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A TÉCNICA DO ZOOM

(Prática do pensamento complexo)


por Humberto Mariotti

Introdução

“Dar um passo atrás e olhar o quadro geral é a chave para evitar as ciladas da fixação
cognitiva ou de ser sufocado pelos dados. Esse processo de aproximar‐se e distanciar‐se
pode evitar que você seja paralisado por um contexto amplo demais e pule rapidamente
para novos modismos. Parte desse processo consiste em desenvolver áreas de interesse que
atendam às suas necessidades, de modo que você não precisa examinar tudo. Qualquer
‘conselho’ que exclua todos os outros e exija seu foco exclusivo, prometendo benefícios
incríveis, exige uma perda de contexto e equilíbrio. Você precisa olhar mais criticamente,
para filtrar em busca de um sentido nesse fluxo de dados em mudança”. (Yoram Wind et al,
A força dos modelos mentais, p. 212).

O objetivo da técnica do zoom é melhorar nossa eficácia para lidar com a complexidade e a
imensa quantidade de informações do mundo em que vivemos.

Há três modos básicos de olhar:

1. Olhar de perto, visando os detalhes, as partes separadas. Em termos de tempo, equivale


ao imediato ou ao curto prazo. É o olhar linear, cartesiano, analítico.

2. Olhar de longe, isto é, ver o contexto, o quadro geral. Em termos de tempo, equivale
mais ao médio e longo prazo. É o olhar sistêmico.

3. Olhar simultaneamente de perto e de longe: essa postura permite lidar ao mesmo


tempo com o detalhe e o contexto, o que amplia significativamente a eficácia do olhar. Em
consequência, as conclusões e as práticas daí oriundas também ganham em qualidade e
eficácia. É o olhar complexo.

Olhar somente de longe faz com que nos percamos na complexidade dos fluxos de dados e
informações. Olhar somente de perto faz com que fiquemos excessivamente focados e
propensos a perder o surgimento de algo importante em contextos mais amplos. Olhar ao
mesmo tempo de perto e de longe corrige as limitações dos modos anteriores.

Metáforas e exemplos

1. No exemplo de Yoram Wind e colaboradores, cujo trabalho inspirou e é utilizado em


várias partes deste texto, quando alternamos os dois modos de olhar fazemos como o
motorista, que olha para o painel (e obtém informações focadas) e também para fora (e
obtém informações mais amplas). Essa metáfora do motorista está no livro Zen e a arte da
manutenção das motocicletas, de Robert Pirsig. Em outras palavras: olhando de perto,
vemos os detalhes, as partes; olhando de longe, vemos o contexto. Olhar de longe é
importante para planejar, avaliar, traçar estratégias. Olhar de perto é importante para
intervir, agir, pôr as estratégias em prática.

2. A capacidade de olhar desses dois modos é importante para lidar com a complexidade.
Para tanto, é necessário equilibrar as duas atitudes: a focal e a global. A esse respeito, há
um texto do filósofo espanhol José Ortega y Gasset que é um bom exemplo de pensamento
complexo.

Ortega lembra um antigo provérbio alemão, que diz que a altura das árvores impede a visão
do bosque. Vemos algumas árvores do bosque, mas não conseguimos vê‐lo em sua
totalidade. O bosque real é o conjunto formado pelas árvores que não podemos ver. Se
percorrermos o bosque, também não o veremos. Tudo o que vemos são algumas das
árvores que o formam. O bosque está sempre um pouco mais além de onde estamos, diz
Ortega.

Ainda assim, ele existe como possibilidade: é “uma soma de nossos atos”. Nós o
construímos ao andar nele, isto é, ao interagir com ele.

3. As árvores não nos deixam ver o bosque, mas nem por isso ele deixa de existir. A missão
das árvores que se manifestam (que se tornam patentes), é manter latentes, ocultas, as
demais. O que se vê esconde, mas também inclui o que não se vê, assim como a ordem
contém a desordem e vice‐versa.

O bosque está latente nas árvores e estas estão latentes no bosque. A possibilidade da
existência do bosque está nas árvores e a possibilidade de existência das árvores está no
bosque. Na metáfora de Edgar Morin, os fios possibilitam a existência do tapete e este, ao
ser desfeito, possibilita a existência dos fios separados.

O mundo profundo é tão claro quanto o real, só que exige mais de nós”, diz Ortega. É claro
que para decidir qual modo de olhar deve ser adotado é necessário antes que
determinemos a que distância – perto ou longe – estamos do que pretendemos olhar. Se
estivermos longe devemos nos aproximar, e vice‐versa.

4. No livro As paixões do ego, de Humberto Mariotti, é citada uma metáfora que pode
ilustrar o conceito de pensamento complexo. Eis o trecho:

“Neste ponto, convém introduzir as principais diferenças entre os modelos linear e


sistêmico de raciocínio, bem como esboçar o conceito de pensamento complexo. Em
primeiro lugar, lembremos o exemplo de Joseph O’Connor e Ian McDermott. A Terra é
plana? É claro que sim: basta olhar o chão que pisamos. No entanto, como mostram as
fotografias dos satélites e as viagens intercontinentais, ela é obviamente redonda.
Concluímos então que do ponto de vista do pensamento linear, de causalidade imediata, a
Terra é plana. Uma abordagem mais ampla, porém, mostra que ela é redonda e faz parte de
um sistema.

Precisamos dessas duas noções para as práticas do cotidiano. Mas elas não são suficientes,
o que nos leva a ampliar o exemplo desses autores e dizer que: a) do ponto de vista do
pensamento linear a Terra é plana; b) pela perspectiva do pensamento sistêmico ela é
redonda; c) por fim, do ângulo do pensamento complexo — que promove a
complementaridade dos dois anteriores — ela é ao mesmo tempo plana e redonda”.

A técnica do zoom

A técnica do zoom comporta três momentos: a) olhar de perto (visão linear); b) olhar de
longe (visão sistêmica); c) olhar simultaneamente de perto e de longe (visão complexa).

Olhar de perto (visão linear). Consiste em orientar‐se para os detalhes. Em termos de


espaço, ver as árvores. Em termos de tempo, visa mais ao imediato, o curto prazo. É uma
forma eficaz de trafegar em meio à complexidade dos fluxos de informação. Não requer que
se saia do modelo cartesiano, por isso é o modo mais usado em nossa cultura. Eis os seus
requisitos básicos:

Espírito analítico. Buscar os detalhes, as partes, e fixar‐se nelas. Comparar com observações
semelhantes. Ter sempre em mente as relações custo‐benefício e o rigor quantitativo.

Classificação e sequenciamento. Classificar e atribuir prioridades: permite que continuemos


concentrados nos detalhes, e isso evita que sejamos assoberbados pela complexidade dos
fluxos multidirecionais de eventos, percepções e informações. Quantificar sempre que
possível. Os modos de classificação e sequenciamento obedecem aos critérios usuais:
semelhança, contiguidade, direção, continuidade (encaixamento) e assim por diante.

Evitar a amplitude do contexto. É importante que não nos deixemos envolver pela
amplitude do contexto, mas é exatamente por isso que essa abordagem é redutivista.
Quando trabalhamos com análises, contextos amplos atrapalham. Um excesso de dados e
informações significa que a observação não está sendo suficientemente próxima e
redutivista. Por outro lado, a escassez de dados significa que a observação está sendo feita
de perto demais.

Olhar de longe (visão sistêmica). Esse modo de olhar permite ver o quadro geral, o
contexto. Permite ver o bosque. Mas é importante notar que aquilo que chamamos de
“global” pode ser o resultado da limitação de nossa visão. Nossa capacidade de
contextualizar pode estar prejudicada por essa limitação. Olhar de longe permite apreciar o
contexto e evitar temporariamente a complexidade do fluxo de informações. Eis os seus
requisitos básicos:

Reconhecer os limites de nossa visão. O que pode estar além dela? O que ou quem pode nos
ajudar a ampliá‐la? Quais as fronteiras que não conseguimos ultrapassar? Que modos de
pensar nos impedem de fazer essa ultrapassagem? É fundamental prestar muita atenção
àquilo de que mais discordamos, àquilo que mais nos desafia.

Evitar a fixação cognitiva. O que nos amarra demasiadamente a determinados pontos? Que
modos de pensar nos tornam demasiadamente fixados em um único ou em poucos focos?
Observar o contexto. Qual é o contexto da decisão que devemos considerar? Como o
avaliamos?
Afastar‐se temporariamente da complexidade do fluxo de informações. Dê um descanso a si
mesmo. Saia temporariamente do fluxo (as vezes bastante turbulento) de dados,
informações e eventos. Essa saída representa o “passo atrás” que você dá e que o capacita a
avaliar o quadro mais amplo. Na prática, pode corresponder a algumas horas afastado dos
detalhes do dia‐a‐dia. Separe um tempo para reflexão, que lhe permita sair do fluxo e
apreciá-lo à distância.

Multiplicar as abordagens. Em termos de conhecimento, isso corresponde a ser multi e


interdisciplinar. Ou seja: buscar referências de conhecimento em múltiplas áreas ou
disciplinas, buscar disciplinas que dialogam entre si ou disciplinas que estão ligadas umas às
outras. Múltiplas fontes de informação nos obrigam a variar de modo de pensar para lidar
com cada uma e pensar nelas. Também proporcionam múltiplas formas de examinar e
validar seus conhecimentos e informações. Procure ver as coisas sob múltiplas perspectivas
e ângulos. Busque contatos e diálogo com pessoas com visões diversificadas.

Cooperar. A cooperação favorece a saída do horizonte estreito da super‐especialização. A


frequência a grupos de interesse favorece o compartilhamento de modos de pensar.

Olhar simultaneamente de longe e de perto (visão complexa). Aproximar‐se e afastar‐se


não constituem uma movimentação do tipo “primeiro aproximar‐se, depois afastar‐se, e
viceversa”. São movimentos mais ou menos simultâneos. Entre um e outro há um
continuum, de modo que num dado momento estamos indo ou vindo de uma direção para
outra. O ideal é que num dado momento estejamos numa “banda média” entre a
aproximação e o afastamento. Isso ocorre frequentemente em grupos.

Na analogia de Wind, para afastar‐se e aproximar‐se ao mesmo tempo um indivíduo tem de


ser simultaneamente piloto (que lida com as tarefas sequenciais e mecânicas) e navegador
(que lida com as tarefas mais amplas, de determinar o rumo dentro de um contexto). Pares
de pessoas podem pôr em prática essa simultaneidade: uma cuida da parte operacional e a
outra cuida da parte estratégica. Mas pode haver troca de papéis. Na engenharia de
software essa metodologia se chama de “programação aos pares”. É um modo de trabalho
no qual dois programadores lidam juntos com o mesmo computador. Um é o “piloto”: lida
com o sequencial, os detalhes; o outro é o “navegador”, preocupa‐se com o contexto mais
amplo, à medida que o software vai sendo preparado.

Conclusão

Aproximar‐se e afastar‐se são movimentos igualmente úteis e eficazes. Por isso, é


importante que desenvolvamos o hábito de sempre olhar para algo de perto e de longe,
alternadamente, como quem está diante de um quadro em uma galeria. Na vida cotidiana, é
útil criarmos hábitos que permitam esse movimento de aproximação e distanciamento. É
um modo eficaz de levar à prática o pensamento complexo.
Referências:

MARIOTTI, Humberto. As paixões do ego: complexidade, política e solidariedade. São Paulo:


Palas Athena, 2000.
O’CONNOR, Joseph, McDERMOTT, Ian. The art of systems thinking: essential skills
forcreativity and problem solving. Londres: Thorsons, 1997.
ORTEGA Y GASSET, José. Meditações do Quixote. São Paulo: Livro Ibero‐Americano, 1967, p.
67 e segs.
WINDY, Yoram, CROOK, Colin, GUNTHER, Robert. A força dos modelos mentais: transforme
o negócio da sua vida e a vida do seu negócio. Porto Alegre: Bookman, 2005.

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