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RAU Revista de Administração Unimep ISSN 1679-5350

UM MODELO DE PARTICIPAÇÃO POPULAR: REFLEXÕES DO


DESENVOLVIMENTO COMO LIBERDADE

Cristiano Trindade De Angelis, Ministério da Fazenda.


Secretaria de Orçamento Federal - generationoflove@posteo.net
Mauricio Saboya Pinheiro, Instituto de Pesquisa Economica Aplicada – IPEA -
mauricio.saboya@ipea.gov.br

RESUMO

De acordo com o economista e filósofo indiano Amartya Sen, as liberdades humanas são, ao
mesmo tempo, meios e fins para o desenvolvimento das nações. Uma das liberdades mais
importantes nesse sentido é a da participação popular na ação governamental, o que melhora
da efetividade dos programas e projetos públicos. Oferecendo uma nova perspectiva para a
literatura existente, e baseando-se na abordagem do desenvolvimento como liberdade, este
artigo apresenta um modelo teórico de governança pública, que poderá ser aplicado numa
política de redução da corrupção. Este modelo demonstra que a inserção da disciplina Ética e
Cidadania nas escolas e campanhas de conscientização , aliado ao compartilhamento de
conhecimentos e soluções com a sociedade tem potencial de mudar a cultura ética da nação. O
estudo conclui que, para combater a corrupção, é necessário passar do olhar jurídico para o
foco na mudança da cultura ética, começando pelo exemplo do governo.

PALAVRAS-CHAVES: corrupção, cultura nacional, governança compartilhada, liberdade,


participação popular.

RESUMEN

Según el economista y filósofo indio Amartya Sen, las libertades humanas son medios y fines
para el desarrollo de las naciones. Una de las libertades más importantes en este sentido es la
de la participación popular en la acción gubernamental, que mejora la eficacia de los
programas y proyectos públicos. Ofreciendo una nueva perspectiva para la literatura existente,

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y basado en el enfoque del desarrollo como libertad, este artículo presenta un modelo teórico
de gobernanza pública, que se puede aplicar en una política de reducción de la corrupción.
Este modelo demuestra que la inserción de la disciplina ética y ciudadanía en las escuelas y
las campañas de concienciación, junto con el intercambio de conocimientos y soluciones con
la sociedad tiene el potencial de cambiar la cultura ética de la nación. El estudio concluye que,
para combatir la corrupción, es necesario pasar de la visión jurídica al enfoque en el cambio
de la cultura ética, empezando por el ejemplo del gobierno.

PALAVRAS-CHAVES: corrupção, cultura nacional, governança compartilhada, liberdade ,


participação popular.

ABSTRACT

According to Indian economist and philosopher Amartya Sen, human freedoms are both
means and ends for the development of nations. One of the most important freedoms in this
sense is that of popular participation in government action, which improves the effectiveness
of public programs and projects. Offering a new perspective for existing literature, and based
on the approach to development as freedom, this article presents a theoretical model of public
governance, which can be applied in a policy of reducing corruption. This model
demonstrates that the insertion of the discipline Ethics and Citizenship in schools and
awareness campaigns, together with the sharing of knowledge and solutions with society has
the potential to change the ethical culture of the nation. The study concludes that, in order to
combat corruption, it is necessary to move from the legal view to the focus on the change of
ethical culture, starting with the example of the government.

KEYWORDS: corruption, freedom, national culture, popular participation, shared


governance

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INTRODUÇÃO

Este texto tem por objetivo apresentar um modelo teórico para elucidar as relações entre a
participação popular nas decisões governamentais, o controle social e o combate à corrupção.
Pretende-se que esse modelo, aqui apelidado de Modelo de Participação Popular e Controle
Social para a Redução da Corrupção (PCRC), sirva de ponto de partida para outros trabalhos,
de caráter aplicado e empírico, que desenhem políticas públicas para a prevenção e o combate
à corrupção no Brasil.
O framework teórico geral é dado pela abordagem do desenvolvimento como
liberdade, defendida pelo economista e filósofo indiano Amartya Sen. De acordo com ele, as
liberdades humanas são, ao mesmo tempo, meios e fins para o desenvolvimento das nações.
Uma das liberdades mais importantes nesse sentido é a da participação popular na ação
governamental, o que pode ser um instrumento de combate à corrupção e melhora da
efetividade dos programas e projetos públicos. A ideia geral é que as liberdades democráticas,
que incluem os arranjos institucionais de participação popular e transparência nos assuntos do
governo, funcionam como um mecanismo de incentivo para os governos combaterem a
corrupção, ao mesmo tempo que compartilha essa responsabilidade com a sociedade civil.
Ademais, a abordagem de Sen também provê elementos teóricos para se pensar o papel da
participação popular nos processos de reforma institucional e desenvolvimento. Todos esses
elementos são incorporados ao modelo PCRC.
Este artigo estrutura-se como segue. Além desta introdução e das conclusões, a seção 1
discute as relações teóricas entre o desenvolvimento como liberdade, educação e cidadania. A
seção 2 introduz a questão do combate à corrupção e a sua relação com o amadurecimento
democrático da sociedade, chegando à conclusão de que a efetividade daquele combate se
dará inter alia pelo provimento de capacitações ao povo – sobretudo educação – e pela
erradicação (ou manutenção em níveis mínimos) da corrupção dentro da máquina pública. A
seção 3 adentra ao tema da reforma da administração pública e da governança, defendendo o
modelo do Novo Serviço Público (NSP), Finalmente, a seção 4 expõe o modelo PCRC,
combinando os diversos elementos teóricos colhidos ao longo das seções anteriores.

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1. A RELAÇÃO ENTRE DESENVOLVIMENTO COMO LIBERDADE, EDUCAÇÃO


E CIDADANIA

A visão de Amartya Sen (2010) sobre o desenvolvimento é chamada de “abordagem do


desenvolvimento como liberdade” ou “abordagem das capacitações”. Para este autor indiano,
o desenvolvimento está vinculado ao alargamento das capacidades e liberdades humanas, em
um processo no qual se ampliam as escolhas pessoais para viver de forma plena a vida. Isso
implica que a boa ação pública não somente distribui bens a recipientes passivos, mas também
amplia as escolhas das pessoas e promove suas capacidades, incluindo a capacidade de
escolha.
Andrade et. al (2016) sustentam que o crescimento econômico precisa acompanhar-se
de instrumentos que possibilitem o avanço das capacidades para a população, por meio de
ferramentas distributivas.
Por sua vez, a educação permite que o indivíduo amplie os seus horizontes cognitivos,
tenha acesso a informações importantes, conhecimentos e saber, compreenda melhor o mundo
e a si próprio e se posicione diante dos problemas da vida mais aparelhado para resolvê-los.
Segundo Sen (2000, p. 39), a educação figura como uma liberdade instrumental para o
desenvolvimento. Tão importante é a educação que se pode dizer que ser bem educado é um
fim em si mesmo, dada a indissociabilidade prática entre o ser bem educado e o ser livre. Daí
porque a privação da liberdade educacional é tão grave para o desenvolvimento de um povo,
merecendo os maiores e melhores esforços da sociedade para sanar essa privação.
No caso das privações educacionais do povo brasileiro, em tese é fácil mostrar que
elas interagem com a baixa produtividade do trabalho, com os baixos rendimentos do
trabalhador, o que deve ser um obstáculo tanto a um crescimento mais vigoroso da renda per
capita no longo prazo, quanto na consecução de um perfil de renda mais equitativo no Brasil.
Caberá a trabalhos empíricos mostrar a existência e magnitude do efeito da falta de educação
do brasileiro sobre a corrupção, que, conquanto esteja presente há séculos em nosso país,
recentemente têm tido grande impacto na vida social e política nacional. Contudo, do ponto
de vista teórico, é possível mostrar que a liberdade política, tão duramente conquistada no
Brasil, só vai dar bons resultados quanto ao combate à corrupção, quando houver acesso geral
à educação de qualidade e liberdade de expressão nos diálogos entre governo e sociedade.

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Um sistema educacional de qualidade e equilibrado em seus segmentos científico e


humanístico é fundamental na promoção da condição de agente, de que fala Sen (2000, p.
288): é fundamental que as pessoas tenham o poder de agir como cidadãos, não se
restringindo a meros vassalos bem alimentados, bem vestidos e bem entretidos. Um Estado
que tome todas as decisões em nome do cidadão, ao não lhe deixar qualquer opção de escolha,
também limita a responsabilidade pessoal. Ora esse estado de coisas seria um gritante
obstáculo ao desenvolvimento como liberdade. Uma alternativa razoável é a defesa de um
Estado que forneça mais oportunidades de escolha às pessoas, para que elas exercitem a sua
responsabilidade (idem, ibidem, p. 284). Portanto, a abordagem do desenvolvimento como
liberdade, de Amartya Sen, pode articular coerentemente os temas da educação, cidadania e
(combate à) corrupção.
Desde 2011, tramita no Congresso Nacional um projeto de lei para incluir a disciplina
Ética e Cidadania nos currículos escolares brasileiros. Sem dúvida, esta é uma iniciativa
louvável, pois a instrução sobre a organização do Estado democrático e sobre os direitos civis
que tratam da liberdade própria do homem, são duas áreas fundamentais da educação cívica
nas escolas, a que se deve dar maior atenção. Estes temas devem ser enquadrados num
percurso de formação da consciência do cidadão, visando à sua aquisição das atitudes e
hábitos que alicercem a responsabilidade social, alimentem a iniciativa cívica e fomentem a
solidariedade humana.
Além da disciplina de ética e cidadania, educação formal, é fundamental apostar em
campanhas de conscientização da população para desenvolver atitudes éticas (educação
informal).
Contudo, não devemos considerar o desenvolvimento da cidadania como um processo
linearizado historicamente, nem acumulativo, tampouco exclusivamente a cargo da escola.
Isso porque a formação da cidadania é atravessada por disputas tanto do ponto de vista
material como imaterial, em progressos e regressos situados historicamente e em sentidos
individuais e coletivos. Ao longo da história brasileira, os antagonismos internos não se têm
expressado adequadamente no campo das discussões políticas, pois a participação política da
população tem sido um processo tutelado e reprimido pelo Estado, sob o controle das elites.
Esse regime duplo de tutela e repressão sobre as massas manifesta-se em certa alternância no
poder de governos ora populistas, ora autoritários. E como nos lembra Celso Furtado ao

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analisar o caso latino-americano, mesmo quando soluções provisórias são encontradas para os
problemas econômicos, políticos e sociais, por meio de certas reformas institucionais (por
exemplo, as reformas da era Vargas no Brasil e as do regime pós-1964), essas soluções
“alimentam-se mais do mimetismo ideológico do que de autêntica criatividade política”
(Furtado, 2008, p. 122).
Portanto o desenvolvimento da cidadania no Brasil é mais uma questão de prática do
que de teoria; mais de arte do que de ciência. Acima de tudo, trata-se de um longo processo
histórico de empoderamento das massas, para o qual contribuem tanto as capacidades
“senianas” dos indivíduos – com destaque para suas liberdades instrumentais (econômicas,
sociais, políticas, transparência e seguridade) –, quanto os arranjos institucionais que
canalizam a vontade popular para a ação do poder público.
Este artigo defende que o desenvolvimento da cidadania, como um processo de
amadurecimento democrático popular coetâneo ao desenvolvimento das capacitações do povo
e à consolidação de mecanismos institucionais efetivos de governança, é uma condição
necessária mas não suficiente ao combate efetivo à corrupção endêmica que assola o país.
Antes, porém, de apresentar o modelo que procura estabelecer essas relações, é preciso passar
em revista à literatura sobre o assunto. Isto será feito na seção a seguir.

2. COMBATE À CORRUPÇÃO POR MEIO DO AMADURECIMENTO


DEMOCRÁTICO

Persson, Rothstein e Teorell (2013) definem a corrupção como algo semelhante ao abuso de
cargo público para ganhos privados. A corrupção ocorre quando há um desvio dos deveres
formais de uma função ou emprego público com o propósito ou intenção de adquirir um
benefício privado (Nye, 1967).
A corrupção pode ser mais favorecida em países com graves deficiências institucionais
e indicadores pobres de governança porque fornece uma margem de manobra para permitir
passar por controles ineficientes (Leff, 1964; Huntington, 1968; Acemoglu e Verdier, 1998).
Por esse motivo é que a corrupção é mais prevalente onde estão presentes certas formas

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institucionais como uma burocracia ineficiente e sistemas jurídicos e judiciais fracos (Hung
Mo, 2001).
Weyland (1998) e Geddes e Ribeiro (1992) sugerem que o nível de corrupção nos
países latino-americanos cresceu, apesar da tendência de aumento da democratização nas
últimas décadas. Nesta mesma linha, Davis et al. (2016) relatam que um exemplo de
incentivos gerados pela democratização é o aumento da utilização de política baseada na
mídia, que amplia os custos de campanha e relações públicas, gerando pressões para levantar
o dinheiro legal ou ilegalmente.
Klitgaard (1988) destaca que a corrupção é provável de ocorrer quando há um alto
grau de poder de monopólio com discrição e sem transparência. A junção da ineficiência
governamental com monopólio do conhecimento e do poder gera uma crise de governança
que, se não tratada, resulta em crise de governabilidade.
A amplitude do fenômeno da corrupção facilita a sua banalização na sociedade até um
ponto em que é considerada onipresente e, então, a população já não tem mais esperança de
ver os corruptos afastados de seus cargos e até mesmo presos. Além disso, a corrupção
regularmente é tanto mais difícil de explicar e tratar quanto mais estendida é. Com o tempo, a
corrupção costuma institucionalizar-se e configurar um fenômeno de tipo sistêmico que
requer uma compreensão em sua própria lógica relacional (Gault, Galicia & Lepore, 2015).
Por exemplo, Paul Collier (2000), Alina Mungiu-Pippidi (2006) e Rasma Karklins (2005)
argumentam que os riscos de falhas envolvidos nos esforços de combate à corrupção invocam
uma sensação de cinismo entre a população, fortalecendo ainda mais um sentimento coletivo
de se estar preso em uma espécie de armadilha da corrupção.
Rothstein e Uslaner (2005) ressaltam que a falha no combate a corrupção é devida à
má definição do problema. Segundo eles, em um contexto em que a corrupção é um
comportamento esperado, dispositivos e sistemas de controle e punição são em grande parte
ineficazes, uma vez que não haverá ninguém com incentivo real para denunciar os corruptos.
Os atores da parte superior do sistema agem segundo as expectativas racionais em relação às
ações de seus cúmplices. Esse diagnóstico converge com o de Bardhan (2005), segundo o
qual a corrupção é um fenômeno que quanto maior a sua frequência, há menos incentivos para
os outros agirem honestamente.

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Gault, Galicia e Lepore (2015) afirmam que é necessário superar o olhar jurídico-policial e
levar as medidas anticorrupção da abordagem jurídica, de caráter individual e que geram uma
demanda e expectativa de punição quase imediata, para a transformação das instituições,
valores e cultura no longo prazo.
O’Donnell (2002) sustenta que as novas democracias latino-americanas são
caracterizadas pela não punição das ações presidenciais ilícitas. É uma espécie de democracia
delegada com um déficit de accountability horizontal (equilíbrios e controles mútuos entre
agências estatais).
Gault, Galicia e Lepore (2015) mostram que o sucesso nas medidas anticorrupção em
Cingapura, Hong Kong e, recentemente, na Indonésia foi causado pela prevalência que o
governo dá à ideia de interesse público. O foco no interesse público aumenta a accountability
vertical (controle da ação governamental pela sociedade) a qual impacta diretamente a
accountability horizontal.
Villoria, Van Ryzin e Lavena (2013) alertam para o fato de que a ênfase excessiva no
papel dos magistrados, na luta contra a corrupção, pode ter consequências inesperadas, como
o caso italiano mostra1. De acordo com Vanucci (2009) o caso italiano é um pessimismo
profundamente enraizado no que diz respeito à integridade das elites políticas e econômicas e
reforço da tolerância generalizada de práticas ilegais.
Segundo a OCDE (2010), os países com corrupção generalizada e que têm
implementado mecanismos de controle continuam a sofrer desse mal, juntamente com o
encarecimento relativo da máquina pública.
A literatura apresenta diversos efeitos da corrupção. Alguns pesquisadores
encontraram uma relação significativa entre os sentimentos dos servidores públicos sobre
política e ética interna e sua satisfação com o trabalho (Ferris & Kacmar 1992; Kacmar et al.,
1999; Witt, Andrews & Kacmar 2000). Outros encontram uma relação positiva entre a
confiança no governo e a satisfação do público com os serviços que recebem (Van de Walle &
Bouckaert, 2003; Van Ryzin et al., 2004; Vigoda-Gadot & Yuval, 2003; Welch, 2005).
Honlonkou (2003) descobriu que as economias dos países menos corruptos são as
menos inflacionárias. Em países onde o nível de educação é alto, corruptos tendem a se

1
Por conta de sua luta contra a máfia, o juiz Giovanni Falcone foi assassinado em maio de 1992.
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beneficiar menos da ignorância à procura de subornos. Seus estudos também mostram que a
redução da corrupção está associada a um melhor desenvolvimento global que se reflete em
um maior IDH (Honlonkou, 2003).
A corrupção também reduz a eficácia e eficiência dos serviços públicos (Rose-
Ackerman, 1999), inflaciona os custos de transação (Lambsdorff 2002, Wei 1997), gera
incentivos distorcidos (Ades e Di Tella 1997), e enfraquece o Estado de Direito (Tanzi, 1998).
Villoria, Van Ryzin e Lavena (2012) destacam que a corrupção também é motivo de
preocupação devido as suas amplas consequências sociais e políticas, especialmente na
medida em que ela pode levar os cidadãos a desconfiar de instituições governamentais, a
desconfiar uns dos outros e ser menos dispostos a seguir as regras e obedecer às leis.
Diante de tantos efeitos negativos, qual seria a melhor estratégia para combater a
corrupção?
Persson, Rothstein e Teorell (2013) mostram que as experiências de transições bem-sucedidas
de sistemas corruptos para menos corruptos, como os casos da Suécia, da Dinamarca, dos
Estados Unidos e, mais recentemente, Hong Kong e Cingapura mostram que um grande
empurrão político, econômico e das instituições sociais é realmente necessário. Sem qualquer
interesse político real, como no caso da maioria dos países com a corrupção desenfreada, as
reformas anticorrupção estão fadadas ao fracasso.
Para Persson, Rothstein e Teorell (2013) a solução mais efetiva para controlar a
corrupção é a mudança radical nas agências de accountability (maior poder, autonomia,
legitimidade, coordenação e amplitude) e nos mecanismos de controle social (participação
popular nas políticas públicas e controle das ações governamentais).
A partir desta revisão de literatura podemos concluir que: i) no combate à corrupção,
devemos passar do foco jurídico-policial para a educação da população com foco na ética ii) o
desenvolvimento de capacitações à população brasileira– sobretudo no campo educacional,
mas não somente – visa, entre outras coisas, a um exercício cada vez mais elevado da razão
pública, consistindo na discussão aberta, livre e em profundidade dos problemas nacionais e
suas possíveis soluções; o amadurecimento democrático e o fortalecimento da cidadania
andam de mãos dadas com as capacitações individuais e coletivas; iii) é importante um
“empurrão inicial” do governo, combatendo efetivamente a corrupção dentro da máquina

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pública, para que se consolide um processo de educação ética da população e de combate à


corrupção também na esfera privada.
A partir dessas três constatações, algumas ações são necessárias. Uma das mais
importantes consiste na formação de lideranças que sirvam de exemplo para a educação da
população, em especial no que se refere a ética. As ações dos líderes podem ser importantes
na promoção do bom comportamento e de uma cultura ética dentro das organizações. Eles
podem ajudar a garantir a conformidade com as normas e padrões de comportamento ético.
De Angelis (2013) chama a atenção para o fato de que os líderes devem desenvolver e
integrar diferentes competências: Competência Intelectual (CI)— Juízo Crítico e Perspetiva
Estratégica; Competência de Gestão (CG)— Comunicação envolvente, gestão de recursos e
capacitação; Competência Emocional (CE)— Autoconsciência, Resiliência Emocional,
Influência e Motivação; e Competência Espiritual (CEs)— Intuição, controle do ego e modos
mais elevados de conhecimento. O governo tem que fazer campanhar e oferecer cursos para
desenvolver essas competências.
No entanto, os líderes devem ser também formados e monitorados, por meio de
mecanismos institucionais de regulação do comportamento ético, os quais não apenas usem
regras formais e agências externas de controle e disciplina, mas também que criem formas
inovadoras de incentivo ao comportamento ético autônomo. No Brasil, um dos marcos da
discussão pública sobre o papel da ética pública foi o Decreto nº 6.029/2007, que instituiu o
chamado Sistema de Gestão da Ética do Executivo Federal. O interessante é que a reflexão
ética no Brasil acontece de forma paralela à crise de confiança e o consequente período de
aprendizagem e ruptura cultural que o Brasil parece estar atravessando.

3. GOVERNANÇA COMPARTILHADA NO MODELO DO NOVO SERVIÇO


PÚBLICO (NSP)

Estamos ainda engatinhando na atuação de movimentos sociais e organizações da sociedade


civil no combate à corrupção e na promoção da qualidade da administração pública por meio
da participação cidadã e do controle social. Uma das razões para isso é apontada por Almeida
(2007), para quem a população brasileira tem forte ideologia pró-estatal, apesar de a maioria
da população considerar as instituições privadas mais eficientes e mais confiáveis do que as

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públicas. Para os mais pobres, o Estado é visto como grande pai protetor. Para as elites, ou o
Estado é o responsável por tudo ou é o canal para se garantir alcance dos interesses dos
diferentes grupos organizados (Almeida, 2007).
A Governança Compartilhada muda a situação atual de dependência da comunidade
com relação ao poder público para uma situação ideal de co-responsabilidade e cidadania no
desenvolvimento de ações para a melhoria das condições de vida da comunidade e de maior
efetividade das políticas públicas. Modesto (2002) destaca que a governança compartilhada é,
sobretudo, uma questão política, relacionada ao grau de desenvolvimento e efetivação da
democracia.
Para Paes de Paula (2007), quando analisamos a estrutura do aparelho do Estado pós-
Reforma Gerencial, constatamos uma clara concentração do poder no núcleo estratégico. O
governo optou pela centralização das decisões e tornou as câmaras setoriais um monopólio
das equipes ministeriais. Diniz (2000) corrobora com essa afirmativa e a relaciona com o
modelo gerencial, ao afirmar que o desenho institucional trazido pela doutrina da Nova
Gestão Pública (NGP) aumentou o isolamento dos decisores, estimulando práticas
personalistas e voluntaristas. Por sua vez, Paes de Paula (2007) ressalta que o modelo
gerencial é participativo apenas do discurso, mas centralizador no que se refere ao processo
decisório, organização das instituições políticas e construção de canais de participação
popular.
Pereira (1997), o próprio mentor e coordenador da reforma gerencial, admite que as
organizações sociais são excluídas dos poderes de decisão, ao afirmar que o papel das
chamadas “organizações sociais” para designar a forma de participação da sociedade civil nas
políticas públicas, instituída pela Constituição de 1988, se reduz à função e é claramente
excluído dos poderes de decisão, reservados ao chamado núcleo estratégico do Estado.
Ao contrário da retórica do modelo gerencial (Pereira, 1995), no modelo do Novo
Serviço Público (NSP) (Denhardt & Denhard, 2003), os cidadãos são chamados de parceiros
ou stakeholders (atores interessados), com os quais a esfera pública constrói modelos
horizontais de relacionamento e de coordenação.
Algumas funções públicas foram organizadas segundo critérios estabelecidos pela
burocracia e aperfeiçoados pelo modelo gerencial ao criar as carreiras de Estado. Foi criada a
carreira dos gestores públicos (Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental) –

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uma carreira de altos administradores públicos, que obviamente fazia falta no Brasil, mas que
recebeu uma orientação rigorosamente burocrática, voltada para a crítica do passado
patrimonialista, ao invés de voltar-se para o futuro e para a modernidade de um mundo em
rápida mudança, que se globaliza e se torna mais competitivo a cada dia (Pereira, 2001).
Para os mentores do NSP, Denhardt e Denhardt (2003; 2007), valores como a
eficiência e a produtividade não devem ser perdidos, mas devem ser colocados no contexto
mais amplo da democracia, da comunidade e do interesse público.
O interesse público é melhor alcançado por servidores públicos e cidadãos
comprometidos em fazer contribuições significativas para a sociedade, e não por gestores que
atuam como se o dinheiro público fosse seu. Estes gestores deveriam compartilhar a
autoridade e reduzir o controle, atuando como líderes transformacionais em vez de chefes ou
gerentes.
Nós precisamos de um renovado sentido de comunidade e o governo pode
desempenhar um papel importante e fundamental nisso, facilitando e apoiando as conexões
entre os cidadãos e as suas comunidades e destas com o governo. Por isso, torna-se o eixo
pragmático da reforma administrativa a construção de instituições formais ou informais que
induzam os agentes a comportamentos cooperativos.
Primeiro porque deve ser um ambiente democrático e participativo onde os conflitos
éticos e problemas político-sociais da comunidade são desvelados, analisados e debatidos com
a intenção de transformação da realidade.
Esse ambiente é criado a partir da prática de gestão de conhecimento conhecida
como “Comunidades de prática – CdPs. Contudo, a discussão deve ser mediada por uma
prática de Inteligência Organizacional “Análise por experts” a fim de não causar
entendimento incompleto da situação ou uma avalanche de informações.
Oliveira e Villardi (2014) explicam que para estimular a formação de CdPs, há de
se considerar, conforme alerta Gherardi (2003), que as pessoas, as suas emoções e os
desejos influenciam diretamente as interações sociais e a maneira como percebem a si
mesmas e os grupos de trabalho. As pessoas, de acordo com a autora, são também
motivadas pela busca do conhecimento como um fim em si mesmo. Entretanto, Moura
(2009) aponta que as CdP raramente foram estudadas numa perspectiva crítica, embora
Lave e Wenger (1991) reconheçam a dimensão de poder envolvida nas CdPs, e Wenger

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(2000) tenha recomendado não entender as CdP com visão romântica, pois “Elas são o
berço do espírito humano, mas também podem ser suas prisões” (Wenger, 2000, p. 230).
Ao se engajarem em contextos de aprendizagem, as pessoas dialogam, negociam
significados baseados em suas experiências profissionais e cotidianas, dinamizam seus
processos individuais de reflexão e contribuem com a reflexão dos demais. Assim, a
reflexividade, a aprendizagem e a competência social do grupo são coletivamente
ampliadas, podendo constituir-se em comunidades de prática (CdP) nas organizações
(Souza-Silva & Davel, 2007).
Três elementos caracterizam uma CdP: domínio, comunidade e prática: (a)
Domínio, uma CdP apresenta uma identidade definida por um conjunto compartilhado de
interesses, membros comprometidos que detêm uma competência compartilhada,
aprendem uns com os outros, se destacam e são valorizados por essa competência coletiva,
não são apenas um clube de amigos; (b) Comunidade, participar de uma Cdp envolve
participar e discutir de atividades conjuntas, ajuda recíproca e compartilhar informações
entre os membros devido a seu interesse no domínio que eles detêm. Para mantê-lo, nas
CdPs se constroem relacionamentos que lhes permitem aprender entre si, mesmo que não
trabalhem juntos diariamente; (c) Prática é característica de uma CdP porque nela seus
membros são praticantes e compartilham experiências, histórias, ferramentas, maneiras de
resolver problemas, ou seja, realizam uma prática compartilhada (Wenger, 2006).
A entrada de membros novos na comunidade se faz pelo seu engajamento
progressivo, envolvendo-se nas práticas coletivas pela sua ‘participação periférica
legitimada’ (PPL) que perpetua uma CdP pela qual os novatos aprendem e se socializam
até serem gradualmente reconhecidos como membros dessa comunidade (Gherardi et al.,
1998).
A adesão ao ambiente informal de interação social e o engajamento coletivo das
CdP são importantes para construir, transmitir conhecimento e promover uma
aprendizagem em grupo situada (ancorada) na prática (Gherardi et al., 1998).
Sugere-se que seja criada uma Comunidade de Prática para discutir as melhores
práticas nos temas de Ética e Cidadania e que seja nomeado um expert nesses assuntos
para entregar as propostas ao tomador de decisão.

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Obviamente é preciso aqui a união entre a academia onde a Comunidade de Prática


estará sediada (produção de conhecimento) e o governo (tomador de decisão em relação as
propostas).
Com relação aos mecanismos de participação popular para melhorar a efetividade
das políticas públicas nas área de ética e cidadania, é importante salientar três grandes
desafios:
i) criação de uma cultura de compartilhamento de conhecimentos dentro e fora da
administração pública para cocriação e implementação de políticas, programas, projetos e
atividades; ii) motivar e facilitar uma expressão concisa e organizada na discussão on-line;
e iii) uso de ferramentas/sistemas inteligentes e especialistas para transformar a informação
em conhecimento (contextualização) e, então, em inteligência (aplicação).
O reconhecimento da importância da participação ativa dos cidadãos, do setor
privado e de funcionários públicos para a criação de novos conhecimentos, bem como dos
sistemas inteligentes e de especialistas para facilitar/orientar a colaboração e analisar este
novo conhecimento gerado, deve ser a base de um novo modelo para redução da
corrupção.
A mudança do foco na eficiência e na produtividade para o foco na efetividade e na
colaboração é a base da mudança do modelo da NGP para o modelo do NSP. As diferenças
básicas entre os dois modelos encontram-se no quadro 1.

Quadro

1 - Diferenças entre o modelo NGP e o modelo NSP

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Segundo Andion (2012), as correntes que emergiram nas últimas décadas, como a
pluralista e a do NSP, vêm lançar novas bases de compreensão da administração pública e
reconfigurar a sua identidade enquanto campo científico, a partir do diálogo com outras
disciplinas das ciências sociais, como a ciência política, a sociologia política, a geografia e a
antropologia. Fazendo isso, elas trazem à tona novos pressupostos epistemológicos, teóricos e
metodológicos para o campo, promovendo o seu enriquecimento. Torna-se possível, assim,
pensar outros caminhos metateóricos promissores para além do funcionalismo (Vieira e
Caldas, 2006).
Tratando de questões mais práticas, o novo modelo disponibiliza plataformas
organizacionais para facilitar o alcance de objetivos públicos, tais como o envolvimento de
cidadãos na construção de políticas, fazendo uso de mecanismos de democracia deliberativa e
de redes de políticas públicas.
O modelo NSP por si só não resolve o problema de captação e de aplicação do
conhecimento coletivo. É preciso um plano integrado de práticas de Gestão do Conhecimento
– GC (organizam, transferem e criam conhecimento) com práticas de Inteligência
Organizacional - IO (analisam, interpretam e aplicam conhecimento).
Não obstante, as pessoas só irão realmente utilizar essas práticas após um processo de
humanização no setor público. Tal processo busca transformar servidores públicos alienados e
egoístas em pessoas capazes de pensar e de agir como um ser humano em um contexto global,
e não simplesmente como pertencente a um seleto grupo de dependentes da máquina pública
burocrática.
A autonomia, o domínio e o propósito, elementos que não são parte da cultura da
administração pública brasileira, são os que realmente motivam as pessoas, ao
proporcionarem significado em servir a população brasileira. O significado no trabalho é a
chave para o alinhamento entre as competências e os objetivos individuais com as
competências e os objetivos organizacionais.
A humanização é parte fundamental tanto do amadurecimento democrático que o
Brasil está passando neste momento. Esse amadurecimento pode ser acelerado a partir das
seguintes iniciativas:

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• criação de espaços de participação social com facilitadores e experts que motivam,


organizam e analisam o conhecimento gerado;
• melhoria no processo de consulta e consenso;
• equilíbrio na representatividade da diversidade social;
• solidariedade social (benefícios de ajuda mútua e confiança generalizada);
• transformação dos servidores públicos em pessoas “técnica-humanas” a partir de
publicações, seminários, congressos e cursos de formação;
• forte base de conhecimento comparativo sobre práticas que dão certo;
• liderança do governo, mas também capacidade dos órgãos públicos de se adaptar e
absorver novas formas de conhecimento, além da capacidade analítica e interpretativa
de atores fora da arena governamental;
• um fluxo de capital social, confiança, entendimento mútuo, conhecimento e saber
fazer que permita às pessoas agir, aprender e se adaptar de forma coletiva.

4. UM MODELO DE PARTICIPAÇÃO POPULAR E CONTROLE SOCIAL PARA


REDUÇÃO DA CORRUPÇÃO

A proposta deste trabalho é apresentar um novo modelo, batizado de Participação Popular e


Controle Social para Redução da Corrupção (PCRC), que tem afinidades com o modelo NSP,
estudado anteriormente. O modelo PCRC procura manter as vantagens do modelo gerencial,
reforçar o componente de governança compartilhada (participação popular) do modelo NSP, e
introduzir uma inovação: controle social. Antes, porém, é preciso repassar alguns
fundamentos e hipóteses básicas do modelo proposto, para o que recorremos novamente à
abordagem do desenvolvimento como liberdade, de Amartya Sen.
A participação e o controle social são os principais elementos de uma governança
compartilhada entre Estado e sociedade a fim de melhorar a efetividade das políticas públicas
e ao mesmo tempo diminuir a corrupção. A governança compartilhada gera conhecimento
relevante e inteligência se há interesse do Estado em organizar, transferir e utilizar essa
contribuição. O conhecimento popular tem o potencial de mudar os valores, crenças e

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suposições dos atores públicos, em especial, quando somado ao aprendizado com outros
países e culturas.
Aprofundemos mais a relação entre participação popular democrática e controle
social. Novamente, servimo-nos da abordagem do desenvolvimento como liberdade (Sen,
2000, p. 31-32). Essa abordagem enfatiza o papel indispensável da participação popular (livre,
racional e inclusiva) na escolha dos objetivos e processos do desenvolvimento de uma nação,
bem como na formação dos valores sociais. Isso é importante porque, principalmente no
mundo globalizado de hoje, o desenvolvimento econômico de uma comunidade pode se
chocar com suas tradições culturais e valores, inclusive com suas crenças religiosas e
costumes políticos. Em uma situação dessas, o povo deve ter o direito de escolher o que fazer
com suas tradições culturais, por meio de uma decisão coletiva, livre e racional. Um processo
de decisão em que todos os envolvidos tenham a mesma chance de participar, em igualdade
de condições, resultará ipso facto em uma decisão legítima do grupo envolvido no processo.
Para Sen (2000, p. 243-244), não se deve subestimar a extensão, a profundidade e o
caráter multifacetado das inter-relações culturais que se estabelecem, desde longa data, entre
os povos da Terra. De fato, é um mito supor que existam culturas autossuficientes, plenamente
autônomas e que, por isso, devam ser preservadas “puras”. Não se trata de negar a existência e
a importância das culturas nacionais, regionais ou locais, tampouco de negar que dominação
cultural possa ter aspectos nocivos às culturas “dominadas”. Trata-se de reconhecer a
importância das referidas influências interculturais, e isso como o resultado de uma
capacidade humana de gozar produtos culturais de diferentes povos, lugares e períodos.
Consequentemente, as pessoas de diferentes culturas têm a capacidade de compartilhar certos
valores e crenças. Segundo Sen, um desses valores é o da liberdade.
O princípio do respeito à liberdade humana, que rege o direito de livre escolha de um
povo em relação a suas tradições culturais, tem ao menos duas implicações importantes. Em
primeiro lugar, o apelo à tradição não justifica a supressão geral da liberdade de expressão,
tampouco a supressão dos direitos políticos e civis da população. Em segundo lugar, a
liberdade de participação nas decisões coletivas deve ser sempre assegurada, inclusive com o
fornecimento das condições básicas para isso – por exemplo, o fornecimento de informações,
conhecimentos e educação para o povo. Em termos gerais, na abordagem do desenvolvimento

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como liberdade, o desenvolvimento exige que o conjunto da população tenha as capacidades e


habilidades necessárias para a tomada de decisões coletivas.
Não obstante, a simples existência de um regime democrático não basta para resolver
os problemas de toda a população. É fundamental que a democracia funcione para as pessoas
comuns e seja exercida de um modo adequado, gerando oportunidades para todos. O sucesso
dessa arte depende inter alia dos mecanismos formais por meio dos quais as liberdades
políticas são exercidas. Isso inclui a revisão de regras e procedimentos, o reforço “da política
multipartidária e o dinamismo dos argumentos morais e da formação de valores” (Sen, 2000,
p. 183), dentre outras coisas. Sen dá destaque especial ao ativismo dos partidos de oposição e
às várias formas de participação popular como forças fundamentais no bom funcionamento
das sociedades democráticas contemporâneas. O autor lembra que “em uma democracia, o
povo tende a conseguir o que exige e, de um modo mais crucial, normalmente não consegue o
que não exige” (Sen, 2000, p. 184). Essa frase resume bem duas ideias: a democracia
constitui-se num meio em geral eficaz para forçar o governo a atender o povo; e a democracia
exige o exercício da condição de agente (autonomia com responsabilidade) dos indivíduos.
Pelos mesmos motivos que os mecanismos democráticos de participação social
tendem a incentivar as autoridades a olharem pelas necessidades do povo, há também
incentivos para o controle da corrupção. Se as autoridades não puderem ser de alguma forma
“punidas” politicamente quando falharem no combate à corrupção – ou, pior que isso, quando
forem elas próprias agentes de corrupção –, então elas não terão incentivos a adotarem
medidas que evitem este tipo de mal social. Nesse sentido, a democracia fornece certos
mecanismos e incentivos políticos – eleições livres, multipartidarismo, separação de poderes,
diversas formas de participação da sociedade nas decisões públicas, imprensa livre etc. –, os
quais funcionam como uma espécie de “seguro” contra a prática da corrupção.
Muitas vezes, a falta de mecanismos de controle democrático, incluindo mecanismos
de transparência e accontability das atividades dos setores público e privado, dão azo a crises
sistêmicas. Um exemplo disso ocorreu durante a crise financeira que assolou países do leste e
sudeste asiático em fins dos anos 1990. Segundo Sen (2000, p. 185-186) essa crise teve a ver
com a falta de transparência e de participação democrática na discussão das normas
reguladoras dos negócios em geral, em particular no setor financeiro. Por exemplo, Indonésia
e Coréia do Sul não tinham mecanismos que permitissem um exame crítico e democrático dos

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perfis de aplicação (investimento) das instituições financeiras públicas e privadas. Isso gera
uma dificuldade de responsabilização (accountability) dos “chefões das finanças”, o que sem
dúvida contribuiu para a eclosão da crise econômico-financeira naqueles países.
As relações entre a participação popular, controle social e o combate à corrupção,
esboçadas intuitivamente nos parágrafos acima, ganham um caráter formal no modelo de
Participação Popular e Controle Social para Redução da Corrupção - PCRC. A figura 1 ilustra
os conceitos e relações do modelo.

Figura 1: O modelo PCRC (elaboração própria)

O modelo PCRC demonstra que uma visão governamental mais holística de mundo, a
partir da colaboração interna e externa, gera uma nova consciência em relação à supremacia
do interesse público. O modelo é propagador de mudança a partir da responsabilidade social
corporativa, da troca de conhecimento e experiência, o que potencialmente é inteligência.

O modelo PCRC demonstra que uma visão governamental mais holística de mundo, a
partir da colaboração interna e externa, gera uma nova consciência em relação à supremacia
do interesse público. O modelo é propagador de mudança a partir da responsabilidade social
corporativa, da troca de conhecimento e experiência, o que potencialmente é inteligência.

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A participação e o controle social de qualidade tem o potencial de abrir espaço dentro


do governo para uma governança compartilhada, que ao abrir também para comunidade
internacional, tem força para reduzir a corrupção. Esssa participação e controle social de
qualidade, como vimos na revisão de literatura, depende do interesse da sociedade em cobrar
do governo o acesso ao conhecimento e experiência, como tem feito os estudantes chilenos.
Essa abordagem do desenvolvimento como liberdade, defendida pelo economista e filósofo
indiano Amartya Sen, só será atendida nos países latinos a medida que houver respeito a
direitos humanos e isso também deve ser uma reivindicação das sociedades latinas.
A pandemia do corona vírus é uma oportunidade para a sociedade civil organizada
avaliar as
melhores práticas e lições aprendidas em termos de previsão, estratégia e ação e propor
soluções para o Ministério da Saúde. Dentre as mais de 100 práticas de gestão do
conhecimentos, a mais útil são as comunidades de prática. Contudo, sem um expert para
liderar o debate e analisar o conhecimento gerado antes de entregar ao tomador de decisão,
tende a gerar uma avalanche de informações, como foi o caso das iniciativas do Dialoga
Brasil e Dialogos Federativos.
Entre as principais mudanças na Reforma Administrativa proposta pelo governo
brasileiro para administração pública, figura a revisão de benefícios, como o sistema de
licenças e gratificações, que estimula, na visão do Ministério da Economia, uma percepção
negativa da sociedade em relação aos servidores. Entre as mudanças estão novas regras para
seleção de servidores, a extinção da estabilidade, demissão por incompetência, o fim da
progressão automática por tempo de serviço, a redução do número de carreiras e o
alinhamento dos salários do setor público aos da iniciativa privada, além da regulamentação
da lei de greve. Essas alterações, se tornarem o servidor público mais humanizado e então
com foco no interesse público, são excelentes para motivar a governança compartilhada que,
como explicado no modelo PCRC, tende a reduzir a corrupção a partir da participação popular
propiciada pelo compartilhamento de conhecimentos e experiências.

CONCLUSÕES

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Governar com a sociedade, ao invés de governar a sociedade, faz com que o próprio
beneficiário possa contribuir no desenvolvimento da estratégia, planejamento e gestão dos
diversos programas e projetos, melhorando a qualidade do gasto e da ação pública. A
participação do cidadão e o estabelecimento de parcerias ajudam na transformação da cultura
da desconfiança e do curto prazo em uma cultura de colaboração e de longo prazo.
O Estado precisa perceber que a participação e controle social consideram as questões
de poder e de interesses divergentes em qualquer projeto público. A partir deste entendimento,
o Estado deve se abrir para o conhecimento da sociedade para conseguir vencer a crise de
confiança e crise econômica, advindas da política de isolamento e manutenção do status quo.
O Estado não tem conhecimentos e recursos suficientes para resolver os problemas
contemporâneos e por isso precisa contar com a inteligência proveniente das sociedades
doméstica e de outras nações, mormente as mais desenvolvidas.
Conforme discutido neste artigo, a crise é uma oportunidade de rever crenças, valores,
suposições e comportamentos em busca de melhores resultados. O lado destrutivo do
funcionalismo gerou crises econômicas, sociais, morais e outras formas decorrentes da mãe de
todas as crises, que é a crise de percepção. O modelo PCRC mostra que a troca de
conhecimentos entre Estado e sociedade pode mudar o foco da ação governamental para a
supremacia do interesse público e a efetividade das políticas públicas, o que automaticamente
reduz a corrupção.

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