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L I G I A O S O R I O SILVA

T E R R A S D EV O LU T A S E LA TIFU N D JÆ
E F E I T O S D A L E I D E 1850

2â EDIÇÃO

UN IC AM P

U ni v er s id ad e E sta dual de C ampinas

Reitor
J osé T a d e u J orge

Coordenador Geral da Universidade


Fer nando F er reira C osta

T O R A1

Conselho Editorial
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Paulo F ranchettt
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S IS T E M A D E B IB L IO T E C A S D A U N IC A M P
D IR E T O R IA DE TRA TA M EN TO DA IN FO RM AÇÃO

Si3 8c Silva, Ligia Osorio.


Terras devolutas e latifúndio: efeitos da lei de 1850 / Ligia Maria Osorio
Silva. - 2 * cd. - Campinas, SP: Editora da U nicamp , 2008.

I. Latifúndio - Brasil - História. 2. Propriedade rural - Brasil - Condições ru­


rais. I. Título.

ISBN 978-85-268-0821-8 CDD 333.320 98 1

P a ra M ir ia m e E d u ard o
índices para catálogo sistemático:

1. Latifúndio - Brasil - História 333.320 98 1


2. Propriedade rural - Brasil - Condições rurais 333.32-0981

Copyright © by Ligia Maria Osorio Silva


Copyright © 2008 by Editora da U nicamp

U edíçáo, 1996

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II

o s e s m a r ia lis m o

O sistema sesmaríal correspondeu à ordenação jurídica da apro­


priação territorial que a metrópole impôs à Colônia enquanto
durou seu domínio sobre ela.
O instituto das sesmarias foi criado em Portugal, nos fins do
século X I V , para solucionar uma crise de abastecimento. As terras
portuguesas, ainda marcadas pelo sistema feudal, eram na maio­
ria apropriadas e tinham senhorios, que em muitos casos não as
cultivavam, nem arrendavam.' O objetivo básico da legislação
era acabar com a ociosidade das terras, obrigando ao cultivo sob
pena de perda de domínio. Aquele senhorio que não cultivasse
nem desse em arrendamento suas terras perdia o direito a elas, e
as terras devolutas (devolvidas ao senhor de origem, à Coroa)
eram distribuídas a outrem para que as lavrasse e aproveitasse e
fosse respeitado, assim, o interesse coletivo.
As O rdenações do R ein o definiam do seguinte modo o elemen­
to básico da regulamentação;

I A.S terras pertenciam à Igreja, à Coroa, aos senhores ou aos conselhos municipais. Os
últimos vestígios da existência de terras passíveis de ocupação primária, em Portugal,
as pressurias, datam do século XIII. Virgínia Rau, Sesmarias medievais portuguesas. Lis­
boa: Bertrand, 19 5 S , p. 25.
42 Terras devolutas e laíifútidio 0 sesm arialism o 43

ScMn;ii i;is siii) |)ro])ii;iiTiente as dadas de terras, casais, ou pardieiros, asfixiando-a com foros, obrigações etc., acabou prevalecendo. No
cjuc (dram, ou são do alguns Senhores, e que já em outro tempo século XVI o sistema não surtia mais os efeitos esperados.“*
foram lavradas o aproveitadas, e agora o não são. As quais terras e os
Quando se transladou para a Colônia o sistema de sesmarias,
bens assim ilaiiihcados e destruídos podem e devem ser dados de
sesmarias pelos sesmeiros, que para isto forem ordenados.^ não se pensou em adaptar a lei à realidade do novo meio, que era
muito diferente do Portugal do século XIV. As proporções do ter­
A origem da palavra sesmaria ainda provoca algumas diver­ ritório eram incomparavelmente maiores, o que levou um autor
gências. Para alguns, ela vem da palavra latina caesin ae, que sig­ a afirmar que, “se, na época do descobrimento, Portugal soubes­
nifica os cortes ou rasgões feitos na superfície da terra pela relha se que o Brasil era 76 vezes maior do que a metrópole, nunca
do arado ou pela enxada. Para outros a palavra vinha do verbo teria trazido para cá o instituto das sesmarias”.^
sesmar, quer dizer, partir, dividir ou demarcar terras. Outros ain­ De modo geral, procura-se destacar na análise do sistema ses-
da afirmam que as terras distribuídas eram chamadas de sesmaria marial a distância que separou o objetivo e a prática. Nesse sen­
porque o agente que repartia as terras devolutas era o sesmeiro, tido se expressa Costa Porto:
uma espécie de magistrado municipal, escolhido entre os “ho­
mens bons” da localidade, integrante do sesmo ou colégio de seis Uma das principais distorções do nosso sesmarialismo — fruto em
grande parte, do dezazo em ignorar as peculiaridades da Conquista,
membros, encarregado de distribuir o solo entre os moradores. aplicando-lhe o disciplinamento imaginado para a Metrópole —
Mas é possível que a palavra sesmeiro tenha outra origem: deri­ ocorreria de respeito à estrutura fundiária e cuja síntese seria esta;
varia da palavra sesma ou sesmo, que era a sexta parte de qualquer enquanto no Portugal dos fins do século XIV, a prática do sesmaria­
coisa. Como era costume darem-se essas terras com foro ou pen­ lismo gerou, em regra, a pequena propriedade, no Brasil foi a causa
principal do latifúndio.®
são de um sexto, daí poderia ter surgido a apelação de sesmeiro
e talvez até mesmo de sesmaria.^ Quando transplantado para a
Colônia o sistema das sesmarias, sesmeiro tinha o mesmo sig­ Embora seja inegável a existência de diferenças muito grandes
nificado de origem. Mas a partir do século XV II passou a desig­ entre a metrópole e a Colônia, não é de todo correto atribuir ao
nar, mesmo nos documentos oficiais, aquele que recebia a con­ sesmarialismo a causa principal do latifúndio brasileiro. Na rea­
cessão de sesmaria. lidade, a distância que separou os objetivos do regime de ses­
Para Portugal, o regime de sesmarias foi excepcional, visando marias, cuja criação fora motivada pelos problemas da agricultu­
impedir o esvaziamento do campo e o desabastecimento das ci­ ra portuguesa, e a prática do sesmarialismo na Colônia deveu-se,
dades. Entretanto, a legislação ordinária que tolhia a agricultura. principalmente, às condicionantes históricas da colonização. A
distorção do sentido primeiro do sistema significou, portanto, a

2 Código filipino ou ordenações de leis do reino de Portugal (16 0 3), edição de C.ândido
Mendes de Almeida. Rio de Janeiro, 1 870, p. 822. 4 Cirne Lima, op. cit., p. 28.
5 Messias Junqueira, “ Formação territorial do pais” , in Encontros da UnB. Brasília: Edi­
3 Para as diferentes explicações, ver comentário de Cândido Mendes de Almeida ao
Código filipino..., e Ruy Cirne Lima, Pequena história territorial do Brasil, sesmarias e tora UnB, 1978, p. 16.
terras devolutas, 2“ ed. Porto Alegre: Sulina, 1934 , pp. 1 5-6. 6 José da Costa Porto, Sistema sesmariul no Brasil. Brasília; Editora UnB, s.d., p. 48.
44 1 Terras devolutas e latifúndio 0 sesmarialismo 45

adaptação do instituto jurídico criado em Portugal à realidade No que diz respeito à legislação que enquadrava as doações de
socioeconômica da Colônia. Adaptação forçada, que se fez aos terras, pode-se dizer que houve duas fases distintas. Até o final do
poucos, por meio da prática da administração colonial. século XVII, as doações de sesmarias eram regidas exclusivamentc
Uma das características das terras coloniais, que se distinguiam pelas O rdenações do R ein o: as Afonsinas (1446), modificadas pelas
das terras européias, era o fato de serem vagas, não apropriadas, Manuelinas (1511-1512), modificadas por sua vez pelas Filipinas
sem senhorio nem dono de espécie alguma, habitadas apenas pe­ (1603). A metrópole baseava-se nas O rdenações para fazer as con­
los indígenas, que náo conheciam a propriedade. Essa caracterís­ cessões de sesmarias, mas, no que dizia respeito à terra, essa legis­
tica das novas terras foi responsável pela distorção do sentido lação era vaga e geral. Seus preceitos aplicavam-se à Colônia toda,
original de um dos termos centrais do sistema sesmarial portu­ embora algumas regiões, como o Rio Grande do Norte e o Ma­
guês, ou s^ja, o significado da expressão “terras devolutas”. ranhão (no século XVII o estado do Maranhão ia do Ceará até o
O sentido original do termo “devoluto” era “devolvido ao se­ Amazonas), tivessem sido objeto, ocasionalmente, de legislações
nhor original”. Terra doada ou apropriada, não sendo aproveita­ específicas. A partir da última década do século XVII, ocorreu,
da, retornava ao senhor de origem, isto é, à Coroa portuguesa. num certo sentido, uma reação inversa, isto é, apareceu uma
Na acepção estrita do termo, as terras devolutas na Colônia seriam abundância de normas reguladoras na forma de decretos, precei­
aquelas que, doadas de sesmarias e náo aproveitadas, retornavam tos, forais, estatutos, resoluções, portarias, cartas-patente, cartas
à Coroa. Com o passar do tempo, as cartas de doação passaram de lei etc.
a chamar toda e qualquer terra desocupada, não aproveitada, Essas duas fases corresponderam, grosso m odo, à maneira como
vaga, de devoluta; assim, consagrou-se no linguajar oficial e extra- evoluíram as relações metrópole-Colônia após a fase inicial da
oficial devoluto como sinônimo de vago. Assim como a questão colonização: 0 vislumbre das possibilidades comerciais do cultivo
do domínio eminente, a utilização do termo “devoluto” levou a da cana-de-açúcar, que demandava grandes extensões de terras,
grandes discussões, mesmo depois que a lei de 1850 redefiniu o levou a metrópole a fechar os olhos ante o descumprimento de
significado do termo para poder aplicá-lo ao caso brasileiro; so­ suas próprias exigências no tocante à legislação de sesmarias; em
bretudo, questionava-se a competência do poder público em le­ meados do século XVII, em face das dificuldades financeiras do
gislar sobre terrenos que náo eram “propriamente” devolutos. Reino, do adensamento da população colonial e da descoberta do
Nos quase três séculos em que serviu de base para o orde­ ouro, houve uma tentativa de retomada em mãos do processo de
namento da apropriação territorial, o sesmarialismo português apropriação territorial por parte da metrópole, já agora tendo ela
foi-se transformando e se adaptando aos acontecimentos maiores que se defrontar com os problemas criados pelo padrão de ocu­
ocorridos na metrópole e na Colônia, gerando o que se poderia pação anterior.
chamar de sesmarialismo colonial. Em particular, o que provo­ Na primeira fase, as características do sesmarialismo colonial
cou as maiores oscilações nas características do sesmarialismo foram a gratuidade e a condicionalidade da doação.
colonial foram as mudanças de atitudes da metrópole em relação A gratuidade devia-se ao estatuto do solo colonial, que, como
à Colônia. vimos, pertencia à Coroa portuguesa e estava sob a jurisdição
46 Terras devolutas e latifúndio O sesm arialism o 47

cspiriuKil cl;i Ordem de Cristo. Rezavam as O rd en ações que as Sebastião que são seis léguas para cada parte que não forem dadas a
concessões tli* terra deviam ser feitas gratuitamente, apenas su­ pessoas que as aproveitem ou posto que a fossem, se por as pessoas
a que se deram as não aproveitarem no tempo que eram obrigados,
jeitas ao pagamento do dízimo de Deus, para a propagação da fé,
por esta via ou por qualquer outra estiverem vagas, as podereis dar
que de resto era pago por todos os cristãos, inclusive os não- de sesmaria a que vo-las pedir e tereis lembrança que não deis a
proprietários, e ate mesmo pelos índios aldeados.^ O pagamento cada pessoa mais terra que aquela que segundo sua possibilidade
do dízimo incidia sobre a produção e não sobre a terra propria­ virdes ou vos parecer que podem granjear e aproveitar. As quais
mente dita. terras assim dareis, livremente sem outro algum foro, somente o
dízimo à Ordem do Mestrado de Nosso Senhor Jhu Xpo e com
A condicionalidade estava expressa na cláusula de aprovei­
as condições e obrigações do Foral dado às ditas terras e de minha
tamento. Quando Martim Afonso de Souza veio para a Colô­ Ordenação do Livro Quarto, Título das Sesmarias com condição
nia com a carta concedendo-lhe o direito de distribuir sesma­ que tal pessoa ou pessoas residam na povoação da capitania ou das
rias, o objetivo aparecia claramente no documento; o terras que lhe forem dadas ao menos três anos e que dentro do dito
aproveitamento das terras. Mesmo que tal condição não esti­ tempo as não possam vender nem enlear; e se algumas pessoas a que
forem dadas terras no termo da dita cidade e as tiverem perdidas
vesse sempre explicitada, todas as cartas de doação eram regidas
por as não aproveitarem e vô-las tornarem a pedir, vós lhe podereis
pelas O rd en açõ es, nas quais esse objetivo estava manifesto. Para de novo dar [...].*'
evitar os terrenos incultos, rezavam as O rdenações-, “serão avi­
sados os sesmeiros que não dêem maiores terras a huma pessoa As duas recomendações existentes nas O rden ações aparecem
de sesmaria, que as que razoavelmente parecer que no dito aqui com clareza; um prazo estipulado para o aproveitamento,
tempo poderão aproveitar”. O tempo estabelecido era de, no findo o qual as terras poderiam ser dadas a outras pessoas, e a
máximo, cinco anos.** recomendação ao governador de que “não deis a cada pessoa
As terras, portanto, eram dadas com a condição de serem mais terra que aquela que segundo sua possibilidade virdes ou
aproveitadas num certo prazo de tempo, caso contrário, como vos parecer que podem granjear e aproveitar”.
em Portugal, volviam ao senhor de origem, a Coroa. As autoridades coloniais, entretanto, no afã de ocupar o
Essa condicionalidade pode ser vista nas cartas de sesmarias imenso território, desprezaram na prática essas recomendações.
dos fins do século XVI e começo do XVII, que continham sem­ As áreas concedidas nessa época eram imensas e constituíam ver­
pre a seguinte transcrição; dadeiras donatarias, mesmo que não o fossem juridicamente.
Doações foram feitas de 4, 5, 10 e 20 léguas quadradas.'“
Segundo forma de Regimento do Governador Geral que foi nesta
Na obra de Felisberto Freire, em que são minuciosamente re­
dita cidade Antonio Salema de que o translado é o seguinte; E as
terras que estiverem dentro do termo e limites da dita cidade de Sáo latadas ás concessões dè sesmarias feitas até o séculc-XIX na Bahia,

7 O pagamento do dízimo pelos índios aldeados foi suspenso durante a união das Coroas 9 Tombos das cartas de sesmarias do Rio de Janeiro, 159 4 -15 9 5 e 16 02-16 05. Rio de
ibéricas. C f. Georg Thomas. Política indigenista dos portugueses no Brasil. Sáo Paulo: Janeiro, Ministério da Justiça, 196 7, pp. 5 1-z .
Loyola, 1982, pp. 126-7. to Uma légua quadrada é %ual a 4.356 ha. Portanto, as doações eram de 17 .4 2 4 ha,
8 Código filipino..., p. 825. 2 1.7 8 0 ha, 43.560 ha e 8 7 .12 0 ha, respectivamente.
48 Terras devolutas e latifúndio
O sesm arialism o |49

em Sergipe e Espírito Santo, encontram-se inúmeros exemplos cie sil se assemelhava a um imenso arquipélago de ilhas humanas
concessões imensas de terras. Pelo que se pode observar, a partir isoladas”.'^
dos documentos transcritos por Felisberto Freire, essas concessões Uma excéçâo notável parece ter sido o caso da comarca de Sáo
se concentravam na área do Recôncavo baiano e nas proximi­ Paulo. Conquanto as dificuldades para estabelecer exatamente o
dades do Sáo Francisco. Freire estabeleceu três movimentos na tamanho e a localização das sesmarias concedidas sejam as mes­
ocupaçáo da Bahia. O primeiro, em direçáo ao Norte, até 1654, mas que para o resto do país, existem indícios de que as sesmarias
o segundo, a partir de 1671, em direçáo ao Centro, e o terceiro, distribuídas ali foram menores do que as demais. Tinham em
depois de 1690, em direçáo ao Sul. Eis alguns exemplos de con­ regra cerca de i légua quadrada ou até meia légua quadrada.
cessões de enormes proporções: Álvaro da Costa recebeu uma Somente a partir do século XVII as áreas concedidas aumenta­
sesmaria que compreendia todo o território entre os rios Para- ram um pouco, mas continuavam menores que nas outras re­
guassu e Jaguaribe e mais 10 léguas no sertáo. A ilha de Itaparica giões, tanto que Taunay afirma que o latifúndio só surgiu, em
foi doada a dona Violante Távora. Em 1573, Duarte Dias obteve São Paulo, no século X K , com a lavoura de café.''* Ainda assim,
uma sesmaria de 12 léguas quadradas, na costa, em direção ao nos primórdios da colonização, Brás Cubas recebeu uma sesmaria
rio Real, fazendo limite com a de Tomé de Souza e a de Miguel que abrangia boa parte dos municípios atuais de Santos, Cubatâo
de Moura, de mesmas proporções, obtidas no mesmo ano. O e São Bernardo.
capitão Gracia d’Âvila conseguiu uma sesmaria de mais de 10 O problema de estabelecer o tamanho e a localização das sesma­
léguas nos campos de Pindaguassuba. Bernardo Vieira Ravasco, rias decorre fundamentalmente da imprecisão das próprias cartas
em 1655, con.seguiu 10 léguas de terras em Jacobina etc.” de doação que tornam difícil a identificação das terras cedidas. A
Outro núcleo de povoamento de onde se espalhou a ocupação delimitação era vaga. Costa Porto registra casos como o de uma
nesses primeiros tempos estava situado em Pernambuco e se es­ sesmaria concedida a dona Beatriz, em 1556, em que um dos
praiou em direção à Paraíba e ao Rio Grande do Norte. Aí tam­ limites era o “passo onde mataram o Varela”. Em outra carta, de
bém as sesmarias eram concedidas com notável desproporção, fins do século XVI, os limites são “onde esteve a roça do Padre
dando-se a uns 15 léguas e a outros 20 e 30.'^ Salsa aonde acabar Antonio Sião e Antonio Fernandes”. A sesma­
Com algumas exceções, esse foi o padrão disseminado pelas ria doada ao almoxarife Vasco Lucena, no Jaguaribe, “partia da
concessões de sesmarias na zona próxima do litoral e dos núcleos feitiçaria dos índios até onde se mete o rio [...] Ayamá e daí até a
urbanos. Como afirma Normano, “nos séculos X V I e X V I I , 0 Bra- riba da casa velha que foi de Christováo índio e outra casa que foi
de um índio que se chama Aberama, onde estão uns cajus muito
1 1 Felisberto Freire, História territorial do Brasil. Rio de Janeiro: Tipografia do Jornal do
Com m erdo, 1906, 1 ' vol, — Baliia, Sergipe, Espírito Santo, pp. 17-9, 31-2 , 49 e 57.
1 2 “Fragmentos de uma memória sobre as sesmarias na Bahia” , Revista Trimensal de His­
tória e Geografia-, Rio de Janeiro, I h g b , t. III, der.., 18 4 1, p. 378. Essa memória, 1 3 J . F. N orm ano, Evolução econômica do B rasil, 2* ed. Sáo Paulo: Cia. Editora N acio­
de autoria desconhecida, foi encontrada na biblioteca do marques de Aguiar. Supóe-se nal, INL, 19 7 5 , p. 26,
que seja de sua autoria. O manuscrito foi oferecido ao Insiimro 1li.viórico e ( leográfi- 14 Cf. Roberto C . Simonsen, História econômica do B rasil (1^00-1820), 8* ed. Sáo Paulo:
co por Bento da Silva Lisboa, cm 1839. Cia. Editora Nacional, 1978, pp. 2 15 -7 .
50] Terras devolutas e latifúndio 0 sesm arialism o 51

grandes”.'^ No rio São Francisco, foram concedidas umas terras marcos coloniais homens com recursos suficientes para possuir
na comarca de Jacobina, fazendo “piâo em olho d’àgua no pau escravos. Os “homens de calidades” de que fala Oliveira Vianna
de colher para cima, etc”.'® Se no momento em que as sesmarias não eram apenas os representantes da fidalguia peninsular, mas
eram concedidas esses limites significavam alguma coisa, hoje só também aqueles que provavam ter cabedais e recursos suficientes
podem ser localizadas de modo muito impreciso. O problema para iniciar uma exploração nos trópicos.
era sentido, todavia, mesmo naqueles tempos. Os concessioná­ A prática de requerer sesmarias para vendê-las era facilitada
rios naturalmente sabiam onde ficavam suas terras e com quem pelo fato de que a legislação não impedia que uma pessoa rece­
faziam limite, mas as autoridades cedo se viram na maior dificul­ besse mais de uma sesmaria, pelo menos até o século XVIII. As­
dade em identificar as áreas concedidas. sim, houve casos de várias sesmarias concedidas a um mesmo
Outro aspecto do sesmarialismo colonial que atrapalhava o indivíduo, e casos de indivíduos que as requeriam em nome “das
controle das autoridades era a compra e a venda de sesmarias. A mulheres, dos filhos e filhas, de crianças que estavam no berço e
possibilidade da compra e venda de sesmarias aparecia já nos das que ainda estavam por nascer”.“"
forais dos donatários das capitanias. Estava estipulado que estes Apesar das recomendações das O rdenações, na Colônia não
poderiam comprar sesmarias de terceiros depois de passados oito havia limite certo para o tamanho das doações. Começou-se a
anos da doaçáo e somente se as terras tivessem sido aproveitadas. estabelecer limites para as áreas cedidas, pelo menos formalmen­
No regimento de Tomé de Souza, estava registrada a condição de te, a partir do século XVII. Os métodos de medição e demarcação
que as sesmarias só poderiam ser vendidas passados três anos de eram rudimentares e permaneceram os mesmos até o século XIX.
sua concessão.'^ No final do século XVII, as autoridades coloniais “O medidor enchia o cachimbo, acendia-o e montava o cavalo,
demonstraram algumas preocupações com a prática que surgiu deixando que o animal marchasse a passo, quando 0 cachimbo se
na Colônia de demandar sesmarias imensas para vendê-las reta­ apagava, acabado o fumo, marcava uma légua.”^'
lhadas.'* Isso provavelmente ocorria devido ao favoritismo de Nesses primeiros tempos, a condicionalidade estava expressa
que gozavam alguns fidalgos e às dificuldades em que se encon­ em mais uma exigência: a do registro da carta de doação. O regis­
travam alguns colonos em provar que eram homens de posse e, tro era feito pelos provedores num livro cuja existência remonta
assim, fazer jus a uma concessão. Desejando a ocupação produ­ aos tempos de Duarte Coelho, em Pernambuco. Quando foi ins-
tiva da Colônia, a metrópole procurava conceder terras aos colo­
nos que tivessem condições de cultivá-las, o que significava nos
19 Oliveira Vianna, Evolução do povo brasileiro. Sáo Paulo: Monteiro Lobato, s.d., p. 50,
1$ ]. d n C o sta P o n o , Sistema sesm ariai..., pp. 67, 1 1 1 .
e Populações m eridionais. Sáo Paulo; Monteiro Lobato, 1920 , vol. i . p. 13 .
1 6 Felisberto Freire, H istória territorial..., p. 1 3 1 ,
20 Alcides Lima, H istória popular do Rio Grande do Sul, apud Nadir Domingues Men­
17 “ Regimento de Tomé de Souza” , in Carlos Malheiros Dias, H istória da colonização donça, “A propriedade rural no processo de urbanização na zona da campanha rio-
portuguesa do Brasil. Porto; Litografia Nacional, 1924, vol. lil, p. 346. grandense” , in A propriedade rural. Sáo Paulo, 1 976, vol. III — Anais do VIII Simpósio
18 Antonil refere-se à compra e venda de terras na zona açucareira e não trata de sesma- Nacional de Professores de História, p. 852.
rias. André João Antonil, Cultura e opulência do Brasil por suas drogas e minas (tyj i), 21 Ulisses Lins, Um sertanejo e 0 sertão, p. 16 7, apud J. da Costa Porto, Sistema sesma-
2‘ ed. São Paulo; Cia. Editora Nacional, 1966. ria l.,, p. 76.
52 I Terms devolutas e latifúndio o sesm arialism o 53

tituído 0 regime das capitanias, os colonos adquiriam o domínio O Regimento de Tomé de Souza, primeiro governador-geral
da terra ao receber a carta de data, e só o perdiam se não cumpris­ depois do malogrado intento das capitanias, estabeleceu em
sem a cláusula de aproveitamento. Depois de 1549, o regimento 1548 o modo de se darem sesmarias para os engenhos de açúcar.
dos provedores obrigava ô sesmeiro a registrar a data nos livros Os proprietários desses engenhos seriam obrigados a moer a
da Provedoria e só então passava a terra a constituir seu patrimô­ cana dos lavradores vizinhos, sob condições que o governador
nio nos termos do “use, desfrute e abuse” na adaptação portugue­ designasse. Também seriam obrigados os senhores de engenho
sa da legislação romana. O registro não oferecia maiores dificul­ a fortificá-los, fixando-lhes o regimento quanto armamento de­
dades e podia ser feito logo após o recebimento da carta. Para as veriam ter.
autoridades coloniais, o objetivo era preciso: saber quais as terras O regimento proibia “os métodos arbitrários dos caçadores
que estavam sendo doadas para, ao fazer novas doações, não pre­ portugueses de escravos (índios)”,^" indicando a preferência das
judicar o direito de terceiros. Entretanto, poucos sesmeiros cum­ autoridades pela utilização do africano e acusando a pressão dos
priram com essa condição, e, quando o fizeram, os termos eram interesses do tráfico negreiro. Proibia, também, aos colonos em­
vagos e imprecisos. brenharem-se pela terra adentro comunicando-se pelo sertão, de
A estruturação da propriedade do solo em termos da grande uma capitania às outras, comprovando o desejo da metrópole em
exploração esteve vinculada, como dissemos anteriormente, às manter para si a iniciativa e o controle do desbravamento da
conveniências da produção colonial, determinada fundamen­ terra. 23
talmente pela necessidade de fomentar acumulação nos países- Até meados do século XVII, a Colônia não teve concorrentes
metropolitanos. No período em questão, o mercado mundial para o açúcar no mercado internacional. A ocupação da Colônia
abria espaço apenas para os produtos tropicais de que a Europa nessa fase muito se deveu à expansão canavieira. Dos núcleos
carecia. Foi, portanto, a forma de inserção da Colônia que no iniciais, Bahia e Pernambuco, a ocupação foi-se alastrando, se­
amplo mercado mundial que se abria para determinados produ­ guindo a costa, para o Norte, principalmente, e um pouco para
tos, como o açúcar, traçou o modelo da agricultura aqui instala­ o Sul, no Espírito Santo, Rio de Janeiro e São Vicente. Indiscu­
da: latifundiária, monocultora e escravista. Essas condições é que tivelmente, o Nordeste (inclusive Bahia) foi o centro da ativida­
explicam tamanha liberalidade por parte da metrópole na dispo­ de açucareira.
sição do solo colonial, muito mais do que a ganância e a cupidez
E a boa qualidade das terras do Nordeste brasileiro para a lavoura
dos colonos chegados à América para fazer fortuna.
altamente lucrativa da cana-de-açúcar fez com que essas terras se
Partindo desse ponto de vista, compreende-se por que os pe­ tornassem o cenário onde, por muito tempo, se elaboraria em seus
didos de concessão de sesmarias para o estabelecimento de enge­
nhos de açúcar eram prontamente atendidos pela metrópole, 1 2 G e o rg Thoma.'!, Política indigenista..., p. 6o.
contanto que os candidatos provassem ser homens de posses, isto 23 “ Regimento de T om í de Souza” , in Carlo.s Malheiros Dias, H istória da colonização...,
p. 34S. Segundo Capistrano de .^breu, a importação de africanos é posterior à criação
é, demonstrassem possuir os cabedais necessários para estabelecer das donatarias e anterior à criação do governo-geral. O descobrimento do Brasil, 2‘ ed.
0 negócio. Rio de Janeiro; Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1976, p. 90.
54 1 Terras devolutas e latifúndio 0 sesm arialism o 55

traços mais nítidos o tipo de organização agrária mais tarde carac­ cultivo, o esgotamento do solo fazia-se também sentir rapida­
terístico das coiônias européias situadas na zona tórrida. A abundân­ mente, obrigando ao contínuo abandono das zonas esgotadas em
cia de terras férteis e ainda mal desbravadas fez com que a grande
busca de terras férteis. O arado foi muito pouco utilizado. O
propriedade rural se tornasse, aqui, a verdadeira unidade de produ­
ção. Cumpriria apenas resolver o problema do trabalho.^'’" colono não cultivava 0 solo de modo muito diferente do indíge­
na, apenas 0 fazia em proporções muito mais amplas.
O “problema do trabalho”, como sabemos, foi resolvido com Decorria dessas características uma fome permanente de ter­
a introdução do trabalho compulsório, o que permitiu a manu­ ras, que, por sua vez, acarretava uma grande mobilidade. Arrui­
tenção da disponibilidade de terras para o senhoriato rural que nava-se a terra, queimavam-se as florestas e passava-se adiante,
se vai formando na Colônia. repetindo o ciclo todo novamente.
Os historiadores destacam a importância que teve para a eco­
A verdade é que a grande lavoura conforme se praticou e ainda se
nomia colonial a disponibilidade de terras.-^ E não se tratava
pratica no Brasil participa, por sua natureza perdulária, quase tanto
apenas do caso da economia açucareira, com sua fluidez de fron­ da mineração quanto da agricultura. Sem braço escravo e terra farta,
teira. “A essa abundância de terras”, afirma Celso Furtado, “se terra para gastar e arruinar, não para proteger ciosamente, ela seria
deve a criação, no próprio Nordeste, de um segundo sistema eco­ irrealizável.-“
nômico, dependente da economia açucareira”.^'’ Tratava-se da
pecuária, que foi responsável em grande medida pela ocupação Já começavam a delinear-se, nos primeiros séculos de coloni­
do sertão. Ainda aqui, a regra foi a grande propriedade. As ses­ zação, algumas características fundamentais da agricultura brasi­
marias concedidas para a criação eram, em geral, maiores que as leira, ou seja, a mobilidade, o caráter predatório e o crescimento
de cultura e formaram grandes latifúndios. Alguns ficaram famo­ em extensão.
sos, como a Casa da Torre de Garcia d’Ávila, a Casa da Ponte dos Em meados do século XVII, iniciou-se um processo de pro­
Guedes de Brito e a Casa do Sobrado dos irmãos Certâo.^^ gressiva centralização da administração pública em favor do po­
Por outro lado, o caráter externo da acumulação de capital der régio, que perdurou pelo século XVTII afora e que incluiu, no
determinou uma das características internas da produção colo­ que tange à questão da apropriação territorial, medidas visando
nial; todo 0 crescimento do sistema, seja açucareiro, seja da pe­ ao aumento do controle da metrópole sobre as concessões de
cuária, se fazia por extensão. Sendo rudimentares os métodos de sesmarias. Esse objetivo se traduziu no aumento das exigências
burocráticas para a obtenção das concessões, de maneira a possi­
14 Sérgio Buarque de Holanda, Raizes do Brasil, 14’ ed. Rio de Janeiro; José O lym pic, bilitar maior conhecimento por parte das autoridades coloniais
19 8 1, p. 17.
25 Em particular, Celso Furtado, Formação econômica do Brasil, 6^ cd.' Rio de Janeiro:
da real situação das terras.
Fundo de Cultura, 1964, pp. 68, 73; Sérgio Buarque de Holanda, Raizes..., pp. 18-9, A tentativa mais importante efetuada pela metrópole no sen­
e Caio Prado Jr., H istória económica do Brasil, 8‘ ed. São Paulo: Brasiliense. 1963.
tido de aumentar seu controle sobre a situação da apropriação
16 Celso Furtado, Formação econômica..., p. 73.
27 J. da Costa Porto, “ Sistema se.smarial no Brasil” , in Fjicontros da UnB. Brasília: Editora
da LinB, 1 978, p. 26. Somente Garcia il Avila pos.suía 300 léguas no São Francisco. 28 Sérgio Buarque de Holanda, Raizes..., p. 18.
5Ó Terras devolutas e latifúndio O sesm ariatism o 57

rerritorial na Colônia foi indiscutivelmente a de incluir nas obriga­ Tem alguma razão Felisberto Freire em afirmar que receber
ções dos concessionários o pagamento de um foro (Carta Régia sesmarias com a cláusula de foro modificava substancialmente a
de 27 de dezembro de Essa providência “envolvia uma condição do proprietário de terras porque “o proprietário agríco­
transformação completa da situação jurídica do solo colonial”, la que até então tinha sobre suas propriedades direito pleno trans­
segundo Cirne Lima.^° As terras coloniais, como vimos, sem formou-se em um enfiteuta do Estado” contanto que seja nuan-
dono nem senhorio outro que a Coroa, eram tributárias do Mes­ çada a expressão “direito pleno”, pois não se pode esquecer de que
trado de Cristo e deviam ser distribuídas gratuitamente, não po­ no sistema sesmarial os colonos eram concessionários das terras,
dendo ser apropriadas nem pelo próprio Mestrado, assim reza­ com a obrigação de cultivá-las, sob pena de perda da concessão.
vam as O rden ações. A introdução do pagamento de um foro Essa condicionalidade nunca foi revogada; ao contrário, foi inú­
alterava, portanto, uma das características básicas do sistema ses- meras vezes reafirmada, como no alvará de 5 de janeiro de 1785,
marial, a gratuidade. Tendo em vista isso, “foi grande dúvida se que declarava constituir sesmarias do Brasil uma parte conside­
podia impor-se pensão nas sesmarias do Brasil”.^' O fato de o rei rável do domínio da Coroa, dadas sob a condição “essencialíssi-
de Portugal ser o grão-mestre da Ordem não deveria, segundo ma” de se cultivarem.
alguns, levar a confundir, na figura da pessoa real, a dignidade do Tendo em vista que o pagam ento do foro não incidia sobre
Mestrado de Cristo com os atributos da realeza. As terras somente a produção, mas sobre as terras (ao contrário do dízim o), com ­
lhe pertenciam na medida em que o soberano encarnava a nação. preende-se que um dos objetivos da m etrópole era desestim ular
Consultado o Conselho Ultramarino a respeito, houve diferença os sesm eiros a m an ter sob seu d om ín io terras im p rod u tivas.
de opinião. Provavelmente influenciada pelas graves dificuldades U m a das conseqüências im ediatas da instituição do foro fo i a
financeiras do Reino desde sua separação da Espanha (1640), a
Mesa do Desembargo do Paço decidiu que, nesse caso, era possível 33 Felisberto Freire, H istória territorial..., p. 13 7 . “ Enfiteuse” é um termo jurídico. Signi­
a Ordenação não se aplicar ao Brasil, “e que sua Majestade podia fica um contrato pelo qual um proprietário qualquer transfere seu domínio útil para
outra pessoa, obrigando-se esta a pagar-lhe uma pensáo a que se dá o nome de foro ou
revogá-la”.’^ Na realidade, era mais um passo no sentido de es­ cânone. N o Código C ivil português (artigo i .654), o contrato de enfiteuse é perpétuo.
tender a autoridade real sobre os bens temporais da Igreja, passo A enfiteuse por tempo limitado considera-se arrendamento (Código Civil brasileiro,
artigo 679). Também se chama aforamento ou aprazamento, quando por ato entre
que começara com a colocação da Ordem sob a direção dos mo­ vivos ou de última vontade o proprietário atribui a outrem o domínio direto, uma
narcas portugueses, de forma eventual em 1495 e de forma de­ pensão ou foro anual, certo, invariável (Código C ivil brasileiro, artigo 678), Exemplos
dc enfitcu.ses no Brasil: as terras da fazenda de Santa Cruz, as terras da C.âmara M uni­
finitiva em 1551. cipal da Corte e os terrenos de Marinha. Sáo pouco explícitas as condições primitivas
em que eram dadas as sesmarias portuguesas e quais os direitos conferidos a quem as
recebia em relação à posse da terra, mas a conclusão dos especialistas é de que o direi­
to transmitido por elas ao ocupante era um direito petpétuo e alienável, embora pu­
19 A data de 1695 é dos “ Fragmentos...” , p. 379. Varnhagen dá a data dc 1699; ver H is­ desse revestir-se de várias modalidades e .sofrer certas restrições (como a condicionali­
tória geral do Brasil, 7’ ed. São Paulo; Melhoramentos, s.d., vol. i, p. Z63. dade atrelada ao cultivo). Em alguns casos podia o rei cobrar foro, exigir o direito de
opção (isto é, se o concessionário quisesse vender, tinha que consultar primeiro o al­
30 R. Cirne Lima, Pequena história territorial do Brasil..., p. 38.
moxarife do rei) e o laudêmio (espécie de renda ou proveito particular). Quando era
3 1 “ Fragmentos...” , p. 379.
assim, a conce.ssáo de sesmarias assemelhava-se à enfiteuse. Ver Virgínia Vem, Sesmarias
3 1 R. Cirne Lima, Pequena história territorial da B ra sil... p. 58. m edievais..., pp. 99, 106-7.
58 i Terras devolutas e latifúndio 0 sesinariatismo 59

necessidade de autorização do governo para a transmissão da con­ riqueza gerada pelo açúcar, a metrópole tivera uma política de
cessão. Assim, pensava-se coibir os abusos verificados em torno liberalidade em relação ao tamanho das propriedades até fins do
da venda de sesmarias. século XVII e não se preocupara muito em ver cumpridas as con­
A disposição, entretanto, não era retroativa, de modo que só dições das concessões. Quando, a partir dessa época, quis mudar
valia para as sesmarias concedidas após a promulgação da Carta sua atitude em relação à terra, foi natural que esbarrasse na resis­
Régia, e, mesmo depois dessa data, foram concedidas inúmeras tência dos colonos.
sesmarias sem a cláusula de foro. Nos casos da imposição de limites para o tamanho das con­
A segunda medida implementada pela metrópole foi a fixação cessões e do pedido de confirmação ao rei, há indícios de que
de limites para o tamanho das concessões. Data provavelmente essas determinações não foram aplicadas, mesmo depois do sécu­
de 1697 a primeira providência nesse sentido. Ordenava que se lo XVII, apesar de serem reiteradas no tempo. As sesmarias con­
dessem sesmarias de três léguas de comprimento por uma de lar­ tinuaram a ser concedidas em grandes extensões e continuou-se
gura. As legislações posteriores reafirmaram essa limitação, como a usar o expediente de solicitar várias sesmarias. Documentos dos
as que encontramos em 1698, 1699, 1711, 1743 etc.^^ fins do século XVI mostram que a exigência de confirmação já
A terceira medida imposta aos concessionários, ainda no sé­ existia naquele tempo, mas, segundo um observador da época,
culo XVII, determinou a confirmação por el-Rei das concessões “sendo os moradores tão pobres não lhes é possível satisfazerem
de terras (Carta Régia de 23 de novembro de 1698). com esta condição”.’*" A disposição do século X V I I generalizou a
O poder de distribuir sesmarias fora, originalmente, atribuição medida, tornando-a obrigatória. Auguste de Saint-Hilaire, falan­
dos donatários e, depois de 1549, dos governadores-gerais. Na do sobre a situação no século XIX, também afirma que o preço da
medida em que o povoamento se foi espraiando, surgiram nas confirmação estava acima das possibilidades da maioria dos mo­
sedes das regiões ocupadas, por exemplo. Porto Seguro, Sergipe radores.’^ Essas observações nos levam a supor que nem todas as
del-Rei, Paraíba e outras, autoridades locais, os capitães-mores, concessões de terras eram feitas aos fidalgos, funcionários reais ou
os quais passaram a distribuir terras de sesmarias. Aparentemente ricos comerciantes, como usualmente se costuma supor; estes
não tinham jurisdição para fazê-lo, como também não tinham os com certeza teriam condições de preencher esse requisito e, se
governadores subalternos. A prática que se estabeleceu, no entan­ não o faziam, era por desinteresse pela doação.
to, foi de os capitães-mores concederem as sesmarias e depois os No caso da exigência de foro, a aplicação ainda foi mais contur­
sesmeiros pedirem a confirmação ao governador-geral.’^ bada. A vastidão da Colônia não ajudava, nem a fiscalização que
A aplicação dessas normas não foi de modo algum tranqüila. obrigaria ao cumprimento, nem ao próprio conhecimento da exis­
Preocupada com a ocupação da Colônia e entusiasmada com a tência da norma. Na Bahia, por exemplo, as sesmarias continuaram
a ser concedidas sem obrigatoriedade de foro até o ano de 1777.
34 “ Fragmentos...” , passim. Também nos aditamentos ao Código filipino ou ordenações
de leis do reino de Portugal (16 0 3), ediçSo de Cândido Mendes de Almeida. Rio de 36 Alexandre de Moura (K Í14), apud j. da Costa Porto, Sistema sesm arial..., p. 99.
Janeiro, 1 870, p. 822.
3 7 Atigu.sto de Saint-Hilaire, Viagem pelas províncias do Rio de Janeiro e M inas Gerais. São
35 “ Fragmentos...", p. 375. Paulo: Cia. Editora Nacional, 1938, t. I, p. 209.
6o I Terras devolutas e latifúndio 0 sesm arialism o 61

Uma das primeiras sesmarias doadas com essa restrição foi a de José A avaliação geral é de que não foi um enorme sucesso essa tenta­
de Souza Cunha, confirmada pelo alvará de 19 de janeiro de 1780, tiva. Diz Sérgio Buarque de Holanda que a medida teve remota
isto é, quase dez anos depois de a norma ter sido estabelecida em influência nb BrasiU*
caráter geral. O foro nela estipulado foi de i mil-réis por ano. A verdade é que não era possível cobrar foro com regularidade
Outras sesmarias tiveram estipulados foros que variavam de 600 e eficiência se não se sabiam ao certo a localização e o tamanho
réis a 4 mil-réis anuais, mas parece que a grande maioria variava das concessões. A boa aplicação da norma estava, pois, atrelada
entre i mil-réis e 2 mil-réis. A Carta Régia instituindo a imposição ao registro e à medição e demarcação das terras.
de foro não dizia quanto seria cobrado, estabelecendo apenas o No entanto, a medição e demarcação não figuraram nas cartas
critério vago de “grandeza e bondade da terra”.^®Na capitania de de data até os primeiros anos do século XVIII. Isso não quer dizer
Pernambuco, provavelmente em razão da riqueza gerada pelo açú­ que demarcação e medição não se fizessem anteriormente, na
car, os foros registrados eram de maior valor, em regra de 4 mil-réis medida das possibilidades, como costume, aparecendo dessa
por légua no interior e de 6 mil-réis por légua no litoral.^^ forma depois de 1 7 3 4 . Em fins do século X V I I , a demarcação
No geral parece ter havido muita resistência por parte dos ainda não figurava entre as exigências obrigatórias. Inicial mente
colonos ao pagamento do foro. Segundo Costa Porto, “a leitura foi adotada como exigência para o caso do Piauí e depois o alva­
da documentação colonial patenteia a luta incessante das autori­ rá de 1795 generalizou a medida para o restante da Colônia. Há
dades régias e dos moradores, aqueles defendendo os interesses registros de medições e demarcações anteriores a essa data, como
do erário e estes procurando tudo quanto era expediente para dissemos, mas o não-cumprimento da medida não implicava a
evitar o pagamento”.“*® perda da concessão. As demarcações registradas diziam respeito,
Essa resistência se manifestava de diversas formas. Uns abriam geralmente, às terras do litoral próximas dos órgãos administra­
mão da data de terras porque não podiam pagar, ou assim alega­ tivos, em zona povoada. No interior raramente ocorriam.
vam. Outros desistiam de uma sesmaria e pediam outra, na espe-, Essas observações levam a crer que o aumento das exigências
rança de assim burlar o fisco; outros ainda não registravam nem burocráticas com as quais a metrópole sobrecarregou os colonos
confirmavam suas sesmarias para fugir da obrigação, sendo estes, não surtiu o efeito desejado. Pelo contrário, ao invés de regulari­
ao que parece, a esmagadora maioria. Ainda havia os que discu­ zar a confusa situação da propriedade territorial, tornou-a mais
tiam com as autoridades argumentando que, se o prazo para confusa ainda e colocou um número cada vez maior de sesmeiros
aproveitamento das terras era de cinco anos, o foro só era devido na ilegalidade.
depois desse período de tempo escoado. E houve também casos Os analistas do sistema sesmarial são unânimes em considerar
em que a autoridade colonial atenuou as condições de pagamento. que as exigências de confirmação por el-Rei foram um dos maio-

38 “ Fragmentos...” , p. 380.
39 Ibidem, e também ]. da Costa Porto, Sistema sesm nrial..., p. 1 oK.
4 1 Sérgio Buarque de Holanda, “ Introdução geral” do tomo I (A época colonial), vol. 2
40 Costa Porto, op. d t „ p. 109. (Administração, economia, sociedade) da História geral da civilização..., 1968, p. 46.
62 I Terras devolutas e latifúndio

res entraves à legalização da propriedade fundiária colonial.'*'^ Por III


cima das dificuldades já existentes, a legislação não era uniforme­
mente aplicada. Algumas cartas de doação estipulavam prazos
O f i m d a s s e s m a r ia s
para a confirmação, em regra de dois anos, mas às vezes de três,
e em outros casos não havia prazo algum, e em outras cartas ain­
da não se falava em confirmação.
Altir de Souza Maia resume as principais razoes do não-cumpri-
mento das exigências:

Até mesmo os mais poderosos não levaram a bom termo as satisfa­


ções das emperrantes exigências, sendo que muitas terras foram
consideradas, consequentemente como “devolutas” . Primeiro por­
que os constantes ataques indígenas e de corsários estrangeiros não Durante o século XVIII a Colônia passou por algumas alterações
permitiam a mansidão da posse, resultando no seu inaproveitamen-
que repercutiram sensivelmente sobre a questão da apropriação
to; segundo, porque o registro era moroso e distante das glebas do­
adas ou da moradia do beneficiário; terceiro, porque o foro despres­
territorial.
tigiava os possíveis lucros com a exploração agrícola; quarto, porque Um dos fatores que contribuíram para a modificação do qua-
a confirmação era através de Lisboa, distante da colônia e burocra­ ' dro colonial foi o crescimento da Colônia. Crescimento em todos
tizada. Facilitada esta última posteriormente, com a vinda da famí­ os sentidos: populacional (o fluxo cmigratório da metrópole para
lia real para o Brasil.“*^
a Colônia aumentou tão intensamente que chegou a preocupar
as autoridades); territorial (maior integração efetiva A q s extremos
do território); e econômico (aumento da importância econômica
que a Colônia passou a ter para a metrópole).
Parte desse crescimento deveu-se, como é sabido, à mineração,
cujo desenvolvimento se iniciou em princípios do século XVIII.
Além da significação econômica que teve, provocou um consi­
derável afluxo de população para as regiões das minas. Diz Caio
Prado Jr. que se tratou de “um rush de proporções gigantescas,
que relativamente às condições da colônia (foi) ainda mais acen­
tuado e violento que o famoso rush californiano do século XIX” .’
42 Messias Junqueira afirma: “em 20 anos de procuradoria do patrimônio de São Paulo, Em alguns decênios povoou-se o Centro-Sul do país, de forma
só vi uma sesmaria confirmada” , “ Formação territorial do país” , in Encontros da UnB,
p. 18.
43 Altir de Souza Maia, Curso de direito agrário. Brasília: Fundação Petrônio Portella, j Caio Prado Jr., História econômica cb Brasil, 8“ ed. São Paulo: Brasiliense, 1963,
19 8 1, vol. 6 — Discriminação de terra, p. 16. p. 65.
64 I Terras devolutas e latifúndio O fim das sesm arias 65

esparsa, naturalmente, mas o suficiente para modificar o desenho Não obstante as ressalvas do autor, no que tange à questão da
que a ocupação traçara até então. apropriação territorial, os dois extremos do país, a Amazônia e o
A economia mineira não foi importante apenas por ser respon- Rio Grande do Sul, não apresentaram padrões distintos das de­
sável pelo crescimento populacional e por abrir novas áreas de mais regiões. Suas localizações estratégicas e as prolongadas que­
ocupação. Graças a suas características próprias — mobilidade relas com nações estrangeiras constituíram peculiaridades impor­
da empresa, alta lucratividade e especialização —, pôde irradiar tantes de sua história, mas não alteraram substantivamente as
efeitos econômicos sobre outros setores da Colônia. Dinamizou, características da apropriação.
em particular, os setores de produção de alimentos e de animais A penetração pelo vale do rio Amazonas iniciou-se na segunda
de cargas. As tropas de mulas, como se sabe, desempenharam metade do século X V I I e sua vanguarda foram as Ordens religio­
um papel fundamental na rede de transporte que ligava as zonas sas. Enquanto proprietárias de terras, essas Ordens se comporta­
de mineração ao litoral. Um dos aspectos mais importantes da ram como os demais colonos, procurando fugir ao cumprimento
economia mineira foi o de constituir um sistema integrado com das obrigações impostas pelas autoridades régias e incorporando
os setores produtores de alimentos e com o setor de criação de novas terras sem dar muita atenção à legislação. Existem nume­
animais de transporte. Foi em decorrência do desenvolvimento da rosos registros de disputas entre as autoridades coloniais e as Or­
economia mineira que a região rio-grandense se viu integrada no dens. Em algumas cartas de sesmarias vinham incluídas cláusulas
conjunto da economia brasileira, por meio da criação de mulas.^ restritivas às Ordens religiosas. Uma resolução de 26 de junho de
Paralelamente, continuou o processo de ocupação do sertão, 1711, tomada em consulta ao Conselho Ultramarino, suprimiu
já iniciado nos séculos anteriores. O rio São Francisco, servindo tal condição. Ficou, todavia, explicitado que, no caso de se tor­
de ponto de encontro das bandeiras de São Paulo e do Norte, narem possuidoras de terras, as Ordens não estavam de modo
representou o papel de integrador nacional: algum desobrigadas do pagamento do dízimo, porque era sobre­
modo conhecida “a repugnância que tinham estas corporações”
[...] o grande caminho da civilização brasileira é o rio São Francisco; de efetuar tal pagamento.'*
é nas suas cabeceiras que paira a primeira bandeira [...] e daí se ex­ E também notório o fato de que a Coroa no século X V I I I se
pande e ondula o impulso das minas; é no seu curso médio e inferior sentiu diversas vezes desafiada pelos jesuítas, sendo bem conhe­
que se expande e se propaga o impulso da criação, os dois máximos
cidas as disputas entre Pombal e a Ordem.
fatores do povoamento. As suas ondulações extremas desde São Pau­
lo (ligado a Mina.s) ate o Piauí (ligado a Pernambuco) abraçam o No caso do Rio Grande do Sul, cuja integração demorou até
que hoje se poderia chamar o Brasil brasileiro. O extremo norte, a fins do século X V I I I , em razão das lutas incessantes com povos
Amazônia, é um excesso indiático; o extremo sul (Rio Grande) é vizinhos, a partir de 1777 distribuem-se propriedades em grande
demasiado platino [...].^ quantidade para garantir a posse portuguesa. Apesar de nessa
2 Celso Furtado, Formação económica do Brasil, 6’ ed. Rio de Janeiro: Fundo dc Cultura,
época já se encontrar em vigor a cláusula limitando as doações de
1964, p. 95.
3 João Ribeiro, História do Brasil, i'' ed. Rio de laneiro. .S.io I’aido: Fraiu i.seo Alve.s, 4 “ Fragmentos de uma memória sobre as sesmarias na Bahia” , in Revista Trimensal de
19 0 1, p. I I I . H istória e Geografia, t. III. Rio de Janeiro; I h g b , dez., 18 4 1, pp. 38 1-3.
O fim das sesm arias |67

sesmarias a 3 léguas, muitas sesmarias foram concedidas sem se no caso da produção do açúcar. Outro fator que contribuiu para
levar em conta essa restrição. Do mesmo modo, portanto, que tornar a apropriação territorial do interior um sistema à margem
nas demais regiões do país, a regra ali foi a grande propriedade e do sistema sesmarial decorreu do fato de que sua ocupação não
o desrespeito às normas estabelecidas. contava com o beneplácito das autoridades coloniais, que man­
Do ponto de vista da apropriação territorial, o efeito mais tiveram sempre a esperança de encontrar metais preciosos (o que
importante das transformações ocorridas na Colônia durante 0 acabou ocorrendo) e não queriam perder o controle sobre as ter­
século XVIII foi a disseminação de outra forma de apropriação de ras interioranas.
que não tratamos até agora, mas que já existia desde os primór­ Nos primeiros séculos da colonização, a posse representou
dios da colonização, que era a posse pura e simples. também a forma de ocupação do pequeno lavrador sem condi­
Ao mesmo tempo em que a metrópole, preocupada com os ções de solicitar uma sesmaria. “A sesmaria”, diz Cirne Lima, “é
rumos da expansão territorial na Colônia, procurava retomar as o latifúndio inacessível ao lavrador sem recursos”.“' Desenvolve-
rédeas desse processo, recebia novo impulso essa forma de apro­ ra-se essa prática, às margens dos grandes latifúndios, em ativi­
priação que por suas características mesmas se fazia de modo dades de subsistência ou fornecimento de gêneros alimentícios
desordenado e espontâneo, fugindo totalmenre ao controle das para os solarengos.
autoridades. Sem deixar de existir nessa forma, entretanto, a posse também
A posse foi uma forma de apropriação particularmente impor­ assumiu na área da agricultura a feição de grandes latifúndios. As
tante na região da pecuária, que se criara integrada à região pro­ mesmas condições que levaram à falta de controle no tamanho
dutora de açúcar no interior do Nordeste. Como dissemos, as das sesmarias fizeram com que o limite da posse fosse dado pelo
sesmarias concedidas nessas áreas eram ainda maiores do que as próprio posseiro. “Sesmarias são verdadeiros latifúndios”, disse
concedidas para a agricultura. Entretanto, a ocupação fazia-se de Joaquim Ribas, no século XIX, “mais extensas, porém, ainda eram
forma espontânea e os pedidos de sesmarias seguiam-se à ocupa­ as posses de terras, cujas divisas os posseiros marcavão de olho,
ção de fato. Freqüentemente, porém, os moradores não se preo­ nas vertentes, ou onde bem lhes aprazia”.^
cupavam em demandar de sesmarias as terras que ocupavam.^ As condições imperantes na Colônia levaram os moradores a
Temiam talvez não poder comprovar serem “homens de posse”, estender suas posses, no intuito de se apropriar das terras sem,
pois a pecuária envolveu colonos de origem mais modesta, tendo necessariamente, cultivá-las. Como afirma José Arthur Rios:
em vista não necessitar de grandes investimentos iniciais, como
O espírito latifundiário que já pervertera a legislação das sesmarias
continuou a deturpar o regime das posses. O posseiro, que era, a
5 José da Cosca Porto, Sistema sesm aridl no Brasil. Brasília: Editora UnB, s.d., p. 28,
Messias Junqueira, “ Formação territorial do país”, in Encontros da UnB. Brasília; Edi­
princípio, 0 pequeno proprietário, deixou-se também contagiar pela
tora UnB, 1978, p. 17 , Oliveira Vianna, Evolução do povo brasileiro. São Paulo; M on­
teiro Lobato, s.d., pp. 59-60. Nelson Werneck Sodré, em Oeste, ensaio, sobre a grande 6 Ruy Cirne Lima, Pequena história territorial do Brasil, sesmarias e terras devolutas, 2“ ed.
propriedade pastoril. São Paulo: Arquivo do Estado, 1990, estuda o papel da pecuária Porto Alegre; Sulina, 1954. p. 47.
no processo de ocupação territorial, principalmente nos séculos XVII! e XIX, e mostra 7 Antonio Joaquim Ribas, Da posse e das ações pussessórias. Rio de Janeiro: Laemmert,
como esse processo se desenvolveu na base da posse. 1883, p. VIII.
68 Terras devolutas e latifúndio
O f im das sesm arias I 69

fome de terras. Calçou botas de sete léguas, como qualquer senhor Constituiu uma tentativa nesse sentido a elaboração da Carta
de engenho, e saiu ficando marcos a distância.* Régia de 3 de março de lyoz, que ordenava a colocação de editais
na Bahia, região do São Francisco e Pernambuco, obrigando to­
A posse sempre existira, mas, obviamente, os problemas co­ dos os sesmeiros a apresentar às autoridades coloniais, num prazo
meçaram a surgir quando o povoamento começou a adensar-se. de seis meses, as confirmações e as cartas de sesmarias que tives­
O não-cumprimento das exigências legais, principalmente a de­ sem, sob pena da perda da concessão. Um desembargador foi
marcação e a medição das terras, causou enorme balbúrdia entre nomeado para dirigir os trabalhos de demarcação das terras, que
sesmeiros e posseiros. Durante o século XVIII, a situação da pro­ deveria concluir-se em dois anos. Ao que parece, a medida causou
priedade territorial começou a configurar um problema grave. ainda mais problemas, pois o desembargador foi acusado de pra­
Além dos sesmeiros que não cumpriam as exigências de de­ ticar violências durante os trabalhos de demarcação. Outras provi­
marcação e medição, e daqueles que não registravam nem confir­ dências de mesma natureza foram sendo adotadas, mas nenhuma
mavam suas doações, as autoridades viram-se às voltas com os delas parece ter alcançado o objetivo almejado.
moradores que eram simples ocupantes de fato das terras. No Não dispondo as autoridades coloniais dos meios para obrigar
momento de fazer uma nova doação, as autoridades arriscavam a o cumprimento das normas, restava a possibilidade de vigiar mais
doar de sesmaria terras já doadas ou simplesmente ocupadas. de perto as concessões, isto é, procurar informar-se com mais
Eram comuns os casos dúbios de sucessivas doações das mesmas exatidão da existência ou não de moradores nas terras que se iam
datas de terras. Inicialmente, somente os sesmeiros (mesmo de­ doar, independentemente do cumprimento ou não das exigências
sobedientes) foram objeto de legislação garantidora de seus di­ legais. Em 1770, incluiu-se para esse fim, no processo burocrático
reitos. Um alvará de abril de 1680 mandava ressalvarem-se os de obtenção de sesmarias, a instância de serem ouvidas as Câma­
direitos de terceiros nos casos das doações, e uma lei de 1755 ras dos lugares onde seriam feitas as doações, porque elas teriam
afirmava também que esses direitos deviam ser preservados.^ mais condições de saber a real situação das terras.
As sesmarias não sendo demarcadas, nas cartas não constando A medida não foi, entretanto, suficiente, e as pendências a
o tamanfiõ exato delas, a constante mobilidade dos agricultores respeito de limites de terrenos entre todos os tipos de ocupantes
em busca de novas terras férteis, todas essas razões faziam com multiplicavam-se infindavelmente.
que as autoridades não tivessem como ter certeza, ao efetuarem A legislação portuguesa, em princípio, não reconhecia a figura
novas concessões, de que não estavam desrespeitando o direito de do posseiro e nas contendas dava ganho de causa invariavelmente
terceiros. Uma maneira de sanar essa dificuldade seria vigiar mais ao sesmeiro, àquele que havia recebido as terras conforme o or­
de perto o cumprimento da legislação. denamento em vigor. Essa postura das autoridades gerou um ou­
tro tipo de ocorrência. No século XVII, alguns sesmeiros legaliza­
8 José Arthur Rios, “A posse e o posseiro no Brasil” , Digesto Econômhv, n“ 70, .sei.. u;50, vam seu domínio sobre extensas áreas e depois cobravam foros
p. 13 4 . dos moradores, os reais cultivadores. Essa cobrança nada tinha a
9 Manuel Linhares de Lacerda, Tratado das terras m ftrasil. Rio de l.iiirim: Alhu, 1060,
vol. I, p. 1 3 1.
ver com o foro real, sendo na verdade totalmente ilegal. Entre-
70 I Terras devolutas e latifúndio 0 //m das sesm arias i7l

tanto, quando os moradores se negavam a pagar, a milícia colo­ buco, e suas disposições eram extremamente duras com os ses­
nial intervinha contra eles. Muitos moradores se queixavam disso meiros. O desembargador encarregado da aplicação das ordens
diretamente ao soberano português, dizendo de seus prejuízos e reais deveria “anular, abolir e cassar todas as datas, ordens e senten­
de suas diferenças com os sesmeiros, que, nesse caso, tinham ape­ ças que tenha havido nesta matéria” e conceder aos mesmos ses­
nas o título legal das terras, mas nelas não trabalhavam. O gover­ meiros, por nova graça, cartas de sesmarias correspondentes às
no da metrópole tentou colocar um paradeiro nessa situação, terras que efetivamente cultivassem. As terras dadas de foro aos
como atesta um documento de 1682: sesmeiros deveriam ser dadas (de sesmaria) aos reais cultivadores,
ouvindo-se as partes “breve e sumariamente”. Determinava tam­
Representando a Câmara da Capitania do Rio Grande do Norte bém, mais uma vez, que as novas concessões deveriam ser feitas
que ali existiam muitas pessoas, aquém se havia dado quantidade
em terras desocupadas e não poderiam exceder 3 léguas “de cum­
de terras de sesmarias, que não podiam cultivar, tendo algumas duas
e três sesmarias de cinco e seis léguas em quadro, que vendiam e
primento” por I légua “de largo”.
arrendavam, estando muitos moradores sem nenhuma terra aonde Já foi observado que uma das características dessa fase da po­
pudessem acomodar suas criações, tendo servido a Coroa, e derra­ lítica colonial portuguesa foi a excessiva valorização do papel das
mado o seu sangue, se ordenou por Carta Régia de 16 de março de medidas administrativas como condutoras das reformas sociais.'^
1682 ao governador Antonio de Souza Mendez que não cumprindo
Apesar da dureza dos termos, não consta que as resolujçóes tenham
as pessoas a quem foram repartidas as sesmarias com as obrigações
das doações e emprazamentos, lhas tirasse, e as desse a quem as
alterado a confusa situação territorial. Na verdade, a confusão
cultivasse, preferindo os moradores daquela Capitania, que a esta­ aumentou ainda mais, com a decadência da mineração e o renas­
vam povoando.'“ cimento da agricultura, no final do século XVIII.
A primeira metade do século XVIII fora um “período sombrio
Na época das reformas administrativas pombalinas, acentuou- para a agricultura brasileira”.''* A situação alterou-se substantiva­
se a tentativa da metrópole de retomar em mãos o processo de mente no final do século. O declínio da mineração devolveu à
apropriação territorial. A idéia que inspirava o político português agricultura a posição dominante que tivera nos dois primeiros
era a formação de um grande império nas terras brasileiras. ‘' Nes­ séculos de colonização. O renascimento da agricultura não se
se sentido, a metrópole procurou incentivar a ocupação produti­ deveu, entretanto, apenas à decadência do ouro, mas também à
va das terras coloniais. Acentuou-se, portanto, a tentativa da me­ abertura de novas oportunidades para os produtos coloniais no
trópole, já presente na Carta Régia de 1682, de evitar as sesmarias mercado internacional.
incultas.
As resoluções de i i de abril e de 2 de agostq de 1753 foram 12 “ Fragmentos...” , pp. 385-é. J . da Costa J^prto diz que provavelmente Pombal agiu “por
animosidade contra a Companhia de Jesus, a qual herdeira de grande parte das fiizen-
provocadas por reclamações de colonos de Piauí, Bahia e Pernam- das de Afonso Sertáo, de certo figuraria entre os latifundiários visados nas queixas dos
moradores” . Ver O sistema sesm arial..., p. 73.
10 “ Fr^m entos...” , p. 378. Ver também J . da Costa Porto, Sistema sesm arial..., pp. 67-9. 1 3 Cf. Lia Osório Machado, “ Mitos e realidades da Amazônia brasileira” . Tese de doutora­
1 1 Túlio Halperin Donghi, Reforma y disoludón de los im périos ibéricos. ly y o -iS y o . M a­ do, Departamento de Geografia Humana, Universidade de Barcelona, 1989, p. 102.
dri; Alianza Editorial, 19 8 5, p. 32. 14 Caio Prado Jr., H istória econôm ica..., p. 8 1.
72 Terras devolutas e latifúndio O fim das sesm arias 7,t

O ^úcar, que permanecera o esteio principal da r'queza co­ sando em todo o Estado do Brasil, sobre a matéria das sesmarias,
lonial, mas sofrerá pouco desenvolvimento no último século, a mais importante, a mais útil, e a mais conveniente aos comuns
conheceu uma fase positiva, e as velhas regiões produtoras, como interesses da Fazenda e dos moradores”, resolveu elaborar os
Bahia e Pernambuco, floresceram novamente. Os progressos téc­ meios de resolver o problema.'^
nicos do século XVIII permitiram o aproveitamento do algodáo A metrópole reconheceu que a desordem reinante no campt>
como matéria-prima da indústria do momento, a têxtil, e a Co­ se devia à falta de uma legislação apropriada às condições da
lônia começou a exportar o produto. Outros produtos, como o Colônia e à inexistência de um “regimento para por ele se pro­
anil, o tabaco, o arroz etc., também conheceram rápido desen­ cessarem e regularem as cartas de medição e demarcação de ses­
volvimento, ocupando regiões até então virgens ou que haviam marias”. Apesar de se atribuir o problema à não-adaptação da
conhecido apenas a pecuária e a mineração.'^ legislação de sesmarias ao caso particular da Colônia, o remédio
Uma das conseqüências do ressurgimento da agricultura na sugerido era o mesmo.
época em questão foi a reversão, em direção ao litoral, do fluxo Reafirmava-se a necessidade de evitar doar terras já ocupadas
populacional que o período da mineração internalizara. A região por moradores, para prevenir a ocorrência de novos conflitos. O
litorânea era mais propícia à lavoura e, uma vez que grande parte alvará de 5 de outubro de 1795 continha, entretanto, uma no­
dos produtos tivesse por destino a exportação, convinha estar vidade: tinha efeito retroativo. Argumentava-se que os sesmeiros
próximo dos portos de embarque. haviam recebido suas doações condicionalmente; portanto, se
Esse renascimento agrícola se fez nas mesmas condições que não cumpriam as condições da doação, estavam sujeitos a penas,
presidira até então a agricultura colonial, ou seja, na forma de a qualquer momento. Aumentava-se também o rigor nas novas
grandes explorações, à base de trabalho escravo, que consumiam datas de terras. No novo procedimento, o sesmeiro só entrava
e esgotavam rapidamente o solo. Ao lado dessa forma coexistiu a no domínio da terra depois de demarcá-la, não podendo pedir
agricultura de subsistência que se expandiu com o declínio da confirmação antes do cumprimento da exigência. A tarefa de
mineração.'*^ fiscalizar a demarcação passou dos provedores aos ouvidores.
Todas essas transformações ocorridas no final do século XVIII Cada Câmara enviaria uma lista tríplice ao governador, e um dos
se refletiram, naturalmente, na questão da apropriação territorial. membros (o mais idoso) seria escolhido para supervisionar a de­
Em particular, o novo surto agrícola e a concentração (relativa) marcação localmente. Quando não fosse possível encontrar no
da população nas faixas férteis do litoral trouxeram mais elemen­ local três letrados para compor a listra tríplice (era uma exigên­
tos para as querelas entre sesmeiros e posseiros e entre ambos e a cia saber ler e escrever), a tarefa passaria aos juízes ordinários.
autoridade colonial. Por último, a provisão limitava a extensão das sesmarias. Fixava
Em 1795, o Conselho Ultramarino, “alarmado com os abusos, como teto máximo i légua de terra nas regiões próximas dos
irregularidades, e desordens que tem grassado estão c vão gras-
1 5 Idem, op. de., espcdalmente cap. 10. 17 J. da Costa Porto, O sistema sesm arial..., pp. 136-8. Ver também R. Cirne Um a, Pe­
16 Celso Furtado, Forrnação econômica..., caji. XV, quena história territorial do B rasil..., pp. 4 1-3 , e “ Fragmentos...” , pp. 386-7.
74 I Terras devolutas e latifúndio O fitn das sesm arias I 75

centros urbanos e não fixava limites rígidos para locais mais dis- prepara-lhe o caminho a chamada da Lei da Boa Razão de i8
tantes 18 de agosto de 1769, que sancionava o costume desde que fosse con­
forme à boa razão, isto é, ao espírito das leis, não lhes fosse contrá­
Ainda uma vez, as normas náo saíram do papel. Sem conse­
rio em coisa alguma e sé revestisse de uma antiguidade que excedes-
guir aplicá-las, a metrópole cedeu à pressão dos colonos e suspen­ se cem anos.^
deu a execução do alvará, alegando “embaraços e inconvenientes
que poderiam resultar da imediata aplicação desta sábia lei”.‘‘^ Na verdade, como observa Cirne Lima, o costume da posse
Parece bastante apropriada a observação de Varnhagen, a pro­ preenchia alguns requisitos da Lei da Boa Razão, como a racio­
pósito dessa e de outras hesitações do governo colonial: “O go­ nalidade — afinal, o cultivo da terra era um dos objetivos da
verno parecia apoderado do prurido de legislar para a América; colonização — e a antigüidade, pois já era praticada no século
mas sendo os legisladores pouco práticos do país revogavam a XVI. Encontrava precedente na legislação portuguesa — o direi­
miúdo suas próprias obras. Mau sinal para quaisquer estadistas e to de fogo morto — e na tradição romana, mas era contrária ao
para o Estado que os admite”.“ espírito das leis do Reino, que dispunham que as terras deviam
Os embaraços, todavia, não puderam ser evitados. Como os ser adquiridas unicamente por concessões de sesmarias.
sesmeiros não demarcavam suas terras, as autoridades coloniais
Os juristas do século XVIII, entretanto, acharam esse último
continuaram a conceder sesmarias em terras ocupadas. O tama­
requisito dispensável, e desde então a “aquisição de terras devo­
nho das sesmarias continuou a ser desmesurado e o das posses lutas pela posse com cultura efetiva se tornou verdadeiro costume
também, E, finalmente, não havia nenhuma informação sobre a jurídico”.“
quantidade de terras apropriadas.
No início do século XIX, os procedimentos para a obtenção
A situação, entretanto, apresentava uma alteração de apreci­ de uma sesmaria continuavam os mesmos. Saint-Hilaire descre­
ável importância. Cada vez mais se reconhecia, na prática, a exis­
veu as etapas do processo: fazia-se uma petição ao capitão-mor,
tência de moradores, posseiros nas terras e, em vez de expulsá-
este remetia o pedido à Câmara Municipal do distrito para que
los, as autoridades procuravam estimulá-los a legalizar sua
investigasse se a área solicitada era devoluta ou não; em caso afir­
situação. Assim, pouco a pouco começou uma nova forma de aqui­
mativo, o juiz de sesmarias mandava medir e demarcar a terra e
sição de domínio, com base na posse. A posse com cultura efe­ entregava a carta de sesmaria. Depois disso, faltavam apenas o
tiva, como modo de aquisição de domínio, estabeleceu-se aos
registro e a confirmação por el-Rei.^^ Na realidade a medição e a
poucos como costume, para afirmar-se mais tarde como um di­
demarcação eram retóricas porque dificilmente se encontrava
reito consuetudinário. Segundo Arthur Rios:
gente capacitada para fazê-las. Urna carta de sesmaria do século

18 J. da Costa Porto, O sistema sesm arial..., p. 138. 21 .\nhur Rio.,, '.^.pOhie e 0 pù.<..w;rû.,.', p. 52.
19 “ Fragmentos.,.” , p. 38S. 22 R. Cirne Lima, Pequena história territorial do Brasil..., pp. 5 1-3 .
20 F. A. Varnhagen, H istória geral do Brasil, 7* ed. Sáo Paulo; Melhoramento,s, .s.d.. 23 Auguste de Saint-Hilaire. Viagem pelas províncias do Rio de Janeiro e M inas Gerais. São
vol. 1., p. 267, Paulo: Cia. Editora Nacional, 1 9 3 8 ,1 .1 , p. 20g.
76 i Terras devolutas e latifúndio O fim das sesm arias ,77

XIX registra os passos descritos por Saint-Hilaire. Trata-se de uma cará logo privado dessa mercê, assim como também lhe não valerá,
sesmaria concedida sem a obrigação de foro, em Mato Grosso, a e ficará de nenhum efeito se dentro de dois anos, contados da data
i8 de agosto de 1814, e foi assinada por João Carlos Augusto desta, não impetrar e não obtiver certa e confirmação de S.A.R a
D ’Oeynhausen Grevenbúrg, governador e capitão-general. quem deve logo recorrer o suplicante com esta pelo seu Régio Tri­
bunal e Mesa de Desembargador do Paço deste Estado, para o mes­
mo Senhor se dignar de confirmar esta doação, feita ao seu Real
Hei por bem fazer mercê ao dito padre Joaquim José Gomes da Nome e na conformidade de suas Reais Ordens.^'*
Silva lhe conceder por sesmaria nos campos que ficam entre os rios
de São Lourenço e Piquiri, légua e meia de testada e três de fundo,
procedendo-se a medição na forma de sua súplica, sem que haja Como se pode notar, a sesmaria doada não vinba com a cláu­
interpelação alguma nem prejuízo de qualquer outra mais antiga sula de foro e nela não podiam suceder as religiões (embora a
concessão, a qual concessão lhe faço pelos poderes que para isso proibição tivesse sido revogada no século XVIII), “mas acontecen­
tenho de S.A.R. que Deus guarde, em seu Real Nome, para que
do de fato possuí-la” estas não estavam isentas de dízimo.
haja, e possua as ditas terras como sua própria, assim ele como seus
sucessores, sem pensão, nem tributo algum, mais que os dízimos a Do ponto de vista jurídico, a situação da apropriação territo­
Deus Nosso Senhor, de todos os frutos e criações que nela tiver; com rial do século XIX constituía um intrincado feixe de obrigações
declaração que será obrigado a fazê-la medir, demarcar e tomar pos­ burocráticas espalhadas numa profusão de portarias, decretos,
se delas juridicamente, sendo para esse fim notificados os vizinhos, alvarás, cartas régias etc. que não eram cumpridos, em sua maio­
confinantes, se os tiver: povoando-as, cultivando-as de maneira que
ria, pelos colonos. Do ponto de vista da prática efetiva, crescia a
deem fruto. E será também obrigado a fazer e concertar os caminhos
das suas testadas, com pontes e estivas aonde forem necessárias, e ocupação pela posse, livre de entraves burocráticos.
dará caminhos parriculares aos mais coheréus que com as ditas ter­ Além de gerar conflitos entre os moradores, a situação desa­
ras confinar aonde dele necessitarem para extraírem os seus frutos, fiava a autoridade estabelecida e, portanto, constituía uma fonte
efeitos e criações. E si para o futuro S.A.R for servido mandar erigir de preocupação para o governo. O que escapava ao tino das au­
na dita paragem alguma Vila, povoação ou castelo, 0 podería fazer,
toridades administrativas e do poder régio era 0 fato de que os
como senhor, sem por isso ficar ação ao primeiro para pedir remu­
neração alguma. E descobrindo-se nas mesmas terras minas ou viei- colonos e os sesmeiros tinham motivos muito mais fortes do que
ro de ouro, ou prata ou qualquer outro metal, ou pedra preciosa, o a resistência ao pagamento de foros ou às despesas de confirma­
continente de qualquer destas preciosidades será isento, e não com­ ção (por mais forte que fossem essas motivações) para se recusa­
preendido nesta doação, reservando tão somente nele os paus reais rem a obedecer às determinações da legislação, especialmente a
que em qualquer tempo se acharem para embarcações. E não pode­ cláusula de demarcação e medição. Esses motivos se resumiam no
rão suceder na posse e domínio delas religiões algumas, mas acon-
tecendiS-de fato possuí-las, pagarão dízimos de todos os frutos, efei­ padrão de ocupação estabelecido na Colônia desde o início, que
tos, criações que nela houverem, na mesma forma que se fossem consistia na prática de uma agricultura primitiva que extenuava
possuídas e cultivadas por seculares, e não os pagando lhes serão rapidamente o solo. Isso obrigava à contínua incorporação de
tomadas e sedarão ao denunciante ou a quem os pedir. E faltando a-
qualquer das condições expressadas, ou as mais que dispõem as ter­ 24 Transcrita em Virgílio Correa Filho, “ Processo de aquisição de terras devolutas no
ras e foral das sesmarias, por esse fato omissão o\i contravenção, fi­ Brasil durante o período colonial” , Estudos de H istória Americana^ n“ i. México, 1948,
pp. 21^-20.
78 Terras devolutas e latifúndio O fim das sesm arias 79

novas terras e marcava o crescimento meramente extensivo das tância à qual eram dirigidos os pedidos de confirmação das ses­
atividades produtoras, sem a introdução de novas técnicas agrí­ marias, o príncipe regente, por intermédio do decreto de 22/6,
colas ou de tratamento do solo. Tudo isso era possível graças ao transferiu para a Mesa do Desembargo do Paço o processo de
trabalho escravo e à disponibilidade de terras por apropriar. confirmação e reforçou aõ mesiíió tempo a autorização para que
A exigência de medição e demarcação era extremamente in­ os capitães-generais concedessem as datas de terras.
conveniente, tendo em vista esse padrão de ocupação. A mobili­ Como as pendências entre sesmeiros e posseiros se multipli­
dade exigida pelas circunstâncias não se coadunava bem com a cavam, dom João baixou outro alvará em 25 de janeiro de 1809,
rigidez da legislação. Afirma Sérgio Buarque de Holanda: “A regra ■ ainda dentro do espírito de que as coisas iam mal porque a legis­
era irem buscar os lavradores novas terras em lugares de mato lação não era corretamente cumprida. Ordenava que a Mesa do
dentro, e assim raramente decorriam duas gerações sem que uma Desembargo do Paço não mandasse passar carta de concessão de
mesma fazenda mudasse de sítio, ou de dono”.^^ sesmar-a ou de confirmação sem que houvesse primeirc>.“niedição
Ademais, cientes do rápido esgotamento das terras, os fazen­ judicial julgada por sentença passada em julgado”. No L iv ro d a s
deiros tinham o hábito de constituir “reservas” de terras, isto é, terras, Gomes de Menezes comentou o ato de dom João:
se “apropriavam” de muito mais terras do que cultivavam para
garantir o futuro. Não tinham interesse, portanto, em informar Esta legislação não era já suficiente. Não bastava então já só dizer
como se adquiriria e firmaria a propriedade das terras devolutas,
às autoridades os limites exatos de suas terras ou das terras que
era já tempo de declarar os direitos que restavam aos sesmeiros
pretendiam fossem suas. que não preenchiam as condições e quais adquiriram os posseiros,
Se as autoridades coloniais não foram sensíveis à importância para assim decidirem-se essas inúmeras questões que entre eles se
dessas condições, os fazendeiros, por sua vez, não abriram mão agitavam.^*'
da faculdade de reclamar o direito de continuar essa prática. E
reclamavam diretamente à autoridade régia. Fizeram-no nos sé­
26 “ Reflexões do Dr. José Augusto Gomes de Menezes” , in José Marcelino Pereira tie
culos XVIII e XIX. Vasconcelos, Livro das terras, 2“ ed. Rio de Janeiro: Laemmert, i8áo, p. 344. O Livro
No início do século XIX, uma circunstância política nova veio das terras teve, até 1885, quatro edições, das quais a Biblioteca Nacional possui três. A
primeira edição, de 1856, possuía 18 4 páginas. Apresentava-se como uma “coleção de
favorecer o poder de pressão do senhoriato rural, em pleno de­ leis, regulamentos e ordens expedidas a respeito desta matéria até o presente”. Conti­
senvolvimento na Colônia. As guerras napoleônicas na Europa nha também a forma de um processo de medição organizado pelos juizes comissários
e as reflexões do doutor José Augusto Gomes de Menezes, além de outros “que escla­
provocaram a transferência da Corte portuguesa para o Brasil. A recem e explicam as mesmas leis” . A segunda edição foi consideravelmente acrescida
proximidade das instâncias administrativas tornava mais efetiva com “tudo quanto respeita à colonização civil e militar” . Apareceu em i860, com 432
páginas. Entre outros acréscimos, continha o projeto adicional à Lei de Terras (impon­
a influência do senhoriato rural sobre as decisões a serem tomadas do o imposto territorial) de Francisco Adolfo Varnhagen. A quarta edição, de 1885,
quanto à questão da terra. Quando em 1808 ficaram interrom­ “revista por um magistrado” , era igual à segunda. O organizador do Livro das terras era
autor de uma extensa obra voltada para questões jurídicas. Publicou no Rio de Janeiro,
pidos os contatos com o Tribunal do Conselho Ultramarino, ins- entre outras: Atos e atribuições, deveres e obrigações dos ju izes de paz por um bacharel
(i860); 0 advogado comercial (18 55); Código C rim inal do Império do Brasil (1877):
25 Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil, 14* ed. Rio de Janeiro; José Olympio, M anual do ju iz de direito (18 6 1); Novo advogado do povo (1885). Todas com várias
19 8 1, p. 20. edições.
8o Terras devolutas e latifúndio O/im das sesm arias 181

De fato, a questáo continuou sem solução. A metrópole insis­ baratas, por lotes de jeiras acadêmicas ou 400 braças quadradas,
tia em considerar o assunto apenas do ponto de vista jurídico, aos libertos e aos colonos”.
sem atentar para as condições soeioeconômicas da colônia, que O diagnóstico do documento era de que o sesmarialismo bra­
haviam gerado aquele padrão de ocupação territorial. Na realida­ sileiro sofrera profundas distorções. Ao invés de contribuir para
de subestimaram a força social dos moradores e colonos, que cada o desenvolvimento da agricultura, constituía, de fato, um en­
vez mais se afirmavam como os donos da terra. A metrópole tam­ trave. A extensão desmesurada das concessões, que permaneciam
bém não atentou para o fato de que a multiplicação das exigên­ incultas, obrigava o restante da população a viver dispersa no
cias para legalizar as propriedades dos colonos sesmeiros e a sua campo e embrenhada no mato, “com sumo prejuízo da adminis­
resistência em obedecer-lhes estabeleciam cada vez mais um cam­ tração da Justiça e da Civilização do país”.^**
po de interesse comum entre uma parcela dos colonos sesmeiros
e os colonos posseiros. Interesse comum que desafiava a autori­ 1) Que todas as terras dadas por sesmaria e não [...] cultivadas,
dade da metrópole. entrem, outra vez, na massa dos bens nacionais, deixando-se somen­
Existia, sem dúvida, uma contradição entre os sesmeiros e os te aos donos das terras meia légua quadrada (2.178 ha), quando
muito, com a condição de começarem logo a cultivá-las em tempo
posseiros quando a questão era a doação de sesmarias em áreas
determinado, que parece justo.
ocupadas. Foi esse aspecto que forçou a tomada de posição das 2) Que os que têm feito suas terras, só por mera posse e não por
autoridades para dirimir o conflito. Mas a prova de que o proble­ título legal as hajam de perder, exceto o terreno que já tiverem cul­
ma não consistia apenas nesse aspecto está no fato de que a sus­ tivado e mais 400 jeiras acadêmicas (166 ha) para poderem estender
pensão das concessões de sesmarias apenas evitou uma das áreas sua cultura, determinando-se, para isso, tempo prefixo.
3) Que todas as terras que reverterem, por este modo, à nação e de
de conflito. Antes, porém, de a situação chegar a esse ponto, foi
todas as outras que estiverem vagas, não se dêem mais sesmarias
feita outra tentativa de colocar em ordem a questão da proprie­ gratuitas, salvo em casos especiais, ali, a seguir estabelecidos.
dade fundiária. [...]
Em outubro de 1821, a junta de São Paulo entregou aos de­ 5) Que todas as vendas que se fizerem e sesmarias que se derem, se
putados eleitos pela província para representá-la nas Cortes de porá a condição que os donos e sesmeiros deixem a sexta parte do
Lisboa instruções regidas por José Bonifácio, vice-presidente da terreno, que nunca poderá ser derrubada e queimada sem que se
façam novas plantações de bosques para que nunca faltem as lenhas
mesma junta. Essas instruções estavam divididas em três capítu­
e madeiras necessárias.
los; os negócios da União, os negócios do reino do Brasil e os
negócios da província.
No capítulo dos negócios do Brasil, que compreendia 12 in­
dicações, o décimo primeiro “incluía lembrança de alto interesse 27 F. A. Varnhagen, H istória da Independência., 5‘ ed., anexa à H istória geral do Brasil,
y ' ed. São Paulo: Melhoramentos, 1962, vols. V-Vl, pp. 87-8. Jeira é uma medida
acerca de uma legislação agrária e florestal, di:vendo ser declara­
agrária que varia de 19 ha a 36 ha. Uma braça é igual a 2,2 m.
das terras devolutas as sesmarias não apmveit.ida.s, vendendo-sc 28 J . da Costa Porto, 0 sistema sesm arial..., p. 140.
29 Ibidem; 400 jeiras acadêmicas correspondem aproximadamente a 16 6 ha.
82 Terras devolutas e latifúndio O fim da.s sesm arias 83

As Cortes constituintes de Lisboa estavam, entretanto, muito te a uma avaliação sobre seus efeitos na formação da propriedade
mais preocupacias com o problema político e com o desejo de da terra.
“recolonizaçáo” do Brasil, de modo que náo se discutiu nem se Os legisladores metropolitanos acreditaram, durante todo 0
deliberou sobre a questão do sesmarialismo brasileiro. período colonial, na possibilidade de determinar os rumos da
Contudo a pressão dos posseiros continuou. Durante a regên­ apropriação territorial por meio, primeiro, da transposição da
cia de dom Pedro foi conseguida uma vitória expressiva na pro­ legislação do Reino para a Colônia e, segundo, da elaboração de
visão de 14 de março de 1822, segundo a qual as medições e uma copiosa legislação específica, visando “corrigir” os desvios
demarcações de sesmarias deviam fazer-se: “Sem prejudicar quais­ que a aplicação do sistema sofrera. As transformações ocorridas
quer possuidores, que tenham efetivas culturas no terreno, por­ no século XVIII, tanto na metrópole quanto na Colônia, intro­
quanto devem eles serem conservados nas suas posses, bastando duziram mudanças no padrão de relacionamento entre as duas,
para título as reais ordens, porque as mesmas posses prevaleçam mas, no caso da apropriação territorial, náo foi possível à metró­
às sesmarias anteriormente concedidas”.’” pole reverter os marcos dentro dos quais o processo viera ocor­
Finalmente, o golpe de morte no regime de sesmarias foi dado rendo, tendo em vista que as características da produção colonial
pela resolução de 17 de julho de 1822, que determinou: “Suspen­ se mantinham inalteradas. A disponibilidade de terras, em parti­
dam-se todas as sesmarias futuras até a convocação da Assembléia cular, representava um papel importante dentro desse sistema, e
Geral e Legislativa”. O fato que provocou a medida foi a petição era assegurada ao senhoriato rural, conforme afirmamos anterior­
de um posseiro do Rio de Janeiro, que dizia viver há mais de 20 mente, pela manutenção do escravismo como solução para o pro­
anos em terras “compreendidas na medição de algumas sesmarias blema da mão-de-obra. Note-se que o objetivo da metrópole
que se tinham concedido anteriormente”. Pedia para ser conser­ nunca foi combater a grande propriedade ou o escravismo, mas
vado na posse das ditas terras. O parecer do procurador da Coroa retomar o controle do processo de apropriação que escapara de
e da Fazenda foi de que “não é competente o meio”, devendo o suas mãos.
interessado “requerer por sesmaria as terras de que trata”.’ ’ Mas Essas observações nos levam, portanto, a nuançar a avaliação
a resolução do príncipe regente foi suspender as sesmarias para de que o sistema sesmarial foi o responsável pelo caráter latifun­
acabar de vez com esse tipo de pendência. “A experiência havia diário da nossa estrutura agrária.” O sistema sesmarial contri­
mostrado que produziam elas mais desordens entre os cultiva­ buiu, sem dúvida, para a formação do latifúndio colonial, na
dores e punham cada vez mais duvidosa a propriedade terri­ medida em que se adaptou aos imperativos do sistema de coloni­
torial”.’“ zação. Náo se pode esquecer, contudo, de que em 1822, quando
O ocaso do regime de concessão de sesmarias, depois de uma
vigência de aproximadamente 300 anos, nos conduz naturalmen-

30 R. Cirne Lima, Pequena história territorial do Brasil..., p. 48.


33 A avaliação encontra-se, por exemplo, nos trabalhos citados de ]. da Costa Porto, R.
31 J. da Costa Porto, O sistema sesmarial..., p. 139 . Cirne Lima. Messias Junqueira e também em Alberto Passos Guimarães, Quatro sécu­
32 J. M . R de Vasconcelos, Livro das terras, p. 344. los ae latifúndio, 3' ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra. s.d.
84 Terras devolutas e latifúndio 0 fim das sesm arias 85

foi extinto, apenas um a parcela pequena do território hiiisildro mente outra forma de aquisição de domínio, a posse, que desa­
estava apropriadad"* fiava abertamente a autoridade colonial.
A questáo da avaliação do significado do sistema sesmarial não Em conseqüência, é compreensível que a multiplicação das
se esgota, entretanto, aí. A lei de sesmarias adotada na metrópo­ exigências, as ameaças de supressão das concessões, a cobrança de
le para superar uma crise de abastecimento fora gerada a partir foros etc. tivessem como principal efeito criar um campo de in­
das especificidades da sociedade portuguesa, em que às caracte­ teresse comum entre sesmeiros em situação irregular e posseiros,
rísticas feudais se mesclavam aos novos interesses da burguesia contra as autoridades coloniais.
mercantil. Sem determo-nos sobre o significado e o alcance do Desse modo, a suspensão do regime de concessão de sesmarias
regime de sesmarias para a metrópole, acreditamos justificada a quase que simultaneamente à declaração de independência não
suposição de que a elaboração da lei teve por objetivo mediar as pode ser vista como uma coincidência. As contradições entre o
relações entre as diversas forças sociais que compunham a nação senhoriato rural da Colônia e a metrópole em torno da questão
portuguesa. Nesse sentido, como afirmou o historiador E. P. da apropriação territorial contribuíram também, significativa­
Thompson, referindo-se à legislação inglesa do século XVIII, “a mente, para a ruptura definitiva dos vínculos coloniais.
lei pode ser vista instrumentalmente como mediação e reforço Dessa perspectiva, o ocaso do regime de sesmarias confunde-
das relações de classe existentes, e, ideologicamente, como sua se com o processo de emancipação da Colônia.
legitimadora”.^^ O problema em relação ao sistema sesmarial co­
lonial é exatamente o fato de que ele não foi fruto de uma acomo­
dação interna e, portanto, não resultou da necessidade de mediar
“as relações de classe existentes”. Foi imposto pela metrópole à
Colônia e, nesse sentido, mediava as relações entre a metrópole e
o senhoriato rural que se foi formando na Colônia. Em função
disso, compreende-se que, quanto mais se desenvolvia a Colônia
e mais problemáticos se tornavam os vínculos coloniais, menos
legítima se tornava a legislação imposta pela metrópole. Compreen­
de-se também por que, paralelamente, se foi gestando interna-

34 Dados para o século XIX náo existem. Entretanto, sabemos que, em ipzo , somente
10% da nossa superfície territorial estava ocupada por estabelecimentos rurais. Em
relação aos estados de São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul, a ocupação re­
presentava aproximadamente 40%, 50% e 50%. respectivamente. Em I9 7 t, segundo
dados do I n c r a , um terço do território brasileiro con.stiiiiía-se de terras devolutas, isto
é, 3 1 1 milhões de hectares. Cf. Altir de Souza Maia, “Arrecadação de terras públicas” ,
in Encontros da UnB. Brasília: Editora UnB, 1978. p. óú.
35 E..V .T [iom pson, Senhores e caçadores. Rio de Janeiro: e Iriia, IU87, p. is).
IV

o p r e d o m ín io d a p o s se

O desenvolvimento da Colônia, principalmente ao longo do sé­


culo XVIII, transformara, aos poucos, o papel de intermediário,
exercido pela metrópole na atividade comercial, num entrave
insuportável. As contradições que começaram a opor os colonos
brasileiros aos desígnios da política metropolitana foram tempora­
riamente postergadas pela transferência da Corre portuguesa para
o Brasil (1808), provocada pelas injunções da política européia,
já bastante conhecidas. O processo de aumento do controle da
Colônia pela metrópole, iniciado em meados do século XVII, su­
focando a autonomia local dos primeiros tempos da colonização,
foi apenas atenuado pelas medidas tomadas por dom João VI, tais
como a elevação do Brasil à categoria de Reino Unido e a abertura
dos portos. Por outro lado, a evolução da situação européia tivera
o efeito de interessar 0 principal aliado de Portugal, a Inglaterra,
na disseminação do livre comércio nas zonas até então mantidas
dentro dos limites estreitos do antigo pacto colonial.'
No quadro formado pelas injunções internas e externas, o pro­
cesso de autonomização da Colônia tinha todas as condições para

I Caio Prado Jr., Evolução política do Brasil e outros estudos, 6“ ed. São Paulo: Brasiliense,
19 6 9 , pp. 42-7,
88 Terras devolutas e latifúndio O predom inio da posse 89

amadurecer. Assim sendo, quando as Cortes portuguesas, oriun­ Como se sabe, inicialmente os partidários da autonomia, so­
das da Revolução Liberal de 1820, tentaram reverter a situação, bretudo aquelas camadas ligadas à agricultura de exportação e à
o que ficou conhecido como a tentativa de “recolonizaçáo” do terra, não se inclinaram para a ruptura, mas sim para a autonomia
Brasil, encontraram a resistência obstinada dos colonos, reunidos dentro da união com a metrópole. Para essas camadas, o funda­
em torno do príncipe regente, que acabou por desempenhar o mental era conquistar a liberdade de comércio sem que isso im­
último ato desse importante momento da história brasileira. Po­ plicasse alterações profundas na situação interna da Colônia.
rém a autonomia da Colônia, conquistada em 1822, foi profun­ Julgavam esse o melhor caminho para a manutenção do sistema
damente marcada pela composição das forças que se opuseram à que vigorara até então, baseado na grande exploração e no traba­
recolonizaçáo, principalmente pelo papel fundamental desempe­ lho escravo. A participação de outras camadas da população no
nhado no processo pelos grandes proprietários de terias, ligados movimento de autonomização, como os profissionais liberais,
à agricultura de exportação. pequenos comerciantes etc., colocando a necessidade de reformas
A referência aos proprietários de terras obriga-nos a um pe­ internas mais profundas, em alguns casos até mesmo questionan­
queno parêntese. No início do século XIX, como temos tentado do o regime servil, só tornava mais aguda para os senhores de
demonstrar, a situação da propriedade da terra, do ponto de vis­ terras e de escravos a necessidade de que a “ruptura” com a me­
ta de seu ordenamento jurídico, era caótica. Falar em termos de trópole, se inevitável, ocorresse com o mínimo de abalo possível.
proprietários de terras, no sentido estrito, portanto, não se justi­ Para isso, a manutenção do regime monárquico era uma solução
fica. O senhoriato rural que se desenvolvera na Colônia ainda não atraente, mesmo que a presença da casa portuguesa no trono do
constituía propriamente uma classe de proprietários de terras Brasil significasse também o perigo contínuo da temida e detes­
porque a maioria dos ocupantes das terras (sesmeiros ou possei­ tada “recolonizaçáo”. Essas opções não foram, naturalmente, sem
ros) não possuía um título legítimo de domínio. A suspensão das consequências para o desenrolar dos acontecimentos no período
concessões de sesmarias não extinguira a vigência dós decretos, que se abriu com o 7 de Setembro.^
leis, alvarás, avisos etc. referentes à terra do período colonial. A manutenção das condições vigentes até então no sistema
Deve-se ter em mente, portanto, que o direito à propriedade não produtivo explica, até certo ponto, por que a questão da terra não
era absoluto-, no sentido romano do termo, mesmo para os ses­
meiros que haviam cumprido as condições das doações, pois a
condicionaljdade estipulada nas O rdenações nunca foi revogada. diluée ou émiettée par le droit féodal, I’ Assemblée Nationale voulut que la propriété
fut eiuièrcniciit libre, et le droit d’ user et abuser de ses biens, saufles restrictions né­
Utilizaremos, contudo, a expressão “proprietários de terras” por
cessités par l’intérêt général évidemment constaté". Jacques Godechot, Les institutions
comodidade, designando com ela todos os ocupantes das terras, de la France sous la Révolution et l'Em pire. Paris: PUF, 1989, p. 203. N o caso do Brasil,
Alice Canabrava esteve atenta para o fato de que o terrao “propriedade” , no período
sem distinções.^
em questão, não podia assumir conotação jurídica precisa. Ver “Terras e escravos na
grande lavoura paulista", in Anais do VJII Simpósio N acional das Professores Universitá­
2 Godechot observa que a existência de uma situação scmclbamt- na l'Vança provocou .a rios de H istória. São Paulo, 1976 , vol. Ill, p. 19 3.
intervenção da Assembléia Nacional durante a Revolução l'rancesa: “Alors (|ue la pro­ 3 Cf. Carlos Guilherme M ota e Fernando Novais, A independência política do Brasil. São
priété, sous l’Ancien Régime, était souvent imlivisc ou colli-nivc, la plupin i du lenips Paulo: Moderna, 1986, pp. 19-24.
90 I Terras devolutas e latifúndio 0 predom ínio da posse 91

sofi'cu aluTiu,()cs profundas logo após a emancipação política.“^O forma tranqüila, implicando conflitos e acomodações que estão
padrão do ocupação desenvolvido até então continuou. A posse registrados nos desdobramentos da história da apropriação terri­
já conquistara um certo reconhecimento por parte das autorida­ torial e em seu ordenamento jurídico.
des, principalmonte a partir da resolução do príncipe regente que A suspensão das concéSSões dè; sesmarias, embora tenha ocor­
lhe dava prevalência sobre as sesmarias. O entendimento que se rido alguns meses antes da independência propriamente dita, foi
teve da resolução do príncipe regente suspendendo as concessões a primeira marca impressa pelo novo Estado na questão da terra.
de sesmarias foi de que ela não se aplicava às posses. No período Foi de fato a única decisão importante tomada pelo governo du­
entre 1822 e 1850 a posse tornou-se a única forma de aquisição rante os primeiros tempos. Dois fatos atestam, entretanto, que o
de domínio sobre as terras, ainda que apenas de fato, e é por isso problema da terra continuava a preocupar uma parcela dos polí­
que na história da apropriação territorial esse período ficou co­ ticos empenhados na organização do Estado, apesar de ainda não
nhecido como a “fase áurea do posseiro”.^ se impor como uma preocupação geral.
Mantidas a possibilidade de apossamento e a escravidão, não Em primeiro lugar, as anotações feitas por José Bonifácio de
havia razão para que o senhoriato rural pressionasse 0 Estado a Andrada e Silva, com vistas à elaboração de um projeto a ser
regulamentar a questão da terra. Entretanto, sem a expedição de apresentado aos constituintes. A resolução de julho de 1822, que
títulos de propriedade por parte das autoridades competentes, suspendia a concessão de sesmarias, transferira para a Assembléia
ficava faltando um elemento importante para a constituição da Geral Constituinte a procura de uma solução para a situação de
classe dos proprietários de terra. Para que tal ocorresse, foi preci­ indefinição que imperava no campo brasileiro. Ainda em fase de
so que se consolidasse o processo que o ato de dom Pedro apenas elaboração, a proposta de José Bonifácio, que tivera um papel
inaugurara, ou seja, o processo de formação do Estado nacional. importante na adoção da resolução de 1822, compunha-se de
Com o desatamento dos vínculos coloniais, abriu-se na verdade sete artigos:
um período de transição, em que os proprietários de terras, em­
bora exercendo um papel importante na organização do novo 1) Todos os possuidores de terras, que não tem título legal, perderão
as terras, que se atribuem, excepto num espaço de 650 jeiras (263 ha),
Estado, ainda estavam sendo regidos pelas normas estipuladas no
que se lhes deixará caso tenhâo feito algum estabelecimento ou
regime colonial. Na realidade, os dois processos — a consolida­ sítio.
ção do Estado nacional e a formação da classe dos proprietários 2) Todos os sesmeiros legítimos, que não tiverem começado ou
de terras — ocorrem simultaneamente, embora nem sempre de feito estabelecimento nas suas sesmarias, serão obrigados a ceder à
Coroa as terras, conservando 1.3 0 0 jeiras (526 ha) para si, com a
obrigação de começarem a formar roças e sítios dentro de seis
4 No entanto, é importante notar, como o faz Florestan Fernande^,, que a. formação do
Estado nacional teve conseqüências econômicas porque removeu os' obstáculos ao de- anos. ''
■ senvolvimento do capital mercantil nacional. Cf. A revolução burguesa no Brasil, 2‘ ed. 3) À proporção que a cultura for se estabelecendo ao redor das po­
Rio de Janeiro; Zahar, 1976. João Manuel Cardoso de Mello analisou as principais voações, a Coroa disporá por vendas aos que mais derem das terras
etapas da passagem da economia mercantil escravista para a economia mercantil escra­
segundo a sucessão de distâncias e posições: as terras serão divididas
vista nacional em O capitalismo tardio, 6‘ ed. Sáo Faulo: Brasiliense, 1987.
em porções de 650 jeiras, cujo preço de venda não poderá ser menor
5 Paulo Garcia, Terras devolutas. Belo Horizonte: Livraria 0 .scar Nicolai, 1958, p. 30.
92 I Terras devolutas e latifúndio 0 predom ínio da posse [93

que 2 patacas por jeira; pagando logo o do preço, c t:ada ano Enquanto no Legislativo a questão marcava passo, no Execu­
outro 5“ até a extinção da dívida. tivo as instâncias não se entendiam. Em abril de 1823, por exem­
4) Haverá uma caixa em que se recolherá o produto destas vendas
que será empregado nas despesas de estradas, canais e estabeleci­ plo, uma Provisão da Mesa do Desembargo do Paço mandou que
mentos de colonização européia, índios, mulatos e negros forros. se concedessem sesmarias na província de Santa Catarina “de
5) Todas estas venda.s serão feitas com a condição de deixarem in­ quarto de légua aos colonos e pessoas que puderem fazer estabe­
tacto 0 6“ terreno para bosques e matos. lecimentos rurais”. A junta governativa da província estranhou a
d) 36 sesmarias seguidas formarão um Termo com uma vila nova ou medida, tendo em vista a recomendação anterior de que elas pró­
velha, ficando 4 centrais sem serem vendidas, mas destinadas para
prias não concedessem sesmarias, recomendação reafirmada na
estabelecimentos públicos.
7) Não dar sesmarias sem que os donos sigam novo método de resolução de 22 de outubro do mesmo ano. A concessão foi, no
cultura à européia.'’ entanto, mantida por outra provisão que declarava que “a con­
cessão de sesmarias é da primitiva competência da Mesa do De­
Esse projeto não foi levado adiante, e o afastamento político sembargo do Paço”.®
de José Bonifácio acabaria por afastar a maioria do “partido bra­ O momento político não era propício à discussão do ordena­
sileiro” do centro das decisões políticas. mento jurídico da questão da terra porque o afastamento dos “na­
O segundo fato que marcou a presença da questão da terra na cionais” deixara o imperador circunscrito ao apoio do “partido
Assembléia Constituinte de 1823 foi a proposta apresentada por português”, que sozinho não tinha condições de governar o país^
Nicolau Campos Vergueiro na sessão de 14 de julho, na verdade, nem, muito menos, de impor ao senhoriato rural uma defini­
uma indicação à consideração de seus pares; ção sobre um tema de tamanha importância. Decorreram daí os
acontecimentos que levaram ao enfrentamento entre o imperador
1) Que se suspendam as datas de sesmarias. e a Constituinte, encerrado com a dissolução desta e a outorga
2) Que a Comissão de Agricultura proponha um projeto de lei sobre de uma Constituição que os nacionais consideraram eivada de
terras públicas, contendo providências para o pretérito e regras para
absolutismo. Na Constituição outorgada nada foi dito sobre a
o futuro.^
terra. Outros acontecimentos políticos, tais como a Confedera­
ção do Equador, a Guerra da Qsplatina etc., tomaram a dianteira
A proposta de Vergueiro foi aprovada para debates na sessão
e serviram, de um lado, para indispor o imperador com as classes
de 29 de julho e encaminhada à Comissão de Agricultura, com a
políticas brasileiras e, de outro, para postergar a sedimentação do
recomendação de que o governo “reforçasse as ordens dadas an­
novo Estado, que estava apenas dando os primeiros passos.
teriormente”, mas não teve seqüência.

8 Coleção dos decretos do governo do Império do Brasil, 18 2 3 , Provisões de 8 de abril


6 Documentos da Coleção de José Bonifácio, I h GB, n" 4.^44, livro 19a. e de 13 de novembro. A partir de 1808 (alvará de 22 de junho), a confirmação das
7 Reproduzido em José da Costa Porto, Sistema sesmnrial na Hnisil. Brasília: Kditora sesmarias passa a ser atribuição da Mesa do Desembargo do Paço.
UnB, s.d., p. 40. 9 Carlos Guilherme M ota e Fernando Novais, A independência política..., p. 35.
94 Terras devolutas e latifúndio 0 predom ínio da posse 95

Com a abdicação e a volta dos grandes proprietários de terras Nos anos 1830 duas antigas disposições foram extintas. A pri­
ao centro da ação política, começaram a se definir mais nitida­ meira foi a obrigatoriedade do pagamento de foros das sesmarias
mente os contornos do novo Estado. (lei de 15 de novembro de 1831). O alcance dessa n.edida não
era muito grande, tendo; em yispa que nem todas as sesmarias
O fato novo e de grande significação, que então se observa, é que o tinham sido concedidas com essa cláusula e também pelo fato de
poder público, especialmente a partir da abdicação de D. Pedro I,
que os concessionários obrigados a ela se furtavam ao pagamento
deixa de ser expressão de alguma coisa colocada acima e fora do pais,
para refletir em sua composição justamente as forças políticas de
sem que as instâncias administrativas tivessem meios de cobrá-
nossa própria terra. Já o problema político não se põe em termos de los. Não obstante, sua extinção representou a conquista de uma
uma disputa entre colônia e metrópole nem entre interesses portu­ aspiração que vinha dos tempos coloniais.
gueses e brasileiros. O 7 de abril (ponto referência) assinala a com­ A segunda modificação ocorrida na época regencial, no que
pleta transferência do poder para as mãos do senhoriato rural, que
concerne à questão da terra, foi a extinção do morgadio (lei de 6
deixava assim de operar no plano restrito das municipalidades para
projetar sua importância econômica, social e portanto, política em
de outubro de 183 5).'^ A Lei dos Morgados definia que os bens
toda a extensão do Império.'“ passassem indivisos ao filho mais velho. A abolição dessa lei, na
realidade, veio corroborar uma prática já existente, pois foram
Esse fato não significou, entretanto, o fim dos problemas para raros os casos de morgadio no Brasil colonial.*'* As propriedades
a consolidação do Estado nacional. Pelo contrário, o período re- eram, em geral, divididas entre os filhos e até mesmo as filhas,
gencial caracterizou-se por uma instabilidade política causada como dote. Essa forma era muito mais compatível com o sistema
basicamente por dois fatores. De um lado, floresceram e amadu­ imperante no campo brasileiro, isto é, um sistema caracterizado
receram algumas divergências no conjunto das forças que se ha­ pela mobilidade, pelo crescimento em extensão e pela disponibi­
viam unido para fazer a emancipação." De outro, desenrolou-se lidade de terras. O historiador Armitage diz que a finalidade des­
uma disputa pelo poder, no Estado, entre as oligarquias provin­ sa lei era “impedir a instituição de uma aristocracia hereditária”
ciais e o centro. Num primeiro momento, a luta foi ganha pelos e não “prevenir algum mal existente”. A aprovação da lei extin­
descentralizadores, com a aprovação do ato adicional. Iniciou-se, guindo o morgadio seria ainda um eco das lutas de 1824 contra
assim, o período que Joaquim Nabuco denominou de “experiên­ os “absolutistas”, quando se temeu que o Senado fosse substituí­
cia republicana”, durante o qual proliferaram as rebeliões provin­ do por uma Câmara hereditária. Tal receio se fundava na prolife­
ciais, e que somente se encerrou quando o temor da desordem ração de títulos de nobreza concedidos aos aristocratas de origem
social, causada pelo enfraquecimento da autoridade, produziu 13 Um bem de morgadio ou de “capela” é um bem de propriedade limitada. Permanece
um argumento a favor da centralização.'^ perpetuamente em mãos de uma determinada família, sem que possa jamais ser parti­
lhado ou alienado, pois “uma vez instituído o moigado é indivisível e inalienável” . A
“capela” era uma disposição na qual o “ instituidor” reservava uma certa área de terras
cuja renda se destinaria à construção de uma capela. A propriedade em questão torna­
10 Vitor Nunes Leal, Coronelismo, enxada e voto, 1} ed. São Paulo: Alfa-Omega, 1975, p. 73. va-se inalienável. Cf. Katia Matcoso, Fam ília e soáedade na Bahia do século XIX. São
1 1 Caio Prado Jr., Evoluçãopolitica..., p. 77. Paulo; Corrupio; Brasília: C N Pq, 1988, p. 53.
iz Joaquim Nabuco, Um estadista do Império. Rio cie Janeiro; Garnier, s.d. 14 j. da Costa Porto, 0 sistema scsm arial..., p. 52.
96] Terras devolutas e latifúndio O predom ínio da posse 197

portuguesa e no temor de que isso viesse a ser o começo de linha- le sobre a autoridade policial, e a lei de interpretação do ato adi­
gens hereditárias, com direitos políticos.'^ A Câmara de 1835, cional, que colocou o Judiciário sob as ordens diretas do impera­
informada principalmente pelos interesses dos grandes proprie­ dor, permitindo a unificação da polícia e da magistratura. Foram
tários escravistas nacionais, decidiu pôr um impedimento final a medidas visando dar condições de estender a autoridade imperial
essa possibilidade abolindo a lei. sobre todo o território nacional.'*'
Dadas as suas características e motivações, nenhuma das in­ Hermes Lima observa que “a centralização monárquica repre ­
tervenções do Estado nessas questões conexas alterou o panorama sentou no plano político, um dos pontos de apoio e defesa da
da apropriação territorial. Além dessas duas leis, dois projetos organização servil do trabalho”. A autonomia e a diversidade das
foram apresentados à Câmara para debate. Um sobre legitimação províncias poderiam “proporcionar a abertura de brechas parciai.s
de sesmarias (1830) e outro sobre arrendamento de terras públi­ na muralha da escravidão”. Indica-nos, assim, a existência de uma
cas (1835); nenhum dos dois, entretanto, teve seqüência. motivação menos “grandiosa” para a abdicação (temporária) das
O quadro geral no qual estava inserida a questão do ordena­ aspirações autonomistas das oligarquias regionais.'^
mento jurídico da propriedade territorial foi substantivamente Essa mudança de rumo na vida política, chamada por al­
alteradqna década de 1840, no período que se abriu corn a maio­ guns historiadores de “regresso”, e por outros de “reação”, foi
ridade. Em síntese as alterações que produziram condições favo­ caracterizada por todos como o final do período de turbulên­
ráveis à retomada da questão da terra foram ocasionadas, de um cias iniciado com a Independência e como a abertura de uma
lado, pelo rearranjo das forças políticas novamente reunidas em fase de estabilidade política e de desenvolvimento econômico.'®
torno do imperador e, de outro, pela riqueza econômica gerada Permaneceram ainda alguns focos de descontentamento (no Rio
pelo ciclo do café no Vale do Paraíba. Grande do Sul e em Pernambuco) e a questão da autonomia
A maioridade significou a retomada do papel exercido pela das províncias não foi totalmente esquecida (em particular, a
Monarquia, deixado em segundo plano durante a época da “ex­ Revolução Liberal de 1842 em São Paulo e Minas retomava a
periência republicana”. O perigo de que a autonomização das questão). Mas, no geral, o Reino entrou numa fase de paz e
províncias consagrada no ato adicional desembocasse na secessão prosperidade, propícia à consolidação do processo de formação
forçou as classes dirigentes a voltar atrás. A tendência que se ma­ do Estado nacional.
nifestou foi no sentido da concentração de poderes por meio da
transferência, para o poder central, de uma parte substantiva dos
16 Joáo Cam ilo de Oliveira Torres, Os construtores do Im pério. São Paulo: Cia. Editora
poderes delegados aos presidentes de províncias e às assembléias Nacional, 1968, p. 59. Para a compreensão do panorama geral do Império nesse perío­
provinciais. Duas leis promulgadas em 1841 foram responsáveis, do, ver também Raimundo Magalhães ]r., Três panfletários do Segundo Reinado. São
Paulo: Cia. Editora Nacional, 1956.
em grande medida, pelo processo de centralização: a reforma do 17 Hermes Lima, “ Prefácio” a Rui Barbosa, in Queda do Im pério. Rio de Janeiro: M inis­
Código de Processo, que reverteu ao governo imperial 0 contro­ tério da Educação e Saúde, 1947, t. I, vol. XVI, pp. XIV-XV. Obras Completas de Rui
Barbosa.
ls John Armitage, The history o f Brazil. Nova lonnic: I'irsi A, M. S. luliiiuii, ig/o, 18 V erJ. C. de Oliveira Torres, Os construtores..., p. •ij, e Qaíso Vrzào ]t „ Evolução p olíti­
pp. 16 -7 . ca..., pp. 78-9, respectivamente.
98 i Terras devolutas e latifúndio O predom ínio da posse 199

A prosperidade estava vinculada à expansáo do café na região Torres (visconde de Itaboraí), Pedro de Araújo Lima (marquês
Centro-Sul. O café foi aumentando sua importância econômi­ de Olinda) e muitos outros, eram escravistas ligados à atividade
ca desde a década de 1830, enquanto o processo de decadência cafeeira.
dos produtos da agricultura tradicional (açúcar, algodão, taba­ Nelson Werneck Sodré ressalta uma característica importante
co) se acentuava. Não seria o caso de tratar aqui as razões (na­ da atividade cafeeira: a associação da atividade agrícola com a
cionais e internacionais) que provocaram a decadência desses atividade mercantil.
produtos; o importante é destacar o deslocamento da primazia
econômica do Norte para o Centro-Sul e as conseqiiências que Não só os elementos ligados ao comércio interno de animais e de
gêneros principalmente ficam vinculados àquela lavoura, como os
advieram desse fato.
- elementos sediados nas cidades, que se incorporam como exporta­
Entre as décadas de 1821-1830 e 1841-1850, o volume de café dores e importadores, a essa atividade ascensional. O café refunde
exportado pelo Brasil quintuplicou.''^ Como a principal receita assim as relações entre os que empregam na lavoura os seus recursos
do Estado eram os impostos de importação e exportação, é pos­ e os que os empregam no comercio 22
sível avaliar a importância do café como esteio econômico desse
processo de consolidação do Estado. Essa característica do pri­ A associação do comércio, da agricultura e das finanças em
meiro ciclo cafeeiro se encontra suficientemente enfatizada nos torno da atividade cafeeira significava a internalização das deci­
trabalhos históricos sobre o período. Mesmo num trabalho mais sões num grau desconhecido durante a época açucareira.^^
geral sobre a história da América Latina, Halperin Donghi não A expansão cafeeira da primeira metade do século XIX teve
deixa de registrar que “o Brasil alcança uma certa coesão só quan­ repercussões imediatas na questão da apropriação territorial. Os
do o café se coloca no centro do país como elemento fundamen­ fatores importantes para os desdobramentos da questão da terra
tal de sua economia”.^" após 1840 foram de duas ordens; de um lado, a localização espa­
O café forneceu os recursos financeiros e os recursos humanos cial do novo ciclo econômico; de outro, as bases sobre as quais se
necessários à consolidação do Estado nacional. Organizou-se, assentou toda a atividade cafeeira, principalmente a disponibili­
nos anos 1840, o que limar de Mattos chamou de “hegemonia dade de terras.
Saquarema”, isto é, a base política e ideológica do Estado impe­ O surto do café beneficiou-se da decadência da região mine-
rial, concentrada sobretudo no Partido Conservador.^' As figu­ radora, conseguindo reorientar os recursos até então empregados
ras proeminentes do Partido Conservador, como Paulino José nela e tornados ociosos. Isso afetou, principalmentp, os transpor­
Soares de Souza (visconde do Uruguai), Joaquim José Rodrigues tes e a mão-de-obra. Entretanto, a principal condição para o su­
cesso da empresa cafeeira foi, segundo Celso Furtado, a existência
19 Nelson Werneck Sodré, Formação histórica do Brasil, z* ed. Sáo Paulo: Brasiliense, de terras disponíveis.
19 6 3, p. 199.
10 Túlio Halperin Donghi, História da Am érica Latina. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 19 7 5 , 22 Nelson Werneck Sodré, Formação histórica..., p. 201.
p. 96. 23 Celso Furtado, Formação econômica do Brasil, 6“ ed. Rio de Janeiro; Fundo de Cultura,
21 limar RohlofFde Mattos, O tempo Saquarema. Sáo Paulo: H u c it e c , 1987. 1964, p. 139.
100 Terras devolutas e latifúndio 0 predom ínio da posse 101

O problema brasileiro consistia em encontrar produtos de explora­ tro condensador de lavouras e de população”.^’ O Rio de Janeiro
ção em cuja produção entrasse como fator básico a terra. Com efei­ era uma região que desde o século XVIII apresentava uma ocupa­
to, a terra era o único fator de produção abundante no pais. Capitais ção e uma densidade populacional relativamente altas, se compa­
praticamente não existiam e a mão-de-obra era basicamente consti­
rada a outras regiões do Brasil. O fato de o café ter-se adaptado
tuída por um estoque de pouco mais de dois milhões de escravos,
parte substancial dos quais permaneciam imobilizados na indústria bem nas regiões circunvizinhas da cidade do Rio de Janeiro e
açucareira ou prestando serviços doméstícos.^^ depois ter ganhado as regiões próximas aumentou ainda mais a
concentração da população nessas áreas.
A referência à disponibilidade de terras como fator básico no Dizia o presidente da província do Rio de Janeiro, em 1843;
sistema econômico que girava em torno do café obriga-nos a
reafirmar mais uma vez a importância da manutenção do escra­ Terrenos devolutos quase todos têm sido há doze anos a esta parte
explorados, invadidos e apossados por um aluvião de pessoas e con­
vismo, que viabilizava essa permanente “abundância de terras”
vertidos em fazendas e situações com diversos gêneros de cultura.
para o senhoriato rural. Maravilham os inúmeros estabelecimentos agrícolas de todos os
Por outro lado, também é verdade que não se tratava de uma portes que por este meio tem-se formado.
quantidade infinita de terras, passíveis de serem aproveitadas eco­
nomicamente, com a rentabilidade exigida nesse tipo de investi­ Em decorrência da falta de ordenamento jurídico, é natural
mento. Dependendo de sua localização, seu aproveitamento po­ que essa concentração de interesses e de população derivasse em
dia ser antieconômico. A partir de uma certa distância dos portos conflitos que giravam em torno da questão da terra. Nesse senti­
de escoamento ou das trilhas percorridas pelas tropas de mulas, do o mesmo autor acrescentava;
o cultivo do café não era mais rentável. Esse era um dado que não
podia deixar indiferentes os principais atores desse processo. A Um germe fecundíssimo de desordens e de crimes tem sido a con­
riqueza do café concentrou-se na área do Rio de Janeiro e nas fusão dos limites das propriedades rurais, tanto as adquiridas por
regiões vizinhas de São Paulo e Minas. Inicialmente, tomou o sesmarias primitivamente, como as havidas por título de posse com
cultivos efetivos. As divisas principalmente dessas últimas só são
litoral do Rio de Janeiro, nas montanhas que circundam a cidade, firmadas e respeitadas por armas de fogo desfechadas e emboscadas
e depois o litoral sul (Angra dos Reis, Parati), ganhando o litoral de trás dos grossos troncos de nossas árvores seculares.
de São Paulo (Ubatuba, Caraguatatuba, São Sebastião). Depois,
o café encontrou as condições particularmente favoráveis do Vale Pode-se supor que essa situação provocasse nos proprietários
do Paraíba (altitude, pluviosidade, terras férteis), e as plantações de terras, sesmeiros e posseiros, uma insegurança que somente a
ocuparam todo o vale. Em meados do século XIX, afirma Caio regulamentação da propriedade da terra poderia fornecer os
Prado Júnior, o Vale do Paraíba “tornou-se assim um grande cen­
23 Caio Prado Jr., H istória econômica do Brasil, 8* ed. Sáo Paulo: Brasiliense, 1963,
p. 166.
26 Joáo Caldas Viana, Relatório do presidente da província do Rio de Janeiro, 18 43,
24 Idem, op. cit., pp. 1 36-7. p. 4.
Terras devolutas e latifúndio 0 predom ínio da posse

meios dc superar. A região por onde o café se espalhou inicial­ Por outro, somente nesse momento de reconhecimento pleno da
mente, o litoral perto do Rio de Janeiro, fazia parte das zonas propriedade privada da terra é que a classe dos proprietários de
onde se concederam sesmarias em maior profusão, também com terras estaria em condições de se constituir, de fato e de direito.
outras zonas da costa brasileira. Como sabemos, entretanto, isso E estranho que a bibliografia especializada, ao analisar as moti­
não diferenciava substancialmente os posseiros dos sesmeiros, vações das medidas propostas pelo governo para regulamentar a
pois a maioria destes não cumprira as condições das datas de questão da terra na década de 1840, não confira importância
terras. a esse aspecto. Destaca-se apenas a motivação relacionada com a
Em tese, a necessidade da regulamentação da propriedade da questão da mão-de-obra, isto é, a perspectiva do fim do tráfico,
terra era do interesse de todos os proprietários de terras. Entre­ que é sem dúvida, como veremos a seguir, um aspecto importante
tanto, o tipo de agricultura predatória e extensiva que se praticava da questão.
confiitava na prática com essa necessidade. Enquanto fosse pos­ Todavia, a articulação de interesses dos plantadores do Rio de
sível a incorporação nãò-problemática de novas terras por meio Janeiro e da burocracia imperial encontra-se explicitada em tra­
da posse e do trabalho escravo (que mantinha a mão-de-obra balhos que tratam da política de terras do Estado imperial.
cativa), essa mobilidade característica da nossa agricultura podia Warren Dean, José Murilo de Carvalho e limar de Mattos, em
continuar existindo. Naturalmente, o problema da necessidade particular, destacam o papel importante dos'políticos do Rio de
da regulamentação não foi sentido por todos os proprietários de Janeiro nas propostas sobre terras apresentadas em 1842-1843.^^
terras das diferentes regiões, nem da mesma maneira nem ao mes­
mo tempo.
Pode-se levantar a hipótese de que, nos anos 1840, o problema
foi sentido com certa agudeza pelos plantadores do Rio de Janei­
ro e adjacências, levando-os a apoiar a idéia da regulamentação
da propriedade territorial, sugerida pelos burocratas da Corte,
preocupados com a necessidade de estender a autoridade imperial
a todos os setores da sociedade, inclusive ao setor mais importan­
te, do ponto de vista da sustentação financeira do Estado.
Dentro do quadro geral que esboçamos, das mudanças em
curso desde a maioridade e que iam no sentido do reforçamento
do quadro institucional, essa preocupação parece perfeitamente
compreensível. De um lado, a ordenação jurídica da propriedade
da terra era uma necessidade intrínseca ao próprio desenvolvi­ i/j Waricn Dean, “ Latifundia and land policy in nineteenth century Brazil", Hispanic
American HistoricalulReview, n“ 4, set.. 19 7 1, p. 6 1 1; Jo,sé Murilo de Carvalho, Teatro
mento do Estado, não sendo aceitável que a questão da apro­
de sombras — A política imperial. Rio de Janeiro, 1988, pp., 89-90, e Ilmar de Matto.s,
priação territorial passasse ao largo da autoridade estabelecida. 0 tempo,,., pp. 239- 50.

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