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MATRIZES DO

PENSAMENTO III:
PSICOLOGIA
COGNITIVA
Conceitos
fundamentais da
teoria cognitiva
Julianne H. G. Horita

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM

> Identificar os conceitos fundamentais de teoria cognitiva.


> Relacionar a definição de memória e esquecimento na perspectiva cognitiva.
> Explicar o conceito de linguagem e sua aplicação como meio de comunicação.

Introdução
A complexidade da mente humana vem instigando a curiosidade dos estudiosos
há séculos. Com os avanços tecnológicos e o interesse por conhecer melhor o
funcionamento do cérebro, o campo da neurociência vem evoluindo e contribuindo
cada vez mais para a compreensão do comportamento humano. A forma como
percebemos o mundo, aprendemos, pensamos e agimos sobre ele são atividades
descritas pela cognição, um objeto de estudo notável dentro da psicologia.
A cognição envolve processos mentais que atuam na aquisição, no armaze-
namento, na transformação e na aplicação da informação, como pensamento,
memória, linguagem, atenção, inteligência, raciocínio lógico e imaginação. Tais
processos mentais podem ser observados no comportamento das pessoas en-
quanto executam suas tarefas. Esse, portanto, é o objeto de estudo da psicologia
cognitiva para compreender a cognição humana (EYSENCK; KEANE, 2017; MATLIN,
2004).
2 Conceitos fundamentais da teoria cognitiva

Neste capítulo, você vai estudar conceitos fundamentais da teoria cognitiva,


com destaque para o processo da memória e sua relação com a aprendizagem, além
de ler sobre o conceito de linguagem e sua aplicação como meio de comunicação.

Processos mentais da cognição


Para compreendermos a teoria cognitiva, devemos primeiramente conceituar
alguns processos que ocorrem durante a nossa interação com o ambiente e que
permitem analisar e entender melhor o funcionamento humano. Vamos nos
aprofundar nas definições sobre atenção, memória, pensamento, linguagem,
imaginação, raciocínio lógico e inteligência.

Atenção
Para compreender este texto, você deve estar alerta, selecionando e focali-
zando conscientemente as palavras, ao mesmo tempo em que inibe estímulos
externos para ler de forma concentrada. Todos esses processos descritos são
componentes da atenção. Ela se refere a um conjunto de atividades mentais
que resultam num estado de concentração sobre determinado objeto. Com
ela, selecionamos, filtramos e organizamos as informações em unidades
controláveis e significativas (DALGALARRONDO, 2019).
A atenção pode ocorrer pelos sistemas top-down (de cima para baixo) e
bottom-up (de baixo para cima). O top-down é um processo ativo, em que, de
forma consciente, controlamos a atenção de acordo com os nossos objetivos.
Já o processo bottom-up é passivo; a atenção é controlada pelos estímulos
externos, ocorrendo a captação de estímulos sensoriais de forma automá-
tica. Além disso, a atenção pode ser classificada de outras formas, mas as
mais comumente estudadas para os propósitos da psicologia cognitiva são
a atenção seletiva (ou focalizada) e a atenção dividida (DALGALARRONDO,
2019; EYSENCK; KEANE, 2017).
Pela abordagem da atenção seletiva, destaca-se a seletividade como a
principal qualidade da atenção. Trata-se da capacidade de selecionar certos
estímulos enquanto ignoramos outros que não são relevantes no momento. Se
você está lendo efetivamente este capítulo, sem se distrair com os barulhos
do ambiente, você está aplicando a atenção seletiva. Essa seletividade é
importante para filtrarmos as informações levadas ao cérebro, para que seja
possível aumentar a nossa capacidade de processamento das informações
que são realmente essenciais para o nosso desempenho cognitivo e com-
portamental (DALGALARRONDO, 2019). A atenção dividida, por sua vez, ocorre
Conceitos fundamentais da teoria cognitiva 3

quando precisamos dar atenção a mais de um estímulo ao mesmo tempo. Nos


dias atuais, é cada vez mais exigida a atenção dividida para que possamos
realizar duas ou mais tarefas simultaneamente. Quando, por exemplo, você
está escrevendo um relatório e ouvindo o que o seu colega de trabalho está
falando sobre a reunião com sua chefe, você está praticando a habilidade da
multitarefa (DALGALARRONDO, 2019; EYSENCK; KEANE, 2017).

Memória
Quem seríamos nós sem as lembranças das nossas vivências? É por meio da
capacidade de armazenar as nossas experiências e recordá-las que podemos
definir quem somos. Portanto, a memória é essencial para a nossa identidade.
Podemos caracterizar três fases da memória: codificação, armazenagem e
recuperação (ou evocação). Na codificação, os dados sensoriais são captados
e transformados em forma de representação mental. Esse processo depende
da atenção. Na armazenagem, ocorre a retenção das informações codificadas.
Na recuperação, as informações armazenadas são recuperadas e podem ser
utilizadas (DALGALARRONDO, 2019; STERNBERG, 2008).
Há vários tipos de memória, a depender do caráter a ser avaliado. Se
pensarmos no modo de processamento consciente ou não, temos a memória
explícita (ou declarativa) e a implícita (não declarativa). Na memória explícita,
recordamos de forma consciente, como quando contamos algo que ocorreu
no passado ou descrevemos algo que vimos. Já na memória implícita, a recor-
dação ocorre sem essa percepção, sem consciência, como quando andamos
de bicicleta ou dirigimos: não ficamos conscientemente lembrando de cada
etapa necessária para executar as ações, tudo acontece de forma espontânea
(DALGALARRONDO, 2019).
Veremos mais à frente a classificação da memória segundo o processo
temporal, a memória de trabalho, de curto prazo e de longo prazo, além das
relações com a aprendizagem. No entanto, para podermos focar em outros
aspectos desse processo adiante, vamos adiantar e destacar aqui os tipos
de memória de longo prazo importantes de conhecer (MATLIN, 2004):

„ episódica: referente a eventos que aconteceram conosco;


„ procedural, ou de procedimento: composta pelo conhecimento de
como fazer alguma coisa;
„ semântica: relacionada ao nosso conhecimento geral sobre o mundo.
4 Conceitos fundamentais da teoria cognitiva

Pensamento
Definir o que chamamos de “pensamento” é bastante complexo, e seus elemen-
tos podem se sobrepor a vários outros processos mentais. Para Dalgalarrondo
(2019), as partes que compõem o pensamento são os conceitos, os juízos e
o raciocínio. O conceito é considerado a unidade básica fundamental do
pensamento, caracterizando-se pelas representações mentais de atributos
abstratos e gerais de objetos ou fenômenos, eliminando-se os aspectos
sensoriais.

Se pensamos na representação de uma cadeira como um objeto de


plástico, confortável e bonito, estamos a qualificando com informa-
ções sensoriais. Se, no entanto, a conceitualizamos como um objeto de quatro
pés utilizado para se sentar, temos um conceito essencialmente cognitivo. Os
juízos dizem respeito às articulações entre os conceitos, que levam a relações
significativas entre eles. No exemplo dado por Dalgalarrondo (2019), o conceito
“cadeira” e o conceito “utilidade” podem formar o juízo: a cadeira é útil. Já o
raciocínio será abordado separadamente no próximo tópico.

No mesmo sentido, outros autores da psicologia cognitiva ressaltam


a participação da memória para a organização dos conhecimentos, como
representamos, processamos e organizamos as informações de modo a criar
conceitos, categorias, redes semânticas e esquemas. O pensamento, portanto,
vai além das informações retidas na memória. Ele trata da manipulação
mental de tais informações para a resolução de problemas, a tomada de
decisões, o julgamento e o raciocínio (EYSENCK; KEANE, 2017; MATLIN, 2004;
STERNBERG, 2008).

Raciocínio lógico
Estamos a todo tempo relacionando conceitos, formulando juízos, criando
argumentos para defender o nosso ponto de vista ou tirando conclusões
sobre situações — por vezes, de forma precipitada. Elaboramos uma cadeia
de afirmações e as transmitimos esperando que o outro acompanhe a nossa
linha de raciocínio. De que modo isso ocorre?
A princípio, há dois tipos de raciocínio: dedutivo e indutivo. O raciocínio
indutivo envolve fazer generalizações, tirar conclusões com base em pre-
missas referentes a fatos particulares. Tais conclusões são probabilidades,
não necessariamente são verdadeiras. Já o raciocínio dedutivo parte de
proposições, afirmações, que são conectadas para se chegar a conclusões
Conceitos fundamentais da teoria cognitiva 5

lógicas. Associa-se à resolução de problemas e baseia-se na lógica formal.


Um tipo bastante comum de raciocínio dedutivo é o raciocínio condicional,
em que condições se relacionam, e a conclusão é baseada em proposições
(“se…, então”), podendo ser julgada como válida ou não (EYSENCK; KEANE, 2017;
MATLIN, 2004; STERNBERG, 2008). Confira a seguir um exemplo de raciocínio
condicional.

a) Afirmação: se eu aprendi os conceitos fundamentais da teoria cognitiva,


então eu li o capítulo.
b) Eu aprendi os conceitos.
c) Conclusão: logo, eu li o capítulo.

Eysenck e Keane (2017) levantam a questão de que as pessoas em seu


cotidiano não costumam utilizar a lógica formal para resolver os seus pro-
blemas, tendo se mostrado necessário o estudo do raciocínio informal. Fre-
quentemente, utilizam a própria experiência e seu conhecimentos prévios
para argumentar sobre as proposições, fazendo pouca ou nenhuma relação
com a lógica. O raciocínio informal é influenciado por fatores contextuais.
O conteúdo das afirmações não é tomado como certamente falso ou verda-
deiro como no raciocínio dedutivo, mas como probabilidade: a maioria dos
argumentos é possivelmente verdadeira.

Linguagem
A linguagem humana envolve um complexo sistema de comunicação. Tem as
propriedades de ser comunicativa, arbitrariamente simbólica — considerando
que a relação entre um símbolo e seu referente se dá de forma aleatória —,
regularmente estruturada e em múltiplos níveis, produtiva de modo quase
ilimitado e dinâmica — por estar em constante evolução (STERNBERG, 2008).
Dois aspectos da linguagem se destacam. Da parte receptiva, destacam-
-se a compreensão e a decodificação, ou seja, a captação dos significados
dos símbolos. Da parte expressiva, destacam-se a produção e a codificação
da linguagem, sendo a codificação relacionada a transformar os pensamen-
tos de forma que possa ser expresso. Esses aspectos ficam mais evidentes
quando pensamos na facilidade que algumas pessoas têm de compreender
um segundo idioma, mas não conseguem se expressar de forma escrita ou
verbal com ele (STERNBERG, 2008).
A psicolinguística, que trata da psicologia da linguagem, em sua busca para
entender como as pessoas compreendem e utilizam a linguagem, elaborou
6 Conceitos fundamentais da teoria cognitiva

alguns termos fundamentais para esse estudo (MATLIN, 2004; STERNBERG,


2008):

„ fonema: menor unidade de som (/z/, /s/, /d/);


„ morfema: unidade básica de significado. São as raízes e os afixos. Por
exemplo, a palavra “livraria” é formada por “livro” e “-aria”, sufixo que
modifica o sentido da raiz;
„ semântica: estudo do significado das palavras e das sentenças;
„ sintaxe: refere-se às regras que indicam a ordem e a relação das pa-
lavras em uma frase.

Seja falada/sinalizada, seja escrita, compreendida por meio da leitura ou


da escuta, a linguagem tem como principal função estabelecer a comunicação.
Para que a comunicação se estabeleça, é preciso compreender suas pro-
priedades para que possamos identificar onde está a interferência que está
dificultando a transmissão ou a compreensão da mensagem. Por isso, outras
facetas da linguagem serão mais bem exploradas adiante neste capítulo.

Imaginação
A imaginação se refere às representações mentais na ausência de um estímulo
físico. Podemos criar imagens mentais a partir de qualquer sentido, embora
as imagens visuais sejam as mais comuns. Ela exerce uma função importante
para resolver questões espaciais e que exigem criatividade. Há uma discussão
entre os pesquisadores sobre como as imagens mentais são armazenadas,
se em código analógico, em que a representação é bastante semelhante ao
objeto real, ou se em código proposicional, uma representação abstrata do
tipo linguística. Porque a imaginação é um objeto de estudo de difícil acesso,
a controvérsia permanece, embora haja uma maioria que tenha preferência
pela perspectiva analógica. De modo geral, as imagens mentais aproximam-se
das percepções dos objetos físicos (MATLIN, 2004).

Inteligência
A inteligência engloba, de certo modo, todos os conceitos vistos até agora. Ela
pode ser definida como a capacidade de aprender por meio das experiências e
de se adaptar ao ambiente utilizando a metacognição — que é o entendimento
e o controle que temos sobre os nossos próprios processos cognitivos. A adap-
tação pode ser influenciada por fatores culturais e pelos contextos sociais.
Conceitos fundamentais da teoria cognitiva 7

Há muito tempo, os pesquisadores se interessaram por maneiras de medir


a inteligência. Houve uma época em que o famoso teste de QI (quociente de
inteligência) era utilizado para avaliar a razão entre idade mental e idade
cronológica, porém essa relação se mostrou inadequada para tal medida.
Atualmente, essa avaliação utiliza uma abordagem mais ampla, com baterias
de testes e tarefas para avaliar diversas habilidades cognitivas (STERNBERG,
2008).
Vimos, até o momento, vários conceitos básicos para a compreensão da
teoria cognitiva. Se você prestou atenção, deve ter na memória boa parte
do conteúdo apresentado, o que será bastante útil na leitura dos próximos
tópicos. Sobre isso, abordaremos a seguir as relações entre memória e apren-
dizagem, além da importância da função do esquecimento.

Importância da memória para a


aprendizagem
Como mencionado, há várias formas de classificar a memória. Já falamos
dos aspectos principais e das memórias implícita e explícita. Agora, vamos
abordar sua classificação quanto ao tempo e sua participação no processo de
aprendizagem, estudando conceitos como memória de trabalho, memória de
longo prazo e aprendizagem, esquecimento e memória de testemunha ocular.

Memória de trabalho
Sempre que precisamos reter uma informação para utilizá-la após alguns
segundos ou minutos, como fazer contas matemáticas, lembrar números de
telefone ou, até mesmo, guardar as palavras até o fim desta sentença para
compreender o que foi escrito, estamos utilizando a memória de trabalho.
Ela é bastante limitada em sua capacidade de armazenamento e duração,
lidando apenas com as informações mais imediatas.
Primeiramente denominada memória de curto prazo, a memória de tra-
balho foi o termo proposto por Alan Baddeley e colaboradores diante das
peculiaridades descobertas que ultrapassaram o fator temporal. Baddeley,
então, sugeriu que a memória de trabalho teria quatro componentes (EYSENCK;
KEANE, 2017; STERNBERG, 2008):

„ esboço visuoespacial: responsável pelo armazenamento temporário


de informações visuais e espaciais;
8 Conceitos fundamentais da teoria cognitiva

„ executivo central: elemento fundamental que mobiliza os recursos


atencionais e gerencia as atividades processuais;
„ alça fonológica: processa e armazena informações fundamentadas na
fala. Envolve, também, uma repetição acústica, subvocal, para guardar
a informação brevemente na memória;
„ buffer episódico: descoberto mais recentemente, integra e armazena
as informações dos outros componentes em uma representação epi-
sódica unitária.

A memória de trabalho não tem a função de produzir arquivos, sendo


completamente diferente dos outros tipos de memória. Embora o termo
"memória de trabalho” seja mais reconhecido atualmente do que “memória
de curto prazo”, Izquierdo (2018) aponta que há diferenças entre os dois.
Uma vez que a memória de trabalho não guarda registros, a memória de
curto prazo corresponderia ao período do início do aprendizado, desde os
primeiros segundos ou minutos até de três a seis horas, tempo que levaria
para a memória de longo prazo ser construída.

Memória de longo prazo e aprendizagem


Você se lembra das fases da memória que já mencionamos? Vamos preci-
sar dessas informações aqui para entender como funcionam a memória de
longo prazo e seu processo de armazenamento. A memória de longo prazo
apresenta uma grande capacidade de armazenagem. Como dependemos dos
processos atencionais e perceptuais na codificação, são eles que determinam
a informação que será armazenada na memória de longo prazo.
O nível em que esses processos ocorrem influencia a retenção da informa-
ção: quanto maior a profundidade da análise, mais elaborados e duradouros
são os traços de memória produzidos. A chamada abordagem da profundidade
do processamento foi proposta por Craik e Lockhart (1972) e pressupõe que
as pessoas analisam os estímulos em diferentes níveis. Uma análise super-
ficial de estímulos físicos ou sensoriais faz com que eles sejam esquecidos
com facilidade. Já uma análise quanto ao significado resulta em níveis mais
profundos, pois é possível fazer associações com outras informações re-
lacionadas ao estímulo, o que torna a recordação mais provável (EYSENCK;
KEANE, 2017; MATLIN, 2004).
A aprendizagem, por sua vez, tende a ser mais eficaz com a prática da
recuperação da informação, chamada de efeito de testagem (EYSENCK; KE-
ANE, 2017). Isso significa que, ao terminar de ler este capítulo, você terá mais
Conceitos fundamentais da teoria cognitiva 9

sucesso na consolidação do conteúdo na memória de longo prazo se tentar


recordar as informações, testando repetidamente, do que se apenas ler todo
o capítulo novamente.

Esquecimento
Por vezes, reclamamos de não nos lembrarmos de algumas coisas. Porém
você já parou para pensar em como seria se nada caísse no esquecimento,
se nos lembrássemos de cada detalhe de tudo o que acontece na nossa vida?
Não seria possível viver dessa forma, porque passaríamos o tempo todo
recordando detalhadamente fatos passados e não conseguiríamos seguir
com nossas vidas. Precisamos nos esquecer de algumas informações quando
elas já não são mais úteis. Talvez você não se lembre mais do seu número de
telefone antigo, mas se lembra do seu número atual. A teoria do decaimento
e a teoria da interferência tentam explicar por que esquecemos.

A teoria do decaimento, ou declínio, explica que as informações


tendem a desaparecer gradualmente caso algo não seja feito para
mantê-las.

A teoria da interferência sugere que a recordação de algumas informações


interfere na recordação de outras. A interferência pode ser proativa ou retroa-
tiva (EYSENCK; KEANE, 2017; STERNBERG, 2008). A interferência proativa ocorre
quando há uma distorção da memória em razão de uma aprendizagem prévia.
Imagine que você sempre guarda as chaves de casa em cima de um móvel ao
lado da televisão. Um dia, resolve comprar um porta-chaves de parede para
pendurar as chaves. A partir de então, sempre que precisa pegar a chave para
sair de casa, você vai primeiro até o móvel procurando-a. Sua aprendizagem
anterior sobre a chave estar em cima do móvel acaba interferindo na sua
nova aprendizagem sobre onde está a chave atualmente. A interferência
retroativa, por sua vez, ocorre quando a distorção da informação aprendida
é provocada por outro processo ou aprendizagem durante o intervalo de
retenção da informação. Se você já aprendeu uma segunda língua, talvez
já tenha passado por esta situação. De repente, você se encontra tentando
lembrar de uma palavra em português, porém só se recorda da palavra na
língua estrangeira. É a sua nova aprendizagem interferindo na recordação
do seu conhecimento prévio.
10 Conceitos fundamentais da teoria cognitiva

Memória de testemunha ocular


Com tudo o que foi apresentado sobre a memória até então, você acha 100%
confiável a memória de alguém que testemunhou um crime? Há muitas dis-
cussões a respeito da acurácia dos relatos das testemunhas oculares, mas
é inegável o fato de que ocorrem equívocos por parte das testemunhas, que
podem levar uma pessoa a ser presa injustamente. Vimos há pouco algumas
teorias que tratam da perda de informações da memória. Veremos, agora,
alguns vieses e distorções que podem provocar erros nesse processo.
Sternberg (2008) aponta as sete distorções a seguir.

1. Transitoriedade: desaparecimento rápido da informação.


2. Distração: relacionada à falta de atenção.
3. Bloqueio: dificuldade para acessar a informação.
4. Atribuição equivocada: quando pensamos que vimos ou ouvimos algo
(o que não corresponde com a realidade) ou quando não temos certeza
da origem da informação.
5. Sugestionabilidade: somos suscetíveis a sugestões, o que pode nos
levar a acreditar em coisas que não são verdade.
6. Viés: influências sofridas por experiências ou expectativas.
7. Persistência: quando damos importância a um fato irrelevante dentro
de um contexto.

Por sua vez, Matlin (2004) ressalta o efeito da desinformação e fatores


específicos que podem afetar a precisão do relato da testemunha ocular.
O efeito da desinformação ocorre quando a pessoa recebe informações
enganosas após o evento, o que seria uma forma de interferência retroativa.
Além disso, numa situação de assalto, por exemplo, a pessoa assaltada
costuma ter sua atenção atraída para alguns aspectos da situação, como a
arma do assaltante, o que também é um fenômeno conhecido como foco na
arma. Outro ponto é que a probabilidade de ocorrer o erro é maior quando
a informação incorreta é plausível ou coerente. Além disso, a pressão social
costuma coagir a testemunha a dar uma resposta de que talvez ela não tenha
certeza no momento. A testemunha pode ser influenciada nesse mesmo
sentido se o entrevistador reagir positivamente para uma resposta incerta. É
muito importante, portanto, que o entrevistador tome alguns cuidados para
não influenciar as respostas da testemunha sem querer, porque ela pode
acabar sofrendo tais interferências e acreditando em suas memórias falsas.
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Tudo isso pode ser muito grave para a pessoa que está sendo acusada, já
que pode ser presa injustamente por um testemunho ocular questionável.

Tal efeito é mencionado por Eysenck e Keane (2017) como efeito da


informação enganosa, porém eles consideram que tal influência de
informações também pode ocorrer quando elas são recebidas antes do evento.
Isso significa que, quando uma pessoa tem uma experiência prévia similar, tende
a cometer mais erros de recordação (interferência proativa).

A memória é a base da aprendizagem. Dizemos que aprendemos algo


quando conseguimos recordar as informações essenciais do conteúdo es-
tudado. Esquecer faz parte do processo de aprendizagem, já que algumas
informações se tornam obsoletas e precisam dar espaço para informações
mais atualizadas. Além disso, é preciso ter cuidado com a criação de memó-
rias falsas, em razão das interferências, para não declararmos como fatos
algo de que não temos certeza. A seguir, veremos mais sobre a linguagem e
a sua produção.

Comunicação: linguagem e seus processos


Todos os conceitos que vimos na primeira parte deste capítulo, na prática
estão relacionados entre si e funcionam de forma integrada. Uma das funções
da linguagem é a comunicação. Esse processo pode ser utilizado de forma
individual se pensarmos na participação da linguagem na memória e no
raciocínio. Exerce, porém, uma importante função social, porque é ela que
permite estabelecer relações com o outro. Por exemplo, você só é capaz de
fazer a leitura deste texto e compreendê-lo usando a linguagem escrita.

Compreensão da linguagem
Para compreendermos a linguagem, seja na modalidade escrita seja na fa-
lada/sinalizada, dependemos da atenção e da percepção para identificar
e selecionar os elementos que serão decodificados no processo receptivo
da língua. Passando pela análise das estruturas do sistema de referência
simbólica, como fonemas, morfemas, sintaxe e semântica até a análise do
discurso como um todo, alcançamos a compreensão.
Compreender como a língua se estrutura e como a organizamos para ser
funcional não é suficiente para sua compreensão a nível de comunicação.
Informações sobre os contextos social, cultural e físico em que o discurso
12 Conceitos fundamentais da teoria cognitiva

é apresentado precisam entrar em cena. Pelo contexto, é possível inferir


alguns significados para palavras que ainda não estão armazenadas em
nossa memória, que recuperamos pela codificação semântica. Quanto maior
a capacidade de compreender o significado das palavras, melhor é a com-
preensão da leitura de um texto. Além disso, criamos proposições enquanto
lemos, ou seja, formas representativas das ideias fundamentais do texto, a
serem mantidas na memória de trabalho para fins de compreensão. Também
elaboramos modelos mentais para representar os principais elementos do
texto (STERNBERG, 2008).
Outro ponto importante que envolve o entendimento do contexto para a
comunicação é a pragmática. Refere-se ao uso prático da língua e sua com-
preensão no mundo real, levando em conta o significado pretendido, não o
literal. Nessa área, temos a linguagem figurativa, que não tem intenção de
ser compreendida literalmente. Incluímos nela as ironias, as metáforas, as
expressões idiomáticas, entre outros (EYSENCK; KEANE, 2017).

Produção da linguagem
A produção da linguagem é importante para que possamos expressar nossas
ideias, nossos sentimentos, nossos desejos. Só podemos ser compreendi-
dos pelo outro quando nos expressamos. Para isso, devemos nos atentar a
como estamos nos expressando para que aquilo que direcionamos ao outro
seja recebido da mesma forma que pensamos antes de produzir. Há alguma
semelhança no processo de produção da fala e da escrita, porém também
há diferenças.
Supõe-se que, na produção da linguagem, há inicialmente o momento de
decidir o que se deseja comunicar. Essa busca pelo significado geral acontece
na fala e na escrita da mesma maneira. No entanto, há várias diferenças entre
elas. Na produção da fala, a pessoa sabe quem está recebendo a mensagem e
pode receber um retorno imediato sobre o que está dizendo. Assim, embora
tenha menos tempo para se planejar do que na escrita, é possível adaptar o
discurso de acordo com a receptividade do interlocutor. A linguagem escrita
exige que a pessoa utilize um vocabulário mais amplo e sentenças mais
longas e complexas para compensar a ausência de elementos contextuais da
fala, como o ritmo e a entonação da voz. Ao escrever, é possível ter acesso
imediato ao que foi produzido e, até mesmo, corrigir alguns erros. No entanto,
a mensagem deve ser clara ao interlocutor, por não receber o mesmo retorno
de forma rápida e não ser possível adaptá-la na mesma velocidade que na
linguagem falada (EYSENCK; KEANE, 2017).
Conceitos fundamentais da teoria cognitiva 13

A produção da escrita envolve processos cognitivos para além da lingua-


gem. Confira a seguir alguns deles (EYSENCK; KEANE, 2017).

„ Proposição: envolve o planejamento das ideias que serão expressas.


„ Tradução: quando as ideias são transformadas em palavras, compondo-
-se sentenças.
„ Transcrição: quando as sentenças tomam forma de texto finalizado.
„ Avaliação/revisão: ocorre a avaliação do que foi produzido e a revisão
de possíveis erros.

Outro ponto importante na produção da linguagem é a teoria dos atos


de fala, abordada por John Langshaw Austin (1965), John Searle (1979), entre
outros. Essa teoria reflete sobre o que podemos alcançar com a linguagem:
não só descrever fatos, mas também realizar ações. Isso porque palavras
carregam por si só a intenção do falante, que pode estar explícita ou não,
como ordenar, pedir, agradecer, prometer, etc.
Destacam-se as cinco categorias de atos de fala a seguir (STERNBERG, 2008).

„ Representativos: quando o falante/sinalizante tenta argumentar para


sustentar uma crença sua como verdade, sendo ela verdadeira ou não
(afirmar, garantir).
„ Diretivos: quando o falante/sinalizante quer que o outro faça algo.
Apesar do nome, costuma ser uma abordagem indireta para conseguir
a ajuda do outro (pedir, ordenar).
„ Comissivos: quando o falante/sinalizante se compromete com algo
futuro (prometer, assegurar).
„ Expressivos: quando o falante/sinalizante expressa um estado psico-
lógico (desculpar-se, agradecer).
„ Performativos, ou declarativos: quando o próprio ato de declarar gera
uma mudança no estado pretendido de coisas (declarar, batizar). Por
exemplo, quando alguém é pego em flagrante cometendo um delito, a
polícia declara a prisão, e a pessoa é imediatamente algemada.
14 Conceitos fundamentais da teoria cognitiva

O artigo “Culturas em quadrinhos: uma leitura pragmática de práticas


linguísticas entre surdos e ouvintes”, de Rocha, Silva e Eler (2019),
aborda as teorias de Austin aplicadas às manifestações de linguagem de surdos
e ouvintes, argumentando que a pragmática, área da linguística que se ocupa
dos atos de fala, pode ser aplicada a qualquer língua, inclusive às línguas de
sinais. Com base nisso, nos referimos aqui tanto a falantes quanto a sinalizantes
(usuários das línguas de sinais).

Neste capítulo, você estudou os principais conceitos da teoria cognitiva,


que são importantes para entender o funcionamento humano e como nos
relacionamos com os outros e com o mundo. Também estudou o processo
da memória e seu papel essencial para a aquisição de conhecimento. Por
fim, você leu sobre a linguagem como nosso meio de comunicação. Tudo o
que foi exposto até então é base para o estudo de outros assuntos afins da
psicologia cognitiva.

Referências
AUSTIN, J. L. How to do things with words. New York: Oxford University, 1965.
CRAIK, F. I. M.; LOCKHART, R. S. Levels of processing: a framework for memory research.
Journal of Verbal Learning and Verbal Behavior, v. 11, n. 6, p. 671-684, 1972.
DALGALARRONDO, P. Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais. 3. ed. Porto
Alegre: Artmed, 2019.
EYSENCK, M. W.; KEANE, M. T. Manual de psicologia cognitiva. 7. ed. Porto Alegre: Art-
med, 2017.
IZQUIERDO, I. Memória. 3. ed. Porto Alegre: Artmed, 2018.
MATLIN, M. W. Psicologia cognitiva. 5. ed. Rio de Janeiro: LTC, 2004.
ROCHA, J. C. B.; SILVA, A. M.; ELER, R. R. S. Culturas em quadrinhos: uma leitura pragmática
de práticas linguísticas entre surdos e ouvintes. Revista Espaço, n. 52, 2019.
SEARLE, J. R. Expression and meaning. Cambridge: Cambridge University, 1979.
STERNBERG, R. J. Psicologia cognitiva. 4. ed. Porto Alegre: Artmed, 2008.

Leitura recomendada
BECK, J. S. Terapia cognitivo-comportamental: teoria e prática. 3. ed. Porto Alegre:
Artmed, 2021.

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