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Dependência química
Ernani Luz júnior
A terapia cognitivo-comportamental, da qual Aaron Beck é um dos pioneiros com seus
trabalhos sobre depressão, teve seu uso rapidamente estendido para diversas outras
patologias, entre elas a dependência química. Mas foi só a partir de 1993, com a
publicação de Cognitive Therapy of Substance Abuse, por Beck e colaboradores, que a
utilização da terapia cognitiva das dependências químicas se expandiu.
Marlatt e Gordon, com a publicação de Relapse Prevention em 1985, aportaram
importante contribuição para a abordagem dos usuários de drogas, com os conceitos
de lapso e de situação de risco e com as novas técnicas para prevenção de recaídas.
Também Miller e Rollnick, em 1992, com a publicação de seu livro Motivational
Interviewing: preparing people to change addictive behavior, examinando
profundamente a ambivalência dos pacientes e suas dificuldades de fazer e de aceitar
mudanças e desenvolvendo novas técnicas motivacionais, enriqueceram
significativamente o arsenal terapêutico para o tratamento das dependências.
Com dependentes químicos, a TCC vem sendo aplicada como psicoterapia individual,
psicoterapia de grupo, terapia familiar e, também, por ambientes cognitivamente
orientados (unidades hospitalares, escolas terapêuticas, hospitais-dia, comunidades
terapêuticas).
Sendo uma forma de tratamento complementar, pode e vem sendo utilizada em
associação com outros métodos terapêuticos, tais como: a terapia dos doze passos, os
grupos de auto-ajuda, as terapias psicodinâmicas o tratlamento farmacológico das
dependências químicas e o tratamento das co-morbidades psiquiátricas.
Este capítulo tratará o tema exclusivamente com base nos conceitos de Beck, embora
a contribuição de Marlatt e de Miller esteja implícita em muitos momentos. Os
conceitos de dependência química e adicção serão utilizados, aqui, como sinônimos, e a
palavra fissura será usada para a tradução de craving (o apetite patológico por uma
droga, com manifestações fisiológicas e psicológicas).
Na continuação, o capítulo abordará:
O modelo cognitivo da adicção a drogas e das recaídas. A formulação cognitiva. As
intervenções voltadas para cada uma das sete fases do modelo cognitivo As técnicas
cognitivas e comportarmentais utilizadas. Uma breve ilustração clínica. Alguns
instrumentos padronizados em anexo.
O MODELO COGNITIVO
Em 1993, Beck apresenta seu modelo cognitivo do uso de substâncias, também
denominado Modelo Cognitivo de Recaída (Figura 17.1)
1 – Situação – ou situações – atuam como estímulos de alto risco.
2. Estímulos (internos ou externos) ativam crenças centrais sobre o indivíduo, o mundo
e o futuro e as crenças sobre o uso de drogas.
3. As crenças ativadas, geralmente não-conscientes, levam ao surgimento de
pensamentos automáticos.
4. Os pensamentos automáticos desencadeiam o surgimento de sinais e sintomas
fisiológicos interpretados ou reconhecidos como fissura (craving).
5. Surgem crenças permissivas, facilitadoras.
6. Regido pelo craving e autorizado pelas crenças facilitadoras, o indivíduo planeja e
providencia o acesso à droga e inicia seu uso.
7. O uso da substância desencadeia uma situação contraditória: desejo de continuar o
uso por um lado, e sentimentos de culpa e fracasso, por outro (classicamente
denominado efeito de violação da abstinência – EVA).
8. O desconforto psicológico ativa mais crenças disfuncionais e o uso da droga tem
continuidade.
Este não é um modelo etiológico, pois não explica a origem e o desenvolvimento das
dependências químicas, mas permite compreender o que contribui para a manutenção do
uso de substâncias psicoativas e para a tendência a recaídas, assim como identificar e
definir as áreas às quais dirigir as intervenções terapêuticas.
MODELO COGNITIVO DO USO DE SUBSTÂNCIAS (Beck e al., 19933B)
A FORMULAÇÃO COGNITIVA
Para o efetivo tratamento de um caso, é necessária uma formulação cognitiva
abrangente, isto é, a coleta, integração e síntese de dados sobre o paciente, que permita
fazer hipóteses sobre a etiologia de suas crenças disfuncionais e de seus principais
sintomas, bem como planejar o tratamento dessas crenças disfuncionais e sintomas do
paciente.
Os dados coletados incluem: identidade, informações relevantes de sua história pessoal,
o problema atual, sua lista de problemas, seu diagnóstico psiquiátrico (utilizando C1D-
10 ou DSM-IV), seu desenvolvimento e o “perfil cognitivo”.
No início do atendimento é feita uma formulação cognitiva inicial, que permite as pri-
meiras intervenções terapêuticas, mas essa formulação vai sendo corrigida e completada
até o final do tratamento.
Judith Beck lista as sete questões que essa formulação deve procurar responder:
Qual é o diagnóstico do paciente? Quais são seus problemas atuais, como esses
problemas se desenvolveram e como são mantidos? Que pensamentos e crenças
disfuncionais estão associados aos problemas? Quais reações (emocionais, fisiológicas e
comportamentais) estão associadas ao seu pensamento? Que aprendizagens e
experiências antigas (e talvez predisposições genéticas) contribuem hoje para seus
problemas? Quais são suas crenças subjacentes (incluindo atitudes, expectativas e
regras) e pensamentos? Como ele enfrentou suas crenças disfuncionais? Que
mecanismos cognitivos, afetivos e comportamentais, positivos e negativos, ele
desenvolveu para enfrentar suas crenças disfuncionais? Como ele via (e vê) a si mesmo,
os outros, seu mundo pessoal, seu futuro? Que estressores contribuíram para seus
problemas psicológicos ou interferiram em sua habilidade para resolver esses
problemas?
AS INTERVENÇÕES
Em grupo ou isoladamente, a recaída será sempre um processo solitário de repetidas
tomadas de decisão. O que a TCC procura é, modificando as situações e a interpretação
do indivíduo de situações e estímulos, ou atenuando suas crenças disfuncionais mais
importantes sobre o uso de drogas, treinar o paciente a desafiar seus pensamentos
automáticos, a elaborar pensamentos e crenças alternativas no manejo de suas fissuras e
no desafio das crenças permissivas a que mais frequentemente costuma recorrer, para
habilitá-lo a desenvolver um estilo de vida sem drogas e a tomar, repetidamente,
decisões que modifiquem o funcionamento do processo adictivo.
Uma forma didática de apresentarmos a TCC do dependente químico é, considerando as
sete fases do modelo cognitivo, examinar as intervenções voltadas para cada uma delas.
Fase 1 – Os estímulos de alto risco
Estímulos externos e internos podem ativar crenças disfuncionais sobre o uso de drogas.
Pessoas, lugares e objetos relacionados com o uso da droga funcionam como estímulos
externos. Por exemplo: ex-companheiros de uso, fornecedores, locais onde usava,
objetos que utilizava para se drogar, objetos semelhantes à droga (pós, líquidos,
cigarros), comerciais de rádio e TV, músicas que descrevem ou exaltam o uso de
drogas, filmes que mostram rituais de drogas, etc.
Como estímulos internos podem funcionar: as lembranças e os estados psicológicos de
desconforto (depressão, ansiedade, irritacão, frustração) ou de bem-estar (euforia,
experiências sexuais, experiências místicas) que tenham sido alterados ou produzidos
pelo uso de drogas e que estimulem crenças antecipatórias ou crenças de alívio.
Esses estímulos internos e externos que podem ativar o processo de recaída são também
chamados de situações de alto risco. A identificação das situações de risco que sejam
relevantes para determinado paciente, é sem dúvida, indispensável no processo de sua
TCC. Tal identificação pode ser feita pelo trabalho clínico: estudo detalhado de
recaídas anteriors, dos momentos em que apresentou fissura nas fases de abstinência,
estudo de seu dia-a-dia. Outro recurso para essa identificação é o uso de inventários e
questionários. Técnicas de dramatização também são utilizadas nesta fase.
Fase 2 – As crenças ativadas sobre o uso de drogas
As crenças que facilitam o uso de drogas são as chamadas crenças adictivas e são
descritas em três categorias:
Crenças antecipatórias: expectativa de que o uso da droga produzirá recompensa,
gratificação ou prazer.
Crenças de alívio: expectativa de que o uso da droga aliviará ou afastará algum
desconforto ou sofrimento.
Crenças permissivas ou facilitadoras: consideram o uso da droga aceitável, apesar das
consequências.
Beck preconiza que as crenças adictivas giram em torno da busca de prazer, da solução
de problemas e do alívio do desconforto e variam de pessoa para pessoa e com o tipo de
droga preferida. Entre as crenças adictivas, cita:
• a droga é necessária para manter o equilíbrio psicológico ou emocional;
• a droga melhorará o funcionamento social e intelectual;
• a droga trará prazer e excitação;
• a droga fornecerá força e poder;
• a droga terá efeito calmante;
• a droga trará alívio para a monotonia, ansiedade, tensão e depressão;
• sem o uso da droga, o craving – fissura – continuará, indefinidamente e cada vez mais
forte.
Em oposição às crenças adictivas, os pacientes apresentam crenças de controle, aquelas
que diminuem a possibilidade do uso e abuso de substâncias
Os dependentes lidam com situações mistas, ou seja, convivem com a coexistência de
crenças adictivas e crenças de controle.
Cabe à TCC modificar e atenuar as crenças adictivas, fortalecendo as crenças de
controle do paciente e auxiliando-o a desenvolver novas. Para tanto, é importante a
identificação das crenças adictivas mais influentes no comportamento de cada paciente.
Essa identificação pode ser feita pelo contato clínico com o paciente durante as sessões
e também por inventários. Desses inventários, destacam- se o inventário de crenças
sobre o uso substâncias e o Inventário de crenças sobre fissuras, ambos desenvolvidos
por Fred Wright (em anexo).
Identificadas as crenças adictivas mais relevantes no comportamento do paciente, o
campo dos esforços terapêuticos está balizado. No entanto as crenças adictivas –
desenvolvidas e superapreendidas ao longo do tempo – foram reforçadas por inúmeras
experiências de uso da droga. Além disso, todos os frustrados esforçosi anteriores de
abandonar o uso da droga reforçaram as crenças adictivas e desenvolvera a crença de
que é inútil tentar contolar a adicção. Modificar crenças adictivas, portanto, é tarefa
bastante difícil, porque elas são profundas e extremamente resistentes à mudança.
Para modificar as crenças adictivas é necessário:
identificar crenças adictivas e avaliar sua real importância na vida do paciente;
familiarizar o paciente com o modelo cognitivo de recaída; examinar e testar as crenças
adictivas; desenvolver crenças de controle; 5. testar e praticar crenças de
controle.
Fase 3 – Os pensamentos automáticos (PA)
A interpretação de uma situação (mais que a situação em si) influencia a resposta do
indivíduo. Essa interpretação é muitas vezes expressa por um pensamento automático.
Os pensamentos automáticos são pensamentos, idéias ou imagens que coexistem com o
fluxo mais manifesto do pensamento; são pouco conscientes, não são questionados, pa-
recem surgir automaticamente e geralmente são tomados como verdadeiros. Costumam
preceder e determinar alterações importantes no humor, no comportamento e no estado
psi-cofisiológico do indivíduo.
O treinamento do paciente em identificar seus pensamentos automáticos – testando sua
realidade e utilidade – é uma das ferramentas mais utilizadas na TCC. A investigação
dos pensamentos automáticos pela técnica da seta descendente é o caminho mais usado
para a identificação das crenças centrais. Evidentemente, no tratamento da dependência
química, o foco são os pensamentos automáticos (idéias, pensamentos, imagens) que
precedem o surgimento da vontade de usar drogas e da fissura. Freqüentemente esses
pensamentos são muito simples e repetitivos.
Na TCC dos dependentes químicos, os pacientes necessitam se tornar experts em mo-
nitorar esses pensamentos. Devem, imediatamente após o surgimento da fissura, iniciar
a investigação, procurando identificar o(s) pensamento(s) automático(s), desafiá-lo(s),
examinar sua validade e utilidade e trabalhar em
sua modificação, reconhecendo os efeitos desses PA em suas sensações físicas e na
vontade de usar a droga.
Para facilitar essa tarefa, o paciente em tratamento, seja em consultório ou em regime
de internação, deve ser treinado a fazer um registro do pensamento disfuncional – RPD
-e de suas fissuras.
Nesta fase, as técnicas mais utilizadas são: l) identificação, avaliação e
questionamento de PA;
2) RPD;
3) seta descendente.
Fase 4 – A fissura (craving)
O desejo muito intenso de utilizar a droga e as sensações fisiológicas concomitantes
constituem o conjunto que os pacientes costumam identificar como “fissura”, e que
torna tão difícil evitar o uso da droga. É importante que o paciente aprenda como lidar
com suas fissuras, sendo essa uma das metas mais importantes no tratamento da
dependência química. Geralmente o paciente ignora fatos e mantém uma série de
crenças disfuncionais a respeito da fissura.
A TCC no manejo da fissura volta-se para:
aumentar o conhecimento do paciente sobre fissuras; identificar e corrigir crenças
disfuncionais sobre fissuras; identificar e reforçar as técnicas que o paciente utiliza
espontaneamente e com êxito para o manejo das fissuras; treinar o paciente em técnicas
cognitivas e comportamentais para o enfrentamento das fissuras.
A fissura pode ser provocada, inadvertidamente, mesmo por atividade que tenha
objetivo terapêutico. O simples relato de fatos relacionados com o uso da substância
pode “fissurar” o paciente ou outro componente de um grupo, por exemplo. Mas
também é possível provocar a fissura intencionalmente, para treinar atividades de
tratamento. Assim, é importante que no programa de tratamento as últimas atividades do
dia ou da sessão não sejam potencialmente acionadoras de fissura, mas sim atividades
de relaxamento ou técnicas de distração.
É fundamental que o paciente seja esclarecido sobre a fissura: quando e por que
ocorre, quanto tempo dura, quais são seus sintomas, seus desencadeantes, os tipos, etc.
A identificação das crenças disfuncionais sobre fissura, relevantes para o paciente, pode
ser feita no trabalho clínico e também por meio de inventários. Fred Wright, já citado
anteriormente, elaborou um inventário para esse objetivo (em anexo).
O trabalho com as crenças identificadas requer os mesmos passos citados na Fase 2:
identificar as crenças disfuncionais sobre fissura e avaliar sua importância para o
paciente; familiarizar o paciente com o modelo cognitivo; examinar e testar a crença
disfuncional, sua veracidade, sua utilidade, as evidências pró e contra; desenvolver
crenças alternativas – de controle; testar e praticar as crenças de controle desenvolvidas.
Para o enfrentamento das fissuras concomitante ao trabalho voltado para as crenças
disfuncionais, o paciente tem que ser treinado em diversas técnicas cognitivas e
comportamentais. Partindo de manejos que o dependente já utilizava – com algum êxito
-, as diversas técnicas podem ser apreendidas (por meio de dramatizações), cabendo ao
paciente eleger duas ou três que pareçam mais úteis para sí, treinando-as e reforçando-
as. As técnicas mais utilizadas são: distração, cartões de enfrentamento, assertividade,
técnicas de visualização, refocalização, relaxamento e dramatização (descritas mais
adiante).
Fase 5 – As crenças permissivas ativadas
Os pacientes, quando não estão experimentando a fissura, geralmente são capazes de
reconhecer as consequências prejudiciais do uso da droga e a necessidade de evitá-la.
Com a intensificação do craving, são ativadas crenças de que não há razões fortes o
suficiente para não usar ou de que há razões que justificam o uso, apesar das
consequências: são as crenças permissivas.
Pelo estudo das fissuras e das recaídas vivenciadas pelo paciente e por meio de
dramatizações, pode-se auxiliá-lo a identificar os pensamentos automáticos e as crenças
permissivas a que mais freqüentemente recorre. Ele necessita ser treinado a monitorar o
surgimento de suas crenças permissivas, questionando-as, testando-as e modificando-as.
As dramatizações em ambiente protegido, sem acesso a drogas são indicadas para esse
trabalho.
O trabalho cognitivo a ser feito com as crenças permissivas segue os mesmos passos
citados nas crenças adictivas e nas crenças sobre fissura. Além disso, convém lembrar
que as crenças de controle desenvolvidas podem utilizadas como conteúdo de cartões de
enfrentamento.