas atividades,
demonstra desconhecimento de caracteń sticas fundamentais
da natureza humana. E quais seÖ am essas características?Para
responder a estn questä o pensemos no que nos distingue dos
animais. Se sonios diferentes dos animais, alguma coisa há
que nó s temos e que eles näo tern. Na veedade, em muitas
coisas nos diferenriarrios. Mas comecemos pelas mms ñ hfios
Que são a arte e a filosofia senão dimensõ es Nossas paixõ es, nosso pensamento e nossa linguagem
c““* do transcender humano. articulada, certamente, säo três das mais notåveis caractetísticas
que nos distinguem dos ariimais. E a etas devemos outtas.
Ûerguntaram-me sobre a utilidade da arte eda filosofia. Pelas nossas paixõ es somos seres que näo simplesmente
Exam desejamos ou queremos. Compartilhamos com os animals
I t6 • Gonçalo Armijos Paìícios De como fazer fílosofia sem ser grego, estnr morto on ser gênio • , 117
certos desejos, mas, além de desejar, passamos a gostar, a do natural.
querer, a amar, a ambicionar. Como eles, teremos, mas além arte e a filosofia, então, são expressõ es dessa nossa
de temer, passamos a desgostar, a ter rancor, a odiar. Se natureza ú nica. Que valor e que utilidade elas tern?
algumas características compartilhamos com os animais, Obviamente, a de serem instrumentos privilegiados para
sempre os superarrios na intensidade com que tais superar a mera ariimalidade, o eterno retorno dos ciclos
características existem em nó s. Nossas paixõ es não têm limites, necessários, mas enfadonhos, da matéria. Somos corpo, mas
nossos deseJos sã o insaciá vels, nossas aspiraçoes e ambiçõ es, também, espíÕ to. Por isso nã o podemos nos conformar com
inflnitas. Nossa paixào, da qual surge o desejo desenfreado o que a matéria nos oferece. Assim nã o nos diferenciafíamos
por tudo, levou o nosso pensamento aos abismos do dos animais. Talvez muitos estejam mais para animais do que
insondável, do admirável, do medonho. Nào deixamos de para homens e se contentem com comer, beber, deitar e
continuar superando o que até ontem parecia insuperavel, dormir, mas devem ser poucos, pois com pouco se
tanto no sublime como no hediondo, tanto no altruísmo como satisfazem. No entanto, o gênero humano é o que é por não
no egoísmo, tanto na inteligência como na estupidez. Muito se contentai com o imediato, com o aqui-e-agora, como o
mais fracos que os animais em força, agilidade e rapidez, os que acalma a sede, com o que protege do calor e do frio,
esperarmos niÜ iiuÍaiiicntc na cIicrgÍa das jqossas paixõ es e rlO comi o que encne o estô mago e sacia o deseJo bestial. É falso
poder do nosso pensamento, seJa para o bem, seja para o que, como diz Freud, sejamos dominados pelo desejo sexual.
mal. Somos algo que eles não são: seres transcendentes. Nào Somos denominados pelo desejo, sim, mas pelo desejo de
nos satisfaz o mero prazer material, temos também de amar; nos realizar, realizando sonhos, fantasias — e as mais caras
não nos contentamos com o saber do instante, do presente, fantasias, com certeza, não são as que satisfazem o corpo,
queremos saber o de ontem, o de amanhã, o de sempre. isto é, as mais fá ceis de se satisfazer. Nà o podeó amos ser tã o
Não nos limitamos a simplesmente fazer — até os animais pouca coisa. Por isso buscamos o que alimenta, satisfaz e
fazem —, queremos constr.uir. Não nos conformamos com preenche o espírito, a inteligência. É o que incessantemente
ri o -
Hs*°*’* **** ° • a*'°^**** *c<. m ** <H prucuramos nos reaiiza£ SO
que nos diferenciamos dos animais, no transcender. Não imaginando um imundo do além, mas aqui, esforçando-nos
somos só os animais que constroem, mas que criam, que por desembrutecer nossas vidas. Lutamos, então, por dar
inventar. Isso faz de nós seres transcendentes. Superamos a um sentido a nossa existência, criando, descobrind o,
mera ariimalidade, não ficamos, como os bichos, na imanência desenhando, esculpindo, edificando, inventando, escrevendo,
118 • Gonçalo A fjos Palacios De como fazer filosofia sem ser grego, estar morto ou ser gê nio • 119
compondo, isto é, produzindo arte. Arte, técnica, ciência e
OSOfla são, pois, as várias maneiras de se manifestar a lOdO ra sem ser
ff ZPQO, RStar morto ou ser gênio
peculiaridade da natureza humana. De uma natureza que nã o Assessoria editorial: Antô nio Carlos Novaes
Direção administrativa: AlOÍSiO das Dores Neiva
se contenta com pouco, com o imediato, com o possível. O Formato fechado: 12,0 x 16,0 cm
homem é o animal que procura e se faz no impossível. Essa Flancha grá fica: 9,0 X 13,8 cm c/ no
Tipologia: G aramo nd 8, 9, 10, ll,5 e 16 pt.
é sua caractetísaca. Nessaprociirapelo impossível mostra-
se nossa natureza e por ela procuramos nos realizar. Pois nã o Reciclado, 250 g/m' (capa)
Filme: IBF negativo N-911 extra-life
nos realizamos procurando o imediato, o fácil, o possível, Tinta: (capa)
nem como indivíduos, nem como grupo. Portanto, os meios Corte: Normais para off-set (miolo)

privilegiados para a Oanscendência e realização humarias sà o, Fotolitográfica: Krause Wohldenberg Al07


Processadora de filme: Skay Sec 5060
justamente, a arte e a filosofia. Porque nã o nos contentamos Impressã o miolo: Multiline 66B
com pouco. Isso fez que superá ssemos nossa existência Acabamento: Roland Practica PR01
Tiragem: Brochura
animalesca. Isso nos fez cultura. Esse descontentamento, aliá s, 1.000 exemplares
está no fundo desse conjunto admirá vel de culturas, do
presente e do passado, que plasmaram sua grandeza na
tecnologia e na. ciência, sim, nas, tamb ém e
fundamentalmente •a arte e na filosofia.

Camp lomomDWptFl%
f•••‹:(62) 171.1107- S2l.1318
r••.«z)szusi‹-t›‹ii«e«t,‹f.,u;,
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120 • Gonçalo Atmijos Palacios

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