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REFERÊNCIAS

CAPÍTULO 114 PERFIL DE EVIDÊNCIAS

Drogas: Uso, Abuso e


Dependência
Anne Orgler Sordi
Lisia von Diemen
Félix Henrique Paim Kessler
Flavio Pechansky

O uso de substâncias psicoativas sempre esteve presente nas


sociedades humanas, não importando a raça ou a cultura do povo.
Os motivos propostos para explicar esse uso já foram de cunho
religioso e místico. Porém, nas últimas décadas, o aumento
signi cativo de consumidores e dos tipos de drogas usadas tem-se
re etido em uma maior demanda para o tratamento dos problemas
relacionados com abuso ou dependência de drogas. Isso requer um
conhecimento básico por parte dos pro ssionais de saúde sobre a
abordagem dos usuários e o seu tratamento, principalmente quanto
aos sintomas de intoxicação e abstinência. Também é fundamental
que esses pro ssionais saibam o encaminhamento das fases
seguintes do tratamento, com o intuito de prevenir a recorrência de
problemas relacionados com essas substâncias.
Desde 2003, de niu-se como responsabilidade do Sistema Único
de Saúde (SUS) garantir atenção especializada aos usuários de álcool
e outras drogas. Atualmente, os serviços disponíveis no Brasil para
atendimento a usuários de drogas são oferecidos pelo SUS, pelo
serviço privado e por instituições não governamentais.1 O
atendimento gratuito à população corresponde aos atendimentos
prestados nas unidades de atenção primária à saúde (APS), em
Centros de Atenção Psicossocial e Centros de Atenção Psicossocial
especializados no tratamento de álcool e drogas (CAPS-AD),
ambulatórios e outras unidades hospitalares especializadas,
internação hospitalar, grupos de autoajuda e comunidades
terapêuticas. Alguns desses estabelecimentos disponibilizam
unidades de emergência psiquiátrica que muitas vezes apresentam-
se superlotadas. Os atendimentos funcionam hierarquicamente,
sendo encaminhados para tratamentos mais especializados segundo
a gravidade do caso.2,3
Este capítulo aborda algumas drogas lícitas, como os
benzodiazepínicos e as anfetaminas, porém dá maior ênfase às
drogas ilícitas mais prevalentes em nosso meio. Alcoolismo e
tabagismo são tratados em capítulos especí cos.

CONCEITOS E DIAGNÓSTICO
Droga é qualquer substância exógena que inter ra em um ou
mais sistemas do organismo.
Droga psicotrópica ou substância psicoativa são as drogas que
atuam no funcionamento cerebral, provocando alterações psíquicas
e comportamentais. Neste capítulo, muitas vezes a palavra droga
será usada como sinônimo de substância psicoativa.
Fissura (craving) signi ca um desejo intenso e quase incontrolável
de consumir uma substância, muitas vezes com sintomas físicos
associados.
Uso experimental corresponde ao uso eventual de uma substância
para experimentar seus efeitos, sem recorrência sistemática.
Uso ocasional ou recreacional é um uso intermitente em que há
algum padrão de consumo, sem causar problemas (físicos, psíquicos,
legais, familiares e sociais) sistemáticos.
Uso abusivo é diagnosticado conforme os critérios do Manual
diagnóstico e estatístico de transtornos mentais (DSM-IV) descritos na
TABELA 114.1.4 A Classi cação internacional de doenças e problemas
relacionados à saúde (CID-10)5 classi ca o abuso como uso nocivo e,
já que os critérios se assemelham, não são descritos neste capítulo.
Dependência de substâncias é diagnosticada segundo os critérios
do DSM-IV apresentados na TABELA 114.2.4
Os padrões de uso experimental, recreacional, abusivo e de
dependência recém-relacionados tendem a ocorrer em um
continuum, no qual os problemas com o uso das substâncias
psicoativas aumentam à medida que o indivíduo se aproxima da
dependência e de acordo com a sua gravidade. Contudo, geralmente
os usuários transitam entre as formas de uso dentro desse continuum,
podendo retornar a um padrão anterior de consumo ou progredir em
direção à dependência.
A TABELA 114.3 mostra as prevalências de uso de drogas na vida,
no último mês e ano, segundo o II Levantamento Domiciliar sobre o
Uso de Drogas no Brasil, realizado em 2005. O consumo de
maconha e cocaína observado na vida foi maior na Região Sudeste,
com prevalências de 10,3% e 3,7%, respectivamente.6 Para
opiáceos, o consumo foi mais alto na Região Sul (2,7% dos
entrevistados).6 Para solventes, foi maior no Nordeste (8,4% dos
entrevistados).

TABELA 114.1 → Critérios do DSM-IV para diagnóstico de uso abusivo de substâncias


→ Padrão de uso disfuncional de uma substância levando a um comprometimento ou
desconforto clinicamente signi cativo, manifestado por um ou mais dos seguintes
sintomas:
→ Uso recorrente da substância, resultando na falência para preencher obrigações no
trabalho, na escola ou em casa.
→ Uso recorrente da substância em situações nas quais poderia haver dano físico.
→ Problemas legais recorrentes relacionados com o uso da substância.
→ Uso contínuo da substância apesar de ter um problema social ou interpessoal
persistente ou constante, ou que seria exacerbado pelos efeitos da substância.

→ Nunca preencher os critérios para dependência para esta substância.


Fonte: Adaptada de American Psychiatric Association.4
TABELA 114.2 → Critérios do DSM-IV para dependência de substâncias

Um padrão de uso disfuncional de uma substância, levando a um comprometimento ou


desconforto clinicamente signi cativo, manifestado por três ou mais dos seguintes sintomas,
ocorrendo durante qualquer tempo em um período de 12 meses:
→ Tolerância, de nida por um dos seguintes critérios:
→ Necessidade de quantidades nitidamente aumentadas da substância para atingir
intoxicação ou o efeito desejado.
→ Efeito nitidamente diminuído com o uso contínuo da mesma quantidade de
substância.
→ Abstinência, manifestada por um dos seguintes critérios:
→ Síndrome de abstinência característica da substância.
→ A mesma substância (ou outra bastante parecida) é usada para aliviar ou evitar
sintomas de abstinência.
→ A substância é frequentemente usada em grandes quantidades ou por período maior do
que o intencionado.
→ Um desejo persistente ou esforço sem sucesso de diminuir ou controlar a ingestão da
substância.
→ Grandes períodos de tempo utilizados em atividades necessárias para obter a substância,
usá-la ou recuperar-se dos seus efeitos.
→ Redução ou abandono das atividades sociais, recreacionais ou ocupacionais por causa do
uso da substância.
→ Uso continuado da substância, apesar do conhecimento de ter um problema físico ou
psicológico persistente ou recorrente que tenha sido causado ou exacerbado pela
substância.

Fonte: Adaptada de American Psychiatric Association.4

HISTÓRIA NATURAL E FATORES DE RISCO PARA


USO DE DROGAS
Nos estágios iniciais, os indivíduos que irão desenvolver um
transtorno pelo uso de substâncias são geralmente indistinguíveis de
seus pares. Um risco maior de dependência em adolescentes está
associado a episódios frequentes de intoxicação, uso de drogas com
maior potencial de dependência (cocaína, opioides) e preferência
pelas rotas de administração com início de efeito mais rápido
(injetável ou na forma de crack).
Muito se tem estudado para determinar a etiologia do uso de
drogas, principalmente na adolescência. Um artigo sobre o tema
revisou os fatores de risco nas esferas cultural e social, interpessoal,
psicocomportamental e biogenética e menciona alguns fatores de
proteção (TABELA 114.4).7
O entendimento sobre os mecanismos que levam à dependência
ainda está no começo, e sua origem é provavelmente multifatorial.
Acredita-se que a dependência química ocorra pela estimulação do
sistema de recompensa cerebral. O sistema de recompensa tem
participação fundamental na busca de estímulos causadores de
prazer. Por meio do reforço positivo da recompensa, obtida durante
a experimentação de uma substância psicoativa, o organismo é
impelido a buscá-la repetidas vezes, pois se cria uma memória
especí ca para isso, sendo a dopamina o principal neurotransmissor
responsável por esse mecanismo.
TABELA 114.3 → Prevalências do II Levantamento Domiciliar sobre o Uso de Drogas
Psicotrópicas no Brasil (2005)
NA VIDA ÚLTIMOS 12 MESES ÚLTIMO MÊS
SUBSTÂNCIA PSICOATIVA
(%) (%) (%)

Maconha 8,8 2,66 1,93

Solventes 6,1 1,18 0,29

Benzodiazepínicos 5,6 2,15 1,22

Estimulantes 4,1 0,57 0,16

Cocaína 3,2 0,74 0,24

Orexígenos 2,9 0,72 0,38

Esteroides 1,9 0,31 0,15

Xaropes (codeína) 1,3 0,57 0,29

Alucinógenos 1,1 0,33 0,16

Opiáceos 0,9 0,23 0,06

Crack 0,7 0,14 0,06

Merla 0,5 0,05 0,02

Barbitúricos 0,2 0,06 0,02

Heroína 0,09 0,00 0,00

Fonte: Adaptada de Carlini e colaboradores.6

Alguns fenômenos na modulação do funcionamento neuronal são


importantes para o entendimento dos mecanismos da dependência
química. A partir do uso repetido da droga, há uma necessidade
cada vez maior de se aumentar a dose da substância consumida para
se obter o mesmo efeito; esse fenômeno recebe o nome de tolerância.
O oposto da tolerância, ou seja, um aumento do efeito depois de
repetidas administrações da droga, é denominado sensibilização. A
abstinência ocorre quando o consumo da droga é interrompido ou
diminuído em grande escala. Assim, o sistema nervoso central
(SNC), cuja sensibilidade ao efeito da substância já foi modi cada
pelo uso repetido da droga, ca em desequilíbrio, provocando
sintomas opostos aos que a droga provocava no organismo. A
ssura, considerada um sinal de abstinência, pode ser entendida a
partir da diminuição da dopamina dentro do sistema de
recompensa.

QUANDO SUSPEITAR DO USO DE DROGAS


Indícios de uso abusivo de substâncias psicoativas podem ser
suspeitados pelos familiares, professores ou pro ssionais de saúde
na presença dos seguintes fatores:
→ Pouca tolerância em relação a frustrações e autoridade.
→ Alterações no humor, acessos de raiva, irritabilidade, agitação ou
apatia.
→ Mudanças bruscas do comportamento ou no humor.
→ Piora do desempenho na escola e no trabalho.
TABELA 114.4 → Fatores de risco e proteção para o uso de drogas
FATORES DE
DIMENSÃO FATORES DE RISCO
PROTEÇÃO

Culturais e sociais → Permissividade social → Ambiente


→ Disponibilidade de droga estável
→ Extrema privação econômica → Alto grau de
→ Morar em favela motivação
→ Forte vínculo
Interpessoais Na → Família com problema de conduta com os pais
infância relacionado com álcool ou drogas → Supervisão
→ Manejo familiar pobre e inconsistente parental e
Na adolescência disciplina
→ Con itos familiares e abuso físico ou consistentes
sexual → Ligação com
→ Eventos estressantes (como mudança de instituições
casa e escola) pró-social
→ Rejeição dos seus pares na escola ou em → Associação
outros contextos com amigos
→ Associação com amigos usuários com conduta
mais
convencional

Psicocomportamentais → Problema de conduta precoce e


persistente
→ Fracasso escolar
→ Vínculo frágil com a escola
→ Personalidade antis-social
→ Outras psicopatologias (transtorno de
dé cit de atenção e hiperatividade,
depressão e transtorno de conduta, ou
ansie-dade nas mulheres)
→ Inabilidade de esperar grati cação

Biogenéticos → Genealogia positiva para dependência


química
→ Vulnerabilidade psico siológica ao efeito
de drogas

Fonte: Adaptada de Simkin.7


→ Não participação nos esportes ou em outras atividades que
exigem esforço físico e mental.
→ Falta de motivação para as atividades comuns.
→ Con itos com a lei, por violação de regras de trânsito,
vandalismo e furtos.
→ Queixas físicas semelhantes às de uma “ressaca”: vômitos e
indisposição de estômago pela manhã, dor de cabeça, boca seca,
fadiga e sede.
→ Depressão, isolamento, comportamento manipulativo e mentira
sistemática.
→ Isolamento da vida familiar, de amigos, de atividades sociais, ou
então vida social exageradamente intensa.
→ Pensamento e discurso confusos.
→ Amnésia recente, não lembrando o que fez no dia anterior.
→ Dormir mais do que o costume ou em horários fora do usual.
→ Uso excessivo de produtos que refrescam o hálito e colírio (para
disfarçar os efeitos da maconha).
→ Uso de óculos escuros, mesmo sem excesso de luz, e de camisas
de mangas compridas, mesmo no calor.
→ Desaparecimento de objetos de valor ou presença de
comprimidos estranhos.
→ Voz pastosa, hálito alcoólico, falta de coordenação motora,
apatia, olhos avermelhados, pupilas dilatadas, agitação.
→ Hábito de fungar, mexer com frequência no nariz, falar com os
dentes cerrados, transpiração excessiva, tonturas, descon ança,
perda de apetite (cocaína).
→ Queimaduras nos lábios, língua e rosto (crack) e hiperemia
perioral (inalantes).
→ Paciente com conduta agressiva, reivindicadora e manipuladora
na unidade de saúde.
→ Sinais inespecí cos como pressão arterial elevada, arritmia
cardíaca.
→ Marcas de injeções.
É essencial orientar os pais de adolescentes sobre os indícios de
que seus lhos possam estar consumindo drogas. O caminho mais
seguro para os pais é informar-se o máximo possível sobre as drogas,
seja lendo artigos, participando de palestras ou debatendo questões
com quem conhece o assunto. Sabendo como elas agem no
organismo e como interferem no comportamento dos usuários,
poderão identi car precocemente as pistas deixadas pelo lho, caso
ele venha a se envolver com essas substâncias. Mais do que apenas
detectar, a família terá munição para enfrentar o problema da
melhor forma possível.

RASTREAMENTO
Atualmente, as evidências são insu cientes para recomendar ou
desaconselhar o rastreamento rotineiro de uso de drogas na APS.8
Quando se opta por fazer o rastreamento, podem ser usados
instrumentos como o Alcohol, Smoking and Substance Involvement
Screening Test (ASSIST) – um teste de triagem do envolvimento com
álcool, tabaco e outras substâncias que serve também para
classi car o tipo de uso. Esse questionário inclui oito perguntas
sobre nove classes de substâncias psicoativas. Cada resposta
corresponde a um escore, que varia de 0 a 4, sendo que a soma total
pode variar de 0 a 20. Considera-se a faixa de escore de 0 a 3 como
indicativa de uso ocasional, de 4 a 15 como indicativa de abuso e 16
como sugestiva de dependência.9
Grupos prioritários para o questionamento sobre o uso de
substâncias são adolescentes (ver entrevista de adolescentes no
Capítulo Acompanhamento de Saúde do Adolescente), adultos
jovens e gestantes.
ABORDAGEM INICIAL DA PESSOA COM
DEPENDÊNCIA QUÍMICA
É importante estabelecer, desde o início do atendimento, um
vínculo adequado com os pacientes usuários de substâncias. Muitas
vezes, eles chegam descon ados, desmotivados ou mesmo obrigados
por seus familiares. Com frequência também, a queixa que os traz é
outra, e eles não estão preparados para abordar a questão da
dependência química, estando muitas vezes na fase pré-
contemplativa. Quando o pro ssional de saúde levanta o problema
da dependência química de forma precipitada e confrontativa, o
paciente abandona o acompanhamento. Perguntas mais abertas e
não confrontativas ou preconceituosas reduzem a ansiedade do
paciente, a negação e resistência ao tratamento D 10,11 e o risco de
abandono do tratamento (RRR=34%; NNT=13) C .12 Essas
orientações, baseadas em técnicas de entrevista motivacional,13,14
são discutidas no Capítulo Abordagem para Mudança de Estilo de
Vida. A entrevista de familiares neste momento pode ajudar a
con rmar a veracidade das informações fornecidas pelo paciente e
introduzir a família no plano terapêutico.
A avaliação inicial consta de um exame clínico e alguns exames
complementares, a partir dos quais é proposto um plano
terapêutico.

Avaliação clínica
A avaliação clínica deve abordar as substâncias utilizadas e seu
padrão de uso, os tratamentos anteriores, as comorbidades clínicas e
psiquiátricas, a história familiar de doença psiquiátrica e uso de
drogas, o per l psicossocial e o exame do estado mental. No exame
físico, sempre deve ser realizado um exame neurológico, uma vez
que o impacto das substâncias psicoativas no SNC é signi cativo, em
alguns casos mesmo em indivíduos jovens.15

Substâncias usadas, padrão de uso e sintomas associados


As TABELAS 114.1 e 114.2 apresentam os itens que permitem os
diagnósticos para uso abusivo e dependência de drogas. Além das
perguntas relacionadas com esses diagnósticos, outras questões
devem ser incluídas rotineiramente:16-20
→ Padrão de uso: data de início do uso; di culdade de controle
após a primeira dose; doses e frequência do consumo; locais e
companhia para o consumo; velocidade ou tempo de consumo
para cada dose; efeitos e suas durações; principais situações que
precipitam o consumo; horários de consumo; data do último
consumo.
→ Sintomas associados: sintomas de abstinência; alterações do
apetite e do sono e outros sintomas; uso pela manhã para aliviar
sintomas de abstinência; períodos de abstinência voluntários
(“ressaca”); tolerância; ssura ou compulsão; juízo crítico em
relação ao consumo da substância; consequências físicas,
patológicas, sociais, familiares e legais; comportamentos de risco
como violência, sexualidade e acidentes; pensamento suicida;
mudança de valores/mentiras; motivação para parar ou reduzir o
consumo da substância; culpa pelo consumo; e di culdade de
recusar o uso.

Tratamentos anteriores
É importante investigar as modalidades de tratamento anteriores,
se o tratamento foi individual ou em grupo, hospitalar ou
ambulatorial, quais as medicações utilizadas e a resposta obtida com
cada tipo de tratamento. Deve-se questionar, também, sobre ideação
e tentativas de suicídio e atos de violência no passado. Estudos
mostram que intervenções de psicoeducação, medidas de restrição
aos meios letais (di cultar o acesso a armas, por exemplo) e
educação dos cuidadores têm impacto na redução dos suicídios D .
Essas medidas preventivas devem ser tomadas em qualquer suspeita
de risco de suicídio, e o paciente deve ser encaminhado a uma
emergência psiquiátrica acompanhado de um responsável.21,22
Outro aspecto relevante a ser observado é o comprometimento
com os tratamentos anteriores, isto é, se foram voluntários ou
impostos por familiares ou pela justiça. Em especial, uma linha de
tempo pode auxiliar a nortear o avaliador a respeito dos eventuais
sucessos e fracassos de abordagens anteriores. Todos esses aspectos
irão determinar as condutas no atendimento do paciente, podendo
ter importante efeito prognóstico.

Comorbidades psiquiátricas
O uso de drogas pode ser causa, consequência ou ocorrer em
paralelo a sintomas psiquiátricos. Quando a presença desses
sintomas parece representar um transtorno independente, além do
transtorno por uso de substância, isso identi ca um subgrupo de
pacientes com “diagnóstico duplo” ou com comorbidade, os quais
recebem um diagnóstico de transtorno por uso de substância
associado a outro transtorno psiquiátrico.
Deve-se elucidar cronologicamente a história do uso de drogas e
o início dos sintomas psiquiátricos, com o intuito de avaliar qual é a
hipótese mais plausível.23 O diagnóstico de outra comorbidade
psiquiátrica em um indivíduo que tem transtorno por uso de
substâncias é bastante complexo, visto que muitos dos sintomas
desencadeados pelo uso de álcool e outras drogas não apresentam
diferenças em relação àqueles desencadeados por outras patologias
psiquiátricas. Assim, o reconhecimento precoce do uso de drogas na
presença desses sintomas é fundamental para a escolha do
tratamento.24,25 É importante car atento para o início do sintoma
(se ocorreu antes ou depois do abuso de substâncias), para a história
familiar do indivíduo e principalmente para a manifestação de
sintomas durante períodos de abstinência.26
O Epidemiological Catchment Area (ECA-1990), realizado pelo
Instituto Nacional de Saúde Mental dos Estados Unidos,
entrevistando mais de 20.000 pessoas, sugeriu que pelo menos
metade das pessoas que abusam de álcool ou drogas apresentava
uma ou mais comorbidades nos últimos seis meses. Os diagnósticos
psiquiátricos mais comuns foram depressão, distimia e transtornos
de ansiedade.23 Também é importante car atento para o
diagnóstico de transtorno de dé cit de atenção e/ou hiperatividade
como comorbidade em usuários de substâncias psicoativas.27,28
Indivíduos com comorbidade psiquiátrica e abuso de substâncias
têm um prognóstico pior do que pacientes com apenas um desses
transtornos e são de difícil tratamento. Por isso, o primeiro ponto a
ser estabelecido é uma aliança terapêutica consistente, pois ela se
constitui em fator preditor do sucesso terapêutico.10 Esses pacientes
não respondem bem, em geral, a abordagens terapêuticas
direcionadas a apenas um dos transtornos, tornando-se necessário
combinar medicações e modi car as terapias psicossociais incluindo
abordagens para ambos.

História familiar de transtorno psiquiátrico e uso de drogas


Deve-se investigar a história familiar de doenças psiquiátricas,
visando facilitar o diagnóstico de comorbidades. É essencial,
também, saber sobre o uso de álcool e drogas na família,
especialmente para o planejamento terapêutico, pois o envolvimento
familiar no tratamento é de suma importância.
É fundamental lembrar que lhos de dependentes químicos
apresentam risco aumentado para violência física, desenvolvimento
de problemas físico-emocionais e di culdades escolares quando
comparados com lhos de pais não dependentes de substâncias
psicoativas. Dentre os transtornos psiquiátricos, apresentam maior
risco para o desenvolvimento de depressão, ansiedade, transtorno de
conduta e fobia social.29 O tratamento dos pais apresenta impacto
no desenvolvimento dessas crianças D .30

Perfil psicossocial
O funcionamento atual do paciente deve ser detalhado,
principalmente no que se refere a consequências familiares,
pro ssionais e afetivas (com parceiro sexual e amigos) e problemas
nanceiros. É relevante questionar sobre como o paciente consegue
dinheiro para a droga, sobre a venda de objetos pessoais ou da
família, envolvimento com polícia, prisão por porte ou trá co de
drogas e processos judiciais.

Exame do estado mental


O exame do estado mental é apresentado no Capítulo Avaliação
de Problemas de Saúde Mental. Deve-se observar se as alterações do
exame do estado mental são causadas pelo uso recente da droga
(intoxicação) ou por sua retirada (síndrome de abstinência). O uso
crônico dessas substâncias pode desencadear sintomas mentais
graves que se assemelham a várias síndromes psiquiátricas e
neurológicas. Já a intoxicação pela droga pode mascarar os
transtornos psiquiátricos, os quais se tornam evidentes somente
quando desaparece seu efeito agudo.19,31,32
Deve-se estar particularmente atento às alterações de humor
(depressão, hipomania ou mania) no passado ou na ausência do uso
de drogas.33 O período de abstinência necessário para a melhor
elucidação diagnóstica de tal sintomatologia varia entre duas e
quatro semanas e ainda não é consenso na literatura médica. Se os
sintomas persistem após um mês de abstinência da droga, é provável
que sejam decorrentes de uma doença psiquiátrica subjacente.18

Exame físico
Não existem sinais patognomônicos do uso de substâncias
psicoativas, mas alguns sintomas podem levantar suspeita do uso de
drogas:
→ Sonolência ou agitação
→ Alterações da marcha
→ Aceleração ou lenti cação da fala
→ Aceleração ou lenti cação do pensamento
→ Alterações da frequência cardíaca
Alterações da pressão arterial
→ Irritação nasal
→ Irritação das conjuntivas
→ Odor de maconha, inalantes ou outra substância psicoativa
→ Cicatriz indicativa de punção venosa nos membros superiores,
queimaduras nos dedos das mãos (crack)

Exames complementares
Os exames laboratoriais devem levar em consideração o tipo de
droga utilizado e os sintomas apresentados pelos pacientes. Alguns
órgãos e funções são mais tipicamente afetados pelo uso de
substância e devem fazer parte de uma rotina mínima de avaliação
laboratorial.
→ Abuso de álcool: TGO, TGP, GGT, hemograma (com foco especial
para anemia e aumento do VCM).
→ Drogas injetáveis ou associadas a comportamento sexual de
risco: anti-HIV, anti-HCV, anti-HBs, HbsAg e VDRL.
Os exames toxicológicos de urina, quando disponíveis, são muito
úteis se houver dúvida quanto ao relato do paciente e devem ser
utilizados em um contexto de colaboração entre paciente, avaliador
e familiares. Estão disponíveis os exames de tetraidrocanabinol
(maconha), benzodiazepínicos, cocaína, solventes, anfetaminas e
álcool. O tempo em que o exame urinário permanece positivo varia
de acordo com o tipo de droga e com o padrão de uso.
Em situações especiais, outros exames podem ser solicitados,
como espermograma, devido à diminuição da fertilidade ocasionada
pela maconha.

ABORDAGEM TERAPÊUTICA INICIAL


Após a avaliação inicial, é necessário de nir um plano de
tratamento junto com o paciente, que pode ser feito por meio de
intervenção breve por pro ssional de APS, encaminhamento para
um grupo terapêutico ou de autoajuda, avaliação ou tratamento com
psiquiatra e psicólogo e internação hospitalar ou em comunidades
terapêuticas. Além disso, muitas vezes é preciso recorrer à terapia
de família e ao auxílio de um assistente social.

Abordagem por pro ssionais da atenção primária à


saúde
Uma atitude de apoio adequada e concreta, sobretudo nas
primeiras fases do tratamento, deve ser adotada por toda a equipe.
Isso envolve cumprimentar calorosamente o paciente na sua entrada
à sala, restabelecer contato quando ele falta a uma consulta,
reconhecer as melhoras quando elas acontecem, ou atendê-lo
ocasionalmente em horários extras, caso seja necessário.

Intervenções psicossociais
Para pacientes menos graves e que não tenham recebido
tratamento anterior, podem ser utilizadas intervenções breves, com
bons resultados. Nos últimos anos, vários estudos têm demonstrado
que essas intervenções tendem a ser tão efetivas quanto os outros
tipos de psicoterapia, como a terapia cognitivo-comportamental
D .12,34-37

O objetivo da intervenção breve é desencadear no paciente uma


decisão de mudança em relação ao seu comportamento e estimulá-lo
a se comprometer com o tratamento. Ela deve ser precedida de uma
avaliação abreviada da gravidade dos problemas relacionados com
as drogas e dos comportamentos que contribuem para a
autoadministração da droga.
Identi cando-se um abuso ou dependência de substâncias
psicoativas, pode-se estruturar a intervenção breve de acordo com o
acrônimo FRAMES.38 Os principais ingredientes são:
→ Feedback: um resumo das avaliações feitas até o momento sobre as repercussões
da droga no paciente.
→ Responsability: a ênfase na responsabilidade pessoal do paciente pela mudança.
→ Advice: recomendações claras para que o paciente mude seus hábitos.
→ Menu: apresentação de um menu de opções para mudança.
→ Self-efficacy: empatia e reforço da autoeficácia.

O aconselhamento por pro ssionais não médicos, mediante


fornecimento de estrutura, monitoração e acompanhamento da
conduta, encorajamento da abstinência, encaminhamento para
emprego e serviços médicos, ou auxílio com questões legais, tem
sido associado a desfechos positivos no tratamento da dependência
química D .39,40 Os pacientes com maior di culdade de adesão ou
que não melhoram com o tratamento breve devem ser
encaminhados ao especialista, na maioria das vezes para um
psiquiatra com treinamento em dependência de drogas.

A família no tratamento
Devem ser investigados e abordados os problemas
sociofamiliares que podem estar reforçando o uso da substância.
Ferramentas de abordagem familiar usadas na APS podem ser úteis
nesse processo, como genograma, ecomapa, avaliação do ciclo de
vida, PRACTICE e conferência familiar (ver Capítulo Abordagem
Familiar) D . O uso abusivo de drogas pode ser visto como sintoma
de padrões familiares disfuncionais, que precisam ser considerados
para o sucesso do tratamento. Alguns exemplos frequentes são
con itos familiares graves, falta de diálogo e interação afetiva entre
os membros da família, educação excessivamente permissiva ou
autoritária, envolvimento materno insu ciente, pais que se
apresentam como “amigos” dos lhos, entre outros.41
Além disso, como frequentemente o médico de APS também
atende outros integrantes da família, tem a responsabilidade de
identi car e intervir em fatores familiares que podem estar
in uenciando ou sendo in uenciados pelo comportamento do
paciente, como depressão em outro integrante da família e crianças
em situação de vulnerabilidade. Muitas vezes é necessário o apoio
de um assistente social. Na presença de padrões familiares muito
disfuncionais, a intervenção por um terapeuta de família, se
disponível, pode ser útil. Mesmo que não se inclua uma nova
modalidade terapêutica, é de extrema importância a participação
dos familiares dos dependentes químicos no seu tratamento e
acompanhamento.

Estratégias de redução de danos


Os Programas de Redução de Danos são a forma predominante
de implantação da estratégia de redução de danos no Brasil,
consistindo em uma variedade de ações desenvolvidas nas
comunidades por agentes comunitários especiais, como a troca e
distribuição de seringas para usuários de drogas injetáveis,
preservativos, cachimbos para usuários de crack, atividades de
educação sobre o consumo de drogas, aconselhamento,
encaminhamento e reuniões comunitárias.42
É importante que os pro ssionais de APS estejam atentos a
iniciativas como essa na sua comunidade de atuação para
possibilitar o trabalho integrado intersetorial. Além disso, devem
oferecer orientações dentro da ótica da redução de danos para
pacientes que não estão motivados a abandonar o uso de
substâncias.

Estratégias de gerenciamento de casos


Muitas vezes, pacientes com dependência química necessitam de
manejo extremamente complexo, interdisciplinar, com altas taxas de
abandono do tratamento e necessidade de monitoramento constante.
Por esse motivo, pode-se aumentar a taxa de sucesso no tratamento
com a implementação de estratégias de gerenciamento de caso,
semelhantes ao proposto no Modelo de Atenção às Condições
Crônicas, aprofundado no Capítulo A Atenção às Condições
Crônicas. Intervenções desse tipo aumentam a taxa de vinculação a
espaços terapêuticos, sem, contudo, haver evidência conclusiva de
redução no uso de drogas ilícitas.43

Intervenções comunitárias
Atividades comunitárias como palestras em escolas, atividades
em sala de espera, estímulo a estratégias para restrição de acesso às
drogas, entre outras, podem ser exploradas de acordo com o
contexto local (ver Capítulo Educação em Saúde e Intervenções
Comunitárias).

Grupos de autoajuda
Os Narcóticos Anônimos (NAs) surgiram com o sucesso dos
Alcoólicos Anônimos e também são baseados no modelo dos 12
passos. O programa de 12 passos está associado a uma manutenção
da abstinência do uso de drogas ilícitas de 28% em dois anos.34 De
acordo com as diretrizes da American Psychiatric Association44 para
o tratamento do abuso de substâncias, há pouca evidência empírica
que apoie a e cácia desses grupos de autoajuda, mas a experiência
clínica sugere que sejam um adjunto importante no tratamento D .
Algumas considerações são importantes na decisão de
encaminhar um paciente para um grupo de autoajuda: há pacientes
que não se adaptam aos conceitos dos 12 passos, tampouco de
abordagens de cunho religioso. Pacientes jovens obtêm mais
benefício em grupos com pessoas da mesma idade e com indivíduos
mais velhos recuperados; indivíduos com comorbidades devem ser
encaminhados para grupos em que a medicação seja aceita e não
vista como mais uma forma de dependência D .

Encaminhamento
Alguns casos podem ser encaminhados ao especialista em saúde
mental já no início do acompanhamento: pacientes com suspeita de
comorbidade psiquiátrica, aqueles que não melhoraram com os
recursos disponíveis e os que já tiveram múltiplas tentativas de
abstinência sem sucesso. Por meio das técnicas de aconselhamento,
como mencionado antes, o paciente pode ser motivado a buscar esse
tipo de atendimento. Muitas vezes é importante que o pro ssional
tome uma posição ativa em ajudar o paciente na marcação de
consultas com o médico especialista, remova barreiras que possam
estar di cultando a procura do atendimento, sugira alternativas e
agende uma consulta de retorno para avaliar se o paciente aderiu ao
tratamento com outro pro ssional.38

Internação
Se o paciente é incapaz de cumprir com as mínimas solicitações
ou comparece às consultas muitas vezes intoxicado, provavelmente
demonstra um indício da gravidade da dependência e da
necessidade de hospitalização, ou mesmo de sua remoção para
algum ambiente que envolva mais estrutura e segurança para si e
para os técnicos que o atendem.
A internação hospitalar pode ser necessária quando o paciente
apresentar:
→ Condições médicas ou psiquiátricas que exijam observação
constante (estados psicóticos graves, ideação suicida ou
homicida, debilitação ou abstinência grave) e complicações
orgânicas devidas ao uso ou à cessação do uso da droga.
→ Di culdade para cessar o uso de drogas, apesar dos esforços
terapêuticos.
→ Ausência de adequado apoio psicossocial que possa facilitar o
início da abstinência.
→ Necessidade de interromper uma situação externa que reforce o
uso da droga.
Os transtornos mentais produzidos pelas drogas costumam ser
temporários, mas precisam ser tratados agressivamente com
medicação ou algum tipo de contenção externa (ambiental ou até
física, em alguns casos raros), para garantir a segurança do paciente.
Quando o paciente é capaz de participar ativamente do tratamento e
não tem história de sintomas de abstinência relevantes, pode-se
orientar uma desintoxicação em nível ambulatorial.19,45
A internação domiciliar psiquiátrica ainda não é uma prática
difundida no Brasil e tem como objetivo aumentar o processo de
descentralização em saúde mental. Algumas experiências com
dependentes químicos têm encontrado resultados promissores.
Porém, ela depende de uma boa estrutura familiar e de um serviço
de rede primária com disponibilidade para fornecer o suporte
necessário ao atendimento.20
As comunidades terapêuticas e as fazendas para tratamento de
dependentes químicos possuem as mais variadas orientações teóricas
e, em geral, utilizam uma loso a terapêutica baseada em
disciplina, trabalho e religião. As diretrizes da American Psychiatric
Association44 orientam que esse recurso seja reservado para
pacientes que necessitem de um ambiente altamente estruturado e
para aqueles cujo nível de negação do problema seja muito grande.
Algumas comunidades disponibilizam atendimento médico e
devem ser preferidas quando houver a possibilidade da indicação de
uso de psicofármacos em função de comorbidade ou por
dependência grave. Dados sobre a efetividade dessa modalidade de
tratamento são raros, considerando que somente 15 a 25% dos
pacientes admitidos voluntariamente completam os programas.
Segundo as diretrizes, estudos de acompanhamento de pacientes que
continuam no tratamento sugerem que um mínimo de três meses é
necessário para que se observe algum benefício, e que o melhor
resultado é obtido com tratamentos mais prolongados, de seis meses
a um ano D .

DROGAS DE USO FREQUENTE


Uma classi cação útil para as substâncias psicoativas é feita de
acordo com os efeitos mais proeminentes no SNC: depressoras,
estimulantes e perturbadoras (TABELA 114.5).46
As drogas depressoras tendem a diminuir a atividade motora e a
reatividade à dor e à ansiedade, sendo também comum um efeito
euforizante inicial e posterior sonolência; as estimulantes produzem
um aumento do estado de alerta, insônia e aceleração dos processos
psíquicos; e as perturbadoras geram diversos fenômenos psíquicos
anormais, como alterações sensoperceptivas (alucinações e ilusões) e
delírios.

Estimulantes do sistema nervoso central


Cocaína
A cocaína é um alcaloide preparado a partir das folhas da planta
Erythroxylon coca, originária dos altiplanos andinos. Quimicamente,
é conhecida como benzoilmetilecognina. As folhas de coca têm
concentração de cocaína de apenas 1%, enquanto a pasta básica tem
90%. A pasta básica pode ser fumada, mas não inalada. A substância
inalada é produto do tratamento do composto com éter, acetona e
ácido clorídrico, resultando em um composto com 85 a 97% de
cocaína. A meia-vida plasmática da cocaína é de aproximadamente
5 horas. Ela é transformada no fígado por pseudocolinesterases
plasmáticas e esterases em metabólitos hidrossolúveis que são
excretados na urina.
TABELA 114.5 → Classi cação das substâncias psicoativas
DEPRESSORES DO SNC

→ Álcool
→ Benzodiazepínicos
→ Barbitúricos
→ Opiáceos
→ Naturais: mor na, codeína
→ Sintéticos: meperidina, propoxifeno, metadona
→ Semissintéticos: heroína

ESTIMULANTES DO SNC

→ Cocaína
→ Nicotina
→ Anfetaminas e drogas de ação semelhante (anfetamínicos)
→ Cafeína
→ MDMA (ecstasy)

PERTURBADORES DO SNC

→ Derivados da Cannabis: maconha, haxixe, THC


→ Derivados indólicos: plantas e cogumelos
→ Sintéticos: LSD-25, MDMA (ecstasy)
→ Anticolinérgicos
→ Outras substâncias em doses adequadas

Fonte: Adaptada de Laranjeira e Nicastri.46

Vias de administração
O cloridrato de cocaína é vendido em graus variáveis de pureza,
já que a droga é frequentemente diluída com açúcar, procaína,
farinha, anfetamina e outros elementos. O cloridrato de cocaína
pode ser inalado, ingerido, absorvido pelas mucosas ou injetado
após diluição em água. O crack é um derivado da cocaína, abordado
mais adiante neste capítulo. A merla é a cocaína na sua forma de
base e pode ser fumada, sendo seu uso mais prevalente nas Regiões
Sudeste e Centro-oeste do Brasil.
O tempo de início, a duração e a intensidade dos sintomas estão
diretamente relacionados com a via de administração e são dose-
dependentes. Com o uso intranasal, observa-se o início dos efeitos
em minutos, pico em 10 minutos e duração de 45 a 60 minutos. Já a
via intravenosa apresenta início de ação em 10 a 15 segundos, sendo
o efeito máximo em 5 minutos e duração de cerca de 15 minutos.47

Efeitos agudos
O uso agudo produz efeitos semelhantes aos de um estado
hipomaníaco, com euforia, sensação de aumento de energia,
aumento da autoestima, diminuição da fadiga e da necessidade de
sono e aumento do desejo sexual.47 A euforia é o efeito mais
proeminente do seu uso e está relacionada com um aumento da
dopamina na fenda sináptica em regiões cerebrais relacionadas com
prazer e recompensa.
No sistema cardiovascular, os efeitos são semelhantes aos dos
simpaticomiméticos (aumento da frequência e intensidade de
contração cardíaca e aumento da pressão arterial), sendo que a sua
magnitude é dose-dependente. A cocaína é cardiotóxica e, quando
administrada em grandes quantidades, pode causar insu ciência
ventricular esquerda aguda, edema pulmonar, arritmias e morte.
Quando utilizada em conjunto com outras drogas, pode haver um
incremento de seus efeitos nocivos, como sucede com o álcool, em
que há formação de uma nova substância conhecida como
cocaetileno, que aumenta a toxicidade ao organismo.

Intoxicação
Quando a cocaína é consumida em doses que causam
intoxicação, pode haver perda da capacidade de julgamento,
grandiosidade, impulsividade, alucinações e extrema agitação
psicomotora. Há midríase, aumento da frequência cardíaca,
xerostomia, hiper-re exia, hipertermia, sudorese e alteração de
conduta. Psicoses paranoides e alucinações podem ocorrer.
Em casos de overdose, o quadro pode progredir para convulsões
do tipo grande mal e alta temperatura corporal (mais de 41°C). Em
indivíduos jovens com queixa de dor torácica, é importante pensar
em isquemia miocárdica por uso de cocaína. A morte geralmente
está relacionada com acidentes vasculares cerebrais e arritmias
cardíacas. Não há tratamento especí co para a intoxicação: ele deve
ser dirigido às complicações clínicas. Também há relatos de casos de
encefalopatia tóxica e coma.

Abstinência
A síndrome decorrente da abstinência de cocaína apresenta três
fases.48
A primeira fase (crash) inicia em torno de nove horas após o
último uso e permanece por cerca de quatro dias. Caracteriza-se por
depressão, agitação e anorexia, evoluindo para hiperfagia, fadiga,
insônia que progride para hipersonolência e intensa ssura por
cocaína.
A segunda fase inicia em uma semana e prolonga-se por cerca de
10 semanas, caracterizando-se por normalização do sono, humor
eutímico, ansiedade leve, anedonia (incapacidade de obter prazer),
anergia e grande ssura por cocaína, exacerbada por situações que
se relacionam com o uso prévio da droga.
A terceira fase, chamada de extinção, tem duração inde nida. O
paciente apresenta humor eutímico, retorno da capacidade de obter
prazer e ssuras esporádicas.48 Muitas vezes, o uso da cocaína serve
como uma forma de aliviar esses sintomas de abstinência (reforço
negativo). Não há medicação especí ca para a abstinência de
cocaína, e o tratamento é de suporte para a sintomatologia mais
evidente e desconfortável (ou de risco) para o paciente.49

Efeitos do uso crônico


À medida que o consumo torna-se crônico, os efeitos prazerosos
diminuem e surgem ansiedade, disforia, sonolência, sintomas
depressivos e paranoides, além de aumentar a ssura pela
substância. Podem aparecer disfunções sexuais, incluindo
impotência, incapacidade de ejaculação e diminuição do desejo
sexual. Outras complicações surgem de acordo com a via de uso: a
via inalatória pode ocasionar sangramento, congestão e coriza
contínuas, além de irritação, in amação, ulceração ou perfuração da
mucosa nasal.
O uso injetável pode ocasionar infecções cutâneas no local da
aplicação, endocardite bacteriana e infecções transmitidas pelo
compartilhamento de seringas, agulhas e outros acessórios, como
HIV e hepatites B e C. Esses achados reforçam a necessidade de se
investir em programas de atendimento e prevenção, focalizados em
informações quanto à limpeza de seringas e não compartilhamento
de instrumentos, assim como quanto ao uso adequado e sistemático
de preservativos masculinos e femininos.50
Além disso, diversos estudos vêm mostrando que o uso crônico
de cocaína está relacionado com um prejuízo em funções cognitivas
e de memória dos usuários, sendo desconhecido, no entanto, o
quanto deste dé cit precede ou é resultante do uso da
substância.51,52

Complicações obstétricas
A cocaína é capaz de transpor a barreira uteroplacentária, e
existem evidências de maior número de malformações,
principalmente cardíacas e geniturinárias, em fetos de mães que a
utilizam. O uso da droga aumenta a resistência vascular uterina, e os
bebês podem sofrer de grave hipoxemia. Parto prematuro, placenta
prévia, abortos espontâneos e ruptura precoce de membranas
também podem ocorrer. É importante ressaltar que a droga passa
para o leite materno, e os bebês podem sofrer de síndrome de
abstinência no pós-parto imediato, semelhante à dos adultos.

Tratamento farmacológico
Não há nenhum fármaco aprovado pelo Food and Drug
Administration (FDA) para o tratamento especí co da dependência
de cocaína. Vários medicamentos já foram testados, entre eles
carbamazepina, betabloqueadores, antipsicóticos e antidepressivos.
Contudo, a maioria dos resultados não é consistente para que essas
medicações possam ser indicadas isoladamente D .44 Da mesma
maneira, o uso de dissul ram no tratamento da dependência à
cocaína não se mostrou efetivo C .53 Recentemente, tem-se investido
em nível experimental no aperfeiçoamento de vacinas capazes de
gerar anticorpos na corrente sanguínea que bloqueariam ou, ao
menos, reduziriam a passagem de cocaína e crack pela barreira
hematoencefálica em seres humanos.53,54

Crack
O crack foi descrito na década de 1980 por socioetnógrafos
americanos, apontando para uma nova e potente forma de uso da
coca. É formado dissolvendo-se a cocaína em uma base forte,
geralmente bicarbonato de sódio, extraindo-se a base livre com um
solvente, e então os separando. É vendido em forma de pequenas
pedras que, ao serem aquecidas, fazem um estalido peculiar (o
crack) ao se volatizarem, podendo assim ser fumadas.55
No Brasil, o crack chegou cerca de 10 anos mais tarde, e se
espalhou de maneira muito rápida. O quinto levantamento realizado
entre alunos do ensino médio e fundamental das escolas públicas do
Brasil constatou que 0,7% dos estudantes até 18 anos de idade já
usaram crack pelo menos uma vez na vida.56
O uso do crack vem sendo cada vez mais associado a
criminalidade, agressividade e mortalidade precoce dos usuários.
Um estudo brasileiro avaliou 131 usuários de crack/cocaína quanto
à relação do uso da droga com mortalidade, apontando que os
usuários de crack têm maior risco de morte do que a população
geral, sendo os homicídios e a AIDS as causas mais observadas. Mais
da metade das mortes foi relacionada com homicídios, enquanto um
quarto delas tiveram relação com contaminação por HIV.57
Outro estudo realizado em São Paulo mostrou que mulheres
envolvidas com sexo comercial e que usavam crack colocavam-se em
situações de maior vulnerabilidade e apresentavam maior
di culdade para se proteger de doenças sexualmente
transmissíveis/AIDS por meio do uso de preservativos.58 Um estudo
realizado na cidade de São Paulo mostrou que o per l do usuário de
crack é de uma população predominantemente masculina, jovem,
solteira, de baixa classe socioeconômica, baixo nível de escolaridade
e sem vínculos empregatícios formais. Em relação ao padrão de uso,
o tipo mais frequentemente citado foi o uso repetitivo da droga e
concomitante ao uso de múltiplas drogas. Além disso, identi cou-se
um padrão de uso controlado (não diário) de crack, que pôde ser
conseguido por meio de técnicas comportamentais de controle
aprendidas com ex-usuários.59
O crack é comumente fumado no Brasil com a utilização de latas
de alumínio furadas e com o auxílio de cinzas de cigarro, que
aumentam a combustão.55 A droga apresenta início de ação em 10 a
15 segundos, sendo o efeito máximo em 5 minutos e com duração
de cerca de 15 minutos.47 Um estudo foi realizado com 71 usuárias
de crack para investigar o impacto do uso em latas de alumínio no
Brasil, visto que este é um metal que pode provocar dano
neurológico. O estudo mostrou que as usuárias de crack
apresentavam maiores níveis séricos de alumínio, porém mais
estudos são necessários para se con rmar tal associação.60
Os efeitos agudos e crônicos do uso de crack são semelhantes aos
da cocaína, visto que é um derivado desta. Porém, o pico de efeito
mais rápido, mais intenso e de menor duração proporciona maior
predisposição à dependência. Os efeitos estimulantes do crack se
dissipam em cerca de 5 a 10 minutos, restando um desejo muito
forte pela obtenção da nova dose. O uso crônico do crack, além de
provocar danos semelhantes aos do uso da cocaína inalada, produz
maiores alterações pulmonares, com diminuição da capacidade
pulmonar e o “pulmão de crack”, caracterizado por dor no peito,
falta de ar e tosse com escarro hemoptoico.
O tratamento dos usuários de crack é bastante complexo e há
poucos estudos investigando técnicas terapêuticas para eles. A
maioria dos autores a rma que a abordagem deve ser
multidisciplinar, focada em estratégias de prevenção, manejo do
craving e prevenção de recaídas, envolvendo um atendimento
biopsicossocial e técnicas cognitivo-comportamentais D . Ainda não
existe medicação considerada e caz para o tratamento da
dependência de crack.55,61

Anfetaminas
Anfetaminas são substâncias estimuladoras do SNC, capazes de
provocar sintomas de euforia, aumento da vigília, efeitos
anorexígenos e aumento da atividade autonômica.27 Anfetamina,
dextroanfetamina, metanfetamina e vários outros sais são
coletivamente referidos como anfetaminas. O número de abusadores
de anfetamina no mundo todo chega a um total de 34 milhões de
pessoas, extrapolando o número de abusadores de cocaína e
heroína.62 O uso indevido dessas medicações na população
brasileira é feito principalmente como anorexígenos.

Vias de uso
As anfetaminas podem ser usadas por ingestão oral, inaladas,
injetadas, e o ice (hidrocloreto de metanfetamina cristalizado), que
pode ser fumado, já começou a ser utilizado.

Efeitos agudos
As anfetaminas são estimulantes poderosos e, mesmo em baixas
doses, podem aumentar a energia, a atividade física, diminuir o
apetite, provocar inquietação, ansiedade, aceleração da fala e do
pensamento, irritabilidade, midríase, taquicardia, elevação da
pressão arterial, cefaleia, tremores, calafrios e labilidade emocional.
Há risco de eventos cardiovasculares como infarto e arritmias,
especialmente em pessoas com história prévia de problemas
cardíacos. Outros efeitos são aumento da atenção, euforia,
hipertermia e taquipneia.
Quem fuma ou injeta anfetamina descreve um rush, uma
sensação intensa e breve de prazer. A inalação e a ingestão oral
produzem um high (leve euforia) que pode durar até 12 horas. A
inalação produz efeitos agudos em 3 a 5 minutos, pico plasmático
após 10 a 30 minutos, e tempo de ação entre 2 e 3 horas. Acredita-
se que tanto o rush quanto o high resultem da liberação de altos
níveis de dopamina em áreas do cérebro que regulam as sensações
de prazer.63
A metanfetamina tem uma estrutura semelhante à da anfetamina
e um alto potencial aditivo. É conhecida por diversos nomes, como
speed, crystal, ice, entre outros. Difere da anfetamina por sua maior
capacidade de atravessar a barreira hematoencefálica e chegar em
maiores concentrações no SNC. Tem a forma de pó cristalizado
branco que pode ser facilmente dissolvido em álcool ou água. Os
abusadores tendem a utilizar a droga na forma de binges (mais de
cinco vezes em uma única ocasião), sobretudo pelo seu longo tempo
de meia-vida (10 horas). Pode ser utilizada por via oral, nasal ou
intravenosa.64

Intoxicação
As anfetaminas podem causar uma grande variedade de sintomas
em doses elevadas, como taquicardia, arritmia, elevação da pressão
arterial, midríase, sudorese, febre, convulsões, náuseas, vômitos,
irritabilidade, inquietude e agressividade. Em casos mais graves,
pode ocorrer acidente vascular cerebral, infarto agudo do miocárdio,
coma e morte.

Uso crônico
Indivíduos com uso crônico em geral apresentam sintomas de
comportamento violento, ansiedade, confusão e insônia. Além disso,
pode ocorrer psicose anfetamínica, sendo mais comum a ideação
paranoide acompanhada de ideias de referência e de um delírio bem
estruturado. Usuários crônicos podem apresentar diversas
anormalidades na química, estrutura e função cerebral. As áreas
mais atingidas são os núcleos da base, regiões com maior
concentração de dopamina. Os efeitos são bastante evidentes em
relação a uma acelerada deterioração da capacidade cognitiva,
prejuízo da memória, da atenção e da execução de tarefas.65 Com o
uso contínuo da droga, podem ocorrer alucinações e movimentos
estereotipados.
Estudos em animais sugerem que o uso crônico possa lesar
células cerebrais, principalmente neurônios serotoninérgicos e
dopaminérgicos.63 O tratamento da psicose anfetamínica deve ser
realizado com antipsicóticos D , mas há poucos estudos avaliando a
história natural da psicose anfetamínica e o risco/benefício do
tratamento antipsicótico.66

Dependência e abstinência
Para o diagnóstico de dependência de anfetaminas, podem-se
utilizar os critérios diagnósticos para dependência de substâncias do
DSM-IV (ver TABELA 114.2). A dependência de anfetaminas parece
ser mais difícil de ocorrer em contextos clínicos, quando o paciente
observa corretamente a prescrição médica. Entretanto, devido à
capacidade de induzir euforia, esta droga tem potencial de abuso e,
em alguns casos, pode gerar dependência. A tolerância aos efeitos
euforizantes e anorexígenos pode desenvolver-se rapidamente. Os
sintomas de abstinência mais comuns são depressão, hiperfagia,
hipersonia e isolamento, e esses sintomas tendem a remitir em
poucos dias.

Tratamento
Nos quadros de intoxicação aguda, ansiolíticos
benzodiazepínicos podem ser utilizados em doses usuais D .67
No tratamento da dependência de anfetaminas, a abordagem
psicoterápica do tratamento se assemelha à dos outros tipos de
dependências; quanto à abordagem medicamentosa, as evidências
têm se mostrado inconclusivas.68 Observou-se benefício com
bupropiona e naltrexona na manutenção da abstinência D , mas seu
uso não está estabelecido.62 Não foi observado benefício com o uso
de outros antidepressivos (inibidores da recaptação da serotonina,
tricíclicos e inibidores da enzima monoaminoxidase), bem como
com drogas como baclofeno e ondansetron D .65,69

Ecstasy – metilenodioximetanfetamina (MDMA)


O MDMA (3,4-metilenodioximetanfetamina), também conhecido
como ecstasy, foi sintetizado no início do século XX na Alemanha,
como uma medicação supressora do apetite. Porém, só passou a ser
comercializado como uma medicação coadjuvante da psicoterapia a
partir de 1970, para ajudar os pacientes a aprimorarem suas
capacidades comunicativas com o terapeuta. No entanto, o potencial
de abuso do ecstasy foi logo reconhecido e as autoridades europeias
e americanas proibiram a comercialização da substância.24 Na
década de 1980, emergiu nas festas rave, possibilitando, pelas
propriedades estimulantes, que os usuários dançassem durante
horas.
Pesquisas organizadas nos Estados Unidos e na Europa
mostraram que o consumo de ecstasy vem se espalhando e
aumentando. Na Inglaterra, foi encontrada uma prevalência de
consumo de ecstasy na vida de 13% e, nos Estados Unidos, a
prevalência de consumo entre estudantes universitários era de 4,7%
no ano de 1999.70
O ecstasy é tipicamente utilizado por via oral, em geral na forma
de cápsulas ou tabletes, e seu efeito dura de 3 a 6 horas,
dependendo da dosagem. Cada comprimido contém cerca de 50 a
150 mg da substância ativa. As preparações são consideradas 90%
puras e algumas delas são misturadas a outras substâncias
psicoativas como LSD, cafeína, cetamina ou outras anfetaminas.71

Uso agudo
Estudos com animais mostraram que o MDMA compartilha
propriedades tanto alucinógenas (LSD-like) quanto estimulantes
(anphetamine-like). Os efeitos buscados pelos usuários são aumento
de energia, aumento da libido, diminuição da fadiga e sono, euforia,
bem-estar, maior sociabilidade, extroversão e sensação de
proximidade com as pessoas. Logo após sua utilização, o ecstasy
provoca agudamente uma sensação de euforia, aproximação com os
outros, aumento da capacidade perceptiva sensorial, principalmente
visão e tato, uma sensação de extremo bem-estar e melhora das
capacidades comunicativas. A indução de alucinação ocorre em
doses altas.72 Os efeitos desagradáveis são aumento da tensão
muscular (bruxismo, movimentos constantes das pernas), cefaleia,
náuseas, perda de apetite, visão borrada, boca seca, insônia,
alucinações, ansiedade, agitação e comportamentos bizarros. Pode
também produzir aumento na frequência cardíaca e pressão arterial.
A eliminação da droga é lenta (a meia-vida é de cerca de oito
horas), levando em torno de 40 horas para que 95% da droga seja
eliminada, com persistência de alguns efeitos por um ou dois dias.
Além disso, determinados metabólitos são farmacologicamente
ativos, prolongando ainda mais os efeitos.66 A farmacocinética do
ecstasy ocorre de forma não linear, o que signi ca que doses mais
elevadas da substância podem causar aumentos desproporcionais
nos níveis plasmáticos. O nível plasmático em torno de 8 mg/L é
considerado intoxicação grave, e casos fatais podem ter níveis
plasmáticos de 6 a 70 vezes maiores.71,73
Depois de um ou dois dias do uso, os pacientes queixam-se de
di culdade de concentração, depressão, ansiedade e fadiga. Além
disso, confusão, depressão, distúrbios do sono, ansiedade e paranoia
foram encontrados até semanas após o uso da droga.

Intoxicação
Há quatro tipos de toxicidade grave causados pela droga:
hepática, cardiovascular, cerebral e pirética.
A toxicidade hepática em geral é leve e lembra uma hepatite
viral, com recuperação em um período de algumas semanas a meses,
mas pode haver casos graves com progressão rápida para
insu ciência hepática fulminante, que tende a ser fatal a menos que
ocorra transplante hepático.
A toxicidade cardíaca manifesta-se por um grande aumento da
pressão arterial e da frequência cardíaca, o que pode provocar
insu ciência cardíaca, hemorragia cerebral e trombose vascular. A
sudorese intensa que surge com o uso em festas resulta da atividade
física vigorosa, da ação direta da droga no centro termorregulador e
do ambiente quente, levando ao aumento da temperatura corporal e
à ingestão aumentada de água. Não havendo reposição adequada de
sódio, pode ocorrer hiponatremia, a principal condição responsável
pela toxicidade cerebral, ocasionando convulsões e edema cerebral
e, às vezes, levando à morte.
A hiperpirexia resultante pode causar rabdomiólise,
mioglobinúria e insu ciência renal, dano hepático e coagulação
intravascular disseminada. O tratamento da hipertermia é
principalmente sintomático, sendo essencial o seu reconhecimento
precoce. Está indicado um resfriamento rápido do corpo, associado à
infusão de solução salina, lavagem gástrica e da bexiga com uidos
resfriados, além de suporte geral.74 O dantrolene, utilizado em
hipertermia maligna, tem sido empregado em alguns casos com
melhora rápida.74

Uso crônico
Diversos estudos apontam para uma neurotoxicidade produzida
pelo MDMA, sobretudo no sistema serotoninérgico mesmo após
meses de abstinência.75 Há evidências de que ocorra prejuízo da
memória tanto verbal quanto visual, proporcionalmente à
intensidade de uso prévio do MDMA, prejuízo de funções executivas,
processamento de informações, raciocínio lógico e solução de
problemas simples, maior impulsividade e perda de autocontrole,
ataques de pânico, delírios paranoides, alucinações,
despersonalizações, ashbacks e mesmo episódios psicóticos
recorrentes, ocorrendo algum tempo após o indivíduo ter parado o
uso da droga.
Além disso, podem surgir, também, episódios de depressão
grave, resistente a qualquer outro tratamento que não seja com
inibidores da recaptação de serotonina. Do ponto de vista físico, os
sintomas mais comuns são bruxismo, dores musculares e prejuízo do
controle da pressão arterial e frequência cardíaca pelo sistema
autonômico.74

Dependência
Não há evidências de que o MDMA cause uma síndrome de
dependência nos padrões propostos pelo DSM-IV. Já foi
demonstrado que o ecstasy pode causar dependência psicológica,
porém a dependência siológica ainda gera discussões. Não há
relatos de casos de craving pela droga e existem relatos controversos
em relação à síndrome de abstinência. No entanto, a droga pode
induzir tolerância e uso de doses cada vez maiores apesar dos
conhecimentos do risco.73

Tratamento
Não há evidências de tratamentos farmacológicos especí cos
para abuso de ecstasy. Como é uma droga pouco associada a
experiências não prazerosas, a simples informação dos malefícios do
uso não parece trazer muitos resultados. O tratamento para aqueles
que desejam parar de usar a substância deve basear-se em
estratégias para evitar o consumo e para evitar locais onde o uso
possa ser estimulado.76

Perturbadores da sensopercepção
Maconha
A Cannabis é uma planta originária da Ásia. Há duas espécies
mais conhecidas: a Cannabis sativa e a Cannabis indica. Sua principal
substância ativa é o delta-9-tetraidrocanabinol (Δ-9-THC), sendo que
sua concentração é progressivamente maior no caule, nas folhas e na
or. Em geral, a maconha obtida nos centros urbanos é uma mistura
de várias partes da planta. O haxixe é proveniente da compressão da
planta e das ores, que forma uma resina com concentração de THC
em torno de 10 a 20%, enquanto no cigarro de maconha esse
número varia entre 1 e 10%.46

Dependência, tolerância e abstinência


A maconha pode levar à dependência, e seu diagnóstico segue os
mesmos critérios já descritos para a dependência de substâncias em
geral.16 Ela também causa tolerância a vários de seus efeitos,
incluindo euforia e efeitos sistêmicos.77 Todavia, a caracterização de
uma síndrome de abstinência clinicamente relevante é controversa.
Devido à di culdade de quanti car seus níveis séricos, não há doses
formais de nidas que produzem a dependência, e seu risco acaba
sendo proporcional à extensão do consumo. Entretanto, a maioria
dos usuários não se torna dependente. Uma minoria desenvolve uma
síndrome de uso compulsivo semelhante à dependência de outras
drogas,78 presente quando, na abstinência, ocorrem sintomas como
inquietação, insônia, ansiedade, desejo pela droga, agressividade,
anorexia e tremores musculares.77,79,80

Efeitos agudos
O uso da maconha provoca euforia e relaxamento, alterações da
sensopercepção, distorção do tempo e intensi cação de experiências
sensoriais comuns como comer, assistir a um lme ou ouvir música.
Além disso, há diminuição da memória recente e da atenção, da
habilidade motora e do tempo de reação durante o período de
intoxicação. Os efeitos desagradáveis mais comuns, principalmente
em usuários ocasionais, são ansiedade e reações de pânico. A
toxicidade aguda é muito baixa, não havendo casos con rmados de
morte por intoxicação por maconha.81

Efeitos do uso crônico


Existem vários estudos sobre os efeitos do uso crônico de
maconha em animais mostrando alterações do sistema imunológico,
diminuição da secreção de testosterona e da produção, mobilidade e
viabilidade dos espermatozoides, interrupção do ciclo ovulatório e
risco aumentado de câncer orofaríngeo e de esôfago. Os estudos
dessas alterações em humanos são inconclusivos ou inconsistentes.
Sabe-se que o uso crônico de maconha em grande quantidade está
associado a aumento de sintomas de bronquite, como tosse, secreção
das vias aéreas e sibilos; no entanto, a diminuição da função
pulmonar é controversa.81
Com relação aos efeitos cognitivos, há evidências su cientes na
literatura de que o usuário crônico de maconha mantém diminuição
das capacidades de memória, atenção e habilidade de processar
informações complexas mesmo quando não está intoxicado, e que
essas alterações podem permanecer por semanas, meses ou anos
após cessado o uso. Não está claro se há alteração cognitiva
permanente.77 Estudos de neuroimagem também são controversos
para demonstrar dano permanente na estrutura cerebral, mas há
uma pequena evidência de que usuários crônicos de maconha que
iniciaram seu uso na adolescência possam apresentar algum tipo de
atro a cerebral, bem como redução da massa cinzenta. Estudos de
neuroimagem funcional relatam aumento na atividade neural em
regiões que podem estar relacionadas com intoxicação por Cannabis
e com alteração do humor.82
Foi proposta na literatura, como uma consequência do uso
crônico de maconha, a chamada síndrome amotivacional,
caracterizada por diminuição da energia, além da di culdade de
persistir em qualquer tarefa que exija atenção prolongada ou
tenacidade, mas acredita-se que esta possa advir dos próprios
sintomas da intoxicação. As evidências a favor dessa síndrome são
baseadas apenas em estudos não controlados em usuários crônicos, e
a validade de tal diagnóstico permanece incerta.83
Há evidências mostrando que doses altas de THC possam
desencadear uma psicose tóxica, com desorientação e amnésia
subsequente, alucinações, delírios paranoides, despersonalização e
alterações de humor, podendo ocorrer labilidade do humor e
sintomas maníacos. Quando não há doença psiquiátrica prévia, o
quadro regride totalmente em poucos dias. Outra situação possível é
uma psicose aguda que lembra a esquizofrenia, mas sem a amnésia e
a confusão da psicose tóxica, com os sintomas melhorando em cerca
de uma semana e respondendo a doses baixas de antipsicóticos.
Quando comparados a outros quadros psicóticos, os quadros
induzidos por maconha são mais curtos, e os sintomas mais
prolongados são, provavelmente, manifestação de uma doença
psiquiátrica subjacente. Não há evidências fortes de que a maconha
possa levar a uma psicose crônica, que persista após a abstinência. A
relação com esquizofrenia também não está totalmente estabelecida,
mas as evidências apontam com maior clareza que a maconha pode
ser um fator estressor para o desencadeamento de quadros psicóticos
e de esquizofrenia em pacientes predispostos.83

Tratamento
O tratamento psicoterápico para abuso/dependência de maconha
é semelhante ao dos outros tipos de dependência, havendo evidência
de resultados positivos com intervenções cognitivas
comportamentais e motivacionais, sobremaneira se aplicadas
concomitantemente. Dentre as intervenções comportamentais, são
enfatizadas aquelas direcionadas para melhorar estratégias de coping
(o conjunto das estratégias utilizadas para lidar com uma situação
adversa) para cessar o uso de maconha, bem como estratégias para
lidar com situações que podem desencadear esse uso. Analisar com
o paciente estratégias para lidar com a ssura e para conseguir
evitar o uso da substância são exemplos destas. Além disso,
intervenções psicoterápicas de família podem auxiliar os outros
membros da família a controlarem o uso da substância e ajudarem o
paciente a manter a abstinência. Nesse aspecto, técnicas de manejo
de contingência mostraram resultado.84
Mais estudos são necessários para avaliar a e cácia das
medicações no tratamento da síndrome de abstinência à maconha.
Alguns estudos testaram a e cácia de determinadas medicações,
como ácido valproico, naltrexona e nefazodona, na melhora dos
sintomas de abstinência, porém os resultados foram inconclusivos
D .85,86 O uso da bupropiona parece causar piora nos sintomas de
abstinência, como irritabilidade e depressão D ,87 e a administração
oral de THC parece reduzir alguns sintomas de ansiedade, alterações
de sono e ssura D .85

Depressores do sistema nervoso central


Opioides
As palavras “opioides” e “opiáceos” são derivados da palavra
“ópio”, palavra grega que signi ca “suco”, forma pela qual a
heroína é obtida da papoula. A papoula contém 20 alcaloides do
ópio, entre eles a mor na. Opiáceo é qualquer preparado ou
derivado do ópio, e opioide é um narcótico sintético que se
assemelha a um opiáceo na sua ação, mas que não é derivado do
ópio. O DSM-IV utiliza somente o termo opioide, abrangendo
ambos, o que é mantido neste capítulo.
No Brasil, o uso de heroína ainda é incipiente, comparado com
alguns países europeus e com os Estados Unidos. Contudo, o abuso e
a dependência de outros opioides com utilidade clínica não são tão
incomuns, principalmente entre pacientes que receberam prescrição
médica ou entre pro ssionais da saúde, que têm maior acesso a
essas drogas, sabem dos seus efeitos e se automedicam.

Efeitos agudos
Os efeitos agudos são analgesia, sonolência, alterações do humor,
euforia, apatia, di culdade de concentração, náuseas e vômitos.

Tolerância e dependência
A tolerância desenvolve-se rapidamente com a maioria dos
opioides, em especial com os analgésicos mais potentes; a
necessidade de aumento de dose para alguns efeitos pode chegar a
100 vezes. Os opioides são substâncias muito potentes em sua
capacidade de causar dependência, que varia diretamente com a
potência da droga em particular, a dose ingerida e o período de
exposição.
Intoxicação
Cerca de 50% dos usuários de heroína apresentam ao menos um
episódio de overdose relevante. Os sintomas especí cos variam de
acordo com a droga, com o tempo de uso e com as condições gerais
do paciente. Os sintomas são os seguintes: depressão respiratória,
palidez ou cianose, pupilas mióticas, hiperemia da mucosa nasal (se
a droga foi inalada), edema pulmonar, arritmia cardíaca e
convulsões, podendo acontecer morte por depressão respiratória e
edema pulmonar e/ou cerebral.
No tratamento, utiliza-se naloxona, um antagonista opioide,
além de suporte clínico D .17 Segundo as diretrizes para o
tratamento de pacientes com síndrome de dependência de opioides
no Brasil, pode-se administrar 0,8 mg de naloxona por via
intravenosa (IV), esperando que o paciente acorde. Se não houver
resposta, pode-se administrar 1,6 mg de naloxona IV. Se mesmo
assim não houver resposta em 15 minutos, serão administrados 3,2
mg de naloxona IV, aguardando-se mais 15 minutos. Se ainda assim
não houver resposta, que pode ser caracterizada por midríase,
agitação, melhora no nível de consciência e do padrão respiratório,
é necessário revisar imediatamente o diagnóstico de intoxicação por
opioides.88 Em indivíduos dependentes de opiáceos, o uso de
naloxona pode precipitar uma síndrome de abstinência que deve ser
tratada.

Abstinência
Como regra, as substâncias de curta ação tendem a produzir
síndromes breves e intensas de abstinência e as de mais longa ação
produzem síndromes prolongadas, porém leves. Os sintomas de
abstinência de mor na e heroína iniciam-se entre 6 e 8 horas após a
última dose, alcançam intensidade máxima no segundo ou terceiro
dia e cedem nos próximos 7 a 10 dias. Os sinais e sintomas
principais incluem ssura intensa, dilatação pupilar, inquietação,
irritabilidade, insônia, taquicardia, hipertensão, náuseas, vômitos,
cólicas, piloereção, rinorreia e lacrimejamento. No tratamento, são
utilizadas medidas de suporte e fármacos para aliviar os sintomas.

Tratamento da dependência
O tratamento visa diminuir os sintomas de abstinência, o desejo
de usar a droga ( ssura), o número de recaídas e a dose da
substância em questão. Pacientes ambulatoriais podem obter melhor
resultado em atingir e manter a abstinência de opioides quando a
abstinência é realizada por períodos mais longos e sob supervisão
médica. Pacientes ambulatoriais com abstinências iguais ou
inferiores a quatro semanas provavelmente têm menos recaída do
que aqueles cuja abstinência dura 26 semanas. Abstinências mais
breves são possíveis e em geral obtêm êxito quando realizadas e
supervisionadas em ambiente hospitalar D .88
Como a dependência de opiáceos é pouco frequente no Brasil, o
tratamento em geral é feito por especialista em dependência
química. A utilização da metadona reduz em 34% o risco de uso de
opioides (NNT=5) A ,89 porém seu emprego no Brasil é feito
principalmente em ambiente hospitalar. Em ambientes
ambulatoriais, o tratamento de manutenção é realizado, em geral,
com buprenor na, que mostrou e cácia na manutenção do
tratamento com médias e altas doses A , embora apresentando
resultados inferiores aos da metadona B .84 A naltrexona e a
clonidina podem ser úteis na manutenção D , em especial para
controle de sintomas de retirada, mas seu benefício na manutenção
da abstinência é incerto.90,91

Inalantes
São substâncias voláteis que podem ser inaladas com o intuito de
obter efeitos psicoativos. Apesar de outras substâncias de abuso
também serem empregadas por via nasal, o termo “inalantes” é
usado para descrever uma variedade de substâncias cuja
característica comum é o fato de não serem utilizadas por outra via.
Essa de nição abrange uma grande variedade de drogas encontradas
em centenas de produtos químicos que podem ter efeitos
farmacológicos diferentes. No Levantamento Nacional sobre o Uso
de Drogas entre Crianças e Adolescentes em Situação de Rua,
realizado em 2003, foi identi cada uma prevalência do uso de
inalantes em 16,3% dos entrevistados, variando o tipo de inalante
conforme a região.92
A categorização precisa dos inalantes é difícil devido aos
diferentes tipos de substâncias. Um sistema de classi cação divide-
os em quatro categorias gerais:17
→ Solventes voláteis: líquidos que vaporizam na temperatura
ambiente, incluindo removedores de tinta e esmaltes, thinners,
líquidos corretivos, gasolina, colas, desengraxantes. Os
compostos aditivos principais são tolueno, butano, isopropano,
tricloretileno, acetona e tricloroetano.
→ Aerossóis: sprays que contêm propelentes e solventes (sprays de
tinta, sprays de cabelo, desodorantes, protetores de tecido). As
principais substâncias são butano, propano e uorcarbonados.
→ Gases: incluem anestésicos (éter, halotano e óxido nitroso) e
outros gases encontrados em produtos comerciais, como
isqueiros com butano, tanques de propano e garrafas de chantilly.
→ Compostos de nitrito: encontrados principalmente em
odorizadores de ambientes cujos principais compostos são
cicloexil nitrito, isoamil (amil) nitrito e isobutil (butil) nitrito.

Uso agudo
Vários sistemas cerebrais podem estar envolvidos nos efeitos
anestésicos, intoxicantes e reforçadores dos diferentes inalantes.
Quase todos (menos os nitritos) produzem efeitos prazerosos
mediante depressão do SNC. A maioria produz um efeito rápido que
lembra a intoxicação alcoólica com excitação inicial e posterior
sonolência, desinibição, tontura e agitação. Quando quantidades
elevadas são inaladas, quase todos produzem anestesia, hipoestesia e
mesmo inconsciência.93 A intoxicação fatal é rara, mas quando o
óbito acontece, geralmente resulta de as xia pelo próprio material
em que a droga é colocada (p. ex., plástico), de brilação
ventricular ou de outra arritmia cardíaca.94

Uso crônico
Os efeitos neurotóxicos do abuso prolongado de inalantes
incluem síndromes neurológicas que re etem dano a partes do
cérebro envolvidas com cognição, movimento, visão e audição. As
anormalidades cognitivas variam de alterações leves até demência
grave. Outros efeitos que podem ocorrer são di culdade na
coordenação dos movimentos, espasticidade, diminuição da audição
e visão. Os inalantes são também altamente tóxicos a outros órgãos,
como coração, pulmões, fígado e rins.
Alguns danos ao SNC e outros órgãos podem ser pelo menos
parcialmente reversíveis com a interrupção do uso, porém muitas
vezes os efeitos podem ser irreversíveis.93 Certos efeitos são mais
especí cos de determinadas substâncias, como a perda de audição
(tolueno e tricloretileno); lesão no SNC, alterações hepáticas e renais
(tolueno); neuropatias periféricas (hexano e óxido nitroso); e
alterações na medula óssea (benzeno).
Há controvérsias quanto à dependência ou tolerância de
inalantes. Não há evidências para e cácia de tratamento especí co
para o uso abusivo dessas substâncias.

Benzodiazepínicos
Os benzodiazepínicos (BZD) estão entre as drogas mais
frequentemente prescritas no mundo, devido às suas propriedades
sedativas, ansiolíticas, hipnóticas, amnésicas, antiepilépticas e de
relaxamento muscular.95 Estima-se que 50 milhões de pessoas façam
uso diário de BZD, sendo a maior parte delas formadas por mulheres
acima de 50 anos que apresentam doenças crônicas.96
Todas as drogas dessa classe podem ser administradas oralmente,
e a maioria é mais bem absorvida por via oral do que parenteral,
com exceção do lorazepam, que é mais bem absorvido por via
intramuscular, e o diazepam, que pode ser administrado por via
intravenosa.
O mecanismo de ação dos BZD é mediante estimulação do
receptor do ácido gama-aminobutírico (GABA), principal
neurotransmissor inibitório do SNC. Além disso, já foram
descobertos pelo menos três receptores benzodiazepínicos no
cérebro que atuam em conjunto com o GABA. O receptor Bz1
(ômega 1) contribui para os efeitos indutores do sono, e os Bz2 e
Bz3 (ômega 2 e 3) parecem ser mais ativos na atividade de
relaxamento muscular e ansiolítica.17

Potencial de abuso, tolerância e dependência


O abuso de BZD pode ser do tipo abuso deliberado por pessoas
com dependência química, ou abuso por pessoas que iniciam o uso
da medicação por uma indicação terapêutica e acabam tornando
esse uso inapropriado. O abuso deliberado de BZD geralmente se
inicia a partir de um uso recreacional, sendo muitas vezes utilizado
com outras substâncias a m de aumentar o efeito euforizante.97 O
potencial de tolerância é controverso. Pode haver desenvolvimento
de tolerância para os efeitos hipnóticos, sedativos e de coordenação
motora, mas nem sempre para os efeitos ansiolíticos e de prejuízo na
memória.97,98

Intoxicação
As reações tóxicas são caracterizadas por vários níveis de
sedação e depressão do SNC, diminuindo as funções cardíacas e
respiratórias. No tratamento, além do suporte clínico adequado, da
manutenção dos sinais vitais e de avaliações cardiorrespiratória e
neurológica, utiliza-se umazenil 1 mg IV em 1 a 3 minutos ou 1 a 5
mg IV em 2 a 10 minutos C .99 Se a intoxicação for realmente por
BZD, a sedação reverte rápido. Entretanto, devido à meia-vida curta
do umazenil, pode ser necessário repetir a dose em 20 a 30
minutos. Como a mortalidade por overdose de BZD é baixa, o uso de
umazenil deve ser indicado com bastante cautela. Ele deve ser
reservado para situações graves, ou quando não há outro método
diagnóstico mais apropriado para se veri car a origem da
intoxicação D . Caso não ocorra melhora total ou parcial com o
umazenil, deve-se pensar em intoxicação por opioides
isoladamente ou em conjunto com BZD, já que produzem quadros
semelhantes.17
Os BZD possuem ampla margem de segurança na superdosagem,
com grau mínimo de depressão respiratória, e a dose letal
comparada com a normalmente prescrita é de cerca de 200 para 1
ou mais. Nas tentativas de suicídio, mesmo em doses elevadas, os
sintomas são apenas sonolência, letargia, ataxia, confusão e leve
depressão dos sinais vitais. Entretanto, quando associados a outros
depressores como álcool,16 antidepressivos tricíclicos e barbitúricos,
doses menores de BZD podem levar à morte. O alprazolam parece
ter maior potencial de toxicidade do que outros BZD e, portanto, sua
prescrição deve ser bastante cautelosa para pessoas com risco
aumentado de dependência química ou suicídio.100

Abstinência
A síndrome de abstinência dos BZD ocorre pelo surgimento de
novos sintomas com a parada abrupta ou diminuição da dose da
medicação, especialmente após o uso prolongado. Deve ser
diferenciada dos sintomas de rebote, que ocorrem com o
ressurgimento mais intenso dos sintomas iniciais pelos quais a
medicação foi prescrita. O rebote é observado sobretudo com os
BZD de curta ação e não tem relação com o tempo de uso, podendo
aparecer após apenas uma tomada de dose.
Sintomas de retirada podem surgir mesmo nas doses geralmente
prescritas pelos médicos, após utilização diária superior a duas a
três semanas. Incluem cefaleia e ansiedade (80%), insônia (70%),
tremor e fadiga (60%), bem como sintomas de rebote, alterações da
percepção, tinido, sudorese e diminuição da habilidade de
concentração. A retirada ou diminuição abrupta de doses altas de
BZD pode precipitar delirium, algumas vezes com sintomas psicóticos
e convulsões.
A síndrome de abstinência inicia-se cerca de 2 a 3 dias após a
retirada de um BZD de meia-vida curta e pode permanecer por até
10 dias após a retirada de um BZD de meia-vida longa. Cerca de
50% dos pacientes que usam BZD por mais de 12 meses evoluem
para sintomas de abstinência.96
A dependência de BZD pode ser prevenida pela adesão às
recomendações para o curto prazo de prescrição (até 2 a 4 semanas,
quando possível) e também por baixas doses. Quando as doses são
maiores e o uso é crônico, recomenda-se que a retirada seja gradual.
A retirada de BZD em pacientes dependentes é viável e não precisa
ser traumática, se criteriosa e individualmente manejada.
A maneira de fazer a retirada do BZD varia conforme o costume
do médico. Alguns optam pela redução de um quarto da dose por
semana, enquanto outros preferem decidir os prazos junto com o
paciente, o que dura em torno de 6 a 8 semanas. Preconiza-se a
retirada de pelo menos 50% da dose utilizada nas primeiras duas
semanas. Uma tática é a substituição em doses equivalentes (TABELA
114.6) por BZD de meia-vida mais longa, como diazepam ou
clonazepam.101-103 A substituição para a forma líquida da
medicação facilita a redução da dose D .96
O tratamento psicoterápico assemelha-se ao de outros tipos de
dependências químicas. Algumas medicações como paroxetina,
trazodona e infusão de doses baixas de umazenil foram testadas
como coadjuvantes no tratamento de retirada de BZD, porém com
evidências inconclusivas.101,104
O melhor local para tratamento é ambulatorial, mas casos de
maior gravidade podem exigir internação hospitalar. É importante
lembrar que com a abstinência dos BZD obtém-se melhora da
capacidade cognitiva e do funcionamento psicomotor,
principalmente em idosos, além dos benefícios econômicos.105
TABELA 114.6 → Doses terapêuticas e equivalentes de benzodiazepínicos
DOSE TERAPÊUTICA (mg) DOSE EQUIVALENTE

Alprazolam 0,75 a 4 1

Bromazepam 1,5 a 18 6

Lorazepam 2a6 2

Clordiazepóxido 15 a 100 25

Clonazepam 1a3 2

Diazepam 4 a 40 10

Nitrazepam 5 a 10 10

Fonte: Adaptada de Sordi e colaboradores.103

PROGNÓSTICO
Apesar de haver certa heterogeneidade, a maioria dos indivíduos
com dependência de substância psicoativa apresenta um curso
crônico. Períodos de uso sustentado são intercalados por outros de
remissão parcial ou completa. Mesmo que certos indivíduos sejam
capazes de atingir longos períodos de remissão sem um tratamento
formal, a abstinência é mais frequentemente mantida por aqueles
que se vinculam a algum tratamento formal ou grupo de autoajuda.
A maioria dos pacientes tratados para dependência de drogas (mais
de 70% em alguns estudos) é capaz de parar com o uso compulsivo
ou abster-se da droga em algum momento da vida. Um número
menor (15 a 20%) tem um padrão crônico de recaídas ao longo de
10 a 20 anos.44

Referências

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