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Cléo Vilson Altenhofen*

➲ Política lingüística, mitos e concepções lingüísticas


em áreas bilíngües de imigrantes (alemães)
no Sul do Brasil

1. Quadro histórico: tratamento das línguas de imigrantes pelo Estado

Ao lado das questões lingüísticas ligadas ao ensino de português, aos direitos das
populações indígenas no Brasil e às relações entre os países membros do Mercosul, as
questões ligadas às línguas de imigrantes talvez sejam as que mais se encontram em
aberto, no contexto brasileiro, tanto em termos da necessidade de uma educação mais
adequada às situações de bilingüismo, quanto em relação à própria defesa dos direitos
lingüísticos e à carência de pesquisas que dêem conta da complexidade das relações
sociais e lingüísticas presentes nessas áreas. Historicamente, pode-se dizer, a política lin-
güística para essas populações de imigrantes alternou entre momentos de indiferença e
de imposição severa de medidas prescritivas e proscritivas. Essa ambivalência pode ser
exemplificada em depoimentos como o seguinte, de um falante de alemão de Brusque,
Santa Catarina:

O clima era de terror. Ninguém tinha coragem de falar em público com medo de ir para a
cadeia. Nessa tal de nacionalização queriam que todos falassem português da noite para o dia.
Prenderam até velhos que nada queriam com a política só porque falavam alemão em público.
Mas antigamente o governo não proibiu falar alemão, não providenciou escolas ou coisas
semelhantes, que ensinasse as pessoas o português. Agora, depois de todos esses anos de indi-
ferença, queriam que a gente falasse português sem sotaque. (citado por Seyferth 1982: 188)

De fato, a visão histórica das “políticas lingüísticas” para as línguas minoritárias no


Brasil mostra um predomínio de decisões coibitivas. No século XVIII, o Marquês de Pom-

* Cléo V. Altenhofen é docente da área de germanística e romanística na Universidade Federal do Rio


Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil. Seu Doutorado, realizado na Univ. de Mainz, resultou em um
amplo estudo do contato Hunsrückisch-português, publicado com o título Hunsrückisch in Rio Grande
RILI II (2004), 1 (3), 83-93

do Sul: Ein Beitrag zur Beschreibung einer deutschbrasilianischen Dialektvarietät im Kontakt mit dem
Portugiesischen. Stuttgart: Steiner, 1996. Desde 2000, atua como coordenador geral do projeto Atlas
Lingüístico-Etnográfico da Região Sul do Brasil (ALERS) e um de seus autores, responsáveis pela
publicação, em 2002, dos volumes 1 (Introdução) e 2 (Cartas Fonéticas e Morfossintáticas) do ALERS.
Atualmente, colabora também como membro da equipe do ALiB (Atlas lingüístico do Brasil). Princi-
pais áreas de pesquisa são: bilingüismo e línguas em contato, línguas minoritárias no Brasil, contato lin-
güístico alemão-português, geolingüística, variação lingüística, dialetologia e sociolingüística. E-mail:
<cvalten@pro.via-rs.com.br>.
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bal, na sua ação contra a língua geral, de base tupi, proibia, através do Diretório dos Índios
(1758), qualquer manifestação lingüística que não fosse em português. De outro lado, a
perda das línguas africanas, não obstante a contribuição inexorável dos africanos à consti-
tuição da população e da cultura brasileiras, constitui outra evidência da força monolingua-
lizadora do português como língua nacional.1 No que diz respeito aos imigrantes, que a
partir do séc. XIX começaram a vir ao extremo sul alemães, a partir de 1824; italianos,
1875; poloneses, 1891 identificam-se já por volta de 1830, entre os políticos do Império,
preocupações com a assimilação ou adoção, pelos imigrantes alemães [primeiro grupo imi-
grado], do português como língua oficial (Willems 1980: 46). Os governos da República
(depois de 1889) adotaram medidas mais concretas, como por exemplo o abrasileiramento,
segundo Delhaes-Guenther (1980: 163), de topônimos da língua dos imigrantes para o por-
tuguês (p.ex. Nova Pádua torna-se Flores da Cunha), ou, como ressalta Roche (1969:
131), o assentamento de colônias mistas, esperando que a convivência de línguas diferen-
tes e de difícil intercompreensão levasse forçosamente ao uso do português como língua
comum. O clima tenso criado pelas duas guerras mundiais serviu para acirrar as medidas
de “assimilação forçada” dos imigrantes ao monolingüismo em português, especialmente
diante da alegação do chamado “perigo alemão”, de que se criasse um estado alemão no
sul do Brasil (Roche 1969: 113, v. também Seyferth 1982, Luna 2000). O auge dessa polí-
tica repressiva é atingido com a política de nacionalização do ensino implementada a partir
de 1938 pelo governo do Estado Novo, de Getúlio Vargas, que levou ao fechamento de
escolas e à proibição do uso das línguas dos imigrantes, principalmente alemão e italiano.
Muito se tem escrito sobre essa fase e as eventuais conseqüências da política de nacio-
nalização para a evolução das áreas colonizadas por imigrantes. O certo é que, em áreas
urbanas com forte presença do português, seu efeito levou a perdas irrecuperáveis das lín-
guas de imigrantes e de seu ensino nas escolas criadas. Nas áreas rurais onde predomina-
va a etnia alemã, a política de nacionalização, como expus Altenhofen (1996: 71):

1º. impediu o acesso ao ensino de alemão-padrão e o desenvolvimento de uma cul-


tura letrada, em curso, nessa língua;
2º. exigiu o ensino exclusivo do português, sem dar as condições necessárias para
tal;
3º. obrigou a população alóctone a optar entre o silêncio e a variedade dialetal local
que restou como língua de comunicação entre os membros do grupo.

Na minha interpretação, esse refúgio no dialeto local dos imigrantes contribuiu antes
para manter por mais um bom período de tempo a língua de imigrantes, produzindo por-
tanto um efeito contrário ao desejado pelas leis de nacionalização. A substituição da lín-
gua de imigrantes pelo português dá-se lentamente, por meio não de leis mas dos meca-
nismos sociais que ganham impulso com o desenvolvimento dos meios de comunicação
de massa, o processo acentuado de urbanização e, conseqüentemente, a penetração maior
do português através de elementos exógenos. Esse processo segue até hoje, em ritmo
cada vez mais acelerado.

1 Segundo Vandresen (1996: 318) “Há referências a uma política lingüística de desestímulo ao uso das lín-
guas africanas, cuidando os feitores para que escravos falantes da mesma língua não ficassem juntos.”
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Paralelamente, pode-se dizer, o tema da diversidade cultural do Brasil começa a gan-


har espaço no discurso oficial. O trabalho no âmbito da política lingüística em defesa da
educação bilíngüe e dos direitos lingüísticos das comunidades indígenas foi fundamental
para os avanços conquistados. Resta, no entanto, alargar essa perspectiva para o terreno
das línguas de imigrantes, que sequer são mencionadas na legislação vigente, não obs-
tante a sua representatividade em amplas áreas do sul do Brasil, como atesta o mapa da
sua distribuição apresentado pelo ALERS (Atlas Lingüístico-Etnográfico da Região Sul
do Brasil – v. Altenhofen 2002a, mapa 2.2).
Uma política lingüística específica para as línguas minoritárias de imigrantes, até
agora “oculta” em meio à questão das línguas estrangeiras como línguas de inserção
internacional, ainda está por construir. Existe, para tanto, um ponto de partida que preci-
sa ser considerado, representado pela nova LDB (Lei 9.394/96 de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional). Merecem destaque três artigos da Lei:

Título V, Seção I, cap. II, Art. 26 § 5


“Na parte diversificada do currículo será incluído, obrigatoriamente, a partir da quinta série, o
ensino de pelo menos uma língua estrangeira moderna, cuja escolha ficará a cargo da comu-
nidade escolar, dentro das possibilidades da instituição.”

Título V, Seção III, cap. II, Art. 32 § 3


“O ensino fundamental regular será ministrado em língua portuguesa, assegurada às comuni-
dades indígenas a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem.”
Idem Constituição Federal (1988) Art. 210, 2.

Título V, Seção IV (Do Ensino Médio), cap. II, Art. 36 caput III
“III – será incluída uma língua estrangeira moderna, como disciplina obrigatória, escolhida
pela comunidade escolar, e uma segunda, em caráter optativo, dentro das disponibilidades da
instituição.”

Imerso nessa conjuntura, falta às línguas de imigrantes e às situações de bilingüismo,


presentes em amplas áreas do Brasil, voz e visibilidade para serem incluídas nos diálo-
gos sobre política lingüística e ensino de línguas. Tem-se, às vezes, a impressão de um
corpo estranho e exótico. Tratar desse tema é visto quase como um tabu. O presente arti-
go pretende contribuir para uma melhor compreensão das prováveis razões desse fato.

2. Por uma política lingüística para o bilingüismo no Brasil

Como define Calvet (2002: 145), política lingüística envolve “um conjunto de escol-
has conscientes referentes às relações entre língua(s) e vida social,” sendo o “planeja-
mento lingüístico a implementação prática de uma política lingüística, em suma, a passa-
gem ao ato.” Ainda segundo Calvet, não importa que grupo pode elaborar uma política
lingüística – pode ser uma família, pode ser uma entidade menor –, mas seria sobretudo
o Estado o que teria esse “poder e os meios de passar ao estágio do planejamento, de pôr
em prática as escolhas lingüísticas.” (Calvet 2002: 145)
Não obstante a relevância do Estado na definição de políticas lingüísticas, quero
apresentar a seguir exemplos que denotam a necessidade de considerar, adicionalmen-
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te, no caso das situações de contatos lingüísticos entre o português e as línguas de


imigrantes, as decisões e escolhas das “instâncias menores que o Estado”, tais como
a escola, a família, a igreja ou a administração local. Estas constituem propriamente as
instâncias de aplicação das “escolhas governamentais” e funcionam, por isso, como uma
espécie de tentáculo e distribuidor de tendências mais gerais. Por exemplo, no âmbito da
família, quando os pais (bilíngües) decidem ensinar ou não aos seus filhos a língua mino-
ritária não-oficial, assumem uma determinada decisão política. Quando a escola proíbe o
uso da língua minoritária em sala de aula, quando ignora o papel da língua do aluno no
processo de alfabetização e de socialização, assume uma política nitidamente excluden-
te. Por outro lado, quando parte de um sermão é realizada na língua de imigrantes, ou
quando a administração local resolve denominar a festa popular da localidade na língua
de imigrantes (p.ex. Kaffeeschneisfest, Septemberfest), adota-se de certa forma uma
visão política e mercadológica para a língua local. Em suma, a pergunta que cabe formu-
lar é “o que motiva essas decisões?”
O ponto de vista que defendo, aqui, é o de que boa parte do êxito da aplicação de
medidas de política lingüística que promovam os direitos lingüísticos das minorias bilín-
gües depende da compreensão do que efetivamente possa motivar as micro-decisões de
cunho político empreendidas pelos membros das comunidades, e que compreendem valo-
res, ideologias, mitos, “ressentimentos”, concepções e preconceitos lingüísticos presentes
na interação diária entre os grupos sociais e os falantes das diversas línguas e variedades
em contato. Por exemplo, o currículo da escola, o tipo de material didático utilizado e as
práticas didáticas do professor refletem de certo modo a visão desses aspectos.
Concordo, enfim, com Vieira/Moura (2000: 124) de que a identificação dos diversos
tipos de preconceito lingüístico constitui o primeiro importante passo para tratar do pro-
blema:2 Dentre as características do preconceito lingüístico normalmente citadas pelos
estudos, encontram-se.
1º. o fato de passar despercebido (Vieira/Moura 2000: 117);
2º. de o próprio falante não percebê-lo
3º. de ser de difícil remoção, o que justificaria que o professor pelo menos tivesse
consciência de suas atitudes, para melhor poder lidar com elas.
Há, portanto, um certo antagonismo interno presente no preconceito lingüístico e que
pode ser ilustrado pelo seguinte depoimento de um professor de português, em uma
comunidade bilíngüe italiano-português, coletado por Paviani (1997):
Eu co[r]ijo quando eles falam e[r]ado. Eles [d]izem ‘coraçõ’, e é sempre esse bendito
‘coraçõ’. Aí eu co[r]ijo e [d]igo: ‘É coraçõ.’

Como captar essas concepções lingüísticas, em um meio tão complexo como o de


uma comunidade multilíngüe? A seguir, pretendo fazer uma síntese das concepções mais
relevantes apontadas pelas pesquisas sobre o contato entre o português e as línguas de
imigrantes faladas no país. Pelas limitações de espaço, não será possível aprofundar

2 Parece-me, aliás, que o grande êxito do estudo de Bagno (1999) deve-se justamente à limpidez com que
visualiza os principais mitos em torno do português brasileiro, na escola.
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essas questões. Por enquanto, temos que nos contentar em pelo menos identificá-las,
através dos diversos discursos nos quais elas se manifestam.

3. Mitos e concepções lingüísticas, ou: “O que há por trás da visão da língua


de imigrantes em contato com o português, no Brasil?”

O leque de concepções lingüísticas sobre o fenômeno da língua, sobre sua correção


gramatical, sobre línguas de imigrantes e seus usuários, sobre a língua legítima e sua
aprendizagem como capital social (Bourdieu 1998), enfim sobre o bilingüismo, segue
orientações diversas, conforme os critérios que se adote. Não há, nem poderia haver, na
análise a seguir, nenhuma pretenção de esgotar a lista de concepções vigentes nos con-
textos plurilíngües em estudo, mas antes promover a reflexão sobre os aspectos mais
importantes para uma política lingüística aplicada ao bilingüismo no Brasil.

a) A visão do Brasil “como um país monolíngüe”


e “com uma homogeneidade lingüística incrível”

Sem dúvida, a imagem do Brasil como um enorme país “monolingüe”, dominado


pelo português em toda a sua extensão, de proporções continentais, e – o que é mais incrí-
vel! – de uma forma “tão homogênea”,3 tem contribuído em maior ou menor grau, para
ofuscar a presença de populações e áreas bilíngües oriundas da imigração. A idéia de “um
Brasil com uma única língua” parece tão forte, que mesmo o falante bilíngüe, membro de
uma comunidade bilíngüe, onde convivem lado a lado com o português uma ou mais lín-
guas de adstrato, é capaz de rotular nosso país de “monolíngüe”, não enxergando diante
do seu nariz a prova cabal de seu equívoco. Segundo Oliveira (2000: 84), o Brasil figura
entre os países mais plurilíngües, sendo aí faladas, hoje, por volta de 200 línguas, entre as
quais cerca de 170 indígenas e outras 30, línguas alóctones, de imigrantes.

b) O mito nacionalista: “fale português, você está no Brasil”

A velha tese romântica de “um país com uma única língua”, que tantos estragos fez
em nome da pureza lingüística e da construção dos estados nacionais, na verdade ainda
permanece como uma ideologia forte nas relações sociais dessas comunidades (Oliveira:
2000). É o que atesta o seguinte depoimento de um falante de Hunsrückisch da comuni-
dade bilíngüe alemão-português de Harmonia, Rio Grande do Sul:

Inf: Ja, ich sin froh, dass ich die zweu kann, well dann kann mich niemand onscheisse. (lacht)
Unn keene vespotte. Do sin vil Bresilioner on de Fabrick hie, né. Do sin’re ganz vil, wo

3 À visão de país monolíngüe acrescente-se o que Bagno (1999: 15) identifica como mito nº 1: “a língua
portuguesa falada no Brasil apresenta uma unidade surpreendente”. Ou seja, além de ser visto como
essencialmente monolíngüe, o país aparece, na mitologia do preconceito lingüístico, como monodiale-
tal, isto é, sem variação diatópica significativa.
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wenig Bresilionisch kenne spreche. Hie in Harmonie noch, né. Kenne sich schlecht
defendere noch, mechtig schlecht, né. Dann tun die sich beisammer unn spreche Deitsch.
Vestehst mich. Dann kommt en Bresilioner, dann tut de Bresilioner, de fengt on, resmun-
gejat mit’de Deitsche. Sie sollte Bresilionisch spreche, sie were doch in Brasilie. Tudo
bem! das stimmt. Das is wohr, né. Do honn ich deletzt eem mo geantwott... O senhor não
leva nada por mal. Eu sou da origem do alemão, né. Mas o senhor é brasileiro, né. Mas
se o senhor é um brasileiro legítimo? Eu não sou legítimo brasileiro. Sou meio alemão i
meio brasileiro. Mas o senhor não pode falar mal de mim. Eu entendo o senhor, mas o
senhor não me entende, né. (Altenhofen: Anotações de campo: Família 17)
Tradução: Bom, estou feliz por saber as duas [línguas], porque assim ninguém pode me enga-
nar. (sorri) E também não debochar. Tem vários brasileiros aí na fábrica [cooperativa], né.
Tem bastante gente que sabe pouco português. Aqui na Harmonia ainda, né. Podem se
defender muito mal, mito mal mesmo, né. Aí eles se reúnem e falam alemão. Me entende.
Aí vem um brasileiro, aí esse brasileiro começa a resmungar com os alemães. Que eles
deveriam falar português, afinal eles estavam no Brasil. Tudo bem! isso confere. Isso é
verdade, né. Outro dia, eu respondi para um... O senhor não leva nada por mal. Eu sou da
origem do alemão, né. Mas o senhor é brasileiro, né. Mas se o senhor é um brasileiro legí-
timo? Eu não sou legítimo brasileiro. Sou meio alemão e meio brasileiro. Mas o senhor
não pode falar mal de mim. Eu entendo o senhor, mas o senhor não me entende, né.

Em que medida o contexto atual representado pela globalização pode estar desmon-
tando essas relações, ainda permanece uma incógnita. O fato é que se trata de uma
questão muito presente na época das guerras mundiais, quando “falar português” era
cobrado como “condição para ser brasileiro”. Por este viés, o ensino de português por
muito tempo assumiu uma espécie de papel cívico de abrasileiramento dos diversos
falantes de línguas de imigrantes, fato que pode ser observado nos manuais de ensino da
época. Em contrapartida, muitos descendentes de imigrantes tentavam conciliar naciona-
lidade e uso de sua língua materna, definindo-se como brasileiros de cultura alemã (Sey-
ferth 1982: 73) e argumentando com o exemplo de países como a Suíça, onde a língua
não seria condição para a nacionalidade.

c) Má-vontade contra valorização da língua materna, ou: “eles teimam em manter a


língua”, “não querem se assimilar”, “não querem aprender português”

Dito em termos modernos, pode-se interpretar o desejo de falar a língua materna


minoritária como um direito lingüístico (v.Universal Declaration of Linguistic Rights
1996) ou um direito de expressão (v. Organização das Nações Unidas, Declaração Uni-
versal dos Direitos Humanos). Sob a ótica dos aspectos colocados acima, porém, regis-
tram-se depoimentos como os seguintes que mostram um tipo de visão extremamente
ideologizada, pela qual se acusa o falante da língua minoritária de ser “fechado”, “achar-
se superior”, “não querer misturar-se” e “não aprender português”:

Na Itoupava Rega (Vila Itoupava) eles cultivam o alemão como se fosse um gueto, com
um saudosismo! Parecem [sic] que querem reviver o passado. Mas também nunca saíram de
lá, nunca viram outra coisa, têm os olhos um pouco fechados. Eles ainda dizem: “Wir Deuts-
chen, wir müssen uns zusammen halten. (...) A vergonha que os alemães tiveram que passar
por causa da língua tem resquícios ainda hoje. Os alemães têm culpa porque nunca quiseram
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se misturar com o povo daqui. Mas o alemão sempre teve um orgulho pela sua capacidade
intelectual, pelo seu trabalho. Quando alguém assim se compara com outros povos, ele se
sente superior. Por isso era uma sociedade fechada. (Depoimento de um pastor da igreja
evangélica luterana de Blumenau, coletado por Mailer 2003: 99)

Tal posição desconsidera as condições de isolamento a que foram submetidos os imi-


grantes, assentados inicialmente nas áreas de floresta ainda não ocupadas pelo elemento
luso (Altenhofen 2002a: 130). Desconsidera, além disso, o processo de colonização
implementado pelo próprio Estado que não favoreceu a aprendizagem da língua oficial,
ou seja, o domínio do capital lingüístico exigido.

Inf.: Ja! Do woore kee Bresilioner. In sich wohnt goo keene datt. Unn dann is sowas schon
ganz schwer. Unn raus si’ma ooch net komm. Heit honn die Kinner dat jo vil leichter.
Jeses! Wo woore die schon gewent! Ja, wo mea goo kee Ohnung honn, wo mea hinkom-
me. Ja, die lenne immer. Here’se Bresilionisch, ja das lennt sich immer meh debei. Unn
heit die Schul micht ach vil aus. (Altenhofen: Anotações de campo: Família 27)
Tradução: Sim! Lá [onde se criou] não havia brasileiros. Na verdade, não mora nenhum lá. E
aí uma coisa assim já fica difícil. Além disso, pra fora [da colônia] também não se conse-
guia ir. Hoje, a situação para as crianças é consideravelmente mais fácil. Jesus que sim!
Onde elas já estiveram! Sim, onde nós não fazemos nem idéia que podemos chegar. Sim,
eles aprendem sempre. Eles ouvem português, bom isso se aprende cada vez mais. E hoje
a escola também tem um peso nisso.

d) A proibição da língua minoritária como prática política e didática

A proibição do uso da língua de imigrantes na escola representa uma conduta bastan-


te comum até nossos dias, em muitas dessas comunidades bilíngües. Ela surge não ape-
nas como desdobramento dos mitos e ideologias motivados pelas políticas repressivas,
mas também como parte de concepções pedagógicas que, mesmo contra toda a evolução
dos estudos de aquisição e ensino de línguas, conseguem ver nesse procedimento um
recurso válido. Registra-se, por exemplo ainda em 1989, o caso de um prefeito de Santa
Maria do Herval, Rio Grande do Sul, baixando um decreto municipal que proibia o uso
de alemão nas salas de aula do município (cf. Trezzi 1989).
Medidas desse tipo servem, na verdade, apenas para denunciar a incapacidade de resol-
ver educadamente as questões lingüísticas da localidade. Conforme acentua um aluno de
outra comunidade, quando o professor proíbe o uso do alemão em sala de aula, os alunos
falam assim mesmo. Alguns preferem falar alemão. Outros, que têm dificuldades para falar
português, esses ficam na maioria das vezes quietos/em silêncio.(Altenhofen: 2002b: 158)
A coisa, contudo, vai muito além da simples aplicação de uma sanção contra o uso de
uma língua. Envolve, isso sim, relações bastante complexas, como sugere o seguinte diá-
logo entre um pesquisador e alunos de 1.a série, na comunidade bilíngüe alemão-portu-
guês de Harmonia (RS) – v. também Altenhofen (2002b:158):

ENTREVISTADOR: (em tom de brincadeira) Vamos esclarecer as coisas. Vocês não gosta-
riam de aprender alemão porque já sabem?... E português vocês, então, não sabem? (Os
alunos reagem enfaticamente, para dizer que sabem.)
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ALUNOS: (juntos) Sim!


ALUNO: Eu sei!!!
ALUNO: Eu sei!!!
ALUNO: Um não sabe. O Luciano. O Luciano não sabe falar em português. (Os colegas con-
firmam.)
ALUNO: Quem é o Luciano?
ALUNO: Aquele que saiu.
ALUNO: Eu sempre falo em alemão com ele.
ALUNO: Vocês já experimentaram ver se ele entende alguma coisa?
ALUNO: Quando ele quer uma coisa, não pode falar pra professora. Ele fala pra profe que
não entende.
ALUNO: Daí, nós têm que falar com português com a profe.
ALUNO: Alemão! (Retruca outro aluno.)
ALUNO: PORTUGUÊS! QUE ELA NÃO ENTENDE EM ALEMÃO.

O fato mais marcante da entrevista acima é a exclusão de um dos alunos, o Luciano,


“aquele que saiu”, o qual “não sabe português”, pois sua língua materna ou primeira lín-
gua é outra, “não prevista pela escola” e diferente da língua da professora. Muitos dis-
cursos se aplicam a essa situação. O mais freqüente é o que coloca a responsabilidade da
exclusão na família, a qual não teria cumprido com o seu papel de proporcionar à criança
o acesso à língua majoritária, antes da entrada na escola. Por conta dessa posição, muitos
pais bilíngües, especialmente os mais novos, optam por ensinar aos seus filhos apenas o
português, sob a alegação de que estes não sofressem os problemas e preconceitos que
tiveram que enfrentar na escola.
A visão oposta é a que delega à escola (e ao Estado) a responsabilidade da exclusão,
uma vez que cabe a ela o papel de promover a escolarização e a socialização, indepen-
dente das condições do meio e de suas especificidades. Afinal, é ela que deveria ser a
especialista em questões de linguagem, e os professores tão bem formados que pudes-
sem dar à realidade bilíngüe o devido tratamento, para garantir o êxito na educação.
Enfim, a exclusão do Luciano, o aluno da nossa entrevista, simboliza, em última
instância, a exclusão (ou a proibição) da língua materna do aluno. Tal quadro assemelha-
se ao descrito por Paraíso (1996) em relação a um contexto de contato rural-urbano.
Paraíso explica essa situação com a “metáfora do campo de silêncio”:

Assim, com a metáfora ‘campo de silêncio’, quero indicar a privação a respeito de algo
que, se problematizado, poderia provocar reflexões e atitudes nas pessoas envolvidas no
processo ensino-aprendizagem. Quero indicar, também, a existência de um ‘silêncio’,
imposto mas não ‘respeitado’, sobre algo que incomoda, que provoca conflitos e contes-
tação. É um ‘calar’sobre algo que se faz presente, pedindo para ser problematizado e trabal-
hado. É um campo de silêncio porque está ausente no currículo formal e não é problematiza-
do no currículo em ação como um conhecimento digno de ser trabalhado no Curso. (Paraíso
1996: 138)

e) O monolingüismo como solução dos problemas de aprendizagem do português

Há, na verdade, por trás da proibição do uso da língua minoritária, o princípio de que
o monolingüismo em português garantiria uma melhor aprendizagem da língua oficial e
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que, com isso, estariam resolvidos todos os problemas da escola. Tal princípio é expresso
por afirmações como “esses alunos aprenderiam português apenas no dia em que deixas-
sem de falar alemão”, como ouvi certa vez de um diretor da minha escola.

f) A língua de imigrantes como culpada do fracasso escolar e das dificuldades


de aprendizagem do português

Intimamente ligada à postura anterior está a atitude de culpar a língua do aluno pelos
problemas de aprendizagem, nomeando como “bode expiatório” para explicar um pro-
blema que, como vimos, cabe a ela, como instância competente e responsável, resolver.
Trata-se, a rigor, de uma atitude discriminatória que se estende igualmente a variedades
não-padrão do português, usadas em contextos sociais desfavorecidos. É o que mostra
Paraíso (1996: 141), através dos seguintes depoimentos de professores de português de
um curso de formação de professores, referindo-se ao meio rural:

Eles acham que é só regras, que é muito complicado. Eu fico com raiva porque corrijo,
corrijo, e eles continuam falando igual à gente da roça. Agora, aqueles alunos que falam bem,
escrevem e lêem bem; mas são poucos.

g) A deturpação da língua minoritária ou dialeto de imigrantes

São freqüentes e notórios os juízos de valor depreciativos sobre as línguas minoritá-


rias, via de regra representadas por uma variedade dialetal de existência essencialmente
oral, como no caso do Hunsrückisch, para o alemão. Essa condição de dialeto, situado
abaixo da norma padrão, e de língua marginal, submissa à língua oficial, o português,
aliada à posição social dos falantes das variedades de imigrantes, tem dado margem a
uma vasta gama de valorações depreciativas acerca do Hunsrückisch, incluindo atributos
como verlorene Sproch (língua perdida), vebrochne Deitsch (alemão quebrado), Hecke-
deitsch (alemão do mato), alemão errado e sem gramática, língua de colono, até a afir-
mação de que “não é alemão”, ou sequer “uma língua”. Tais preconceitos partem não
apenas de professores, mas também dos próprios falantes, como efeito de espelho do que
supõem seja a visão das classes dominantes sobre sua língua.
Por outro lado, apesar da estigmatização a que são submetidas essas variedades de
imigrantes, chama a atenção como em determinados contextos é revertido seu papel, a
ponto de converter o domínio da variedade dialetal dos imigrantes em marca distintiva
de um prestígio local (encoberto).

h) “O bilíngüe não sabe bem nem uma nem outra língua” e “O bilíngüe não tem língua
materna”

Registram-se, igualmente, preconceitos em relação ao bilingüismo como condição


de um indivíduo que faz uso de duas línguas (Weinreich 1974: 9). Dentre esses precon-
ceitos (v. Kielhöfer/Jonekeit 1983: 9), destacam-se os dois assinalados acima (“O bilín-
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güe não sabe bem nem uma nem outra língua” e “O bilíngüe não tem língua materna”),
como sendo os mais freqüentes.

Falo alemão como hobby, mas nós somos brasileiros. A igreja não necessita mais de pas-
tores que falem alemão e, em algum tempo, todos falarão português. O alemão de Blumenau
não é alemão. É muito difícil falar alemão em Blumenau. Eles não conseguem pronunciar o
ü, ö etc. Sempre pronunciam errado, já tentei corrigir muitas vezes, mas não adianta. Nós não
falamos alemão nem português. Uma vez me encontrei com pessoas do Espírito Santo que
logo descobriram que eu era de Santa Catarina, pelo sotaque, por isso não sabemos falar por-
tuguês também. Estive seis anos trabalhando na Alemanha e lá era ridicularizado por falar um
alemão diferente. O alemão daqui não tem nada a ver com o alemão falado na Alemanha.
Aqui é mais um dialeto. (depoimento de pastor da igreja evangélica luterana de Blumenau,
in: Mailer 2003: 95)

No entanto, em determinadas circunstâncias que é preciso definir, o fato de “saber


mais de uma língua” é visto como bastante positivo. Assim, por exemplo, alguns pais
adotam a alternância de uso da língua oficial e da língua do grupo como princípio didáti-
co para a prendizagem simultânea de ambas as línguas.

4. Considerações finais

Em síntese, pode-se agrupar as concepções lingüísticas levantadas por nós em três


grupos básicos: a) opressão ou distorção do bilingüismo na escola: preconceitos lingüís-
ticos; b) generalização do monolingüismo: ideologias e concepções ligadas à língua ofi-
cial e c) omissão ou ausência do bilingüismo no planejamento escolar: a “metáfora do
campo de silêncio”. Acredita-se que uma compreensão melhor dessas questões auxilie
na construção de um modelo de educação mais justo e adequado, pautado no respeito aos
direitos lingüísticos dos aprendizes e no desenvolvimento pleno de suas capacidades. A
política lingüística e a pesquisa em torno de um modelo de educação bilíngüe ajustado às
potencialidades e possibilidades dessas situações assumem, sem dúvida, um papel espe-
cial nesse processo.

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Política lingüística, mitos e concepções lingüísticas 93

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